sábado, 4 de setembro de 2010

A SONHAR SE FEZ VERDADE - CONTOS JUVENIS


MABANGAS

Agarrar umas trinta mabangas das grandes e tirar as conchas.
Numa panela média pôr dibungo, tomate maduro, kiabos e cebola a gosto.
Juntar jindungo para fazer chorar e não esquecer o azeite de palma e sal.
Refogar tudo e servir com funji

(Receita encontrada dentro de uma mabanga gigante)

Ao ver os bravos pescadores partirem para o mar alto em seus dongos, sempre pensara que desenvolveria a arte de escrever para poder relatar suas estórias de barcos, de kiandas e outros espíritos do mar.
Talvez também por ter nascido no mato em sítio onde nem sequer lagoa havia. O rio que mais perto passava era o Lucala.
Vi pela primeira vez o mar quando o meu padrinho, o senhor Gomes, que entre os brancos do café era conhecido por Pipa pela maneira como bebia vinho, veio viver para Luanda, dois anos antes da independência. Não irei descrever a sensação de angústia e êxtase que senti ao contemplar aquela vastidão infindável de água verde e azul, como se Deus tivesse reunido todas as águas do mundo.
Porém tudo isso lá vai, como também o senhor Gomes, meu padrinho.
A partir dessa data considerei-me novamente órfão, mais uma vez abandonado. Meu pai havia morrido afogado uma noite de luar no Kwanza, junto ao Dondo. Minha mãe, a mestre cozinheira lá em casa, na sua loucura fora apanhada um jacaré, no rio Lucala.
Creio ser oportuno mencionar terem sido essas curiosidades pelas coisas das águas que deram azo ao meu infortúnio, embora haja muita gente que não acredite nestas coisas, e esses, os incrédulos, dificilmente se afogam nas majestosas águas da baía de Luanda
O meu pai, como referi anteriormente, foi encontrado na margem esquerda do rio Kwanza, num banco de areia. As autoridades afirmaram, à época, que tivesse quiçá mergulhado, sofrido uma congestão e, após, o seu corpo arrastado até ao banco de areia na margem. Com a devida solidariedade que o momento impunha, fizeram notar sem rodeios ao meu padrinho, a sorte que o meu pai tivera em afogar-se num momento em que as chuvas eram ariscas, não obstante a sua época, senão o rio estaria cheio e tumultuoso, o que teria impedido o aparecimento do corpo e, já reconfortado, mandou organizar um batuque daqueles que só mesmo no mato. É verdade, ainda hoje se fala desse acontecimento. Há mais-velhos que quando os encontro e falamos do antigamente sempre recordam o famoso batuque como data de referência a tudo e todo o resto, como relembrando ano de farta colheita ou de guerra passada.
A minha mãe, grande cozinheira lá de casa, a quem a senhora Gomes queria ensinar custe o que custasse, a receita das mabangas porque se aproximava a quarta feira de cinzas e queria imitar tradição da Ilha de Luanda, de quem muito ouvir falar por uma senhora que lá por lá vivera uns tempos, olhou naquele dia para os moluscos recém importados da capital e deu um grito de susto.
“Auá, ngana tata nzambi”é! (Ai meu Deus!)
“ Deixa-te lá de estórias que isto não faz mal a ninguém, vai-lhes mas é tirar as conchas. Isto são mabangas, não te lembras, já o ano passado te havia falado delas, não pudemos foi arranjá-las a tempo Vivem na areia, debaixo da terra do mar”.
Apenas acabara a senhora Gomes de falar quando viram uns moleques avisar que estava lá fora um morto.
Minha mãe começou a partir sua primeira mabanga, tremendo de medo. Ia a manhã a meio.
Depois a minha madrinha e o chefe do posto entraram, e os sipaios depositaram o corpo molhado na parte cimentada do quintal, junto à copa e à cozinha.
“ Olha ó Zefa, o teu homem morreu”, gritou o chefe-de-posto lá para dento.
Chegando esbaforida ao quintal, minha mãe olhou para o fino fio de sangue que escorria no canto da boca do marido, olhou para o sangue das mabangas que lhe manchava as mãos, e endoideceu ali e pronto.
Desse dia em diante, criou o hábito se dirigir diariamente ao Lucala, que passava bem perto, e escarafunchar na areia, pensando encontra as mabangas. Na sua loucura todos dias eram quarta-feira de cinzas e meu pai reclamava o seu almoço de funji de mabangas, como mandava o costume ensinado pela senhora Gomes.
Um dia não voltou mais, o feiticeiro jacaré comeu-a. Encontram o corpo num buraco que desabou, à margem do rio, todo inchado e já meio comido.
Foi a partir dessa lamentável ocorrência que o senhor Gomes se tornou para mim o padrinho Gomes. Chamou-me e, de ar solene, como requeria o momento, desabafou:
“ Pronto rapaz, isto agora é um monte de sarilhos!”
Fez uma pequena pausa para reflexão, não tivesse esse sido talvez o meio mais adequado e correcto para começar.
“ Não te podemos baptizar outra vez, os teus pais já o fizeram, mas ficas nosso afilhado. Passas desde hoje a viver cá em casa e quando fizeres nove anos vais para escola”.
Esta promessa ele cumpriu.
Quando atingi os nove, anos apareceu lá em casa, por si chamado, o senhor padre Ambrósio e após uma longa conversa, que meteu hortaliças e cabritos no meio, ficou acordado que eu começaria na mesma semana seguinte, na missão. O padrinho informou-me à frente do senhor padre, que não iria ser criado do padre por custear o meu ensino.
E isso assim foi. Na missão católica estudei três anos, até à nossa vinda para Luanda, quando e onde vi o mar pela primeira vez.
Então perguntei à minha madrinha para me mostrar onde viviam as tais mabangas que tanta desgraça haviam causado e ela levou-me a ver a baia de Luanda num sábado à tarde.
Explicou-me que quando a maré baixava poder-se-ia deslocar pelas águas rasas e, remexendo no lodo, lá estaria o molusco.
Durante todo o ano, à sorrelfa, fui esgravatar na areia e no lodo. A minha mãe aprecia-me sempre, no fundo raso da água, entre as mabangas.
Via seu rosto transparente e alvo a falar-me.
“ Ouve a receita que te vou dar”, dizia ela.
De tantas vezes a repartir acabei por memorizar, todavia sempre apreensivo tentando descortinar o porque daquela aspiração
Tempos largos mais tarde, quando não mais aguentava as dúvidas, dirigi-me à minha madrinha para indagar tudo sobre o assunto, mas tive que parar pois ouvi a voz velada e preocupada do meu padrinho.
“ Caraças, estamos lixados. Essa malta lá em Portugal vai mesmo entregar esta merda a esses gajos dos comunistas pretos”
“ Crês?”, perguntava a madrinha temerosa.
“Não haja dúvidas e quem não fica cá sou eu. Pelo menos por agora”
Mas antes chamaram-me e o padrinho falou assim:
“Escuta meu rapaz, aqui vão-se passar um monte de coisas que tu não vais compreender. O país vai ser todo teu (riu-se para o lado) e como já estás quase um homenzinho, não precisarás mais da nossa ajuda. O teu padrinho aqui vai para Portugal, e quando tiver a vida organizada manda buscar-te.
Entretanto vais ficando a tomar conta da casa, para todos os efeitos ela é tua, e vamos deixar-te um dinheirinho que te ajudará nos primeiros tempos. Usa-a com cuidado porque terá que durar até receberes o nosso bilhete de chamada”, e deu-me uma patada carinhosa no ombro.
A minha madrinha permitiu-se um sorriso pálido numa careta involuntária, como que a dizer “ desenrasca-te pá!”,
No dia seguinte apanharam o avião.
A independência veio e a minha vida melhorou. Melhorou mesmo muito.
Primeiro fui engraxador de sapatos e botas durante uns tempos. Depois, com a casa do padriho, montei a pensão “Até Que Enfim” e durante vários anos tive um rendimento fixo. Mas como tudo que é bom é sol pouca dura para os destituídos da terra, apareceu lá em casa um capitão do exército a informar-nos que teríamos que bazar porque a casa era dele, de um primo dele
E mostrou papel e tudo.
Quando lhe perguntei como se chamava o tal primo, disse que era Gomes. Contudo juro que nunca na minha vida tinha visto aquela cara e ainda por cima como tinha o meu padrinho, um pula (branco) de quatro costados, um primo bumbo (negro)?
Desalojado e sem proventos, quando os tempos correm bem não se pensa no amanhã, tentando ganhar algum na batota, surgiu-me a ideia da apanha de mabangas e minhocas ali junto à ponte da Ilha, já que isso rendia, por ter tanto copéra (estrangeiro cooperante) a comê-las só à toa sem respeito pela tradição uns, e a usá-las na pesca outros…
Mudei assim mais uma vez o ramo de negócios e tornei-me técnico superior de manbangas e afins. Como podem ver, de facto, o destino de minha família estava de uma maneira ou de outra ligado à água.
Familiarizei-me como a Ilha e os seus habitantes e soube das festas que dedicavam à kianda por ser necessário apaziguá-la.
Andava ofendida, há muito que as festas não se faziam porque o governo tinha proibido. Mesmo assim as velhas e os velhos reuniam e observei como punham uma toalha branca e nela, comida farta. Que desperdício, eu com tanta fome e aquela boa gente a deitar pitéu divino para o mar. Pratos cheios da mais variada comida, garrafões de vinho ao lado dos quais se sentaram umas senhoras todas vestidas de vermelho. Vi mesmo coisas que já esquecera, figos, passas, ect.
Como me doía a barriga só de olhar! Aí e então, fiz o juramento, logo voltaria para tirar a barriga da miséria. Quando todos se retirassem, já que ninguém deve observar o repasto das divindades porque podem rejeitar a oferta como insuficiente.
E se de facto elas rejeitassem?
Ficaria tudo ali a apodrecer para os cães pitarem? Ninguém iria dar pela falta de uma galinhazita de churrasco, um pacotinho de figos secos e qualquer coisita mais. E depois, eu era gente do mato, no fundo desconhecia essas estórias das divindades das águas marinhas. Lá nas minhas bandas o feiticeiro era sempre o jacaré.
Assim, momentos depois de ter comido e bebido da tolha na areia, ouvi o lamento angustiante de minha mãe:
“ Ai meu filho, o que fizeste?”
Foi esse o meu pecado original e único. Agora os meus filhos, caso os viesse de ter, seriam filhos da sereia, a minha vida estava a ela amarrada. A minha descendência seria alva como o kilombo-kia-hassa (albino) e serviria as divindades aquáticas.
Tudo isso minha boa mãe me informou naquela noite.
Um ano passou e nunca mais pensei no assunto, mas pelo sim pelo não fui-me mantendo afastado da Ilha. Mas a naquela tarde, a fome apertando, com a maré bem baixinha, entrei pela baía de Luanda à cata dos desejados moluscos a aí fiquei horas a encher o saco grande de plástico.
Quando a maré enchera, ao regressar, caí num fundão e, lá e, baixo, bem à minha visita, minha mãe mostrou seu rosto alvo e cabelos compridos douradíssimos a ondularem pelas correntes. Seus braços estendidos pareciam querer emergir do mar, seu sorriso chamando-me, convidativo.
Dei-lhes as mãos com amor e abri a boca para saudar, porém a água penetrante roubou-me injustamente a palavra e desrepeitosa feriu-me os pulmões.
Quis balbuciar uma desculpa por ter esquecido a sua vida, os seus ensinamentos, a sua morte, a cada frase esboçada, a cada gesto de desculpa e amor, a cada intenção não expressa, os pulmões sacudiam-me raivosos e a água do mar dominava-os senhoril.
Quando percebi que minha mãe finalmente me havia perdoado, lá bem no fundo do mar olhei para cima, para o cimo da água e contra o azul infinitivo dos céus, vi um corpo que não era negro mas alvo como o de um albino. Aquele rapaz morto, boiando lá em cima, seria alguém doutro. Um incauto que fora à água quando não devia e nem sequer nadar sabia. Coisas das gentes do mato!


Transcrição de uma notícia aparecida no” Jornal de Luanda” do dia 21 de Julho de 1981:

“Não terão sido poucas as vezes que alertamos as autoridades para o facto de dezenas de crianças buscarem sustento e pecúlio nas lodosas águas de baía de Luanda. Para além da proliferação de doenças endémicas várias que o luandense assiste ao triste espectáculo de ver algumas dessas crianças a serem retiradas das águas, seus corpos inertes.
O nosso colega, o conceituado jornalista Manuel Baco, teve a ocasião de ter testemunhado hoje um caso desses, ao cair da tarde. Todavia, e a isso há que fazer referência, o insólito da ocorrência não está, infelizmente, na morte do rapaz, assunto hoje já quase banalizado, mas sim no que o cadáver agarrava em suas mãos fortemente apertadas.
Para quem queira verificar a veracidade do que afirmamos, a mabanga gigante que o inditoso rapaz apertavas nas mãos, talvez como pretensa bóia de salvação, está exposta no Museu de Ciências Naturais, bem como o minúsculo manuscrito que vinha no seu interior e em cuja primeira página se descrevia uma receita tradicional de Luanda, para funji de mabangas”.

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