sábado, 4 de agosto de 2012

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



JOÃO TALA

Uma das promissoras vozes na literatura angolana, nasceu em Malanje, a 19 de Dezembro de 1959. Foi, sobretudo, na poesia que este escritor e médico mostrou a sua veia literária, sendo uma das maiores revelações da década de 90, com vários prémios literários nacionais. Estes contos, retirados do livro Os dias e os tumultos, mostram-nos uma nova faceta do escritor, com a mesma acutilância e pujança que a sua poesia revelou.

GEORGINA

Ora, eu simplesmente não gostava de igrejas. Assombravam-me. Meu pai também desistira delas a pensar – como repetia embriagado – a defunta minha mãe que se ajoelhara perante todos os santos, enquanto o cancro da pele reduzia-a, maltratante, matando-a por dentro e por fora.
Eu fora até à Igreja dos Espíritos em busca de Georgina, a quem chamava “meu anjo”, porque disseram-me, logo após o meu regresso, que andava lá num reencontro consigo mesma. Uma busca convicta, à medida que a perdera há anos.
Cultiváramos amizades com a despreocupação permitida da infância, quando ainda ignorávamos os dias que começavam com a cor dos tumultos.
Seremos, brincávamos, toda a infância até quando a mulata Georgina despontava, a florescer: os mamilos já a fazerem pontas ameaçando trespassar a blusa encarnada, a bunda a peneirar os movimentos do corpo, na sua subida de idade. Eu que ainda não ejaculava sequer, sentia qualquer coisa ardente e desesperante, mas algo insensato, que só explicaria quando mais crescido desmistificasse o amor e a lascívia, naturalmente.
Nesse tempo, ela devia ter treze e quanto a mim a idade que mais convinha. Corava quando por vezes eu deslizava os olhos sobre sua meia estatura, para depois os deter na cintura. Isso deprimia-a com vergonha de que tinha crescido.
Avante. Tínhamos realmente crescido, numa altura em que os acontecimentos exaltariam a hecatombe. A guerra arrastava um país, a esmagar a época. De tal modo, alguns anos mais tarde, vi-me numa caserna militar. Partilharia escombros, valas comuns e incomuns como são as trincheiras. Palpitavam-me os fusis e o estrondo do medo. É este o meu infortúnio.
No dia em parti, Georgina juntara-se aos lamentos amargos de minha avó, enxugando- lhe as lágrimas.
A guerra durou o que podia, sem vitória para ninguém nem derrota para esquecer.
Eu voltava, ao encontro de Georgina. Com ela sonhei a tranquilidade de um lar, como então o país a recobrar-se das tenebrosidades.
Marchei para aquele submundo, o bairro Mártir, da noite a crescer preenchendo vidas mercantis, rumo à Igreja dos Espíritos (o novo espaço de Georgina). Procurei-a e, cansado, deixei-me numa das praças da noite agravando a minha sede pela cerveja. Não sei por quantas doses comecei a tropeçar, exacerbando o discurso. Ébrio, dei-me a falar de amor.
É sabido, quando falamos de amor, os homens se unem à nossa volta para ouvirem as nossas experiências. Não desse amor ao próximo que as religiões instruem não. Mas do amor erótico, adulto, que nos faz esquecer o pão e as necessidades. Engano deles porque
eu falava de Georgina. Começaram a exigir-me que usasse de termos mais adultos, impróprios
– «a seguir, o que é que se passou... anda fala lá... ou não fizeste nada, diabos?».
Nada fizera. Esses tipos não entendem o amor.
A igreja surgiu ao amanhecer. Infinita catedral! O ar lá dentro é como uma sombra, bastante visível entre centenas de candeeiros a querosene iluminando o engima, invertendo a alvura das paredes. Reconheci um certo clima melancólico como nos tempos em que ia com minha mãe às missas.
Os candeeiros emanavam um forte odor a querosene e fuligem que estimularam a minha asma e me incitaram a tossir. Como que excitado por minha tosse, um homem gordo e desproporcional, trajando um uniforme azul escuro com feitio de batina e touca vermelha descaindo na face, surgiu correndo, esbracejando um violento «põe-te lá fora já!». Empurrou-me brutalmente à porta numa atitude pouco cristã. Fê-lo porque sou um estranho à sua congregação. E também para proteger a irmã Georgina de um mundano.
Mundano ou mundiano não são os termos que me atormentam. Atormentam-me sim as procuras inconclusivas, as febres da pós-guerra. Assimilara que o mundo são as voltas que damos. O gordo não me confunde. Ele não é o Cristo. Na sua igreja Cristo é uma figura, uma escultura de ébano!
Nunca vi igual. Por isso, tinha-o metodicamente raciocinado. Ora, o olhar de Cristo sempre me reteve como um olhar mágico. Ei-lo naquela escultura parecendo perscrutar estas coisas desta vida imprestável dum mundo em vão. E um ébano fá-lo parecer negro e estranho. Bem uma escultura trabalhada com mãos difíceis. Das linhas incisas aos mais profundos sulcos; os erros dos contornos, a tortuosidade e saliências, demonstram a imperfeição do artista, que certamente esculpira com toda a arte mas, também, com a infalível fraqueza humana. Pobre pecador de mãos trémulas. Qualquer pessoa sofreria quando, de um pedaço de tronco, se afigurasse pouco a pouco o distinto rosto do Santo, e a cada golpe de escopro fosse como se ao corpo do Homem quebrasse os músculos, os tendões e os ossos. E o ressentisse entre pregos, no calvário, na cruz da
nossa alforria.
Estava a contar, foi logo assim que o gordo devolveu-me à porta. Voltei à casa onde minha avó opunha-se vigorosamente contra a minha busca. Segundo ela, jamais achara amor tão descabido. Eu não lhe conferia sentidos. Aliás, que pode uma velha entender do amor nos dias e nos reboliços de hoje? Mas desaprovou-me do mesmo modo:
– Porque desejas tu, meu neto, filha de ngueta?
Depois aumentou:
– Nem sabes que a vida levas para a dar na filha de um ngueta. Você pensa é fácil para quem não está habituada a esta porcaria... – Dizia-me com o dedo apontado a esteira.
– É chata a avó Chica. Teimava em julgar-me o amor pela cor do corpo. A descendência de Georgina punha “tartarugas” na sua velha mente. Nada de ideias porque o mundo em nada melhorara, pelo contrário nenhuma, palavras demolidoras carregadas de uma metáfora experiente que a nós, pequenos revolucionários (ou que o tínhamos sido), lembrava-nos ainda a réptil classificação de “serpentes” na língua. Uma língua de intolerância. Deveria – pensava – ter antes morrido para não ver certas coisas. Agora tinha de as ver todas. (“não é justo, avó nos veja a todas como “corvos” em tuas noites.
Há sol a renascer na alma; a pomba já voa.”)
Avó Chica é quantas vezes destes gestos indizíveis; persistia na sua ignorância de julgar o amor conforme as raças. Para ela eu devia ceder aos caprichos daquela lá, a Anita Martins, que ia e vinha tentando me agradar. Não nego que é uma mulher bem dotada. Não nego. Anita tem partes, andou nos livros, estudou dactilografia. Avó gostava dela e muito.
Pé ante pé ia à espreita de Georgina mas, o sacerdote impedia que a visse. Da última vez reservava-se-me uma surpresa: o sacerdote chorava desamparadamente!
Insólito – nunca ninguém o fez desse modo. Parecia um touro aos soluços, chorando com todo o seu tamanho. As gotas do que desalento faziam-me dó. Uma sujeira. Sou de
opinião que os homens devem inclinar suas lágrimas para dentro, assim não há o dissabor de vermos os dejectos de nossas tristes emoções caindo-nos dos olhos, sujando-nos a virilidade.
Chorava, afinal, porque também amava Georgina! Não era um amor educativo, religioso, não. Amava como qualquer homem ama uma mulher. Jamais se pronunciara  disse – para não quebrar o seu sigilo.
Não concordo. Um sentimento escondido é pior do que cadeia. É burrice aprisionar-se a si próprio. Não comungo esse tipo de sigilo.
Para o meu augúrio contou-me que passara ali um sargento e entusiasmara Georgina. E o militar prometera um tempo inteiro só para ela. Prometia a nuvem, o elance e o lar.
Mas que tempo tem para o dar uma tipa um sargento? Parece trecho de romance.
Já o vi o pior no cinema...
Disse-me ainda o gordo que quando o sargento se foi embora, ela ficou embriagada.
Embriagada?! Estremeci diante da verdade: a “embriaguez” feminina é pior do
que própria lua-de-mel.
O facto levou a que o gordo lhe ditasse oito dias a pão e água. E que se confessasse ante a estátua da Sala-Maior, que simbolizava um qualquer santo africano. Ela cumpriu mas, depois foi-se embora livre de pecado e de monges rabugentos.
Discordei do castigo dado à Georgina mas, não estaria agradecido do seu comportamento, julgo, leviano. Também eu sofria com o facto.
Agora não é mais a Georgina quem busco. Busco apenas um modo frio, exigente, de a retractar no esquecimento. Tê-la presente mas esquecida; torná-la memória emudecida, um mínimo de morta e fantasma. Para já, dizer, o amor também faz vítimas!
Habituava-me ao bairro Mártir. Suas praças movimentadas distraíam-me. Ia lá para me embriagar, escutar música e dançar. Estava ébrio quando, certa vez, notei olhinhos sobre mim. Eu ria a e mulher que os possuía os deitava o meu rosto. Ela faria a noite e o dia caber em mim... abri aqui uma lacuna:
– Ouve lá, quantos anos tens?
A idade torna-se mais importante do que o nome por causa da prostituição infantil.
O fenómeno catorzinha nos envergonhava a todos; nos sentíamos mais pobres, ultrajados no íntimo, porque são as crianças, que continuam a nossa infância.
– Quantos?– repeti, curioso.
– Dezoito, moço – respondeu balançando uma perna levando com a mexida o rabo todo.
– Ainda bem. Já cá pensava se não terias dez.
Ela sorriu envergonhada com os olhos no chão. Uma fingida mas’é. A culpa não é dela. A falta de tudo transtornava-nos a todos. Ela simplesmente desenrascava os dias.
Na mesma noite conheci a minha primeira prostituta – essa pequena criatura de tronco adelgaçado e acinturado para fazer sobressair enormes matakus. Tinha um volume de seios firmes, mamudos, prestáveis, atirando-os para frente com a marcha felina. O encanto me subjugava. Bebeu cerveja comigo, fumou os meus cigarros e com a música de Kinshasa, forte e palpitante, iniciamos a viagem, a aventura, o jogo.
– Como te chamas, afinal tens de ter um nome...
– Os homens me chamam Tita – respondeu.
– Ah, os homens. O nome é uma graça, próprio para ti. Aceito o menu.
Perseguindo pela insatisfação, então já uma vaga lembrança de Georgina, continuava à procura de Tita.
De regresso à casa, avó Xica nunca me vira – dizia – tão triste. Achou-me isolado de modo que convocou astutamente Anita Martins de quem suportava os sermões bem intencionados, tributários de uma religião do bom ser e do bem-estar. Não mais a minha. Tal religião. Eu ia e vinha com Anita me esperando. A pequena Tita me enfeitiçara.
Concluindo, Georgina acabava na dupla Anita & Tita. Eram duas híbridas como duas gémeas na minha confusão mental. Porém, no espaço ruidoso de Tita não pode existir uma Anita Martins. Tita apenas gatafunha o seu nome enquanto Anita lê romance. Tita não lê romances; ela é um romance.
Continuava a ir ao bairro Mártir á procura de Tita até que certa vez tive a primeira das duas grandes desilusões: Tita fora com outro homem, continuava ao seu munhungo.
Quando avistei o Gordo que persistia em busca de Georgina, disse-me: “não se amam putas”. E disse-o com muita naturalidade.
A última desilusão foi a surpresa de ter encontrado, subitamente, uma Georgina longínqua, possuída de maus espíritos, delirantes. Estava ela com o corpo amassado, dorido, pálido, com olheiras profundas. Antes, o sargento que a desencaminhara, partira e não mais voltou.
Nunca se vira tanta água nos olhos duma mulher até ao que chamei de massacre
solitário de Georgina. Loucura!
Chamamos o doutor Gamba Manuelle que estava de regresso com uma bagagem extraordinária, findo a hecatombe. Ele curava as insónias e as chagas da guerra um
pouco por toda a parte. Preferia palestras sobres as feridas da vida, as escaras do espírito.
Pedimos que tratasse veladamente Georgina.
O doutor alegou ser um infortúnio, uma psicopatia remota. Deu-lhe comprimido para secar as lágrimas. – Oh!, de mal de amor ninguém faz diagnóstico – desajustou-se o Gordo.
Todos nós lhe gritamos:
– Ché, cala a boca seu sacerdote. Este não e doutor dos musseques, ouviu?
– Doutor, é verdade que o amor também faz vítima?
Já não me ouvia, no seu carrinho já, os faróis perdiam-se embora na noite.
E m Georgina permanecia a loucura. Teimava na nudez. Tita (que no entanto regressara) cobria-a, cuidava do pudor. Os mais sensatos dos homens fechavam os olhos para que não a vissem nua e fétida. O gordo orava, incitava-nos que orássemos com ele. Eu duvidava das rezas mas, orava para pedir a Deus que recolhesse profusa alma de
Georgina.
Nesse cacimbo (ó Georgina!) casei-me com Anita Martins enquanto amantizava a bela Tita.

In Os Dias e os Tumultos, União dos Escritores Angolanos, 2004

segunda-feira, 25 de junho de 2012

PROVÉRBIOS ANGOLANOS

TUVANJI UYA KOMBUNDA ( APROFUNDAR A DISCUSSÃO ATÉ ENCONTRAR A VERDADE.
ESTE PROVÉRBIO PERTENCE AOS OVIMBUNDU  É DA LÍNGUA UMBUNDU.






BATUQUE MUKONGO


10
Zavula era uma casa comprida
com um chapéu de telhas
sob o qual se abrigava
um longo comboio a vapor
pouca terra pouca terra pouca terra
apito de brinquedo escondido
na mão do pai natal invisível
fuííí… fuííí… fuííí…
comboio de fumaça encardida
engolindo o morro aos poucos
pouca terra pouca terra pouca terra
pouca terra para os contratados
longas filas de surucucus mordendo os cafezais
pouca terra pouca terra pouca terra
tragada pelo soma do Bailundo
na cata forçada do escravo
pelo branco à espera na camioneta
expectante a arrebanhar
cinquenta almas de boa saúde
músculo teso
dentadura impoluta
visão perfeita
olhares perfurantes das crianças
escondidas entre os arbustos
o mato no silêncio do cacarejar
das galinhas do mato
a vê-los subir o camião do outro mundo
sempre cantando
*jamba weya la yo
jamba weya la yo
uwa ugenda nda uwa
uwa ugenda nda uwa
uvala o
caminhos áridos de esperança
até ao Uíge na Uízi
agradecendo humildes ao capataz
o cobertor a farda de sarja
sorrindo pelo feijão e peixo seco
olhando de viés a fuba nova
cantando sempre cantando
a memória do kimbo já longe
porque quem canta seus males espanta
a primavera vai e vorta sempre
a primavera vai e vorta sempre
*jamba é que a trouxe (a viagem)
jamba é que a trouxe
é bom viajar
é bom viajar
mas traz sofrimento
a mocidade nunca vorta mais
nas roças perdidas de cachos de dendém
mal sabendo mal sonhando
que um dia a bandeira pintaria em glória
a mocidade perdida no seu pano

11
Como chegaram
assim partiram
vazios de ilusões
deixadas na mata com o capim
no poder dos cafezais
na caneca de litro de vinho
empurrada pelo fubeiro
uma após a outra
bebe lá oh homem
não tens dinheiro fica fiado
partiam como vieram
sem nada mas sempre cantando
a primavera vai e vorta sempre
sem saberem o que era primavera
a não ser que voltava sempre
a primavera vai e vorta sempre
a mocidade nunca vorta mais
pouca terra pouca terra pouca terra
piava a mbemba soberba
circunferenciando os céus
pelo olho vítreo que feria o rato a cobra ou a lebre
partiam como vieram
em cima do mesmo camião
com um pouco mais de imbambas
djamba weya la yo
djamba weya la yo
wa ugenda nda ua
wa ugenda nda ua
uvala wo
a víbora enroscada no rato
a lebre nas asas da mbemba
a luz da noite escondendo o povo dorido
vilipendiado e sofrido
à volta da varanda da casa grande
quebrei o ferro redondo das grilhetas
imaginárias nos terreiros do café
acariciado toda a vida por mãos mestras

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


JOÃO MELO

Jornalista, escritor publicitário, professor e Deputado à Assembleia Nacional, nasceu em Luanda em 1955. É licenciado em Comunicação Social e fez o mestrado em Comunicação e Cultura no Brasil. Foi Presidente da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos e é produtor de uma vasta obra literária, sobretudo em poesia e, ultimente prosa, de onde foram retirados os contos aqui presentes.

O PATO REVOLUCIONÁRIO E O PATO CONTRA-REVOLUCIONÁRIO

O s angolanos, além de gostarem de makas, de farrar até de manhã, de chegar tarde aos seus compromissos e de usar e abusar do humor, inclusive contra eles mesmos, também sempre foram pós-modernos avant la lettre. Iconoclastas, não levam nada demasiado a sério, chegando ao ponto de abandalhar – este termo pode ser pouco literário, mas em fim o que fazer, se o próprio escritor é angolano?– completamente as lições, os modelos e as regras que o mundo tem tentado, desde sempre, impor-lhes. A história contemporânea está cheia de exemplos que confirmam a profunda e multiforme irresponsabilidade dos angolanos. Primeiramente, levados aos milhões para as américas, como escravos, não se deixaram dizimar nem pela brutal exploração de que foram vítimas nem pelas desconhecidas doenças que tiveram de enfrentar, como a gripe ou a sífilis. Em vez disso, ensinaram aos seus próprios exploradores como se forjava o ferro, como se extraía da terra os diamantes ou o ouro ou como se plantava (e colhia) a cana-de-açúcar ou o café.
De igual modo, ensinaram-lhes como se toca e como se dança e os ritmos ancestrais que levam no sangue, espalharam-se até aos pampas, no sul. Recriaram as línguas que lhes tentaram impor, introduzindo nas mesmas milhares de novos vocábulos e expressões.
Contribuíram para africanizar as religiões hindu-europeias que encontraram no novo continente. Geraram heróis, como Zumbi, no Brasil e os dezanove angolanos que participaram na luta pela independência do Chile. Finalmente, transformaram a vasta e solarenta região entre o Caribe e o Brasil num celeiro de mulatas, consideradas hoje, com toda a justiça, um autêntico produto global.
Enquanto isso, os que tinham ficado acolheram os agressores estrangeiros de uma maneira que ficará registada para sempre nos anais da convivência humana: combatendo-os ferozmente, mas fazendo negócios com eles e dando-lhes as suas filhas em casamento; adoptando as suas religiões, mas ensinando-lhes rituais fantasmagóricos, que os enlouqueciam; provando do seu vinho aguado, mas dando-lhes a experimentar bebidas desconhecidas; e por fim, levando-os até às profundezas dos sertões mais recônditos, onde eles contraíam febre-amarela e sucumbiam irremediavelmente. Para quem não sabe, assinale-se que essas diferentes e múltiplas estratégicas eram usadas não em alternativa, mas simultaneamente, para desespero dos invasores, que até hoje são absolutamente incapazes de conhecer os angolanos, nomeadamente o seu instinto de sobrevivência e a sua flexibilidade.
Um detalhe particular incompreensível, para os referidos invasores, é como no decurso desse fantástico processo, os angolanos se foram misturando entre si, mas também com eles, ambos matando e fornicando destemperadamente uns com os outros, isto é, deglutindo-se mutuamente, numa história de sangue e risos, de ameaças e promessas, de juras e traições, de crimes e redenções, tornando-se todos cada dia mais angolanos. Numa demonstração de que, realmente, os extremos se tocam, isso é considerado o cúmulo da irresponsabilidade, não apenas pelos antigos invasores mas também pelos actuais cazumbis ultranacionalistas e neorracistas.
Enfim, e mais recentemente, os angolanos foram os autores de duas das mais
prodigiosas operações de engenharias social conhecidas na história contemporânea:
transformaram o socialismo marxista-leninista em socialismo esquemático e o capitalismo neoliberal em capitalismo mafioso. Alguns autores chamam ao primeiro afroestalinismo e ao último capitalismo selvagem, mas isso são designações ideológicas, sem qualquer serventia, com as quais a boa literatura pós-moderna não deve perder tempo.
Se o camarada Chung Park Lee soubesse um pouco de história angolana – não aquela ensinada nos manuais e nos compêndios, mas a sua história quotidiana, a qual, na verdade, ainda está por escrever, pois trata-se de uma empreitada que implica ultrapassar uma série ideias feitas e preconceitos gerais–, teria desconfiado logo da pergunta daquele guerrilheiro do MPLA, chegado à Coreia do Norte há apenas duas semanas, a fim de fazer um treinamento militar:
– Se um pato puser um ovo em cima da fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do sul, a quem pertence o ovo?
O camarada Lee, como se costuma dizer, teve vontade de se coçar na cadeira.
Ele tinha acabado de sentar-se depois de concluir uma aula sobre a traição histórica do regime da Coreia do Sul, cujos dirigentes não passavam de um bando de vendilhões totalmente enfeudados ao execrável e abominável imperialismo norte-americano, tendo perguntado aos estudantes – uma amálgama de jovens revolucionários provenientes de diversas regiões do então chamando Terceiro Mundo, do próximo Vietname à longínqua Nicarágua, todos eles compreensivelmente bem intencionados, como quaisquer jovens, revolucionários ou não – se algum deles tinha duvidas ou se queria
fazer alguma pergunta.
– Como? perguntou, enquanto pensava na melhor resposta àquela inusitada questão.
– É muito simples! retorquiu o jovem guerrilheiro angolano. Imagine o camarada professor que um pato põe um ovo mesmo em cima da fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. A que país deve pertencer esse ovo?
O professor não resistiu e coçou-se discretamente, antes de responder, como o ar mais convicto de que foi capaz:
– Bem. O ovo devia estar um pouco mais lado de cá, portanto, só podia pertencer à Coreia do Norte!
– Não, não...o ovo estava exactamente no meio da fronteira, nem, um milímetro para cá, nem para lá...
– Nesse caso, então, respondeu o professor, o pato devia estar a fugir da Coreia do Sul para se juntar à gloriosa revolução do povo coreano, conduzida pelo nosso Grande Líder, Camarada Presidente Kim Il Sung. Portanto, o ovo tinha de ser da Coreia do Norte!...
O guerrilheiro questionador devia ser malanjino ou catetense, os quais, de acordo como mapa ideossincrático dos angolanos, têm a mania que são mais espertos do que os outros. Falando quase em surdina, medindo bem as palavras e com um leve brilho trocista assomando-lhe discretamente aos olhos, insistiu:
– Camarada professor, desculpe, o pato não vinha da Coreia do Sul, pois era originário da Coreia do Norte... era um pato revolucionário!...
O professor respondeu instintivamente, para não dizer mecanicamente:
– Era um traidor! Se pôs em cima da fronteira, é porque estava a tentar fugir...
– Não discuto, camarada professor! Mas ainda não me respondeu. E o ovo?
O camarada Chung Park Lee pensou, com leve sobressalto, que o jovem guerrilheiro do MPLA queria pôr à prova a sua fidelidade à justa causa da Revolução Coreana e aos ensinamentos do Grande Líder, Kim II Sung. Decidiu, por isso, terminar com aquela brincadeira de mau gosto de uma vez por todas Quase berrou:
– O pato era um contra-revolucionário! Mas, seja como for, os nossos valorosos combatentes guarda-fronteiras jamais deixariam que esbirros do Sul se apossassem
desse ovo!...
Perante essa peremptória e definitiva afirmação, quem se sobressaltou foi o guerrilheiro angolano. Imaginou o ovo todo esburacado no meio da fronteira, na zona de segurança entre as duas Coreias, enquanto o pobre pato se desafazia em penas e pequenos movimentos descoordenados, seguidos de um leve fragor de ossos e berros exíguos, que se soltavam com dificuldade da sua garganta asfixiada pela dor.
Uma auréola amarela e branca, levemente viscosa, tingia o chão, alastrando-se cada vez mais, em círculos crescentes. Rapidamente, a clara e a gema do ovo, totalmente desfeitas, misturara-se com o sangue do pato sacrificado pela sempre pronta vigilância revolucionária dos guardas coreanos. «A Revolução, afinal, é isso?», perguntou a si mesmo, antes de responder ao camarada Lee.
Sem pretender adiar essa resposta por muito tempo, o narrador é obrigado, contudo, a fazer uma breve interrupção neste ponto do relato para, em duas ou três linhas, traçar o perfil do jovem guerrilheiro, pois talvez isso útil para entender a sua dúvida existencial, digamos assim, quanto ao destino daquele ovo. Pedro Muanza Agostinho – assim se chamava ele – era um antigo estudante de pouco mais de 18 anos, que aderira ao MPLA para ajudar a realizar um sonho que, na altura era ardentemente partilhado pela maioria dos angolanos: expulsar os colonialistas portugueses e tornar Angola um país independente.
Como e para quê, apenas o intuía levemente e, de certas palavras que passar a escutar assim que se juntou ao movimento – tais como «socialismo» ou «Revolução»–, conhecia somente a configuração sonora. Alguns meses depois de ter chegado ao Congo, onde estavam as bases da guerrilha, foi mandado para a Coreia do Norte – que
 he disseram ser um país revolucionário e anti-imperialista –, a fim de fazer um treinamento militar de seis meses.
Pedro chegou à Coreia do Norte cheio de perguntas. Contudo, aquele absurdo diálogo com o camarada Chung Park Lee fazia-o começar a desconfiar de que as suas perguntas jamais teriam respostas. Como tinha apenas 18 anos, ele não mediu toda a extensão desse facto. Talvez por isso, resolveu dar ao mesmo um xeque-mate. Como bom angolano, fê-lo com toda a serenidade do mundo, gozando cada palavra que pronunciava como se estivesse a ter um orgasmo físico.
– Lamento informá-lo, professor: os patos não põem ovos, só as patas!..
O que aconteceu a seguir conta-se em três parágrafos. O camarada Chung Park Lee, mortalmente perturbado com o angolano, fez um relatório completo ao Departamento de Relações Exteriores do Partido, o qual remeteu o assunto à reunião do Secretariado, que, depois de analisá-lo, o encaminhou à sessão seguinte do Comité Central, dali a duas semanas, acompanhado por um dossiê completo, no qual entre diversas informações preciosas, absolutamente rigorosas e objectivas, era acusado o camarada Pedro Muanza Agostinho, guerrilheiro angolano enviado pelo MPLA para fazer um treino militar de seis meses na República Democrático e Popular da Coreia, de ter tentado facilitar a fuga de um norte-coreano para o território ilegalmente controlado pelos esbirros do imperialismo norte-americano. Além disso – assegurava o dossiê –. O mesmo camarada tinha o hábito de fazer perguntas provocatórias aos seus professores, que ficavam sem saber o que fazer, pois tratava-se de questões que não estavam previstas nos livros de ensinamentos do Grande Líder, Kim II Sung.
A tais gravíssimas acusações, acrescentava-se ainda o facto jamais visto de, apenas duas semanas depois de ter chegado, o camarada Agostinho ter organizado no dormitório uma festa para a qual arregimentou cubanos, brasileiros, mexicanos, congoleses, cabo-verdianos e outros terceiro-mundistas irresponsáveis, onde todos eles, alternadamente, tocavam estranhos ritmos, dançavam lascivamente, comiam e bebiam como burgueses e fornicavam entre eles com escandaloso prazer e alegria. Após essas orgias – comentava, estupefacto, o anónimo autor do dossiê –, o mesmo passava os dias soltando gargalhadas descomunais pelos corredores da academia.
O veredicto foi implacável. O guerrilheiro angolano foi ilibado, «por ausência do corpo de delito» da acusação de tentar facilitar a fuga do pato, mas em contrapartida, foi considerado culpado de todas as outras acusações, as que constavam do dossiê e as que, com criativo improviso, foram formuladas na ocasião, nomeadamente e de não dominar os fundamentos essenciais da zoologia revolucionária, pois ignorava que, na pátria dos trabalhadores coreanos, os patos também conseguem pôr ovos, graças às teorias desenvolvidas pelo Grande Líder, o Camarada Kim II Sung. Teria, pois, de ser expulso e mandado de volta para Angola. Assim mesmo de um mês depois de ter partido, Pedro Muanza Agostinho regressou à tradicional base do MPLA em Dolisie, no Congo.
Esta estória aconteceu nos anos 60, em pleno apogeu das duas metanarrativas fundamentais que se têm degladiado nos últimos duzentos anos. Naquela altura,
ninguém sabia o que eram metanarrativas, até porque, em nome das duas grandes ideologias da época – o liberalismo e o marxismo –, os homens enfrentavam-se fisicamente nos campos de batalha e as mortíferas armas que utilizavam para tentar eliminar, no sentido mais material do termo, os adversários não eram, obviamente, meros jogos de linguagem.
E ntretanto, um desconhecido guerrilheiro angolano, que apenas hoje entra para a literatura mundial, antecipou Lyotard, conseguindo demonstrar, com uma charada aparentemente ingénua como discursos grandiloquentes podem ser desvirtuadas e pervertidos pela prática, tornando-se simples simulados da realidade. Não é espantoso?
Pela parte que me toca, estou firmemente convencido de que esta estória ainda acabará por entrar numa colecção de contos pós – modernos exemplares.
Mas, se ela não satisfez os leitores, saibam, então, o que aconteceu ao jovem guerrilheiro do MPLA e ao professor coreano que ele enfrentou galhardamente, em pleno contexto puro e duro da época, tipo pão-pão, queijo-queijo, desconstruindo inapelavelmente a rigidez do seu monolítico discurso revolucionário.
O camarada Chung Park Lee desertou, no início dos anos 90, para a Coreia do Sul, onde se tornou um alto executivo de uma grande companhia de produção agropecuária.
No fim da década, a referida companhia assinou um contrato com governo angolano e instalou-se no país, tendo o antigo professor de História da Revolução Coreana sido mandado para Angolano, afim de dirigir os negócios da companhia. Pedro Muanza Agostinho, apesar de ter chegado a comandante durante a guerrilha nacionalista angolana, não conseguiu, entretanto, tornar-se um dos neocapitalistas do país, pois a coragem que demonstrara na luta pela independência, quando de armas na mão enfrentou resolutamente os colonialistas, faltavam-lhe agora para – vou dizê-lo sem jogos de linguagem – meter a mão na massa estatal e tornar-se igualmente proprietário privado, como alguns antigos revolucionários. Como ele era um dos técnicos da empresa que foi cedida aos coreanos para desenvolverem o seu projecto, acabou, por uma dessas ironias da vida, como se costuma dizer, como assalariado do agora Mister Lee. Isso é mais espantoso do que a suposta natureza pós-moderna desta estória.
Ah, já me tinha esquecido: o core business da nova companhia é a criação de patos.

In O dia em Que o Pato Donaldo Comeu pela Primeira Vez a Margarida,
Editorial Nzila 2007