terça-feira, 2 de dezembro de 2014
terça-feira, 28 de outubro de 2014
A VISITA - TEATRO
Amanhã, dia 29 de Outurbro corrente, lanço a minha mais recente obra, uma peça de teatro intitulada "A Visita", na União dos Escritores Angolanos, para cuja cerimónia tenho a honra de convidar todos os que me queiram prestigiar com a sua presença.
Eis o que o Professor Jomo Fortunato escreveu, num trabalho publicado no Jornal de Angola.
ESCRITOR FRAGATA
DE MORAIS
Dramaturgo retorna ao texto teatral com “A visita” seu novo livro
Jomo Fortunato
|
Da ficcção narrativa à
teorização do fenómento literário, com um estudo pertinente sobre “O Fantástico na prosa angolana”,
a obra de Fragata de Morais inclui uma das mais importantes investigações no
domínio da história literária, com a “Antologia
panorâmica de textos dramáticos”, um estudo passível de integração nos
conteúdos programáticos de ensino da literatura dramática angolana.
A
dimensão sociológica do conjunto da obra de Fragata de Morais, enquanto
cronista do seu tempo, poeta, e repórter da história, resvala na sátira social,
nostalgia da infância, conflitualidade entre os bons costumes rurais, e a
tentação dos hábitos perniciosos da cidade, tema plasmado no livro “A prece dos
mal amados”, concretizada pela ousadia de uma escrita escorreita e simples, com
sérias preocupações de natureza social e pedagógica.
Simples, e incisivo,
Fragata de Morais explica assim a sua propensão para escrita: “Quando me
perguntam de onde vem a veia para a escrita, geralmente digo que é um dom, que
começou a revelar-se nas redacções que fazia na primária. A partir da segunda
classe, sempre fui o aluno que melhores notas tinha em redacção e leitura. A
escrita fluía naturalmente, claro que condicionada à minha tenra idade e
percepção do mundo que me rodeava, mas a verdade é que fluía”.
Da história mais
recente de Angola, a obra de Fragata de Morais, tem uma palavra de desencanto:
“Há coisas que se passam em Katola que nunca vi em lugar algum. Recordas-te
quando fomos para o Rwanda? De como todos fugiam do país por causa da guerra?
Pois em Inkuna passa-se o contrário, todos fogem por cá por causa da guerra!”,
respondeu Jean Pierre, sem brincar...”, escreve Fragata de Morais no livro,
“Inkuna, minha terra”, uma crítica evidente aos que se benefeciam com a guerra,
relegando para um plano secundário, o sofrimento alheio.
No entanto, a luta pelo
reconhecimento não foi fácil: “Ao longo dos anos, fui escrevinhando coisas que
achava terem uma profundidade e significado enormes, claro que só para mim. Já
mais adulto, lembro-me de ter percorrido todas as editoras de Paris, sempre
tendo o meu material amavelmente rejeitado, por esta ou aquela razão. Não
desisti, e fui conseguindo ser publicado em pequenas crónicas nos jornais da
diáspora portuguesa em Paris. Só na Holanda, em 1971, tive textos meus
publicados em forma de livro, em duas antologias, uma de Poesia, outra de
prosa. Continuei a publicar pequenos trabalhos avulso, lá onde
aceitassem”, lembra Fragata de Morais.
Estreia
É assim que, em 1982,
Fragata de Morais publica o seu primeiro livro, tendo sobre o facto, feito o seguinte depoimento: “Uma
vez regressado a Angola, o falecido Costa Andrade, Ndunduma, surpreendeu-me ao
devolver-me um manuscrito que lhe tinha enviado para Dar-Es-Salam, no início da
década de setenta, para publicação. Claro que, com a Independência, os contos
já não tinham significado, a luta era outra. Finalmente publiquei o meu
primeiro livro, “Como Iam as Velhas Saber Disso?” e até ao presente, mantive
essa linha, a de me preocupar em retratar nos meus livros personagens e vida
rurais, na maior parte, sempre preocupado com a nossa angolanidade, a nossa
natureza, incluindo a urbana. Vejo-me como um escritor com uma raiz forte,
originária do interior onde nasci e vivi a maior parte de minha vida, até aos
anos sessenta”.
Fantástico
Ainda no domínio da
investigação da história literária, “O fantástico na prosa angolana” (2011), de Fragata de Morais, é um estudo singular no seu género: “Quando
me veio a ideia de elaborar a presente antologia, de imediato se me colocou a
grandeza e delicadeza da tarefa, face à vasta gama de escritores nacionais, e
sobre o que eu poderia considerar de imaginário, de fantástico, de real e ou de
irreal, entre muitas outras considerações, numa sociedade em que as fronteiras
entre o mundo visível e aquele invisivel sempre estiveram tão intimamente
ligadas. Face à oralidade das sociedades africanas, da qual Angola não teria
como escapar, este universo de ambiguidade não poderia deixar de ter residência
visível nas diversas obras dos escritores angolanos que, ao longo dos séculos
XIX e XX, foram férteis na produção de textos em que diversos mundos se
interligavam com acontecimentos estranhos, acontecimentos que com muita
frequência fugiam ao entendimento de serem ou não reais face à percepção do
aceitável e ou do credivel”.
Percurso
Filho de Mário Augusto Barbosa de Morais e de Maria
Alice Fragata de Morais, Manuel Augusto Fragata de Morais, nasceu no Uíge, no
dia 16 de Novembro de 1941. Dividido
entre a política e a literatura, Fragata de Morais foi jornalista, actor, dramaturgo,
cineasta, tendo frequentado a Universidade Internacional de Teatro em Paris e a
Academia Holandesa de Cinema. A convite da Academia
de Artes Dramáticas da Holanda escreveu, realizou e encenou os seus trabalhos
de teatro infantil, designado, “Gupia”.
Fragata de Morais apresentou os seus trabalhos no “Holland Festival” e
no “Berlin Kinder Und Jugendtheater”, em 1971. No The Frist Company, seu
próprio grupo teatral, realizou, encenou
e actuou em “The Indian Wants the Bronx” de Israel Horowitz, “Fando e Lis” de
Arrabal, bem como “The Hole”, “Agonies “ e “Sketches”, todos da sua autoria. De
1972 a 1975, frequentou a “Nederlandse Film Akademie”, produzindo para a
televisão holandesa, documentários sobre Angola. Tem pulicação dispersa em
vários jornais e revistas, é cronista do Jornal de Angola, membro da União dos
Jornalistas de Angola, Deputado pela bancada do MPLA, e foi Vice -Ministro da
Educação e Cultura.
Crítica
Sobre “Inkuna-minha terra”
(1997), obra paradigmática de Fragata de Morais, o saudoso escritor, Henrique
Abranches, disse o seguinte: “Esta pequena obra do escritor Fragata de Morais
constitui para mim uma leitura penosa de onde saí deprimido, não porque eu não
conhecesse que a verdade está por trás de muitas das suas estórias, como todos
nós que não andamos a dormir conhecemos tão bem. Mas ele soube ser doloroso por
vezes ousadamente controverso, quase provocatório. A coragem que passa nalguns
dos seus contos, como “Jogo de Xadrez”, ou as “Amizades”, tem traça de um
combatente , de alguém que não quer ser derrotado, porque não acha justo, e
embora não saiba triunfar, soube ver e sofrer com o que viu ( Martinha), é um
bom exemplo, entregando ao leitor a batata quente”...
Obra
Fragata de Morais publicou: “Como iam as velhas
saber disso”, INALD, 1982, “A seiva”, INALD, 1995, “Inkuna, minha terra”, Menção
Honrosa do Prémio Sonangol de Literatura, UEA, 1997, “Jindunguices”, Prémio
Literário Sagrada Esperança, INALD, 1999, “Momento de ilusão”, Campo das
Letras, 2000, “A sonhar se fez verdade”, INALD, 2003, “Antologia panorâmica de
textos dramáticos”, Nzila, 2003, “A prece dos mal amados”, Campo das Letras,
2005, “Sumaúma”, UEA, 2005, “Memórias da Ilha”, Nzila, 2006, “O fantástico na prosa
angolana”, Mayamba, 2011, “Batuque Mukongo”, UEA,2011, e, mais recentemente, "A Visita", UEA, 2014.
Lançamento
“A visita”, teatro, é o
novo livro de Fragata de Morais a ser
lançado no dia 29 de Outubro de 2014, as 18h:00, na União dos Escritores
Angolanos. Em “A visita” o autor conduz o leitor a uma saga amorosa, que
envolve os seguintes personagens: Carla, uma senhora, viúva, da classe média de 45 anos de idade, que
dialoga, de forma mística, com o falecido marido, Tonecas. Dany Boy, também
conhecido por Daniel Bengo, seu nome próprio, o assaltante, com cerca de 35 anos de idade,
“bem aparentado e bem falante, usa bigode, denota estudos e certo berço. Janota,
outra personagem do livro, é filho de
Carla, jovem com cerca de 25 anos. Surgem ainda Lucinda, igulamente da classe média,
conselheira e amiga de Carla, e Sargento Bolingó, um polícia simpático e
cumpridor da lei. O plano da história desdobra-se numa relação amorosa entre
Carla e Dany Boy, viúva e assaltante, respectivamente, sob o olhar do viúvo,
Tonecas, com a cumplicidade de Lucinda e do filho Tonecas. No fundo o livro
acaba por ser uma pertinente reflexão sociológica, sobre os costumes da tradição e os valores, muitas vezes perniciosos, da
modernidade.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
THE CAMBRIDGE HISTORY OF AFRICAN AND CARIBBEAN LITERATURA (Volume 2)
Fragata de Morais (b.1940) is a writer who has continued the ethnographic tradition of Angolan fiction. The relative new comer among Angolan writers spent many years working in theater and film in the Netherlands and Germany. After Independence the mixed-raced Fragata de Morais returned to his native Angola where he published Como Iam as velhas saber disso? (1980) (How Could the Old Women Know of This?) and A Seiva: contos angolanos (1995) (The Sap: Angolan Short Stories. Henrique Abranches in his preface to Morais's Inkuna Minha Terra (1997) (Inkuna My Homeland), welcomes the author to the rank of those fiction writers who recreate and re-mythfy aspects of Angolan traditional cultures
In The Cambridge History of African and Caribbean Literature , Volume 2 (2004)
Edited By F. Abiola Irele and Simon Gikandi.
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA
O
FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA
O
FILHO
E
viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho...
e
o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz,
para que, dando à luz, lhe tragasse o filho.
S.
João – Apocalipse 12
No início da
gravidez os médicos observaram-na cuidadosamente, todavia, à medida que os
meses passavam, insinuaram uma gravidez psicológica.
Ao décimo sete
mês, uma amiga, insidiosa, propôs-lhe a possibilidade de uma barriga de água.
“Não sabes o que
é, eu explico-te?...”, ofereceu-se.
As íntimas,
propuseram os remédios da terra, a visita aos kimbandas, aos adivinhos.
Não haveria nada
a perder, que não tentasse esconder o que é da terra. Mulher grávida há sete
anos só pode ser curada com a tradição, com o debicar engasgado do galo.
Angustiada,
cruzou as longas pernas, vestia o robe de chambre azul cor das águas e
reclinou-se no cadeirão de couro da vasta sala de visitas de sua casa.
Acendeu,
silenciosa, um cigarro. Não queria ser apanhada em kimbandas. Isso não. Seria o
perder do pudor, sabia que os rótulos se arquitectam nos vastos silêncios
sociais.
Atirou, com
displicência, o fósforo para o cinzeiro e serviu, da pequena mesa ao lado uma
bebida, levando-a à boca em longos e melancólicos sorvos.
Olhou para o
quadro pendurado na parede oposta. Paisagem típica africana, o capim em
movimento, fustigado pela brisa da tarde. Suspirou nostálgica, sentindo a paisagem
embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e o copo da bebida estremeceu na
mão, à carícia do vento melódico que soprava do norte. O fumo nervoso do
cigarro esvaiu-se no ar, rumo ás nuvens onde pairavam as águias das palmeiras,
enquanto que, contemplando o momento de ilusão, acabou por tombar adormecida
anestesiada pela angústia do desassossego, ao badalar dos pios angustiados do
mocho ora desperto na árvore soberba.
O marido entrou na
sala, olhou o rosto tranquilo e ainda fumegado do cigarro meio perdido de
cinza, e retirou-o da mão palpitante.
As águias das
palmeiras gritaram estrídulas.
Como todos,
igualmente pensara que a estória da gravidez fosse passageira, e por essa razão
acarinhara os anseios da esposa, nunca a desfalcando de amor e compreensão.
“Olha a criança
mexeu, o nosso filho mexeu, não viste?”, dizia-lhe, mão no ventre ofegante.
E com este
acanhamento vestido de verdades aparentes, foi contando aos parentes e amigos
as vicissitudes de futuro pai.
Por volta da
gravidez psicológica começou a não conseguir pôr cobro à chacota mal
disfarçada, aos ditos apenas sussurrados à sua passagem.
O desânimo
aproximou-o mais da esposa e passaram horas de deleite encontrando nomes para a
criança, para o filho.
“Sim só poderá
ser um menino”.
Inventaram
creches e escolas.
Mas quando
qualquer dúvida renascia, quando o terror se lhe assenhorava da alma, fugia
tinhoso para a amante, pronta e aberta, que o compensava pela gravidez inexplicável,
mesmo se, no expirar do tempo, partia mais triste do que viera e mais vazio do
que chegara, revertido criança na estórias meio contadas dos adultos, de ser
ele o filho do dragão, o fruto do pecado e da vergonha sempre eterna que lambe
as labaredas do inferno.
Seu pai, era tio
de sua mãe.
E na
descendência dos mal-amados, os antepassados obrigá-lo-iam a carregar até aos
fins do caminho, a sarna que há sete anos passara para o ventre frutificado da
esposa.
Só poderia ser
isso.
Agarrou o sufoco
e embrenhou o medo nos seios flácidos da amante.
Regressou a casa
encontrando a mulher ainda no mesmo lugar, adormecida.
Pensou em
acordá-la, não o fez, sentou-se no cadeirão e teve a leve sensação de sentir a
carícia do vento
no rosto.
No véu de uma
memória que não era a sua, o cadeirão de couro da sala era o tronco seco já
meio apodrecido no capim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a
brisa suave com as mãos, enganando o desespero que a cingia porque, em breve,
seria a época das queimadas, a derruba do nicho incestuoso do amor, e assim não
poder encontrar-se com o tio para as rezas suplicantes da carne.
No tempo do
cacimbo, a terra reveste-se de castanho seco, a mata ressequida é chama
lambedora do fogo posto, impudico em labaredas devoradoras. De um momento para
o outro, o que era abrigo e escondia momentos prazerosos, nada mais seria do
que um descampado com nascente capim verde, pasto das seixas, dos veados, até
mesmo das pacaças mais afoitas.
Na espera do
tio, deitou-se não longe do tronco e pressentiu, que alguém se sentara.
Soergueu-se com
ansiedade mas não, não fora o tio que chegara, aliás tê-lo-ia visto.
Recordou o
momento acre-doce de devaneio, da entrega rendida ao latejo do desejar. Tinha
quinze anos e o tio vinte e oito. Verdadeiramente nunca conseguira explicar por
palavras ou pensamentos conscientes como tudo começara, o que a dominara, possuíra,
feita animal envolta nos perfumes do cio manifestado.
Uma tarde de
calor, o capim alto observando-a, aconchegando-a, excitando-a ao âmago, foi a
carícia que fez jorrar a água das fontes internas do desejo. Abrira a blusa e expusera
os seios negros e luzidios ao beijar da brisa, ao restolhar das folhas próximas
das árvores.
Mulher feita,
mulher desejando, arfando sem motivo aparente. Mulher fêmea em aromas
vaporosos, ainda que não sabendo.
E quando o tio
apareceu feito vadio, como que não conhecendo das tardes de calor da sobrinha,
ela fez que não sabia do desejo e do ardor, pretendendo que nunca desejara o
que então estava pronto e sacrificial.
E talvez até
tivesse sido assim.
Na escuridão da
eterna culpa e no despir da razão vacilante, em jeito de despedida, sem saberem
ou desejarem, na morte da alma entregaram-se arfantes.
Deram-se a carne
perante os olhares nunca adormecidos dos que eternamente vigiam, dos que vivem
nos fundos dos rios e das lagoas. E dos que percorrem os caminhos tortuosos dos
matos nas noites de luar cheio.
Quando se
sentiram saciados, lambuzados do mel e da água viscosa que brevemente os unira
na perdição, ficou como marca do diálogo que os corpos mantiveram, a brusca
revoada das perdizes assustadas com o lancinante grito de dor do conhecimento que
ganhara.
O sangue
virginal no capim não foi chorado nem cantado pelas mulheres, como deveria, em
afirmações honrosas. O último pingo da seiva amorosa que escorrera envergonhado
das carnes já marcadas pela maldição, teimosamente agarrou-se à pequena espiga
dobrada, até que a hiena sequiosa o lambeu em gargalhada esdrúxula do pôr-do-sol.
Nunca mais se
falaram, quase nunca mais se olharam, mas nos momentos inseparáveis em que
ambos sonhavam com as águas do rio transbordando raivoso pelas margens, nesses
momentos, como que por acção fatídica, encontravam-se para o amor, para a troca
de fluidos, sempre sob a vigilância acesa dos olhares albinos dos que nunca adormecem,
dos que vivem com os caranguejos doces.
Aos dezassete
anos engravidou. Pérola lançada no chiqueiro.
O tio, em fuga
para terras longínquas e inacessíveis, lugares inenarráveis, ninguém mais dele
soube.
“Acusa o padre
da missão, já tem dois filhos.”, Recomendou-lhe ainda.
Aos dezassete
anos engravidou minutos quando foi derrubada a árvore ainda verdejante dos
sonhos.
“Acusa o padre
da missão, não sejas parva.”
Engravidou
horas, dias, semanas, até o aterrador compasso do tempo não permitir mais
aquele esconder do inevitavelmente inescondível.
Engravidou
desesperos, e raivas ancestrais obscuras que desconhecia.
Das mãos
paternas, medrou chicotes cavalomarinhados em sulcos ardentes fendidos no corpo
tenro, na ira sempre justa e profunda da família secular, e na dança das kiandas
injuriadas
Foi fechada,
desterrada para o convento das madres carmelitas até ao fim do pernoitar do
pecado, para o nascer alvoroso do dragão encarnado, já que a noite não é para
ser vista com os olhos do dia. No parto-morte clamou por vingança no nome daquele
que fustigara sua inocência, que saciara seu desejo de virgem-fêmea não
conhecedora das regras com que a natureza joga o jogo dos calores e dos suores.
Pois que a
natureza se vingasse.
Gemeu as
entranhas até o filho nascer e, ao sustentá-lo brevemente nos braços para lhe
inculcar todo o fundo tenebroso de sua alma, cuspiu com o olhar embaciado pela
dor a maldição perpétua e autófaga. Só então sentiu a força das lagoas
profundas a puxar, feliz e liberta.
Na sala, o
marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a
mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante.
Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não
da febre mas do desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do
esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade
renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação
ridícula, não posso”.
Todavia os
lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a
penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a
levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no
explodir tumultuoso do plasma.
E m seguida veio
a paz e o ruído meigo das cataratas deslizando sobre as rochas em musgo.
Foi, na sala de
visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e
putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido
ventre da esposa saiu assustado um sardão vermelho que desapareceu por trás do
cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas.
O corpo da
mulher exalava todo o perfume e aromas mornos das festas das divindades aquáticas.
Ele, coitado, anunciava
feliz aos rostos contritos de ansiedade, que o contemplavam em silêncio, que o
filho finalmente nascera.
Agora que o
desculpassem, teria que ir buscar mel às colmeias e leite ás tetas das cabras
para o alimentar.
memórias da ilha - crónicas
DE HOMENS, PORCOS E OVELHAS
Não deixei de sorrir ao ler nas “Curiosidades” do Jornal de Angola, sobre a prisão de um homem por ter tido relações sexuais com um porco.
Imaginem!
Tantas foram
as questões que se me colocaram e a tal velocidade, que por fim já não sabia
como chegar a uma conclusão.
Tentei ver
os direitos do cidadão suinófilo, e verifiquei que cada um come do que gosta,
ainda por cima se for carne de porco.
Tentei ser
magnânimo e defender a honra violada do porco, pôr na balança o peso do seu
predestino, indagando-me se não viria a sofrer muito mais na facão, chegada a
altura.
Achei,
portanto, que o porco, se tivesse visão, deveria ter mantido aquele
relacionamento na clandestinidade e não ter nada de que se ter posto para ali
aos gritos, sem o mínimo de pudor. Todos conhecemos quanto grita um suíno,
ainda por cima norte-americano, bem alimentado, 56 quilos de alta e vitaminada
ração, cientificamente preparada, e de fazer inveja, em termos de proteínas, à
alimentação de muita criança mundo afora.
Se decidiu
bater com a língua nos dentese desatar a gritar exactamente no momento em que a
mana do pacato Austin Gullette passava, dando a conhecer ao mundo aquele amor
incompreendido e viril, o que esperava?
Outra
questão que me transcendeu, foi a da irmã (não é mencionado o nome da delatora)
ter ficado envergonhada por nunca ter visto na vida dela alguém fazer aquilo a
um animal indefeso.
Foi essa a
palavra, indefeso, que de imediato fez acender uma luz de protesto. E se o
animal não estivesse nessa situação de indefeso, teria sido uma porcaria
permitida?
É que quando
toca a questões de quintas, fazendas e seus animais, incluindo as galinhas,
fica-nos muito espaço para a imaginação.
Recordo-me,
estava eu a estudar na então metrópole, isto em 1958, e de ter feito uma
pequena excursão, nas férias do verão, pelos Alentejos, o que me leva a evocar
dois acontecimentos.
O primeiro,
era que viajar à boleia naqueles anos em Portugal, era quase um exercício em
futilidade, devo ter feito mais quilómetros a andar a pé de que de carro. Por
isso tive muito tempo para ir apreciando os campos de trigo à bermas das
estradas.
O segundo,
foi aquele que aqui vos vou relatar, como sustentação à minha indignação de ter
sabido que um coitado de um veterinário qualquer, a pedido da irmã megera, teve
que abandonar as delícias do seu consultório para vir examinar a vergonha
ultrajada do suíno que, após o caso, começou a viver uma vida de miséria da
qual só a misericórdia do facão o salvará. Imaginem, deu para andar a
esconder-se à toa por tudo que é canto, e estar sempre assustado. Talvez a
irmão do coitado do Austin decida submeter o porco a um tratamento
psicanalítico para ver se recupera a saúde mental. Caso contrário, só lhe
restará mesmo mandar fazer dele torresmos.
Mas voltando
ao porco frio, já que a estória não mete vaca, estava eu encostado a uma cerca
à espera de que aparecesse uma alma caridosa ao volante de um carro que me
levasse mais para o sul, quando dou por um homem a ceifar o trigo ou centeio,
não distingo um do outro, junto à estrada Ao fim de umas horas, durante as
quais não passou carro nenhum, notei que o mesmo ceifara uma grande parte da
área plantada, mas deixara duas pequenas zonas em que não tocara. Quando se
aproximou, talvez para me informar que por ali raramente passariam viaturas,
não resisti à curiosidade e indaguei porque havia poupado aqueles espaços?
“Por razões
sentimentais.”, Respondeu.
“Desculpe,
razões sentimentais?”
“Sim. Olhe
naquele espaço maior, foi onde tive a minha primeira experiência sexual, talvez
com a sua idade.”, Retorquiu, com um sorriso de quem se lembra de memória
grata.
Curioso,
perguntei pelo outro espaço não ceifado.
“Ah, ali foi
de onde a mãe dela olhava!...”
“O quê? A
mãe dela?”, Perguntei, perplexo.
“Sim”
“E não disse
nada?”, Insisti, não querendo acreditar.
“Disse”
“E o que
disse ela?”, Continuei, a pensar que estava a gozar com a minha cara.
“Béééééééé!...”
Não imaginam
pois, caros leitores, como fiquei quando li sobre o coitado do Austin e da sua
possível prisão de cinco anos. Tivesse sido no Alentejo, ninguém se
preocuparia. Esses americanos têm a mania de que têm que estar sempre à frente
de tudo, até porque, segundo as palavras do xerife lá do sítio, o senhor Royce
Toney, que colocou o suninófilo atrás das grades, já havia relatos de casos
parecidos envolvendo cães, macacos e ovelhas, enfim, a banalidade diária. Mas
com porcos?!....
12/09/04
In "Memórias da Ilha" Nzila
sexta-feira, 16 de maio de 2014
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA (Capítulo da Recolha Tradicional)
ANTÓNIO
FONSECA
António Antunes Fonseca, nasceu no Ambriz a 9 de
Julho de 1956. Membro fundador da Brigada Jovém de Literatura de Luanda, tem
mantido actividade regular no jornalismo radiofónico, garantindo um programa de
dicado à tradição oral dos povos angolanos. Os contos aqui contidos, mantêm
toda a sua beleza das regiões Congo, revelando aspectos particulares sobre a sua
cultura.
Licenciado em Economia, é membro da União dos
Escritores Angolanos
O
CABELO E A FOME
Um dia foram às partes do leste fazer negócios
para, de seguida, irem comprar escravos e bois. Foram ao leste e trocaram
borracha com fardos de mantas e panos. Estavam já de regresso, quando, a meio
do caminho, o céu ficou carregado ameaçando chuva.
A fome começou logo a cortar ramos de árvores, a
arrancar capim e construiu uma cubata e meteu-se lá com o seu fardo. Quando o
cabelo ia também meter lá o seu fardo, a fome disse-lhe:
- Aqui não entras.
O cabelo disse à fome:
- Irmã, embora eu possa suportar as chuvas ficando
fora, deixa-me guardar o meu fardo na tua cubata.
Todavia, a fome não ligou ao pedido.
Choveu muito e o cabelo ficou molhado. Depois
meteram-se a caminhar e, tendo andado bastante, dormiram. Quando nasceu o novo
dia, o cabelo disse:
- Irmã, fiquemos hoje aqui para eu estender e secar
o meu fardo que se molhou com as chuvas de ontem.
Mas a sua irmã fome não ligou novamente ao seu
pedido.
Puseram-se de novo a caminho, até que chegaram à
aldeia deles de Kazocami, onde foram recebidos com muita alegria. Depois
deitaram-se.
No dia seguinte, o cabelo desata o seu fardo e
verifica que os seus panos e as suas mantas estavam meio podres de bolor.
Tentou apressar-se a secá-los ao sol, mas de nada lhe valeu.
As senhoras fizeram-lhe grande troça, dizendo:
- A fome trouxe bons panos e mantas, tu só
trouxestes esses podres. Quem vai aceitar esses artigos nesse estado?
Dias depois, partiram os dois irmãos para o Kuango,
onde ainda reinavam negócios de escravos e bois, a fim de comprarem os seus
escravos e bois. Quando chegaram, cada um apresentou o seu produto. Os clientes
apreciaram os artigos da fome em relação aos do cabelo, que estavam meio
podres. A fome comprou muitos escravos e bois; os fardos do cabelo ninguém os
quis comprara; os clientes queixavam-se que já estavam meio podres. Um velho
caçador ofereceu-lhe uma vaca pelo fardo todo, mas ele não quis e preferiu
voltar com o seu fardo para a aldeia.
Já estava de volta, quando um muata (chefe) da aldeia o chamou e lhe disse:
- Qual é a maka (conversa,
confusão)? Porque estás de volta com o seu produto?
Ele contou tudo quanto se dera. Então o muata disse-lhe:
- Dá-me todos os panos e todas as mantas e eu
dou-te um cão, que apanha cavalos-marinhos. Se souberes onde há
cavalos-marinhos, o cão apanha-os, e assim refarás toda a sua riqueza na venda
da sua carne.
E o cabelo aceitou o conselho e ficou com o cão. Os
irmãos retomaram o caminho e chegaram à sua aldeia. A fome sempre foi recebida
com aplausos e louvores, ao passo que ao cabelo sempre foi feita troça pela
população da sua aldeia, que dizia:
- Vieste com um cão! Farias bem melhor se voltasses
com o seu fardo! Porque é que compraste o cão?!
O cabelo, triste e revoltoso contra sua irmã,
separou-se dela.
E a fome foi morar à beira do rio, onde abundavam
cavalos-marinhos. Ela cultivava milho, feijão e jinguba; os cavalos-marinhos
comiam e estragavam todas as culturas. Ao recordar a actividade do cão do seu
irmão cabelo, foi, por isso, ter com o seu Irmão cabelo e disse-lhe:
- Meu irmão, empresta-me o seu cão para dar cabo
dos cavalos-marinhos que estão a estragar as minhas culturas.
- Não pensas e nem tão pouco tens vergonha!
Fizeste-me apanhar tanta chuva e o meu fardo teve que apodrecer a ainda vens
pedir o cão?
A irmã, porém, insistiu no pedido:
- Faz favor irmão, empresta-me o seu cão.
Este aceitou e satisfez o pedido da sua irmã.
- Toma cuidado! Quando fores com ele à caça dos
hipopótamos, o primeiro hipopótamos, não lhe castigues quando ele o comer! Se
assim o fizeres, ele fugirá e não o verás para sempre.
Quando a fome chegou a casa, começou a caçar em
perseguição dos hipopótamos e apanhou o primeiro. O cão iniciou logo e a fome,
com gula, bateu-lhe e assim o cão logo desapareceu.
Ela, atrapalhada, foi ter com o seu irmão cabelo e
disse-lhe:
- Meu irmão, o cão fugiu-me por minha desobediência
às tuas recomendações.
- Tens de pagar muito – disse-lhe o cabelo.
A fome, sem refilar, pagou muitos escravos e bois,
mas o cabelo exclamou:
- Ainda falta muito.
A fome entregou-lhe todos os filhos, netos e ficou
ela sozinha.
Este disse:
- Ainda falta muito.
A fome disse ao seu irmão cabelo:
- Uma vez que não tenho mais nada, ficou eu próprio
na tua casa como escrava.
- Nem com isso; falta muito.
Com medo da morte a fome desatou a fugir,
perseguida pelo cabelo. Ela olhou para trás… O seu irmão vinha com a catana; a
fome foi correr a uma boa velocidade, nem conseguiu travar e entrou na boca da
pessoa até ao estômago.
O cabelo, por sua vez, atrás da fome, veio parara
na cabeça, no queixo como barba, nos lábios como bigode, nas axila e nas outras
partes do corpo, à espera da senhora fome, para com ela ajustar as contas sobre
o cão alheio que tinha fugido.
E a fome quando tenta sair vê o irmão com o seu
exército em todo o corpo da pessoa e volta imediatamente para dentro. É assim
que as pessoas sentem o estômago a roer.
Local: Lunda, 1980
In: Contos de Antologia, INALD, 2008
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LIVRO PUBLICADO PELA EDITORA MAYAMBA
MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS
OS SONHADORES
E acho que isso é um facto, as
realidades, os avanços conseguidos nas sociedades, são e serão fruto do sonho
de alguém que soube acreditar em si mesmo e partiu para a labuta, para a
concretização do seu desejo, da sua visão, da ânsia do querer. Todas as grandes
descobertas foram chamadas de loucuras, ou tidas sem futuro prático, mesmo as
mais recentes como o automóvel o que, fazendo um parêntese, me faz recordar uma
pequena fábula, quando começaram a aparecer as primeiras máquinas automotoras,
em que o burro, feliz, anunciava ao cavalo o seu fim, o homem não mais iria
depender dele para a locomoção.
“Se eu me tornarei indispensável
como cavalo, não sei o que será de ti como burro.”
“Ora, meu amigo, tu poderás ser
dispensado, mas burros sempre os haverá!”
Foram esses sonhadores que nos deram a nossa essência. Sem
esses visionários, ainda se acreditaria que a terra é plana, que não havia um
Universo e sabe-se lá o que mais. Jesus Cristo não seria hoje o que É. Buda
nunca teria penetrado o mundo que concebeu. Cristóvão Colombo nunca teria
chegado ao novo continente, não obstante os seus desígnios serem comerciais e
de direcção oposta, porque a força impulsionadora, para além das correntes
marítimas, foi o sonho pela aventura, pela crença de que do outro lado daqueles
mares, certamente algo o esperaria.
Todavia, os sonhos são os
espinhos da roseira e não foi sem propósito que o Cristo foi coroado com uma
coroa deles. A maior parte dos grandes sonhadores pagou caro pela sua visão de
um outro mundo, pela sua crença e fé numa outra ideia, pela proposta de uma
alternativa. Grandes sonhadores, como Moisés, como Ghandi, embora seguidos,
foram maltratados pelos que os seguiam, pois a natureza humana é invejosa e,
assim, as suas gerações os sacrificaram, de uma maneira ou de outra.
Se formos à Bíblia, entre muitos
profetas, encontraremos Isaías, o anunciador de uma mensagem que nem sempre
satisfez as coligações políticas dos chefes de Jerusalém, porque também
anunciava que “o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á junto do
cabrito, o vitelo e o leão pastarão juntos... o bebé brincará na toca das
cobras, e a criança meterá a mão no buraco da víbora”. E o que lhe aconteceu,
segundo relatos deixados? Terá sido serrado em dois.
Confúcio, cujos ensinamentos
ainda hoje são referência na China, foi de igual modo um visionário que desejou
um mundo melhor, confinado numa filosofia a que ele chamou a “Grande Harmonia”.
Em vida foi humilhado, vexado, para mais tarde, os imperadores citarem as suas
máximas, para o seu retrato estar em lugar de honra, para lhe serem construídos
templos e oferecidos sacrifícios, para ser chamado de sol e lua, tal a sua
glória. Assim como as asas das aves são as que sustentam o seu voo, assim é o
sonho para os sonhadores, para os que sabem que não há limites que o confinem.
Esta crónica é dedicada e visa
aqueles todos que sonham, que não desistem face à dura realidade, que sabem que
sonhar é olhar para a frente e crer em si próprio. Estas palavras são para
todos aqueles que sabem que é no ovo que está o futuro pássaro que, no meu
caso, seria a bela ndua fugidia dos meus anos de menino, nas matas do Zavula.
14/08/05
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