quarta-feira, 1 de junho de 2011

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


AMIGOS PARA SEMPRE

A amizade, quando sincera, desinteressada e duradoura, é uma coisa linda e que só faz bem, passe o desentendimento ocasional. Na maior parte das vezes, é bem-vinda para os outros, fortalece a confiança no semelhante, descarboniza o motor, como diria o meu amigo Manbeto, mecânico de longa data. A amizade, quando forte, não sucumbe aos abanões das vicissitudes, das intrigas ou do afastamento. Ela perdura, é farol que se vê ao longe. Não é matéria que se encontre em supermercado, para onde nos dirigiríamos e, com a pessoa amiga, se pedisse:

“Por favor, venda-me aí três quilos de amizade, bem pesadinhos e sem gordura!”.

“Só três? Pela cara do(a) companheiro(a), eu levaria uns cinco...”

“Talvez, talvez mais tarde. Agora só desejamos mesmo três, não é?

Efectivamente há que ter cuidado, amizades são assuntos que se devem construir com cuidado, paulatinamente, sem pressas. Há que amanhar e adubar o terreno, plantar-se com carinho e respeito e utilizar-se em pequenas doses.

“Olha, sabes, o Serafim morreu de overdose...”

“Mas não sabia que se drogava!...”

“Não, foi pior que isso. Morreu de overdose de amizade, a Xiquinha deu-lhe tanta de uma só vez que o coração do coitado não aguentou. Puff, lá foi. Eu bem o avisara, olha que em excesso pode causar-te danos sérios, mas sabes como são esses universitários. Sabem tudo.”

“É verdade, sempre juntos, até pareciam que namoravam.”

“Qual quê, aquilo era só mesmo amizade, a Xiquinha até nem gostava de homem, era daquelas que dizia que homem era só para amizade, e olha no que deu. Quem diria!... Overdose de amizade...”

Há amizades assim, que não se contentam em ser edificadas em doses homeopáticas, os seus arquitectos traçam planos imediatos para arranha-céus de oitenta andares de amizade. Que edifício imponente. Mas será que aguentará o primeiro sopro de um vento mais forte?

Conheci dois amigos assim, sempre juntos, estou seguro que se um tivesse sido mulher, aquele casamento seria eternamente abençoado, tal a dedicação mútua. Segundo o registo histórico oral, nasceram quase no mesmo dia do mesmo ano, filhos de duas casas contíguas. Engatinharam juntos, comeram as mesmas caganitas dos ratos no mesmo buraco onde as encontraram, frequentaram o ensino primário como companheiros de carteira, jogaram no mesmo time com a mesma bola de trapos, namoraram as mesmas namoradas no liceu e assim viveram a vida toda, um ao lado do outro, na mesma rua, casados com duas irmãs, também da mesma rua.

E sabem o que solidificou desde cedo essa amizade? O futebol. Se houvesse, naquela altura, uma enciclopédia de futebol, seriam eles. Conheciam toda a história do desporto rei, desde a sua invenção na Inglaterra, segundo uns. Na Mongólia, onde o Gengis Khan usara as cabeças do inimigo para grandes desafios nas estepes ou no deserto, segundo outros. Jogaram juntos em todas as equipes da escola, do liceu, do bairro, e participaram de todos os campeonatos que organizaram e que foram organizados. Eram conhecidos como a dupla da mata e esfola, já que era isso que acontecia. Quando um caía sobre o adversário para o esfolar, logo o outro aparecia para complementar o estrago, para matar. Só no primeiro campeonato escolar, já no liceu, quebraram mais canelas na primeira volta, do que o Justino Fernandes em todos os seus desafios. E naquelas épocas ainda não tinha sido elaborado o conceito de “futebol viril”, para justificar o amace e as luxações infligidas sobre os outros.

Quando oiço o Mateus Gonçalves da LAC, a perorar ou a xinguilar sobre o futebol e os seus (do futebol) ídolos, sinto uma imensa pena. Será que nunca ouviu falar nesses dois, nas suas proezas, na sua eterna amizade? Edificada sobre milhões de bolas de futebol, a começar com as de meia, depois as de borracha, seguidas daquelas que eram de couro e se atavam como se ata um sapato? Porque não os menciona? Algum desafecto bairro-clubista?

Quando Deus chamou um deles, o outro logo ficou a estiolar na sua solidão de órfão. Nada mais o animava, todos diziam que em breve também se iria juntar ao amigo. Amizade tão longa, tão bonita e tão forte, não perduraria por muito mais tempo só com um dos integrantes. Mas foi vivendo. Naquele ar apagado, olhos sempre no vago, ao longe, e com os lábios formando o ocasional sorriso, talvez no momento onírico em que lá se ia mais uma canela adversária, ou se formava aquela dúvida que só para si guardava.

O momento chegado, ao cair da tarde, chamou um dos netos preferidos e informou-o que se preparassem, não iria durar muito mais.

“Que é isso, avô? O senhor ainda tem muitos anos de vida.”

“A minha hora chegou, vai já avisando todos, não quero confusões, e no meu caixão deve ir aquela bola de couro com atacador, a que tem uma fotografia do Peiroteu colada.”

“Mas avô, lá no céu nem há campos de futebol!...” disse o neto, para o alentar.

“Não digas disparates, o que sabes tu? Não só há campos, como grandes campeonatos entre os católicos e os outros, os protestantes.”

“Mas como é que o avô tem a certeza? Quem lho contou?”

“O meu velho amigo de sempre. Ontem apareceu-me num sonho e contou-me isso precisamente. Grandes e renhidos campeonatos!... E mais, informou-me que estou escalado para jogar no próximo domingo.”

O neto olhou para ele e, sem mais palavras, foi informar a família.

05/09/04

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