segunda-feira, 25 de junho de 2012
BATUQUE MUKONGO
10
Zavula era uma casa comprida
com um chapéu de telhas
sob o qual se abrigava
um longo comboio a vapor
pouca terra pouca terra pouca
terra
apito de brinquedo escondido
na mão do pai natal invisível
fuííí… fuííí… fuííí…
comboio de fumaça encardida
engolindo o morro aos poucos
pouca terra pouca terra pouca
terra
pouca terra para os contratados
longas filas de surucucus
mordendo os cafezais
pouca terra pouca terra pouca
terra
tragada pelo soma do Bailundo
na cata forçada do escravo
pelo branco à espera na camioneta
expectante a arrebanhar
cinquenta almas de boa saúde
músculo teso
dentadura impoluta
visão perfeita
olhares perfurantes das crianças
escondidas entre os arbustos
o mato no silêncio do cacarejar
das galinhas do mato
a vê-los subir o camião do outro
mundo
sempre cantando
*jamba weya la yo
jamba weya la yo
uwa ugenda nda uwa
uwa ugenda nda uwa
uvala o
caminhos áridos de esperança
até ao Uíge na Uízi
agradecendo humildes ao capataz
o cobertor a farda de sarja
sorrindo pelo feijão e peixo seco
olhando de viés a fuba nova
cantando sempre cantando
a memória do kimbo já longe
porque quem canta seus males
espanta
a primavera vai e vorta sempre
a primavera vai e vorta sempre
*jamba
é que a trouxe (a viagem)
jamba
é que a trouxe
é
bom viajar
é
bom viajar
mas
traz sofrimento
a mocidade nunca vorta mais
nas roças perdidas de cachos de
dendém
mal sabendo mal sonhando
que um dia a bandeira pintaria em
glória
a mocidade perdida no seu pano
11
Como chegaram
assim partiram
vazios de ilusões
deixadas na mata com o capim
no poder dos cafezais
na caneca de litro de vinho
empurrada pelo fubeiro
uma após a outra
bebe lá oh homem
não tens dinheiro fica fiado
partiam como vieram
sem nada mas sempre cantando
a primavera vai e vorta sempre
sem saberem o que era primavera
a não ser que voltava sempre
a primavera vai e vorta sempre
a mocidade nunca vorta mais
pouca terra pouca terra pouca
terra
piava a mbemba soberba
circunferenciando os céus
pelo olho vítreo que feria o rato
a cobra ou a lebre
partiam como vieram
em cima do mesmo camião
com um pouco mais de imbambas
djamba weya la yo
djamba weya la yo
wa ugenda nda ua
wa ugenda nda ua
uvala wo
a víbora enroscada no rato
a lebre nas asas da mbemba
a luz da noite escondendo o povo
dorido
vilipendiado e sofrido
à volta da varanda da casa grande
quebrei o ferro redondo das
grilhetas
imaginárias nos terreiros do café
acariciado toda a vida por mãos mestras
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA
JOÃO
MELO
Jornalista, escritor publicitário,
professor e Deputado à Assembleia Nacional, nasceu em Luanda em 1955. É
licenciado em Comunicação Social e fez o mestrado em Comunicação e Cultura no
Brasil. Foi Presidente da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos
e é produtor de uma vasta obra literária, sobretudo em poesia e, ultimente
prosa, de onde foram retirados os contos aqui presentes.
O
PATO REVOLUCIONÁRIO E O PATO CONTRA-REVOLUCIONÁRIO
O s angolanos,
além de gostarem de makas, de farrar até de manhã, de chegar tarde aos seus
compromissos e de usar e abusar do humor, inclusive contra eles mesmos, também
sempre foram pós-modernos avant la lettre. Iconoclastas, não levam nada demasiado
a sério, chegando ao ponto de abandalhar – este termo pode ser pouco literário,
mas em fim o que fazer, se o próprio escritor é angolano?– completamente as lições,
os modelos e as regras que o mundo tem tentado, desde sempre, impor-lhes. A
história contemporânea está cheia de exemplos que confirmam a profunda e multiforme
irresponsabilidade dos angolanos. Primeiramente, levados aos milhões para as
américas, como escravos, não se deixaram dizimar nem pela brutal exploração de
que foram vítimas nem pelas desconhecidas doenças que tiveram de enfrentar,
como a gripe ou a sífilis. Em vez disso, ensinaram aos seus próprios
exploradores como se forjava o ferro, como se extraía da terra os diamantes ou
o ouro ou como se plantava (e colhia) a cana-de-açúcar ou o café.
De igual modo,
ensinaram-lhes como se toca e como se dança e os ritmos ancestrais que levam no
sangue, espalharam-se até aos pampas, no sul. Recriaram as línguas que lhes
tentaram impor, introduzindo nas mesmas milhares de novos vocábulos e expressões.
Contribuíram
para africanizar as religiões hindu-europeias que encontraram no novo
continente. Geraram heróis, como Zumbi, no Brasil e os dezanove angolanos que participaram
na luta pela independência do Chile. Finalmente, transformaram a vasta e
solarenta região entre o Caribe e o Brasil num celeiro de mulatas, consideradas
hoje, com toda a justiça, um autêntico produto global.
Enquanto isso,
os que tinham ficado acolheram os agressores estrangeiros de uma maneira que
ficará registada para sempre nos anais da convivência humana: combatendo-os
ferozmente, mas fazendo negócios com eles e dando-lhes as suas filhas em casamento;
adoptando as suas religiões, mas ensinando-lhes rituais fantasmagóricos, que os
enlouqueciam; provando do seu vinho aguado, mas dando-lhes a experimentar bebidas
desconhecidas; e por fim, levando-os até às profundezas dos sertões mais recônditos,
onde eles contraíam febre-amarela e sucumbiam irremediavelmente. Para quem não
sabe, assinale-se que essas diferentes e múltiplas estratégicas eram usadas não
em alternativa, mas simultaneamente, para desespero dos invasores, que até hoje
são absolutamente incapazes de conhecer os angolanos, nomeadamente o seu
instinto de sobrevivência e a sua flexibilidade.
Um detalhe
particular incompreensível, para os referidos invasores, é como no decurso
desse fantástico processo, os angolanos se foram misturando entre si, mas também
com eles, ambos matando e fornicando destemperadamente uns com os outros,
isto é, deglutindo-se mutuamente, numa história de sangue e risos, de ameaças
e promessas, de juras e traições, de crimes e redenções, tornando-se todos
cada dia mais angolanos. Numa demonstração de que, realmente, os
extremos se tocam, isso é considerado o cúmulo da irresponsabilidade,
não apenas pelos antigos invasores mas também pelos actuais cazumbis
ultranacionalistas e neorracistas.
Enfim, e mais
recentemente, os angolanos foram os autores de duas das mais
prodigiosas
operações de engenharias social conhecidas na história contemporânea:
transformaram o
socialismo marxista-leninista em socialismo esquemático e o capitalismo neoliberal
em capitalismo mafioso. Alguns autores chamam ao primeiro afroestalinismo e ao
último capitalismo selvagem, mas isso são designações ideológicas, sem qualquer
serventia, com as quais a boa literatura pós-moderna não deve perder tempo.
Se o camarada
Chung Park Lee soubesse um pouco de história angolana – não aquela ensinada nos
manuais e nos compêndios, mas a sua história quotidiana, a qual, na verdade,
ainda está por escrever, pois trata-se de uma empreitada que implica
ultrapassar uma série ideias feitas e preconceitos gerais–, teria desconfiado
logo da pergunta daquele guerrilheiro do MPLA, chegado à Coreia do Norte há
apenas duas semanas, a fim de fazer um treinamento militar:
– Se um pato
puser um ovo em cima da fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do sul, a
quem pertence o ovo?
O camarada Lee,
como se costuma dizer, teve vontade de se coçar na cadeira.
Ele tinha
acabado de sentar-se depois de concluir uma aula sobre a traição histórica do
regime da Coreia do Sul, cujos dirigentes não passavam de um bando de
vendilhões totalmente enfeudados ao execrável e abominável imperialismo
norte-americano, tendo perguntado aos estudantes – uma amálgama de jovens
revolucionários provenientes de diversas regiões do então chamando Terceiro
Mundo, do próximo Vietname à longínqua Nicarágua, todos eles compreensivelmente
bem intencionados, como quaisquer jovens, revolucionários ou não – se algum
deles tinha duvidas ou se queria
fazer alguma
pergunta.
– Como?
perguntou, enquanto pensava na melhor resposta àquela inusitada questão.
– É muito
simples! retorquiu o jovem guerrilheiro angolano. Imagine o camarada professor
que um pato põe um ovo mesmo em cima da fronteira entre a Coreia do Norte e a
Coreia do Sul. A que país deve pertencer esse ovo?
O professor não
resistiu e coçou-se discretamente, antes de responder, como o ar mais convicto
de que foi capaz:
– Bem. O ovo
devia estar um pouco mais lado de cá, portanto, só podia pertencer à Coreia do
Norte!
– Não, não...o
ovo estava exactamente no meio da fronteira, nem, um milímetro para cá, nem
para lá...
– Nesse caso,
então, respondeu o professor, o pato devia estar a fugir da Coreia do Sul para
se juntar à gloriosa revolução do povo coreano, conduzida pelo nosso Grande Líder,
Camarada Presidente Kim Il Sung. Portanto, o ovo tinha de ser da Coreia do Norte!...
O guerrilheiro
questionador devia ser malanjino ou catetense, os quais, de acordo como mapa
ideossincrático dos angolanos, têm a mania que são mais espertos do que os
outros. Falando quase em surdina, medindo bem as palavras e com um leve brilho trocista
assomando-lhe discretamente aos olhos, insistiu:
– Camarada
professor, desculpe, o pato não vinha da Coreia do Sul, pois era originário da
Coreia do Norte... era um pato revolucionário!...
O professor
respondeu instintivamente, para não dizer mecanicamente:
– Era um
traidor! Se pôs em cima da fronteira, é porque estava a tentar fugir...
– Não discuto,
camarada professor! Mas ainda não me respondeu. E o ovo?
O camarada Chung
Park Lee pensou, com leve sobressalto, que o jovem guerrilheiro do MPLA queria
pôr à prova a sua fidelidade à justa causa da Revolução Coreana e aos ensinamentos
do Grande Líder, Kim II Sung. Decidiu, por isso, terminar com aquela
brincadeira de mau gosto de uma vez por todas Quase berrou:
– O pato era um
contra-revolucionário! Mas, seja como for, os nossos valorosos combatentes
guarda-fronteiras jamais deixariam que esbirros do Sul se apossassem
desse ovo!...
Perante essa
peremptória e definitiva afirmação, quem se sobressaltou foi o guerrilheiro angolano.
Imaginou o ovo todo esburacado no meio da fronteira, na zona de segurança entre
as duas Coreias, enquanto o pobre pato se desafazia em penas e pequenos
movimentos descoordenados, seguidos de um leve fragor de ossos e berros
exíguos, que se soltavam com dificuldade da sua garganta asfixiada pela dor.
Uma auréola
amarela e branca, levemente viscosa, tingia o chão, alastrando-se cada vez
mais, em círculos crescentes. Rapidamente, a clara e a gema do ovo, totalmente desfeitas,
misturara-se com o sangue do pato sacrificado pela sempre pronta vigilância revolucionária
dos guardas coreanos. «A Revolução, afinal, é isso?», perguntou a si mesmo,
antes de responder ao camarada Lee.
Sem pretender
adiar essa resposta por muito tempo, o narrador é obrigado, contudo, a fazer
uma breve interrupção neste ponto do relato para, em duas ou três linhas,
traçar o perfil do jovem guerrilheiro, pois talvez isso útil para entender a
sua dúvida existencial, digamos assim, quanto ao destino daquele ovo. Pedro
Muanza Agostinho – assim se chamava ele – era um antigo estudante de pouco mais
de 18 anos, que aderira ao MPLA para ajudar a realizar um sonho que, na altura
era ardentemente partilhado pela maioria dos angolanos: expulsar os colonialistas
portugueses e tornar Angola um país independente.
Como e para quê,
apenas o intuía levemente e, de certas palavras que passar a escutar assim que
se juntou ao movimento – tais como «socialismo» ou «Revolução»–, conhecia
somente a configuração sonora. Alguns meses depois de ter chegado ao Congo,
onde estavam as bases da guerrilha, foi mandado para a Coreia do Norte – que
he disseram ser um país revolucionário e
anti-imperialista –, a fim de fazer um treinamento militar de seis meses.
Pedro chegou à
Coreia do Norte cheio de perguntas. Contudo, aquele absurdo diálogo com o
camarada Chung Park Lee fazia-o começar a desconfiar de que as suas perguntas jamais
teriam respostas. Como tinha apenas 18 anos, ele não mediu toda a extensão
desse facto. Talvez por isso, resolveu dar ao mesmo um xeque-mate. Como bom
angolano, fê-lo com toda a serenidade do mundo, gozando cada palavra que pronunciava
como se estivesse a ter um orgasmo físico.
– Lamento
informá-lo, professor: os patos não põem ovos, só as patas!..
O que aconteceu
a seguir conta-se em três parágrafos. O camarada Chung Park Lee, mortalmente
perturbado com o angolano, fez um relatório completo ao Departamento de
Relações Exteriores do Partido, o qual remeteu o assunto à reunião do
Secretariado, que, depois de analisá-lo, o encaminhou à sessão seguinte do
Comité Central, dali a duas semanas, acompanhado por um dossiê completo, no
qual entre diversas informações preciosas, absolutamente rigorosas e
objectivas, era acusado o camarada Pedro Muanza Agostinho, guerrilheiro
angolano enviado pelo MPLA para fazer um treino militar de seis meses na
República Democrático e Popular da Coreia, de ter tentado facilitar a fuga de
um norte-coreano para o território ilegalmente controlado pelos esbirros do
imperialismo norte-americano. Além disso – assegurava o dossiê –. O mesmo
camarada tinha o hábito de fazer perguntas provocatórias aos seus professores, que
ficavam sem saber o que fazer, pois tratava-se de questões que não estavam previstas
nos livros de ensinamentos do Grande Líder, Kim II Sung.
A tais
gravíssimas acusações, acrescentava-se ainda o facto jamais visto de, apenas duas
semanas depois de ter chegado, o camarada Agostinho ter organizado no
dormitório uma festa para a qual arregimentou cubanos, brasileiros, mexicanos,
congoleses, cabo-verdianos e outros terceiro-mundistas irresponsáveis, onde
todos eles, alternadamente, tocavam estranhos ritmos, dançavam lascivamente,
comiam e bebiam como burgueses e fornicavam entre eles com escandaloso prazer e
alegria. Após essas orgias – comentava, estupefacto, o anónimo autor do dossiê
–, o mesmo passava os dias soltando gargalhadas descomunais pelos corredores da
academia.
O veredicto foi
implacável. O guerrilheiro angolano foi ilibado, «por ausência do corpo de
delito» da acusação de tentar facilitar a fuga do pato, mas em contrapartida, foi
considerado culpado de todas as outras acusações, as que constavam do dossiê e
as que, com criativo improviso, foram formuladas na ocasião, nomeadamente e de
não dominar os fundamentos essenciais da zoologia revolucionária, pois ignorava
que, na pátria dos trabalhadores coreanos, os patos também conseguem pôr ovos,
graças às teorias desenvolvidas pelo Grande Líder, o Camarada Kim II Sung.
Teria, pois, de ser expulso e mandado de volta para Angola. Assim mesmo de um
mês depois de ter partido, Pedro Muanza Agostinho regressou à tradicional base
do MPLA em Dolisie, no Congo.
Esta estória
aconteceu nos anos 60, em pleno apogeu das duas metanarrativas fundamentais que
se têm degladiado nos últimos duzentos anos. Naquela altura,
ninguém sabia o
que eram metanarrativas, até porque, em nome das duas grandes ideologias da
época – o liberalismo e o marxismo –, os homens enfrentavam-se fisicamente nos
campos de batalha e as mortíferas armas que utilizavam para tentar eliminar, no
sentido mais material do termo, os adversários não eram, obviamente, meros
jogos de linguagem.
E ntretanto, um
desconhecido guerrilheiro angolano, que apenas hoje entra para a literatura
mundial, antecipou Lyotard, conseguindo demonstrar, com uma charada aparentemente
ingénua como discursos grandiloquentes podem ser desvirtuadas e pervertidos
pela prática, tornando-se simples simulados da realidade. Não é espantoso?
Pela parte que
me toca, estou firmemente convencido de que esta estória ainda acabará por
entrar numa colecção de contos pós – modernos exemplares.
Mas, se ela não
satisfez os leitores, saibam, então, o que aconteceu ao jovem guerrilheiro do
MPLA e ao professor coreano que ele enfrentou galhardamente, em pleno contexto
puro e duro da época, tipo pão-pão, queijo-queijo, desconstruindo
inapelavelmente a rigidez do seu monolítico discurso revolucionário.
O camarada Chung
Park Lee desertou, no início dos anos 90, para a Coreia do Sul, onde se tornou
um alto executivo de uma grande companhia de produção agropecuária.
No fim da
década, a referida companhia assinou um contrato com governo angolano e
instalou-se no país, tendo o antigo professor de História da Revolução Coreana
sido mandado para Angolano, afim de dirigir os negócios da companhia. Pedro
Muanza Agostinho, apesar de ter chegado a comandante durante a guerrilha nacionalista
angolana, não conseguiu, entretanto, tornar-se um dos neocapitalistas do país,
pois a coragem que demonstrara na luta pela independência, quando de armas na
mão enfrentou resolutamente os colonialistas, faltavam-lhe agora para – vou
dizê-lo sem jogos de linguagem – meter a mão na massa estatal e tornar-se
igualmente proprietário privado, como alguns antigos revolucionários. Como ele
era um dos técnicos da empresa que foi cedida aos coreanos para desenvolverem o
seu projecto, acabou, por uma dessas ironias da vida, como se costuma dizer,
como assalariado do agora Mister Lee. Isso é mais espantoso do que a suposta
natureza pós-moderna desta estória.
Ah, já me tinha
esquecido: o core business da nova companhia é a criação de patos.
In O dia em Que o Pato Donaldo Comeu pela
Primeira Vez a Margarida,
Editorial
Nzila 2007
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Livro Publicado pela Editorial Nzila
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