O PADRE
Com aquela mania de sempre andar com
um pequeno canivete nas mãos, usado para cortar as cabeças dos sardões menos
lestos, ficara apodado de Zé Canivete. Não que fosse congenitamente maldoso,
todavia o mato, a natureza, com suas leis inexoráveis, desenvolvia em nós
crianças rurais, sensações e actos que se integravam plenamente na sua essência
e manifestações.
Que diferença haveria entre um
Louva-a-Deus a triturar em suas poderosas mandíbulas verdes uma cigarra,
trinando angústia estrídula no despedir da vida, e o Zeca Canivete a agarrar o
sardão para o decapitar a fim de que pudéssemos observar, com eterno pasmo e
expectativa, o seu corpo estrebuchar?
O que poderá parecer insensibilidade,
talvez sadismo precoce, era o exteriorizar das leis que a natureza revelava e
imprimia subliminarmente. Se a inocência se caracterizava nos brinquedos de
bordão que construíamos, a lâmina afiada na pedra era a possibilidade de domar
o inexplicável, neste caso, a vida ou a morte, no mesmo rito que a cobra
engolia o passarinho indefeso em encantamento.
No meio de todos os fantasmas,
monstros e seres indescritíveis que a imaginação produzia, sentíamos
sobremaneira a poesia da crueldade como sublimação das sensações. O
subconsciente, transfigurado no medo ao relâmpago, por exemplo, era algo que
não nos cabia entender, vinha dos primórdios do gesto humano. Em termos reais
era-nos tão estranho quanto o haveria de ser para o sardão ao lhe ser cortada a
cabeça. Deste modo, arremessávamos na balança da vida o contraponto dos valores,
permitindo o seguir do curso natural de um rio ora mais fundo, ora mais raso,
em queda, tormentoso ou sereno, conforme se afunilasse ou espraiasse. Se nosso
crescer fosse suas margens, restava-nos aprender efectivamente se era o rio que
as fazia, ou elas que o controlavam, que ditavam a personalidade da sua fluidez
e caminhos.
Só mais tarde, muitos anos mais tarde,
por paciência ou por imbecilidade, encontramos algumas das respostas que,
quiçá, nos tranquilizem o suficiente para justificarmos o instinto, a
agressividade do animal ainda tão perto da caverna há pouco abandonada. Na
essência, os grunhidos continuam a sê-lo, mesmo se revestidos de suposta
transcendência em relação ao primeiro momento do seu significado e propósito.
Pouco nos separa das vibrações animalejas, dos medos naturais e primordiais,
por muito seguros que nos vejamos nos caminhos já trilháveis da divinização
humana, esboçando um pretenso entendimento do cosmos, enfim, daquilo do que
para lá resta infindável. Continuaremos a grunhir, como grunhiu o primeiro, até
ao dia em que arrogantemente se tente subjugar por completo a Natureza,
pensando que suas leis, por mais domadas que estejam, sejam conquista da
ciência sobre a metafísica, conquista do racional sobre o medo. E aí, ela se vingará
da arrogância e da premeditação, e forçar-nos-á a olhar novamente para o umbigo
com a humildade de quem redescobriu que é parte intrínseca e inalienável dela.
Por isso, para nós, o perigo estava no
silêncio do mato porque um qualquer kifumbe nos poderia salta à frente no
cafezal ou no bananal, coito das surucucus.
O silêncio ensurdecedor do mato é a
mais terrível das sensações. Cortar a cabeça aos sardões era tão banal quanto
chamar ao José Silva, Zeca Canivete. Em ambas as atitudes, havia uma evidente
falta de imaginação, um seguir natural da acção, como a noite a seguir o dia. O
resto, era abstracção. Eram os corpos dos sardões a retornar à decomposição,
pelo nosso prazer infantil.
Nunca poderíamos, então, pensar ou
julgar que, o atravessar do bananal medonho, os medos que sentíamos ao prever a
aparição do kifumbe, seriam os mesmos ou mais profundos, ainda que conscientes,
que o sardão sentiria ao ser caçado e agarrado e depois decapitado. Tanto nós
quanto os sardões, perante este enigma e dilema comuns, fugíamos aterrados
pelas picadas da selva, pois não tínhamos conhecimentos para saber que a
Natureza, Deus, é um acto e uma criação do Medo, um gesto humano que nos leva a
concentramo-nos sobre nós mesmos e nossa irrelevância universal, na busca
perene do Equilíbrio.
E foi, quem sabe, por esses códigos
naturais e imutáveis da Justiça, que Zeca Canivete, anos mais tarde, tornou-se
padre e enlouqueceu numa prisão.
Teria ele uns dez anos quando o pároco
da missão católica, a muito custo, conseguiu convencer a família a deixá-lo
entrar para o seminário. A nossa perda foi incomensurável. Perdemos o irmão, um
pedaço que se esvaía, um sopro a menos em nossas vidas. Quando tivemos a
certeza de que ele partiria para sempre, apanhamos tantos sardões quanto
possível e purgamos nossa frustração no ritual agora da orfandade precipitada.
Numa manhã de cacimbo vimo-lo subir
para a carroçaria da carrinha do roceiro, rumo a Vila Salazar, onde apanharia o
comboio para Luanda. Pela primeira vez, soubemos o que era o significado do
sonho desfeito, afinal a vida tinha regras que não se compadeciam com o
desordenado ritmar dos nossos corações imberbes. Nessa mesma noite sofri
pesadelos terríveis, onde aparecia no meio de centenas de campas à berma da
estrada, com um sardão em contorcionada agonia, encimando cada uma delas. E de
longe, muito longe, em som diáfano, ouvi o riso de escárnio de Zeca Canivete,
repercutindo pela floresta em cada árvore. Tive então a certeza de o amigo
dilecto nunca mais voltaria, era o castigo personificado, as forças do mal
desceriam sobre nós. Os sonhos, revelou-nos o mestre adivinho que consultamos,
mostrava que corríamos perigo se continuássemos a cortar as cabeças dos
sardões, também filhos da Natureza, portanto, da vida e de Deus. Os animais
faziam parte da nossa vida no Mundo. Quando se sacrificava um galo ou um
cabrito, mesmo um cão, para satisfazer a ira de um qualquer espírito zangado,
era um gesto natural permitido. Todavia, sacrificar animais só pelo prazer de
olhar para a morte sacolejando no corpo do bicho, poderia ser maléfico, no meio
de muitos desses sardões, uns seriam conselheiros de Kalunga. Ele, o mestre,
ainda na véspera ouvira uma galinha a tentar imitar um galo, deveríamos parar
imediatamente com essas práticas, a partida do nosso amigo era um sinal claro
do desagrado do mundo espiritual.
Perdemos o que nos restara da
inocência, ao entrarmos no mundo invisível. O medo ao castigo desconhecido,
passara a estar ali atrás de qualquer árvore.
No domingo, após a missa na missão,
dirigimo-nos para o açude que existia na roça de um dos fazendeiros, laço
encarnado amarrado no tornozelo, conforme instruções do mestre curandeiro, e
lavamos a pemba encarnada que nos fora colocada pelo corpo. Não poderíamos ser
apanhados assim publicamente, e juramos que se alguma vez o Zeca Canivete
voltasse à aldeia, haveríamos de o denunciar como feiticeiro perigoso.
Mal sabíamos que José da Silva, anos
mais tarde, seria efectivamente padre e um dos nomes na luta de libertação
nacional. Acabou por ser desterrado para um campo de concentração onde, à força
de questionar Deus sobre Suas estranhas maneiras de agir, veio-lhe
repentinamente à mente a carnificina contra os sardões e, entendendo pela
geometria do oposto o que questionava e o que fizera, percebeu a inutilidade da
Consciência.
Nessa partícula do momento,
enlouqueceu para todo o sempre. Viveu o resto da pouca vida que lhe coube
amarrado, porque por duas vezes tentara cortar o seu próprio pescoço.
Fragata de Morais In “A Seiva – Contos
Angolanos”, INALD