domingo, 7 de outubro de 2012

PROVÉRBIOS E ADIVINHAS




  

PROVÉRBIOS E ADIVINHAS EM UMBUNDU
(Padre José Francisco Valente-1964)


PROVÉRBIOS

K’ochyali vayoka kavateleka. K’ochyali kukuli onjimbili.
O que é dado assa-se, não se cozinha. O gratuito não se recusa
(A cavalo dado não se olha o dente)

Ochyaly o mange.
O favor é fêmea.
Não há favor que não se pagúe ou mais cedo ou mais tarde
(A fêmea não reproduz sem macho)


ADIVINHAS

Propostas à noite, ao serão, sobretudo entre raparigas, nunca de dia:

Okuta olupolo utanka (l’utanha), Makulu atunda olombinga p’olhapya
(Propor charadas de dia faz nascer cornitos nos sovacos da avozinha)

OLW-EYO – Chyawala etongola
                      Veste o pano à cintura – A vassoura

OKU-FYA – Apa patundila, apa pavola (apa pafila)
                     Onde nasce, aí morre – O traque (O pum)

BATUQUE MUKONGO





15
Subi ao morro mais alto da memória
a afagar as primeiras
calças compridas
de ganga azul
os homens louros com crianças de olhos azuis
imbambas empilhadas em carrinhas camiões
turismos
em filas exaustas e assustadas
provenientes do Kongo
agora despido dos belgas
flamengos
portugueses
franceses
observava os rostos contritos
mágoas mal enganadas
gargantas ressequidas pela poeira
a soltarem a informação amarga
que não entendia
no meu francês inexistente
onde brilhava uma palavra
repetida vezes sem fim
Lumumba
Lumumba
Lumumba
repetida em sussurro na voz do meu pai
Lumumba
repetida em interrogação
na voz assustada de minha mãe
Lumumba
um eco por África toda
que fustigou os impérios coloniais
Lumumba
na boca dos belgas
Lumumba
na boca dos portugueses
dos franceses
dos ingleses
Lumumba na boca do mundo
ora santo ora diabo
amaldiçoado nos gabinetes metropolitanos
onde temiam todos os feiticeiros
anunciadores da nova hora
fazedores de ventos que virariam tempestade
que soprariam gélidos para uns
fervilhantes para outros
esculpidos nos rios magestosos
nos lagos e lagoas das planícies
nas azagaias e porretes bosquímanes
nas pedras monumentais do Zimbabué
ventos novos a serpentear
pelas densas florestas equatoriais do Uganda
soprados nos desertos do Namibe Kalahari
na costa dourada do Gana
nas brisas de Abomé
na ilha distante Madasgáscar
nos caminhos antigos de Shaka
o zulu rei dos reis

16
Na minha varanda da casa comboio
pouca terra pouca terra pouca terra
ameaças pragas e vómitos
anunciando cataclismos
o fim do mundo sem belgas
alastrando pelas plantações abandonadas
pelas minas nunca fechadas
corroendo como cancro o país inteiro
África morrerá
sem nós asfixiará
África soçobrará
sem nós se afogará
cientes de que Lumumba viveria
respandiria pelo continente
tranformado em pirilampo dos desejos e aspirações
que tanto acendem tanto apagam
nos corações das gentes
resplandesceria nos bagres
de todos as águas continentais
no saltar ágil de galho em galho
do macaco
no andar silencioso da onça
no voo soberbo da águia
no plainar gracioso das andorinhas
na força do pau takula
no brilho do ébano preto
na minha varanda da casa comboio
naquele momento de espanto
não sabia como perguntar
quem era aquele homem
que tanto terror produzia
e acendia fogos nas almas
labaredas ímpias nos corações
quem é esse Lumumba pai
não fales esse nome
somos portugueses
não belgas acagaçados

Lumumba é só uma visão

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS



A BRIGA


Casados há pouco mais de um ano, tiveram a primeira briga há dias.
Não foi amuo, não. Foi mesmo briga e da séria, que só não deu reunião de família porque ela, a Rosa, a tinha toda no Kunene. E família grande, diga-se. O mais baixo dos irmãos kwanyama tinha um metro e noventa de altura e quase outros tantos de largura.
Ainda bem para o Celestino, agora banido para o sofá da sala de visitas por duas semanas.
Duas semanas?...
É que a Rosa tinha o espírito de Mandume, forte e guerreiro, e não pactuava com ninguém que ofendesse a sua fé e religiosidade.
Por questões da fé é que o marido foi banido para o sofá da sala de visitas?
Sim! E se olharmos para a questão sob o ponto de vista da Rosa, teremos que conceder que ela teve carradas de razão. Sobretudo quando se entender que o Celestino, mais ou menos ateu, se vira forçado a casar em cerimónia religiosa pela Igreja Católica quando a barriga da Rosa começou a crescer. A questão do crescimento da barriga não foi assim tão problemática, que necessitasse de negociações aturadas, estavam de facto apaixonados um pelo outro e queriam vive juntos, todavia a Rosa procedia de uma família antiga de gente muito religiosa, que já produzira três padres e dois cónegos ao longos dos anos. Casaram-se, pois, pela Igreja, com todo o cerimonial que uma ilustra família podia almejar para a primeira filha casadoira.
O Celestino, mesmo o nome favorecendo, teve dificuldades enormes para mastigar o pouco do catecismo que teve que aprender para o efeito, tendo passado ainda pela comunhão e pelo crisma. Jurou que um dia haveria de se vingar, não fosse ele também filho de Deus.
Enquanto viveram no Sul, frequentou assiduamente a Igreja, ia todos os domingos com a esposa e a família à missa. Mas não conseguiram que comungasse. Após várias tentativas, quando um bom domingo o viram mastigar a hóstia com tanto rancor que até fazia caretas, com metade dos comungantes a olharem estupefactos, foi imediatamente dispensado e liberado pela família, envergonhada.
Vitória que festejou secretamente, embora sol de pouca dura, pois teve que continuar a os acompanhar aos domingos e feriados religiosos.
Reagindo, aprendeu a dissimular dentro do hinário os livros de bolso detectivescos que tanto gostava, a Rosa fingindo que não via, porem não desarmava. A cada momento, lá o cutucava para se levantar, sentar ou ajoelhar. Haveria de transformar aquele coração fechado para a fé.
Quando vieram viver para Luanda, foi o grito da libertação do cativeiro. Com a família distante, foi a Rosa que teve que começar a aquiescer e assim, aos poucos, o lá foi perdendo como companheiro de missas e afins. Não pensem que o amor e relacionamento deles estiolara, nada disso, continuaram solidamente juntos, só que as missas dominicais foram substituídas pelo televisor ou saídas para um curto passeio, após o qual apanhava a esposa na igreja.
Mas como foi então parar exilado para o sofá da sala de visitas?
É que não soube medir a fé e, sobretudo a religiosidade da mulher, talvez por falta de um religiómetro ou por ter-se distraído com a liberdade adquirida.
E ainda por cima, foi a um domingo.
Já deitados, o Celestino deu para contar uma anedota à mulher, sem medir as consequências.
- Ó Rosa, queres ouvir esta?
- O que é, amor?
- Ontem morreram três velhinhas, sabes?
- Três velhinhas, todas no mesmo dia? Onde?
- É verdade. E foram as três para o céu porque tinham sido muito beatas.
- Mas o que é isso?!...
O Celestino, se estivesse atento, teria logo notado a inflexão vocal da esposa e ficado por aí. Mas não, aventurou-se um pouco mais ainda. Só um pouco mais, com aquele espírito dos aventureiros ou dos audazes.
- É como te digo... A primeira, chegada lá, pediu a São Pedro que lhe permitisse ser outra pessoa.
- Celestino, sabes muito bem querido que não gosto que se brinque com assuntos sérios.
- ?!...
- Ouviste, querido?...
- Ouvi, meu amor. Mas deixa que acabe. Ser outra pessoa, perguntou S. Pedro? Sim, disse ela. E que pessoa deseja ser? A Madona.
Neste ponto a Rosa saltou da cama e olhou para ele em sobressalto, estaria doente, paludismo cerebral?
- O quêêêê?!....
- Pois é como te digo, filha. A Madona, e foi-lhe concedida a graça. A segunda pediu para ser a Patrícia Faria.
- A Patrícia Faria? Mas tu estás bem?
Antevendo o golpe de misericórdia, pois por esta altura já estamos todos a ver que o Celestino escolhera a ocasião para se vingar conforme se prometera há anos, rematou, bem humorado:
- A terceira disse que queria ser a Pipalina do Saara.
Apanhada de surpresa, nunca ouvira falar de tal celebridade, a Rosa conseguiu reganhar alguma compostura para indagar:
- A Pipalina du Saara?...
- Olha filha, foi o mesmo que o S. Pedro lhe perguntou. Assim, a velhinha mostrou-lhe um jornal que trazia debaixo do braço, cuja parangona dizia “Pipeline do Saara é montado em quinze dias, por trezentos homens”.
Para terminar este assunto, baixemos uma pudica cortina sobre a cena que se seguiu logo após, e ofereçamos a nossa simpatia àquele incompreendido que ronca feliz no sofá da sua sala de visitas. Ainda lhe faltam mais onze dias. Talvez!...

22/08/04