segunda-feira, 25 de junho de 2012

PROVÉRBIOS ANGOLANOS

TUVANJI UYA KOMBUNDA ( APROFUNDAR A DISCUSSÃO ATÉ ENCONTRAR A VERDADE.
ESTE PROVÉRBIO PERTENCE AOS OVIMBUNDU  É DA LÍNGUA UMBUNDU.






BATUQUE MUKONGO


10
Zavula era uma casa comprida
com um chapéu de telhas
sob o qual se abrigava
um longo comboio a vapor
pouca terra pouca terra pouca terra
apito de brinquedo escondido
na mão do pai natal invisível
fuííí… fuííí… fuííí…
comboio de fumaça encardida
engolindo o morro aos poucos
pouca terra pouca terra pouca terra
pouca terra para os contratados
longas filas de surucucus mordendo os cafezais
pouca terra pouca terra pouca terra
tragada pelo soma do Bailundo
na cata forçada do escravo
pelo branco à espera na camioneta
expectante a arrebanhar
cinquenta almas de boa saúde
músculo teso
dentadura impoluta
visão perfeita
olhares perfurantes das crianças
escondidas entre os arbustos
o mato no silêncio do cacarejar
das galinhas do mato
a vê-los subir o camião do outro mundo
sempre cantando
*jamba weya la yo
jamba weya la yo
uwa ugenda nda uwa
uwa ugenda nda uwa
uvala o
caminhos áridos de esperança
até ao Uíge na Uízi
agradecendo humildes ao capataz
o cobertor a farda de sarja
sorrindo pelo feijão e peixo seco
olhando de viés a fuba nova
cantando sempre cantando
a memória do kimbo já longe
porque quem canta seus males espanta
a primavera vai e vorta sempre
a primavera vai e vorta sempre
*jamba é que a trouxe (a viagem)
jamba é que a trouxe
é bom viajar
é bom viajar
mas traz sofrimento
a mocidade nunca vorta mais
nas roças perdidas de cachos de dendém
mal sabendo mal sonhando
que um dia a bandeira pintaria em glória
a mocidade perdida no seu pano

11
Como chegaram
assim partiram
vazios de ilusões
deixadas na mata com o capim
no poder dos cafezais
na caneca de litro de vinho
empurrada pelo fubeiro
uma após a outra
bebe lá oh homem
não tens dinheiro fica fiado
partiam como vieram
sem nada mas sempre cantando
a primavera vai e vorta sempre
sem saberem o que era primavera
a não ser que voltava sempre
a primavera vai e vorta sempre
a mocidade nunca vorta mais
pouca terra pouca terra pouca terra
piava a mbemba soberba
circunferenciando os céus
pelo olho vítreo que feria o rato a cobra ou a lebre
partiam como vieram
em cima do mesmo camião
com um pouco mais de imbambas
djamba weya la yo
djamba weya la yo
wa ugenda nda ua
wa ugenda nda ua
uvala wo
a víbora enroscada no rato
a lebre nas asas da mbemba
a luz da noite escondendo o povo dorido
vilipendiado e sofrido
à volta da varanda da casa grande
quebrei o ferro redondo das grilhetas
imaginárias nos terreiros do café
acariciado toda a vida por mãos mestras

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


JOÃO MELO

Jornalista, escritor publicitário, professor e Deputado à Assembleia Nacional, nasceu em Luanda em 1955. É licenciado em Comunicação Social e fez o mestrado em Comunicação e Cultura no Brasil. Foi Presidente da Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos e é produtor de uma vasta obra literária, sobretudo em poesia e, ultimente prosa, de onde foram retirados os contos aqui presentes.

O PATO REVOLUCIONÁRIO E O PATO CONTRA-REVOLUCIONÁRIO

O s angolanos, além de gostarem de makas, de farrar até de manhã, de chegar tarde aos seus compromissos e de usar e abusar do humor, inclusive contra eles mesmos, também sempre foram pós-modernos avant la lettre. Iconoclastas, não levam nada demasiado a sério, chegando ao ponto de abandalhar – este termo pode ser pouco literário, mas em fim o que fazer, se o próprio escritor é angolano?– completamente as lições, os modelos e as regras que o mundo tem tentado, desde sempre, impor-lhes. A história contemporânea está cheia de exemplos que confirmam a profunda e multiforme irresponsabilidade dos angolanos. Primeiramente, levados aos milhões para as américas, como escravos, não se deixaram dizimar nem pela brutal exploração de que foram vítimas nem pelas desconhecidas doenças que tiveram de enfrentar, como a gripe ou a sífilis. Em vez disso, ensinaram aos seus próprios exploradores como se forjava o ferro, como se extraía da terra os diamantes ou o ouro ou como se plantava (e colhia) a cana-de-açúcar ou o café.
De igual modo, ensinaram-lhes como se toca e como se dança e os ritmos ancestrais que levam no sangue, espalharam-se até aos pampas, no sul. Recriaram as línguas que lhes tentaram impor, introduzindo nas mesmas milhares de novos vocábulos e expressões.
Contribuíram para africanizar as religiões hindu-europeias que encontraram no novo continente. Geraram heróis, como Zumbi, no Brasil e os dezanove angolanos que participaram na luta pela independência do Chile. Finalmente, transformaram a vasta e solarenta região entre o Caribe e o Brasil num celeiro de mulatas, consideradas hoje, com toda a justiça, um autêntico produto global.
Enquanto isso, os que tinham ficado acolheram os agressores estrangeiros de uma maneira que ficará registada para sempre nos anais da convivência humana: combatendo-os ferozmente, mas fazendo negócios com eles e dando-lhes as suas filhas em casamento; adoptando as suas religiões, mas ensinando-lhes rituais fantasmagóricos, que os enlouqueciam; provando do seu vinho aguado, mas dando-lhes a experimentar bebidas desconhecidas; e por fim, levando-os até às profundezas dos sertões mais recônditos, onde eles contraíam febre-amarela e sucumbiam irremediavelmente. Para quem não sabe, assinale-se que essas diferentes e múltiplas estratégicas eram usadas não em alternativa, mas simultaneamente, para desespero dos invasores, que até hoje são absolutamente incapazes de conhecer os angolanos, nomeadamente o seu instinto de sobrevivência e a sua flexibilidade.
Um detalhe particular incompreensível, para os referidos invasores, é como no decurso desse fantástico processo, os angolanos se foram misturando entre si, mas também com eles, ambos matando e fornicando destemperadamente uns com os outros, isto é, deglutindo-se mutuamente, numa história de sangue e risos, de ameaças e promessas, de juras e traições, de crimes e redenções, tornando-se todos cada dia mais angolanos. Numa demonstração de que, realmente, os extremos se tocam, isso é considerado o cúmulo da irresponsabilidade, não apenas pelos antigos invasores mas também pelos actuais cazumbis ultranacionalistas e neorracistas.
Enfim, e mais recentemente, os angolanos foram os autores de duas das mais
prodigiosas operações de engenharias social conhecidas na história contemporânea:
transformaram o socialismo marxista-leninista em socialismo esquemático e o capitalismo neoliberal em capitalismo mafioso. Alguns autores chamam ao primeiro afroestalinismo e ao último capitalismo selvagem, mas isso são designações ideológicas, sem qualquer serventia, com as quais a boa literatura pós-moderna não deve perder tempo.
Se o camarada Chung Park Lee soubesse um pouco de história angolana – não aquela ensinada nos manuais e nos compêndios, mas a sua história quotidiana, a qual, na verdade, ainda está por escrever, pois trata-se de uma empreitada que implica ultrapassar uma série ideias feitas e preconceitos gerais–, teria desconfiado logo da pergunta daquele guerrilheiro do MPLA, chegado à Coreia do Norte há apenas duas semanas, a fim de fazer um treinamento militar:
– Se um pato puser um ovo em cima da fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do sul, a quem pertence o ovo?
O camarada Lee, como se costuma dizer, teve vontade de se coçar na cadeira.
Ele tinha acabado de sentar-se depois de concluir uma aula sobre a traição histórica do regime da Coreia do Sul, cujos dirigentes não passavam de um bando de vendilhões totalmente enfeudados ao execrável e abominável imperialismo norte-americano, tendo perguntado aos estudantes – uma amálgama de jovens revolucionários provenientes de diversas regiões do então chamando Terceiro Mundo, do próximo Vietname à longínqua Nicarágua, todos eles compreensivelmente bem intencionados, como quaisquer jovens, revolucionários ou não – se algum deles tinha duvidas ou se queria
fazer alguma pergunta.
– Como? perguntou, enquanto pensava na melhor resposta àquela inusitada questão.
– É muito simples! retorquiu o jovem guerrilheiro angolano. Imagine o camarada professor que um pato põe um ovo mesmo em cima da fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. A que país deve pertencer esse ovo?
O professor não resistiu e coçou-se discretamente, antes de responder, como o ar mais convicto de que foi capaz:
– Bem. O ovo devia estar um pouco mais lado de cá, portanto, só podia pertencer à Coreia do Norte!
– Não, não...o ovo estava exactamente no meio da fronteira, nem, um milímetro para cá, nem para lá...
– Nesse caso, então, respondeu o professor, o pato devia estar a fugir da Coreia do Sul para se juntar à gloriosa revolução do povo coreano, conduzida pelo nosso Grande Líder, Camarada Presidente Kim Il Sung. Portanto, o ovo tinha de ser da Coreia do Norte!...
O guerrilheiro questionador devia ser malanjino ou catetense, os quais, de acordo como mapa ideossincrático dos angolanos, têm a mania que são mais espertos do que os outros. Falando quase em surdina, medindo bem as palavras e com um leve brilho trocista assomando-lhe discretamente aos olhos, insistiu:
– Camarada professor, desculpe, o pato não vinha da Coreia do Sul, pois era originário da Coreia do Norte... era um pato revolucionário!...
O professor respondeu instintivamente, para não dizer mecanicamente:
– Era um traidor! Se pôs em cima da fronteira, é porque estava a tentar fugir...
– Não discuto, camarada professor! Mas ainda não me respondeu. E o ovo?
O camarada Chung Park Lee pensou, com leve sobressalto, que o jovem guerrilheiro do MPLA queria pôr à prova a sua fidelidade à justa causa da Revolução Coreana e aos ensinamentos do Grande Líder, Kim II Sung. Decidiu, por isso, terminar com aquela brincadeira de mau gosto de uma vez por todas Quase berrou:
– O pato era um contra-revolucionário! Mas, seja como for, os nossos valorosos combatentes guarda-fronteiras jamais deixariam que esbirros do Sul se apossassem
desse ovo!...
Perante essa peremptória e definitiva afirmação, quem se sobressaltou foi o guerrilheiro angolano. Imaginou o ovo todo esburacado no meio da fronteira, na zona de segurança entre as duas Coreias, enquanto o pobre pato se desafazia em penas e pequenos movimentos descoordenados, seguidos de um leve fragor de ossos e berros exíguos, que se soltavam com dificuldade da sua garganta asfixiada pela dor.
Uma auréola amarela e branca, levemente viscosa, tingia o chão, alastrando-se cada vez mais, em círculos crescentes. Rapidamente, a clara e a gema do ovo, totalmente desfeitas, misturara-se com o sangue do pato sacrificado pela sempre pronta vigilância revolucionária dos guardas coreanos. «A Revolução, afinal, é isso?», perguntou a si mesmo, antes de responder ao camarada Lee.
Sem pretender adiar essa resposta por muito tempo, o narrador é obrigado, contudo, a fazer uma breve interrupção neste ponto do relato para, em duas ou três linhas, traçar o perfil do jovem guerrilheiro, pois talvez isso útil para entender a sua dúvida existencial, digamos assim, quanto ao destino daquele ovo. Pedro Muanza Agostinho – assim se chamava ele – era um antigo estudante de pouco mais de 18 anos, que aderira ao MPLA para ajudar a realizar um sonho que, na altura era ardentemente partilhado pela maioria dos angolanos: expulsar os colonialistas portugueses e tornar Angola um país independente.
Como e para quê, apenas o intuía levemente e, de certas palavras que passar a escutar assim que se juntou ao movimento – tais como «socialismo» ou «Revolução»–, conhecia somente a configuração sonora. Alguns meses depois de ter chegado ao Congo, onde estavam as bases da guerrilha, foi mandado para a Coreia do Norte – que
 he disseram ser um país revolucionário e anti-imperialista –, a fim de fazer um treinamento militar de seis meses.
Pedro chegou à Coreia do Norte cheio de perguntas. Contudo, aquele absurdo diálogo com o camarada Chung Park Lee fazia-o começar a desconfiar de que as suas perguntas jamais teriam respostas. Como tinha apenas 18 anos, ele não mediu toda a extensão desse facto. Talvez por isso, resolveu dar ao mesmo um xeque-mate. Como bom angolano, fê-lo com toda a serenidade do mundo, gozando cada palavra que pronunciava como se estivesse a ter um orgasmo físico.
– Lamento informá-lo, professor: os patos não põem ovos, só as patas!..
O que aconteceu a seguir conta-se em três parágrafos. O camarada Chung Park Lee, mortalmente perturbado com o angolano, fez um relatório completo ao Departamento de Relações Exteriores do Partido, o qual remeteu o assunto à reunião do Secretariado, que, depois de analisá-lo, o encaminhou à sessão seguinte do Comité Central, dali a duas semanas, acompanhado por um dossiê completo, no qual entre diversas informações preciosas, absolutamente rigorosas e objectivas, era acusado o camarada Pedro Muanza Agostinho, guerrilheiro angolano enviado pelo MPLA para fazer um treino militar de seis meses na República Democrático e Popular da Coreia, de ter tentado facilitar a fuga de um norte-coreano para o território ilegalmente controlado pelos esbirros do imperialismo norte-americano. Além disso – assegurava o dossiê –. O mesmo camarada tinha o hábito de fazer perguntas provocatórias aos seus professores, que ficavam sem saber o que fazer, pois tratava-se de questões que não estavam previstas nos livros de ensinamentos do Grande Líder, Kim II Sung.
A tais gravíssimas acusações, acrescentava-se ainda o facto jamais visto de, apenas duas semanas depois de ter chegado, o camarada Agostinho ter organizado no dormitório uma festa para a qual arregimentou cubanos, brasileiros, mexicanos, congoleses, cabo-verdianos e outros terceiro-mundistas irresponsáveis, onde todos eles, alternadamente, tocavam estranhos ritmos, dançavam lascivamente, comiam e bebiam como burgueses e fornicavam entre eles com escandaloso prazer e alegria. Após essas orgias – comentava, estupefacto, o anónimo autor do dossiê –, o mesmo passava os dias soltando gargalhadas descomunais pelos corredores da academia.
O veredicto foi implacável. O guerrilheiro angolano foi ilibado, «por ausência do corpo de delito» da acusação de tentar facilitar a fuga do pato, mas em contrapartida, foi considerado culpado de todas as outras acusações, as que constavam do dossiê e as que, com criativo improviso, foram formuladas na ocasião, nomeadamente e de não dominar os fundamentos essenciais da zoologia revolucionária, pois ignorava que, na pátria dos trabalhadores coreanos, os patos também conseguem pôr ovos, graças às teorias desenvolvidas pelo Grande Líder, o Camarada Kim II Sung. Teria, pois, de ser expulso e mandado de volta para Angola. Assim mesmo de um mês depois de ter partido, Pedro Muanza Agostinho regressou à tradicional base do MPLA em Dolisie, no Congo.
Esta estória aconteceu nos anos 60, em pleno apogeu das duas metanarrativas fundamentais que se têm degladiado nos últimos duzentos anos. Naquela altura,
ninguém sabia o que eram metanarrativas, até porque, em nome das duas grandes ideologias da época – o liberalismo e o marxismo –, os homens enfrentavam-se fisicamente nos campos de batalha e as mortíferas armas que utilizavam para tentar eliminar, no sentido mais material do termo, os adversários não eram, obviamente, meros jogos de linguagem.
E ntretanto, um desconhecido guerrilheiro angolano, que apenas hoje entra para a literatura mundial, antecipou Lyotard, conseguindo demonstrar, com uma charada aparentemente ingénua como discursos grandiloquentes podem ser desvirtuadas e pervertidos pela prática, tornando-se simples simulados da realidade. Não é espantoso?
Pela parte que me toca, estou firmemente convencido de que esta estória ainda acabará por entrar numa colecção de contos pós – modernos exemplares.
Mas, se ela não satisfez os leitores, saibam, então, o que aconteceu ao jovem guerrilheiro do MPLA e ao professor coreano que ele enfrentou galhardamente, em pleno contexto puro e duro da época, tipo pão-pão, queijo-queijo, desconstruindo inapelavelmente a rigidez do seu monolítico discurso revolucionário.
O camarada Chung Park Lee desertou, no início dos anos 90, para a Coreia do Sul, onde se tornou um alto executivo de uma grande companhia de produção agropecuária.
No fim da década, a referida companhia assinou um contrato com governo angolano e instalou-se no país, tendo o antigo professor de História da Revolução Coreana sido mandado para Angolano, afim de dirigir os negócios da companhia. Pedro Muanza Agostinho, apesar de ter chegado a comandante durante a guerrilha nacionalista angolana, não conseguiu, entretanto, tornar-se um dos neocapitalistas do país, pois a coragem que demonstrara na luta pela independência, quando de armas na mão enfrentou resolutamente os colonialistas, faltavam-lhe agora para – vou dizê-lo sem jogos de linguagem – meter a mão na massa estatal e tornar-se igualmente proprietário privado, como alguns antigos revolucionários. Como ele era um dos técnicos da empresa que foi cedida aos coreanos para desenvolverem o seu projecto, acabou, por uma dessas ironias da vida, como se costuma dizer, como assalariado do agora Mister Lee. Isso é mais espantoso do que a suposta natureza pós-moderna desta estória.
Ah, já me tinha esquecido: o core business da nova companhia é a criação de patos.

In O dia em Que o Pato Donaldo Comeu pela Primeira Vez a Margarida,
Editorial Nzila 2007

terça-feira, 1 de maio de 2012

BATUQUE MUKONGO


8

Nessa minha rua vermelha de barro
no Uíge na Uízi
cavalgam as sombras o futuro
no urro da onça desdentada
no riso ventríloquo das hienas
nos panos garridos da esguia ndua
sombras a dançar o xinguilar milenar dos ndoki
o bater fúlgido das asas das águias
nga nkala yi mbemba
nga nkala yi mbemba ya zungilanga vana mwelu a nzo
e ntangu’a mpasi ke ya ngangu ko ee yolela
e ntangu’a mpasi ke ya ngangu ko1
a hora da dor não é de esperteza
cantava minha avó na roda
para a filha já perdida
com um que viera dos mares
mas sempre cantava
e a dor morria
ao apagar a linhagem
ao esbater a forma
ao esvair da lembrança
ao apagar o traço da raça
nessa longa longa viagem
de quem parte sem volta
galopando a bicicleta ora velha
dos desejos e sorrisos retraídos
à luz do estafado candeeiro
a encher a sala de um véu diáfano de luz
onde se suicidavam as mariposas
num frenesim de bater de asas poeirentas

se eu fosse mbemba (águia)
se eu fosse mbemba para rodear à porta
a hora de dor não é de esperteza ee yolela
o tempo de dor não é de esperteza

9
Luz por onde se perdiam os meus olhos
Vislumbrando o esboço
da nova casa apercebida
no norte do Kwanza
rio sem idade
pleno da sabedoria dos mais velhos
e dos risos dos jacarés às suas margens
numa cidade de flores e de agoirento nome
Salazar no cataclismo de ser Mundo

O FANTASTICO NA PROSA ANGOLANA


ARNALDO SANTOS
Arnaldo Santos é natural de Luanda, onde nasceu a 14 de Março de 1935, Até à adolescência viveu no Bairro do Kinanxixi, topónimo que ocupa um lugar privilegiado na sua produção narrativa. Escritor e poeta de vasta obra, obteve, em 1968, o Prémio Mota Veiga, um dos poucos atribuídos em Luanda nas décadas de 1960 e 1970. Foi co-fundador da União dos Escritores Angolanos, tendo feito parte dos seus corpos dirigentes desde a proclamação (1975) até 1990. Está representado em várias antologias editadas na Alemanha, Argélia, Brasil, Inglaterra, Itália, Portugal, Kénia, Russia e Suécia.


A LIBERTAÇÃO DOS HOMENS–JINZÉU

Os anos foram passando desde a chegada das naus, do alto, o Kinaxixi da Quianda viu crescer ao longe a cidade de São Paulo de Assumpção de Loanda. Porém, a cidade de São Paulo era muito estranha. Nessa Loanda estavam insistir conviver, lado a lado, duas cidades distintas. A Loanda Cidade Alta, e a Loanda Cidade Baixa.
No entanto, só uma delas, a Cidade Alta que corria desde o pequeno morro junto à ilha onde se erguia a fortaleza de São Miguel, eriçada de pesados canhões de boca larga, até na Ermida de São José (que virou depois Hospital Maria Pia), ousava enfrentar o Kinaxixi de Quianda.
– Essa Cidade Alta. É que mandava em tudo... – explicou assim, devargamente, Kuxixima.
Mais do que alta, ela era altiva e sobranceira percorria todo o cimo da crista do morro guarnecido das cruzes da Igreja dos Jesuítas, e da Igreja de Nossa senhora da Conceição, e também das bandeiras e estandartes dos aquartelamentos militares. Dessa maneira a Cidade Alta seguia altíssona e festiva até nas encostas da Maianga do Rey, onde os escravos dos moradores iam buscar água. Dominando o casario, ficavam também nesse plano alto, os palácios dos Governadores, do Bispo, e a Santa Casa de Misericórdia com seu hospital.
A outra cidade, era, aparentemente, mais modesta. Nela a vida fervilhava entre tabernas, armazéns de escravos, sobrados com sanzala e as cubatas que se confundiam com as areias das barrocas.
Não raramente a Loanda Alta baixava nessa Loanda da praia, e nela se esponjava, se embriagava.
Assim, naquele arco da baía que se desenhava do sopé do morro da fortaleza de São Miguel até na Ermida da Nazareth, essa azáfama não passava despercebida na arriba do morro do Kinaxixi.
Aqueles seres minúsculos que davam pelo nome de homens, indo e vindo pela praia, desavindos, causavam muita estranheza. As terras deviam andar muito abrasadas porque esses homens, que eram brancos e pretos, pareciam reduzidos a salalé-formigas brancas e jinzéu, formigões pretos, e não tinham parança ao sol, sempre em busca cega.
No entanto, embora assim todos minúsculos pequeninos, havia uns que eram diferentes. Eram os homens-jinzéu. No Kinaxixi lhes chamavam assim de homens-jinzéu porque talqualmente os quissondes seguiam agarrados uns nos outros, quais colares de missangas pretas. No entanto, diferentemente dos quissondes, não marchavam. Andavam se arrastando presos entre si, e não sabiam para onde ir. Nas lhe unia a sua livre vontade de seguirem uns atrás dos outros. Estavam-lhes a ligar correntes de ferro, muitas vezes presas nos pés ou nos pescoços. Os lubambos.
– E foi então que no Kinaxixi todos esses casos começaram a levantar sérios cuidados... – disse Kuxixima. – Este foi o princípio de todas as estórias...
Naquela região do Kinanxixi só tinha uma verdade. A vida inteirinha naliberdade da natureza. Não havia outra; não conheciam. Esses casos dos homens-jinzéu presos acorrentados não podiam acontecer no Kinaxixi. E na hora de beber água na lagoa, doía pensar no sofrimento daquela gente.
Dias a seguir aos dias, eles víamos homens-jinzéu passar dos quintais do major Gabriel, grande negociante de escravos no sítio da Sanzala-ia.Mabangela, atrás da Igreja da Nazareth, até na Sanzala do Kixima-ia-Mbakanhá para beberem água. Essa água tinha o sabor de
bacalhau, foi assim então que lhe deram esse nome no poço. Mas os homens-jinzéu eram escravos, tinham sido comprados, não podiam refilar o gosto da água. Bebiam.
Os soldados da linha da Sanzala Bua Mbonge, que ficava mesmo ao lado, estavam-lhes a vigiar com espingardas e bacamartes, até que eles regressassem novamente no quintal do braga, ourives, no quintal do major Gabriel, ou nos outros quintais dos donos de escravos.
Nesses tempos, estavam a vir em Loanda navios e navios para carregar produtos e peças. E eram peças os dentes de marfim, as bolas de cera, os rolos de algodão e também as pessoas.
Todas essas peças, os comerciantes carregavam nos porões dos brigues, escunas e pataxos. E amarrados uns nos outros com os lubambos estavam também os homens-jinzéu. Era muito triste.
As Quitutas do Kinaxixi que brincavam muito em todos os pequenos charcos, viam-lhes todos os dias assim amarrados, se arrastando lentamente e comentavam:
–Que crime é esse que esses homens cometeram para lhes fazerem sofrer dessa maneira?
Mesmo a Quianda, espírito pai-mãe da lagoa, quando elas lhe contaram, não soube o que havia de lhes dizer.
– Essas são makas dos homens da cidade. Não se metam... – avisou.
Porém, todo esse sofrimento as Quitutas filhas d’água do Kinaxixi, iam vendo, e se comoviam até que os homens–jinzéu eram embarcados como peças, sufocados nos porões. E então, um dia, não puderam mais se conter e se zangaram.
– Vamos no Bungo... lhes buscar...? Propuseram.
Esse era um dia do ano de 1730, em que durante quarenta dias a chuva grande d’água gorda nunca deixou de cair. As tranças d’água estavam a ligar as nuvens com o Kinaxixi. Chovia, chovia e de todos os lados vinham as águas para a lagoa. Mesmo do sítio da Santa Maria Magdalena, ali pertinho do Kinaxixi as correntes não paravam. Foi então que as filhas d’água repetiram na Quianda da lagoa:
– É hoje. Vamos no Bungo... lhes buscar. – Afirmaram, resolutas.
A Quianda sabia que elas queriam libertar os homens–jinzéu, mas se preocupou com os excessos que podiam ocorrer desse grande entusiasmo. Por isso lhes recomendou com voz de Mãe:
– Cuidado... desçam devagar fele-fele nas barrocas... não
corram...
O espírito d’água da lagoa queria-lhes explicar a razão daqueles conselhos mas elas não chegaram a ouvir mais nada. Mal ouviram a autorização não escutaram as outras recomendações. Saltaram pelas margens e cavalgaram na zuna barroca abaixo, aquela berrida estivessem a levar, na direcção do Bungo. Pareciam, eram só candengues felizes de se livrarem da vigilância dos mais-velhos.
Então nessas corridas sem modos, brutucu-brutucu salta aqui, brutucu-brutucu salta ali, atropela, varreram tudo na frente, areias, paus, troncos, e cavaram um caminho fundo para o Bungo, que mais tarde lhe chamaram o Njila-ia-Kinaxixi.
As quitandeiras da Quitanda do Bungo foram as primeiras que lhes viram chegar com paus e pedras em confusão, e recearam. Mas adivinhando que as águas estavam zangadas, fugiram com medo, tat’ê!, mam’ê!, , os balaios e quindas na cabeça. Umas foram nos jimbungo, o lugar dos bambus, mas foram apanhadas, e outras foram na Caponta. Mesmo os soldados da linha do Bua-Mbonge, no fortim deles, não resistiram. Vendo que os espingardões e os bacamartes não faziam farinha contra essas águas furiosas, que já tinham dado berrida nas quitandeiras e enterrado o Poço do Bacalhau, ala... Não esperaram mais as ordens dos chefes e abandonaram o fortim, fugindo cada uma para seu lado, se escapulindo qual os pucos.
Estava enfim livre o caminho para as Quitutas. Então as filhas d’água do Kinaxixi, em ondas e ondas de alegria, uma a uma invadiram as cubatas e sobrados e puseram em fuga os moradores, até que, por fim chegaram nos quintais onde estavam presos os homens-jinzéu ligados uns nos outros pelos seus lubambos.
Mesmo quando o Major Gabriel da sanzala Mabanguela, o Braga, ourives, da sanzala Bua-Mbonge e os outros donos de escravos, que tinham ocorrido nas pressas com os seus criados armados de pás e picaretas para tentar travar as filhas d’água do Kinaxixi, já nada
conseguiram. Era tarde. As Quitutas do Kinaxixi já tinham abraçado os homens– jinzéu e lhes recebido nas sua vidas que levaram com elas, contentes por lhes poder entregar no mar.
Mais tarde, muito mais tarde, quando as pessoas passavam no Njila-ia-Kinaxixi, esses casos elas recordavam, ainda espantadas. E tentavam adivinhar como depois os homens–jinzéu foram aparecer vivos nas suas sanzalas.
No entanto, o exemplo das corridas das Quitutas do Kinaxixi, a cavalgarem na zuna pelas barrocas abaixo para libertar os homens-jinzéu, outros filhos–pequenos do Quinaxixe muitos anos depois, iam-lhes seguir também.
Mas estas são outras estórias. As do Quinaxixe.

In As estórias de Kuxixima, INIC, 2003