terça-feira, 3 de novembro de 2009

TEATRO (Casimiro Alfredo)


PÁTRIA

ACTO II

CENA 1
(No palco encontra-se a Mãe-Pensador. Colans cingindo o corpo esguio, mantém uma postura ausente, posicionada de cócoras, cotovelos nos joelhos, mãos no rosto. Entra em cena a Jovem. Descalça, entra carregando um galo negro. Os três figurantes que a acompanham, apresentam-se de túnicas rasgadas e sujas, como que regressados de uma longa batalha. Todos calçam agora botas militares. O grupo entra e ganha o centro do palco, formando um semicírculo em torno da Mãe-Pensador).

A JOVEM
(com o galo nas mãos, estende os braços em jeito de oferenda) Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a saber quem tanto mal nos quer!... Ajuda-nos mãe... ajuda-nos a saber quem os nosso homens atormenta, levando-os a expulsar-nos das lavras... para nelas semearem a própria estropiação... Aceita esta oferta, ó Mãe!... Aceita esta oferta, e ajuda-nos a limpar o mal que na carne germina... que os nossos filhos come, que as nossas casas destruiu, que dos nossos espíritos tem gula...

CORO
Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a banir os espíritos, que nossas vidas atormentam...

A JOVEM
Aceita esta oferta o Mãe!... Aceita esta oferta e ajuda-nos a limpar o mal que na carne nos germina...
Terão os nossos avós resposta?...
Saberão eles a razão das nossas chagas?...
Serão eles a razão dos nossos males?...
Ajuda-nos ó Mãe!... Ajuda-nos a banir os espíritos que as nossas vidas atormentam...
(insinua-se e vai-se tornando progressivamente audível, um ritmar batucado, que lentamente parece envolver as duas mulheres. A Mãe- Pensador, como que despertada da sua letargia, leva um recipiente aos lábios, entregando-o depois à Jovem, que cumpre o mesmo gesto ritual. O ritmo agora é dominante. As duas mulheres envolvem-se, e perdem-se, num frenesim dançante em torno do trio figurante que, em coro, vai repetindo a última “fala” da Jovem. Apagam-se as luzes, saem os actores)

CENA 2
(Luz vermelha, atmosfera difusa. D.Ana de Sousa, o Padre e João C. de Sousa, movem-se no palco, como que encerrados num espaço limitado por interdições que os transcendem. É o “limbo”. D. Ana e o Padre permanecem juntos. João C. de Sousa, irrequieto, caminha enérgico no espaço limitado pelo, imaginário, limbo)

D. ANA DE SOUSA
(recebendo a bênção)
Vós Padre, vós que conheceis os segredos divinos, sabeis quanto tempo mais aqui permaneceremos?

PADRE
Tempo minha filha?... A purificação é o tempo. Libertação de ofensas terrenas e o desapego, é o que à alma basta para ao Criador se unir...
JOÃO C. DE SOUSA
(Interrompendo brusco)
Ide pregar noutra missão ó Padre. Ide juntar-vos aos correlegionários lá no Congo, ou aos traidores do Colégio de Luanda... Ah!... Pudesse eu regressar e... juro, juro pela minha alma e barba que dessa raça de apóstatas nada sobraria...

PADRE
(Benzendo-se)
Louvada seja a misericórdia do Altíssimo, que tanta blasfémia perdoa e poupa ao fogo do inferno... Cuidai de redimir o ódio que em vida o coração vos empederniu, antes que a alma, única graça que vos resta, caia em poder do demónio...
Chamais traidores aos incansáveis obreiros da Companhia de Jesus?... Acaso ainda vos não abandonou a alucinada... demente suspeita, contra o Ouvidor-Geral e Vereadores da Câmara, durante o triste governo que haveis encabeçado?...

JOÃO C. DE SOUSA
(levando a irritação ao extremo)
Demência Padre?... Chamais demência à imposição da lei, contra as maquiavélicas maquinações do Ouvidor, dos Jesuítas, e daquele filho d’um corno do Alvarez... que fugiu à sindicância alegando perseguição?... (O Padre benze-se repetidas vezes, e de mãos postas, cabeça baixa, parece orar)... Alucinada!... Alucinada é a estória que os hipócritas jesuítas espalharam. E sabeis para quê?... Para justificar o hábito que o Colégio vendeu ao velhaco... hábito vendido em troco de bens, que naquelas terra da Etiópia, pertença D’El-Rei Filipe o III, o danado roubou e roubalhou...

PADRE
Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...

JOÃO C. DE SOUSA
Escutai ó Padre, escutai a estória por eles contada...
“Espalharam os traidores, que estando o cabrão do Alvarez... Menino Diabo, como alcunha o nomearam... a prestar serviços ao Altíssimo em tempo de Quinta-feira Santa... espalharam os traidores, ó Padre, que possuído por um daqueles pecados, que aos homens incha o nervo dentre as pernas, o Diabo do Menino daí se foi para um canto com a escrava, mas de tal ordem era a inchadura do nervo, que o diabo d’um cabrão, mais a escrava servida. Ficaram coladinhos que nem cães... e contam eles, os jesuítas, que livrou-o do apuro o Altíssimo, a quem por prometimento e voto, a vida e riqueza confiou....”

PADRE
(como se quisesse exorcizar um demónio)
Tarrenego, tarrenego satanás. Abrenuncio. Cruzes canhoto...
D. ANA DE SOUSA
(colocando-se ao lado do Padre)
Não fizesse o Álvarez voto, e certamente sofreria as consequências, da atribulada governação de Vossa Senhoria... ou deverei chamar-vos Padrinho?... Menos de dois anos bastaram, para contra vós se levantarem todas as vozes de súbditos, vassalos, e aliados de Filipe, o III de Portugal, IV de Espanha...
Tendes razão Padre. Libertação de ofensas terrenas é o que à alma basta, para ao Criador se unir...

D. JOÃO C. DE SOUSA
Falais como um cristão-novo D. Ana... a que se deve tamanha devoção?... Idade?... ou adversidade?.-..


D. ANA DE SOUSA
A adversidade, meu bom governador, confirma apenas estratégias e alianças talvez necessárias, mas erradas... quanto à idade, é algo que nunca ireis compreender, mas para vosso proveito vos digo... a idade é a evidência de um ciclo que se esgota, é a dúvida reafirmada, uma oferta por cumprir...

JOÃO C. DE SOUSA
Ora, ora D. Ana!... Deixai-vos de teosofias, que o vosso passado conheço eu bem. Até o céu tem um preço... (voltando-se para o Padre)... minto?...
Dizei-me D. Ana, acaso vos ditou apenas vossa virtude, que uma Igreja com hospício e mais não sei, mandásseis construir?... Tudo por graça, e em graça, de Sta. Maria padroeira da Matamba... abençoada afilhada a minha, que tal devoção manifesta...

D. ANA DE SOUSA
Continuai, continuai a lançar vossa peçonha, que não será a vossa odiosa irreverência a pôr-me de mal com a fé que decidi abraçar...

PADRE
Pobre infeliz!... Deus não negoceia almas, conquista-as pelo amor... D. Ana de Sousa reconciliou-se com o Criador, acaso haveis vós feito o mesmo... antes do corpo vos encomendarem?... Deus me livre da maledicência, mas no “Limoeiro” se encarceram os criminosos, e ao que se diz, o último suspiro lá vos surpreendeu... lá se faz, lá se paga, e aqui se aguarda o troco...

JOÃO C. DE SOUSA
Orai Padre, orai e não sejais maledicente nem malicioso, que isso também é pecado! (vira as costas ao padre e retoma o enérgico vai-vem pelo palco)

CENA 3

(Ouve-se um som de trombetas, preludiando a acção seguinte. Uma luz azul, intensa, ilumina o fundo do palco. D. Ana, como que obedecendo a uma força superior, encaminha-se para a luz, atravessa-a e sai de cena. João C. de Sousa ensaia uns passos na mesma direcção, mas uma invisível barreira parece detê-lo. Cessa o som das trombetas e desaparece a luz. Entra em cena o Degolado. Faz-se acompanhar de dois guardas armados -um de mosquete, outro de lança e adarga -e de um pajem, que empunha, e agita constantemente, um “rabo de cavalo”).

JOÃO C. DE SOUSA
(Para o recém-chegado)
O ceptro e a coroa não vejo, mas digno de um rei é o séquito. Acaso falo com El-Rei D. Pedro Afonso, II do nome?...

O DEGOLADO
4 décadas, 2 Alvarez, 2 duques mais um Conde, e 1 Rei que degolado foi...
4 décadas de Pedro a Garcia... ambos Afonso... passaram...
3 Álvaros... se seguiram após o III... e reinaram...
2 Ducados mais um Condado... o que guarda as portas do reino, chamada Mbamba, o que o reino herda, chamado Nsundi, o que a todos observa, chamado Sonho... dois ducados mais um condado, o poder se disputaram...
1 Rei degolado... em Ambuíla... a cabeça em procissão lhe Levaram, e numa ermida lha guardaram...
4 décadas de Pedro a Garcia... ambos Afonso... passaram. E eu António Afonso, chamado o I, em Ambuíla degolado fui...

JOÃO C. DE SOUSA

Perdão Alteza, mas deveras notável é a fisionómica semelhança...

PADRE
(fazendo uma vénia)
Que a paz de Deus inunde, e afaste do coração de Vossa Majestade, as maléficas sombras do passado...

JOÃO C DE SOUSA
Procurais mais devotos, Padre?... Vede bem, porque este, onde irá Vossa Senhoria meter a hóstia?...

PADRE
(surdo ao remoque)
Que a Srª da Nazaré, vele para que a vossa Real cabeça em paz repouse . Que a Stª Padroeira da Ermida, ajude a penitenciar ofensas e pecados...

O DEGOLADO
É ofensa negar, não aceitar, ambições e guerras alheias, Padre?... É pecado querer distender ódios antigos, esquecer fratricídios e guerras intestinas, para reafirmar uma soberania ameaçada?...
Ofensa seria ignorar a arrogância... demonstrações de força servindo um “trato” que aos filhos da terra extermina, e nem o sangue Real poupa... pecado seria ignorar intentos que minas de ouro exigem, alegando promessas antigas...

PADRE
Vossa Real cabeça na casa de Deus se encontra!... Porque não deixais que da alma, de igual modo se ocupe o Criador?... Os erros que refiro, meu filho, consubstanciaram-se na batalha onde a cabeça haveis perdido, para salvação da alma...
Trágico foi o ano de 1665, em Ambuíla, terras de D. Isabel, fiel vassalo da Coroa portuguesa, por graça da gloriosa acção de Salvador Correia de Sá e Benevides...

JOÃO C. DE SOUSA
(provocador)
Ora, não fiqueis com essa cara Alteza!... Quem sabe um dia Vossa Alteza não regresse, em cortejo triunfal, para da Nazaré... a Santa, não é Padre?... vossa cabeça resgatar, e aos que vossas minas ambicionavam, castigar... Insondáveis são os desígnios do Altíssimo... não é Padre?...

PADRE
Pode Vossa majestade mofar... mas acaso tereis esquecido que a própria Virgem com o Menino ao colo, al lado do Lopes de sequeira, no campo de batalha se manifestou, mostrando a ofensa cometida?... (fazem-se ouvir, como que surgindo do nada, um coro de vozes acompanhado de lamentos. O Padre e João Correia, inquietam-se).

VOZES
(fazendo-se ouvir no palco)
Terão os nossos avós resposta?...
Saberão eles a razão das nossas chagas?...
Serão eles a razão dos nossos males?...
Ajuda-nos ó Mãe! Ajuda-nos a banir os espíritos... que as nossas vidas atormentam!... (cessam as vozes, continuam os lamentos).

JOÃO C. DE SOUSA
(encolhendo-se)
Que prodígio é este ó Padre?... Vozes de Deus, ou vozes do Diabo?

PADRE
(encolhendo-se com João Correia)
Avisos meu filho, avisos do céu tal como em Ambuíla...

O DEGOLADO
(mantendo-se tranquilo)
Ambuíla é um lamento intemporal!... Confluências de vozes imemoriais... futura emanação de alianças e contradições...
Vozes transportadas pela mágica evocação dos segredos da terra... tentando desvendar segredos outros...

JOÃO C. DE SOUSA
(retomando o tom desdenhoso e irónico) Ora, não passamos de ilusória memória, incapazes de evacuar a vivência digerida... (cessam os lamentos).

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