CAPÍTULO PRIMEIRO
A ficção consiste não em fazer ver
o invisível,
mas fazer ver até que ponto é
invisível
a invisibilidade do invisível.
Michel
Foucault - Filósofo
A Rua da Vaidade sempre fora a mais curta e desalinhada daquele bairro de Luanda. Nascera, ainda a cidade capital poderia ser considerada um pequeno burgo em relação aos padrões actuais. Tinha umas vinte casas construídas a esmo por emigrantes portugueses pobres, que mantinham nas traseiras das mesmas várias hortas de onde retiravam parte do sustento. Ninguém se recordava se alguma vez tivera nome, porventura não, nem rua propriamente fora, no máximo um esboço de passagem que ligara a uma quinta mais abaixo.
Não tinha passeios, embora se notasse que uma vez os tivera, e apenas duas árvores, uma figueira bastante velha no princípio, e uma acácia, igualmente velha, no fim. O nome actual adviera da esperança de que um dia a vida se encarregaria de desmentir a condição de indigência que se lhe pespegava à volta. Impunha-se
nas poças de água mal cheirosa, que timidamente vomitavam o excesso de imundice
acumulada para uma estreita vala aberta por residentes mais cônscios daquilo
que apodrecia à frente de suas casas.
Enquanto
ostentou este nome, acreditei ver nela uma certa majestade, até o mais pobre
dos pobres pode ter porte e postura reais. Se os moradores que a baptizaram se
sentiam vaidosos, só podia simpatizar com esse sentimento. Muitos há, que
julgam o livro pela capa ostentosa que o encerra.
Se
me pudesse falar, por certo que me descreveria as manhãs cálidas em que o sol
se espraia pelos charcos fedorentos que rejuvenescem a velha figueira e acácia.
Passaria as mãos pelas ancas de sua sinuosidade, virada Afrodite tropical, e me
segredaria das noites escuras sem a luz daquela lua africana virada enorme bola
amarelenta no firmamento. Achei que, quando por ela passava, me atapetava o
caminho por entre os charcos, me revelava os buracos-armadilhas de suas
entranhas, e oferecia belas ratazanas para me servirem de guia, as mais
eficientes funcionárias de um protocolo profissional, esbeltas e longilíneas, de
guinchares curtos, vem por aqui, cuidado
com aquela água ali, salta esta pedra, cautela não tropeces.
Havia
nesta rua, mais ao menos no início, uma casa que destoava completamente do
resto por ter um primeiro andar, rachado e de cor imprecisa, com janelas de
madeira meio apodrecidas. Para uns, segundo vim a saber, era a casa do medo,
sobretudo para as crianças porque, diziam, vivia lá uma bruxa com um gato
rameloso e que à noite ouviam-se gritos que pareciam o piar de um mocho ou de
uma coruja, roçando pelos telhados fora, como um vento quente portador de
sons misteriosos.
Uma
vez parei à sua frente para a observar, tinha uma luz interna acesa, todavia
não distinguia gente a movimentar-se no seu interior. Retribui-me o olhar,
quase com desdém, senti. Olhava para mim pelas suas duas janelas entreabertas,
estática, como natureza morta que algum pintor macambúzio tivesse transferido
para uma tela amarelenta e percebi que cantava. Escutei e não tive a menor
dúvida, cantava, não com palavras, mas com o soar melódico do ranger das tábuas
e dobradiças podres das janelas, produzindo uma melodia estranha que se fazia
ouvir pela rua adentro, e que ninguém parecia ligar. Com o carro parado à berma
do passeio, motor desligado, baixei as janelas e escutei, hirto, não fosse
espantar o vento, esse fantasma compositor e maestro que regia tão bela
sinfonia. Era um estranho fluir de sonoridades, tanto ressoava um violino pela
chaminé esburacada, como um oboé no ranger de dobradiças enferrujadas, seguido
da bateria no agreste bater das janelas agora abrindo e fechando-se, finalizando
com os graves de contrabaixo dos portões enferrujados a ondear para trás e para
frente num abre e fecha sereno. Quem produzia este pranto musical, que suavizava
a putrefacção à volta? É verdade que quem canta seus males espanta, percebi.
Não
tive a menor sensação de espanto ou surpresa, foi como se todos os dias tivesse
ouvido esta sinfonia e que não era o único, a rua inteira também a ela se
vergava, mas foi sol de pouca dura, pronto ouvi o escárnio no grito da voz
feminina.
-
Posso ser maluca, mas tenho boa memória. Rua, fora daqui e não ponhas mais cá
essas patas!...
-
Mas…
-
João, rua já te disse, desaparece-me da vista imediatamente.
A
melodia cessou abruptamente com o despautério da mulher, e tibiez da resposta
do homem, o medo ora instalado. O vento, por certo o artífice e regente desse
prodígio, evaporou-se célere, acanhado e ofendido pela insensibilidade de quem
gritara. Pareceu-me então entender, em lamento, um longo suspiro de desânimo da
rua, por se ver obrigada a retornar à sua vaidade miserável intrínseca,
vencida, rendida à imundice que se lhe colava pelo corpo sinuoso esperando que
um dia lhe mudassem o nome ou a fisionomia.
Elevei
os vidros do carro e parti, desconsolado. No rádio, Elton John cantava Oceans Away,
do seu último CD, The Diving Board. Subi ligeiramente o som e dirigi-me a casa,
meio triste.
Vivo
num apartamento de três quartos no centro da cidade, num segundo andar, em zona
que sofre pouco com cortes de energia ou falta de água. Pago regularmente uma
pequena maquia a um jovem que se ocupa do levar para cima as compras, botijas
de gás, jerricans com a água indispensável, por não possuir um reservatório e motobomba.
Parqueei
a viatura no espaço sob a árvore em frente à porta principal do prédio, que me
estava oficiosamente reservado por direito de antiguidade. Por hábito, ao sair
do carro, em jeito de saudação interior, pensava quantos pássaros teriam sido
comidos pelos gatos ou mortos por pedrada certeira da fisga de uma criança.
Precavido, rogava-lhe que me concedesse mais uma noite sem que nenhum dos
galhos se desprendesse pela força do vento e me arruinasse a viatura, que tanto
me custara adquirir.
Acendi
os candeeiros da sala, coloquei na aparelhagem um disco antigo de jazz, Billie Holiday,
e quando os acordes de Strange Fruit se fizeram ouvir, o piano entrando
gentilmente, quase inaudível, preparei um gim tónico não muito forte e sentei-me
para rever o dia, no desfrute de um momentâneo dolce fare nienti.
Acabei
por sentir fome e fui à geleira buscar o resto da piza de mortadela e queijo que
deixara da véspera. Coloquei-o no micro ondas, mesmo sabendo que mastigaria
algo parecido a borracha. Não me sentia motivado para descer, ir à esquina
comprar um hamburger ou outra coisa qualquer.
Quando
se vive sem companhia, a existência por vezes não é muito agradável ou
saudável, não obstante apreciar a solidão. A esposa, melhor dito a ex-esposa,
fartara-se da minha passividade e atitude poética para com a vida, e
abandonara-me, trocando-me por um famoso jurista, bom papagaio, com ideias
assentes em ludibriar os incautos que acabariam por torná-lo mais rico, não
tenho dúvidas. Um dia, assisti a um advogado criticar o filho, igualmente
advogado, que se vangloriou de ter ganho aquela causa em que o velho trabalhava
há dez anos.
-
Seu idiota, esse era o processo que nos sustentou durante estes dez anos. - Vociferou.
Se
pudesse, indagaria junto a São Pedro se haveria algum causídico no céu. Aposto que
não, e se houver, será porque provou e comprovou irrefutavelmente ao porteiro
celestial que dois mais dois são cinco. E graças a isso, certamente que viverá na
maior casa do melhor e mais nobre bairro do Paraíso, logo à entrada do portão celeste,
tem vários carros topo de gama, criados, jardineiro, lavadeira e motoristas full
time.
Como
nunca houve filhos pelo meio, pouco nos vemos, não havendo pontos de ligação a
partilhar. Vou sabendo dela por alguns amigos ainda comuns, que vão
voluntariamente me informando. Sei que está grávida, o que me deixa bastante
feliz, este também fora um dos motivos que contribuíra para a separação, não me
sentia e nem me sinto voltado para o desempenho do papel de pai. Pai é
profissão sem diploma ou certificados passados, e que se vai aprendendo à
medida do tempo. Não há licenciaturas, mestrados ou doutoramentos. Finalmente
quando sentimos que somos pais, é tarde demais, as crianças cresceram e bazaram
de casa, umas a bem, outras a mal. E quedamos-nos o resto da vida em lamúrias
inúteis, ai se eu soubesse, por que não
fiz assim ou assado, onde é que falhei ou errei, nunca lhes faltou nada,
ingratos. Tentamos emendar com os netos, mas aí os pais rebelam-se, nós é que sabemos educar os nossos filhos,
olhem o que fizeram de nós, e o ciclo repete-se.
O
soar da campainha de aviso do micro ondas trouxe-me de volta à sala. Retirei o
prato com a pizza-borracha e sentei-me novamente. Entretanto Strange Fruit
chegara ao fim e Yesterdays preencheu a pequena sala. Yesterdays, yesterdays… golden days, numa voz suave que
reverberava das paredes e invadia a alma, a voz de uma vida curta e
atormentada. Billie Holiday.
Enquanto
mastigava a piza-borracha, alheio à sua dureza, que ia empurrando com goles de gim
tónico, olhei para o quadro na parede da frente em que um velho, dentro de uma
cubata, fumava tranquilamente a sua pequena mutopa. Tinha o quadro há tempos,
nem me recordava onde e quando o adquirira, sempre esteve ali, imóbil e
tranquilo, a maior parte das vezes quase invisível. No parapeito da janela,
três bonsais que cuidava há quatro anos.
A
voz suave de Billie Holliday, relembrando os yesterdays, os ontens de sua vida
caótica, transportou-me ao local onde minha mãe enterrara o umbigo deste seu
terceiro filho, no sul de Angola, numa minúscula povoação comercial, ao longo
do caminho-de-ferro, Vila Nova, nome pomposo que o primeiro comerciante
colocara na sua loja-residência. Quando foi aberta uma estrada, que passava não
muito longe, começaram a aparecer mais comerciantes para trocar ou comprar o
mel, o milho, a massambala, a batata, por lamparinas, candeeiros petróleo, açúcar, sal, sabão, panos, sobretudos,
calças e camisas, entre outros artigos.
Tive
uma infância normal. Numa povoação pequena do interior, nunca se tem aventuras
para além daquele globo minúsculo e fechado que nos enreda. Mesmo quando as
elevamos a outros patamares, em viagens por espaços siderais, logo se cai na
realidade da vida pacífica e monótona que desfila com muita impaciência à nossa
frente. Para uma criança, o tempo é o seu pior inimigo.
Pelos
raros filmes que me permitiam ver, quando por lá passava o cinema ambulante do
Sousa, uma carrinha com um gerador e o pesado projector de trinta e cinco
milímetros na carroceria, um altifalante no tejadilho para anunciar pelas
povoações circundantes que mais tarde haveria cinema, fui aprendendo coisas que
nunca me seriam ensinadas de outra forma. Como fruto gerado a partir de imagens
inócuas de beijocas melífluas nas fitas de celulose, troquei os meus primeiros
ensaios de beijo com Selina, filha de um comerciante vizinho. Acontecia quando
conseguíamos escapulir à vigilância dos manos e primos mais velhos, nos
passeios pelas redondezas, caçando rolas, perdizes ou lebres. Desaparecíamos
momentaneamente por trás de uma moita, e se àquilo se pudesse chamar beijo,
então foram os nossos primeiros beijos, o roçar fugaz dos lábios de um no outro,
que tanta emoção e perigo carregavam, meus olhos revirando constantemente à
cata de alguém que fortuitamente nos observasse. Foram beijos angélicos,
sobretudo higiénicos, só muito mais tarde vim a descobrir, maravilhado, o que a
língua podia fazer e conseguir.
Quando
me fizeram um linguado pela primeira vez, achei a moça desavergonhada, porca… Alguém
me deveria ter preparado para estas descobertas, ter-me previamente anestesiado,
por outras palavras. Não sei quando dei o pulo de neófito tímido para investigador
um pouco mais ousado e, por fim, para perito em vasculhar bochechas e línguas
de donzelas, das não tanto e, muito mais tarde, das balzaquianas, ávidas e
carentes de aventuras, que fora do romance de Balzaque, são maldosamente
apelidadas de encalhadas, numa linguagem náutica deselegante.
Mas
nessa altura, o que desejamos é crescer, quanto mais rápido melhor, ser como os
adultos e isso, aos olhos de criança, leva uma infinidade. Passa-se, ao que
parece uma vida, a olhar para cima. A altura de uma mesa normal trata-nos por
tu, chegar ao cimo do armário na sala de jantar, para se roubar umas bolachas,
é um gesto temerário de arrojo e malabarismo.
Desde
muito cedo senti um ímpeto vertiginoso, diria, para conhecer novos mundos,
flutuar uma manhã inteira pelos céus feito águia, cada vez mais alto, conforme
as correntes quentes de ar me elevassem. Como era feliz naquela altura, só que
não o sabia, pensei, meneando a cabeça ao compasso da música, a meditar se
deveria preparar um outro gim tónico.
Decidi
que não, e estiquei os pés sobre o tampo da pequena mesa de centro, onde
mantinha revistas e pilhas de livros que lia regularmente e com bastante
voracidade. A leitura sempre foi uma das minhas paixões, não havia livro a que
não deitasse mão, que o meu pai, outro grande leitor, ia arranjando aqui e ali.
Quando se deslocava a Benguela ou a Luanda, comprava uma resma deles, passe a
expressão. Foi dele certamente que herdei o gosto profundo pela leitura. Muito
cedo comecei a ler as Bíblia com a minha mãe, tendo-me maravilhado com os mitos
nela contidos e horrorizado com as lendas plenas de sangue e tragédia,
sobretudo no Velho Testamento. Quando minha mãe me lia sobre Abraão a querer
imolar o filho, quase que fazia xixi nas calças. Ela pronto notou e passou a
escolher o que lia, já não folheava o Livro página a página, escolhia os
trechos que sabia que me agradariam. Com fascínio, aventurei-me pelas Vinte Mil
Léguas Submarinas, pelas Mil e Uma Noites, onde me rendi encantado aos pés e
estórias da Princesa Sherazade e nelas acompanhei Aladim e o Génio de sua
lâmpada maravilhosa, descobri com o lenhador árabe Ali Baba a prodigiosa
caverna repleta de tesouros de quarenta ladrões e calcorreei o mundo nas sete
incríveis viagens do marinheiro Simbad. À medida que fui crescendo, descobri
Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Castro
Soromenho, Luandino Vieira, os Missossos, e não só, de Óscar Ribas. Li tudo que
era livro de filosofia, de ciências da natureza, de história, entre outros, que
encontrava. Percorria os diversos atlas escolares, da primeira à última página
descobrindo novos e encantados mundos, enfim, acho que o meu autodidatismo
cultural não me serviu muito para ganhar dinheiro, mas forneceu-me uma bagagem
de vulto e da qual muito me orgulho, que foi crescendo permanentemente ao longo
dos anos. Aliás, já no secundário, era apelidado de O Leituras, alcunha que felizmente não pegou, não aprecio alcunhas,
talvez por inibição da maioria que não lia e a quem eu chamava de analfabeta,
em contrapartida.
Billie
Holiday emudeceu, a música chegara ao fim.
Deixei
o silêncio abater-se pela sala, penetrar em cada poro das paredes, coçar-se pela
poeira cabeluda dos móveis, esgueirar-se por baixo dos tapetes, mas os ténues
sons da noite ocasionalmente se sobrepunham. A buzinadela ocasional de um
carro, o silvar dos morcegos que às vezes entravam pela casa quando me esquecia
de uma ou outra janela aberta e, então, o penetrar de uma música que mal se
apercebia, que nunca soube de onde vinha. Conseguia apenas entendê-la, suave,
como que oriunda dos confins do mundo, por vezes parecia-me um lamentar numa
flauta, outras, um choro num clarinete, implorando por ajuda, por reconhecimento.
Era música de um outro mundo tinha a certeza, diluía-se pelos meandros do meu
pensamento, escorria pelos meus ouvidos feita catarata silenciosa que se
espraiava no meu regaço e, por fim, pelo chão do apartamento, tudo inundando
numa sensação de paz e harmonia.
Seria
por acaso o vazio do lar, a solidão com a qual compartilhava as longas horas da
noite? Estaria o apartamento assombrado, alguém lá morrera e ainda buscava a
paz eterna, ou simplesmente o vento a penetrar por qualquer fresta das janelas
ou das portas? Ou era um mero filamento da minha imaginação?
Aceitei
esse fenómeno como normal, se a casa estivesse assombrada seria por algum
espírito que gostava de música e que nunca me perturbara, no fundo até me
ajudava na elaboração das matérias que tinha que preparar para o jornal,
massajava-me o cérebro e aclarava as ideias. Não havia razão para me preocupar,
o que não era do mal, ao mal não pertencia.
Ao
pulsar deste passear pela casa do ar vindo das frestas várias das janelas e das
portas, se é que a sua quase inaudibilidade pudesse ser chamada de pulsação, ou
fosse mesmo um acontecimento movido por forças ocultas benignas, escrevia noite
afora minhas dúvidas, meus desejos camuflados em verdades a conseguir, não
raras as vezes até às três da madrugada, sempre com o parceiro ao lado, o meu
companheiro de lutas e agruras, o gim tónico, a bebida que tomava regularmente.
Não
bebia nada mais, a não ser em campos de batalha que não tivesse opção ou voz,
em que me era ordenado o comando e ponto final. Se me dissessem só há uísque,
não fazia sacrifícios inúteis, uísque seria. Todavia tinha meus pruridos e
limitações, não estava aberto a qualquer sugestão considerada por mim de
subversiva. Havia marcos para a sede ou para o prazer de beber pelo prazer. A
cerveja, colocava-a no patamar das bebidas para tarados de toda a espécie, gente
sem paladar e tino ou para quem fosse pobre, muito mais pobre do que eu.
Por
norma vejo-me como um homem de esquerda, todavia a proletarização da cerveja
arrepia-me. Como entender que seja sorvida copo após copo, quando não caneca
atrás de caneca, sem sede, sem apreciação do sabor, fria, morna, quente, já
aberta e de ontem, escura, clara, amarela, doce, amarga, pesada, ligeira,
enfim, sem qualquer relevância e por cima, com anúncios televisivos que tentam
fazer, pelo menos de mim, um papalvo, para não falar dos outros? As cervejeiras
que fazem esse tipo de propaganda, que só acontece no nosso mundo
subdesenvolvido, deveriam ser levadas às barras dos tribunais por propaganda
enganosa, pois a acreditar nos seus spots televisivos, logo nos veríamos
rodeados por jovens torneadas a preceito na forja de Vulcão, no mínimo duas ou
três, em apertados e minúsculos calções, minissaias ou reduzidos biquínis,
quando a cerveja tal fosse consumida, irrelevantemente do local e hora,
sobretudo quando não lhe é reconhecida qualquer qualidade afrodisíaca, antes
pelo contrário.
Nada
a ver com um bom uísque, que sabemos ter dez, doze ou vinte e um anos de
envelhecimento em cascos de carvalho, toda uma ciência oriunda de terras
montanhosas da Escócia ou da Irlanda com passado milenar e nomes
impronunciáveis como Aultiphurst, Loch Gainmmhich ou Killmactranny.
Quanto
ao meu fiel companheiro de bem-aventuranças ou agruras, o gim, conheço-lhe a
história toda de frente para trás, ou de trás para a frente e às vezes quando
abuso, também para os lados num suave bolinar, desde a idade média ou, pelo
menos, desde que o médico holandês Franciscus Sylvius, para mim per omnia seculum
seculoram santo padroeiro dos gim toniqueiros mundiais, o inventou pelos idos
mil seiscentos e tal, a partir de umas pequenas bagas silvestres, de nome
igualmente impronunciável, Juniperus Communis. E, deixem-me frisar, que nunca
vi, desde essa época longínqua e bendita, qualquer boazuda meio vestida, ou
despida, conforme a óptica de cada, introduzida a pressas em cartazes por
propagandistas, para o publicitarem e venderem. Tem alma e vida próprias, vale
por si só.
Pereceu-me
ouvir um novo sopro, uma nova nota de angústia no toque do clarinete, desta vez
vindo da cozinha. Concentrei-me, tentando decifrar se representaria o guincho
longínquo de um primata das florestas equatorianas, um pio longo de coruja
escondida numa mafumeira, ou as janelas a reclamarem da sujidade do pó da rua
que as importunava? Por mais que tentasse, apenas o entendia, lúgubre,
angustiado. Reverberava suave em curvas ascendentes e descendentes onde me
perdia no leve embalo, ora subindo velozmente, ora descendo vertiginosamente
como num tobogã de parque aquático onde me vi esparramado, de costas, na água
agitada e fresca.
Larguei
uma gargalhada de surpresa, nunca na minha estivera num parque aquático,
vira-os somente nos programas televisivos, mas a sensação do mergulho na água
foi tão real que tive que me apalpar, verificar se não estava molhado e se não
havia água no chão. Nada. Tudo na mesma, fora uma mera impressão, seria que o gim
tónico tinha alguma coisa a ver? Certamente que não, pois estava habituado a
beber muitos e muito mais.
-
Vais mesmo ter que arranjar companhia,
rapaz! Isso de viver sozinho faz-te ouvir e ver coisas. – Falei alto, dando
ênfase à palavra mesmo, levantando-me
para ir colocar um novo CD e renovar a bebida, desta vez com bastante gelo e
uma rodela de limão nativo.
Já
ouvira suficiente jazz, procurei por Carlos Burity, encontrei uma bela
colectânea de sembas e coloquei-a a tocar.
Com
o copo na mão, sentei-me no mesmo lugar, preparando-me para alinhar na mente a
matéria que teria que entregar no dia seguinte a meio da manhã, pretendia
recolher-me não muito tarde.
A
evocação de Selina e dos beijos trocados na nossa infância levou-me a pensar no
que teria sido feito dela, da sua vida, que caminho teria trilhado, por onde
andaria? Fez-se sentir na sala, como se tivesse entrado de rompante,
apanhando-me desprevenido. Vi-a nitidamente a meu lado, sentada na outra
cadeira, estranhamente sem cara, pelo menos não conseguia ver-lhe o rosto, mais
parecia uma múmia. Sacudi a cabeça umas duas vezes, até ter a certeza que
estava sozinho no apartamento. Tornei a encher o copo com o resto da água
tónica e transportei-me para a pequena vila do sul onde nascêramos com um
intervalo de dois anos
Selina
era uma jovem linda, rebelde, beirando uma agressividade constante, talvez por
ter um pai déspota que dominava incondicionalmente o lar. Não foi, pois, de
admirar que aos dezassete anos tivesse desaparecido do vilarejo causando uma
surpresa e consternação gerais. Assim que a família deu conta que a filha
fugira com um biltre, tal o denominaram, foi proscrita do lar quase por decreto
imperial. Morta para sempre no coração do pai, que nem permitia a recordação e
o pronunciar do seu nome à mãe e aos irmãos. Para todos os efeitos, Selina
morrera, mesmo quando, anos mais tarde a família veio a saber que tivera uma
união infeliz e que vivia uma vida obscura na cidade capital.
Já
licenciado em jornalismo, a trabalhar num dos maiores diários da capital,
encontrámo-nos por acaso numa rua da Baixa. Não foi difícil o reconhecimento
mútuo, sem saber o que fazer, abraçamo-nos desajeitadamente e procuramos uma
cafeteria para a conversa que o olhar dela declarava que se impunha.
Os
anos esfumam-se à nossa frente como nuvens multiformes que os ventos formam,
deformam e sopram para caminhos que não se escolhem. Um abraço oco que nada
representava, um espaço escuro vazio, prenhe de sombras e ziguezagues.
Um
dia abalara do vilarejo num silêncio pecaminoso, num jogo de cabra cega com o
destino, e hoje, quantos anos mais tarde Deus sabe, encontrámo-nos por mera
casualidade. Era-me atirada para a minha vida novamente, e não sei se fiquei
feliz por tal. Ressenti a espontaneidade do abraço, a bem dizer mal a conhecia,
não mais éramos crianças perdidas num pontículo microscópico do Universo.
Melindrado, perguntei-me porque não lhe apertara a mão, mesmo não a tendo ela
estendido? Sempre a mania de desejar ser um pouco mais elevado, mais generoso,
que me olhem como um nice guy. Muitas vezes me pergunto se isso não é um
complexo de inferioridade, uma vontade de ser reconhecido a todo o custo e em
todas as circunstâncias, como se tal fizesse de mim um vencedor nato e a quem
se distribuí medalhas a granel em reconhecimento.
Sentados
à mesa num café de esplanada, pouco dizíamos, havia um embaraço mútuo, quem
ousaria tentar o primeiro gesto, lançar a primeira pergunta, talvez fatídica, e
abrir-se para o escrutínio da vida do outro? Senti-me como um jogador de
póquer, com uma mão de cartas que só dá para blefar, valeria a pena? Decidi
aguardar, no fundo, quem teria explicações a dar seria ela, o pássaro que abandonou
o ninho e alou voo.
Com
o polegar e o indicador da mão direita rodava nervosamente o grosso e estranho
anel no dedo anelar da esquerda. O garçon veio e Selina pediu um refresco,
tendo eu indicado o mesmo com um ligeiro movimento da cabeça.
Notava-se-lhe
a passagem dos anos, certamente agrestes, sobretudo em dois profundos regos
cavados em cada um dos lados do nariz meio achatado, a relembrarem riachos
abertos pelas águas das chuvas que transportavam o que neles caía, pedaços de
folhas putrefactas, gavetos ressequidos, numa imagem forte que reflete os
coices recebidos na abertura dos trilhos da vida, no percorrer dos atalhos
diversos que jamais se transformarão em avenidas asfaltadas que bordeiam os
palácios dos materialmente bem-aventurados da terra.
Seu
rosto falou-me sem que o pedisse. Pareceu-me a imagem de um ancião, sentado no
seu mocho sob o fresco da mulembeira, deixando que as marcas ardentes do cenho,
os talhos nas faces que lhe curaram as doenças e impediram feitiços poderosos e
o cansaço eterno dos olhos embaciados e silenciosos revelassem a vida que
levara, os caminhos que trilhara, as alegrias e sofrimentos acumulados, no
tempo do branco e no tempo do negro. Tal como essa imagem, o rosto de Selina,
talvez por indução, revelou-me toda uma estória desconhecida no simples piscar
dos olhos, foi como se uma onda avassaladora me tivesse fustigado e senti o
desejo súbito de me levantar e partir, sem olhar para trás, não para não ser
transformado numa estátua de sal como castigo da minha imprudência, mas sim por
não desejar conhecer o que ela teria para me contar.
-
O que é feito de ti? – Saiu-me da boca.
Ficou
a olhar vagamente, avaliando a sinceridade da pergunta, ou talvez não sabendo
por onde começar, ou, quem sabe, ressentindo-se por não ter sido ela a primeira
a indagar, teria evitado falar da sua pessoa logo de início. À partida, teria
usufruído da vantagem de saber da minha vida e, talvez por aí, tentar conhecer
o que eu saberia da sua. Levou o copo à boca, sorveu lentamente e colocou-o
sobre a mesa, mas agarrando-o, acariciando-o no rebordo, com o dedo indicador
da mão direita, enquanto pensava. Olhou para o lado, seguindo a voz alta de
duas jovens que passavam. Colocou ambas as mãos em cima da mesa, com os dedos
entrelaçados e olhou para mim.
-
Por acaso fumas, estou sem cigarros?
Fui
apanhado desprevenido, devo dizer. Esperava algo diferente.
-
Não, nunca fumei. – Menti.
-
Pois eu sou uma viciada, fumo dois maços por dia, sinto-me menos nervosa, menos
ansiosa. Poderias comprar-me um maço?
Chamei
o garçon, indaguei se vendiam cigarros e à sua anuência pedi que me trouxesse
um maço, que Selina logo se encarregou de fornecer a marca e acender um cigarro
assim que chegou, não obstante o meu indisfarçável desagrado. Tossi várias
vezes para reforçar, todavia se ele notou não deu mostras de tal, antes pelo
contrário, inalou profundamente tendo, pelo menos, o cuidado de expelir o fumo
para o lado.
-
Já me sinto melhor. Admiro os não fumadores, nunca seria capaz de passar uma
hora que fosse sem fumar, no dia que alguém me queira torturar, é tirarem-me o
tabaco.
-
Não é tanto assim, de facto a nicotina cria uma dependência mas superável, é só
desejar. - Respondi.
Ainda
que contra a minha vontade, um outro desejo interior começava a brotar, a
manifestar-se. Pretendia saber o que fora a vida dela desde que abalara há
anos. Uma menina do interior não desaparece sem deixar rastos, sem que ninguém
tivesse jamais notado os indícios, as pistas. Por certo não sumira sozinha.
Fugira com alguém que ainda hoje eu desconhecia e com a vinda da minha família
para a Luanda, o assunto esvanecera por completo. Havia pois uma curiosidade crescente
à medida que a contemplava. Tinha que a ouvir, saber os caminhos que cruzara
para chegar a mim, naquele momento em que esboçávamos uma tentativa de
conversa, de aproximação mesmo.
Olhou-me
durante um longo tempo, suspirou fundo.
-
Obrigado.
-
Por quê? – Indaguei, sem perceber o agradecimento.
-
Pelos cigarros, salvaste-me a vida, nem imaginas.
Nunca
poderia imaginar que um cigarro salvasse a vida de alguém, sobretudo depois de
ter visto em muitos filmes e lido em muitos livros, que o último desejo do
condenado à forca, à guilhotina ou ao fuzilamento seria fumar um cigarro.
O
agradecimento de Selina fez-me visualizar um reclame que carregaria uma imagem
potente. Imaginei o condenado a terminar o seu último cigarro, o laço a ser-lhe
colocado à volta do pescoço e despencar para a morte. Logo após, numa
dissolução de cena, surgia um maço de cigarros e, sob o fundo de uma música
suave, sobrepunha-se uma voz feminina melodiosa a anunciar que o condenado,
como último desejo, fumara a marca tal. Todavia a realidade nesse mesmo reclame
talvez fosse outra, ao fim do cigarro, o condenado que achara valer a pena mais
alguns minutos de permanência na terra, lá partia desta para a melhor, a beata caída
no chão, ainda acesa e fumegante, quem sabe simbolicamente revelando que a vida
continua e que ali só se acabara com um homem. Terminado o macabro espectáculo,
saciadas todas as emoções da multidão que assistira ao acto, poderia aparecer
um vagabundo que apanhasse a beata, exaurindo sofregamente os últimos consolos
do morto através dela.
Considerei
que não valia a pena falar-lhe disso. Se lhe salvara a vida, segundo ela,
melhor. Seria mais uma boa acção a meu favor, na página do livro dos tidos e
havidos no julgamento final.
O
sentimento de gratidão revelado pela compra do tabaco, talvez a levasse a uma
maior sinceridade no que desejasse relatar. O facto de não ter dinheiro para
comprar um maço de cigarros não me deixara muito à vontade, apontava para a
possibilidade de tentar criar uma dependência, fosse qual fosse, embora, no
fundo, não significasse absolutamente nada. Só iria até onde eu permitisse,
poderia ser que até tivesse dinheiro consigo, que não estivesse desprevenida
como insinuara, mas visto uma oportunidade de economia.
Acabei
a bebida, e reparei que o copo dela ainda estava meio cheio.
-
Não foi nada, estou certo que a tua vida vale muito mais do que um maço de
cigarros. E por falar nisso, os teus pais?
Tossiu,
não sei se do cigarro ou se por nervosismo. Não me olhou. Baixou ligeiramente a
cabeça, agarrou no copo e sorveu a bebida até ao fim.
-
Posso pedir um outro refresco?
-
Claro que podes…
-
Obrigado, estou cheia de sede, não sei porquê.
-
Mas os teus país? – Insisti, rudemente, como a marcar território.
-
Acho que ainda lá estão, não sei de nada, nunca regressei.
Não
acreditei. Que nunca tivesse regressado à terra natal, seria possível e talvez
até normal, porém não ter nova alguma da família tornava-se difícil crer. Sempre
nos cruzamos com alguém, não se anda pelo mundo como alma penada. Acabara por
se cruzar comigo, porque não com outros e que teriam informações, notícias,
novidades a dar-lhe sobre os seus, e o lugar de onde saíra tão repentinamente,
sem falar da própria necessidade sua de saber dos seus?
-
Pudera, da maneira que abalaste!... Sabes, nunca me preocupei muito com isso,
cada um sabe de si e Deus de todos, mas agora ao ver-te é natural que me sinta
curioso em desejar conhecer o desenvolvimento da tua vida, desde que nos vimos
a última vez. Aliás ainda não te contei, sou jornalista, daí esse defeito
profissional, o de querer xeretar em tudo.
O
garçon colocou o refresco na mesa, o que lhe deu mais uns minutos de reflexão.
Pensei que não fosse responder. Saboreou a bebida fresca, acendeu um novo
cigarro, atirou com o fósforo para o chão, e só então levantou os olhos, boca
semiaberta, como que esperando que as palavras brotassem sozinhas, em chorrilho
talvez, o que me levou momentaneamente às quedas de água de Kalandula.
-
A minha vida não tem nada a ver contigo. – Respondeu, suave, quase que a medo.
-
Não foi o que insinuei, há um passado longínquo que nos liga. Se estou errado,
perdoa-me, de facto a tua vida não tem nada a ver comigo…
-
Desculpa.
Fiquei
à espera que aquele pedido de desculpa tivesse um seguimento, que revelasse uma
pequena luz no fundo do túnel, indicadora de que deveria prosseguir nos meus
esforços. Voltou ao enrodilhar do anel no dedo esquerdo, roda, roda, roda como
se estivesse a dar à corda a um relógio de pulso antigo.
-
Não há nada a desculpar, se quiseres falar estou pronto a ouvir.
-
Não sei como te contar aqui, o barulho das pessoas e dos carros… Preferia que
viesses visitar-me.
-
Claro que posso, é deixares-me levar-te aonde vives e combinarmos novo
encontro.
O
gelo estava a ser quebrado. O facto de desejar mostrar-me a sua casa, embora
não tivesse pensado para que lado é que pendia a intenção, já era um passo dado
e, para mim, certo. Chamei o garçon e paguei a conta.
Selina
não demonstrou grande pressa em levantar-se. Cruzou as pernas por baixo da
mesa, tamborilou os dedos no tampo e suspirou tão profundamente que franzi a
testa, surpreso. Momentos depois levantou-se, ajeitou a roupa e agarrou na pequena
bolsa acastanhada, surrada pelo uso.
-
Vamos. – Disse, quase em voz de comando.
-
A viatura está um pouco mais abaixo, junto à livraria. - Indiquei com a mão.
Seriam
umas onze da manhã e a rua fervilhava de gente e automóveis, num barulho meio
ensurdecedor. Jovens por todo o lado a marcar os esparsos lugares de que se
assenhoraram para parqueamento de viaturas. Outros oferecendo-se para
guardá-las, uns tantos a impingirem qualquer bugiganga para venda e os famintos
a pedirem uma nota para a côdea de pão.
Chegámos
à viatura e logo o jovem, o suposto guarda, apareceu para receber o que lhe
cabia, numa aceitação tácita de ambos. Era raro haver troca de palavras, talvez
um obrigado pai, limpei o carro, na
esperança de receber um pouco mais, ainda que não lhe houvesse solicitado que o
fizesse. Destranquei, com o comando, as portas do meu pequeno Rav4 e entramos,
de imediato baixando os vidros para que o ar abafado e quente fosse substituído
por uma aragem mais fresca. Só depois ligaria o ar condicionado.
-
Para onde vamos? – Perguntei, já que Selina nada dizia.
-
Para cima, para os lados do S. Paulo, depois indico-te o local quando lá
chegarmos. Posso fumar aqui dentro?
-
Acho que não, teria que baixar os vidros e desligar o ar condicionado.
Certamente que aguentas até lá chegarmos, não?
Olhei
de soslaio para antever sua reação, e quando notei que não levara a mão à pasta
onde guardara o maço de cigarros, respirei de alívio.
-
Claro que aguento, não te preocupes. E para que jornal trabalhas afinal?
-
Para um dos nossos maiores diários, o Ecos do País. Já lá estou há três anos,
ocupo-me da área social, o que alberga, no fundo, quase tudo da vida do
cidadão. Se queres que te diga, estou bastante satisfeito, acho ter boas
perspectivas de carreira. Daqui a dois anos tenciono fazer o mestrado em
comunicação e jornalismo.
Não
respondeu e durante uma boa parte do percurso manteve-se a olhar pela janela,
num silêncio obstinado. Estaria arrependida de me querer levar a sua casa?
Sabia por profissão que não deveria forçar, falaria e revelaria o que desejasse
à medida que o gelo fosse sendo derretido, que a confiança ficasse
estabelecida, não havia pressa.
Um
insecto esborrachou-se contra o vidro da frente, pareceu-me ser um pequeno
gafanhoto verde.
O
meu faro, o instinto de caça, começava a fazer-me sentir que havia em Selina
uma história algures que me daria uma boa matéria, um livro até, por que não?
Há muito que desejava aventurar-me na literatura, corria em paralelo à minha
profissão, embora nem todo o jornalista fosse um bom escritor em potencial.
Tinha a certeza de que não passara a vida toda a ler sem que disso não colhesse
fruto, possuía uma sólida cultura geral e a escrita era-me um verdadeiro
prazer. Num futuro próximo abraçaria esse almejo e transformá-lo-ia em
realidade.
Subimos
o Eixo Viário, em direcção a S. Paulo. As obras impressionantes que aí se
erigiam, davam à cidade um ar de metrópole moderna e plena de pujança. Senti
saudades daquela circular sinuosa a abarrotar do verde das árvores do
antigamente. Conferiam-lhe um ar sedutor bucólico, era então, por excelência, o
passeio obrigatório de todos os que se dirigiam para a Marginal ou Ilha do Cabo
ao fim da tarde ou de semana. Essa fora outra Luanda, perdida para sempre,
despida das suas casas e sobrados antigos, como se as cidades não tivessem
memória, não vivessem de si mesmas como qualquer ser humano. Que não pulsassem
com alma prenhe nas reminiscências boas e más do passado, por outras palavras, sem
pulmões, sem raízes e sem essência própria, sem sangue a latejar em suas veias
e artérias múltiplas, esquecida de uma Nzinga a Bande sentada em sua escrava e
ofertada ao governador como espólio, de um Salvador Correia a aportar a
Massangano. Visitei Havana, Bahía, Óbidos e Ouro Preto, entre muitas outras
cidades do mundo, que me impressionaram pela sua arquitectura antiga, pela
emoção que geraram, fazendo-me sentir que retornara ao século dezassete. Acho
que se se conseguir manter a Rua dos Mercadores e as adjacentes dos Coqueiros
como hoje estão, será uma vitória, já que a Cidade Alta se volatilizou quase
toda, o Palácio Dona Ana Joaquina desapareceu para todo o sempre e tantos
outros monumentos de um passado como cidade de mais de quatro séculos de vida.
Desse tempo de memórias imorredouras, restou imponente e orgulhosa a Fortaleza
de São Miguel lá no cimo do morro, órfã, ela que sempre dominou até onde o
vista alcança em toda a sua volta, hoje ultrajada na sua beleza e significado
por um prédio dito moderno e sem qualquer função social ou outra, que não fosse
exercido em um qualquer mais pedaço de chão luandense, apagando ou
esvanecendo-se assim séculos de história angolana. Foi ela que testemunhou ao
longo dos séculos o crescer da cidade minúscula, revirou os olhos pardacentos
da idade nas calemas seculares da ilha, na qual vira instalar-se os
governadores do reino do Kongo para controlar a recolha do Nzimbu, as caravelas
com a Cruz de Cristo e o desembarcar de Paulo Dias de Novais. Fez fé, através
dos relatos que ouvia na boca dos seus ocupantes e se coçavam nas suas paredes
espessas, sobre os grandes Ngolas. Séculos mais tarde, alegrou-se ao ver sair
do Paço Episcopal o Senhor Bispo para descer do morro, que o com os seus
passeios ao cair da tarde para se deleitar nos magníficos pores-de-sol
luandenses e refrescar os pés na praia, deu nome ao famoso bairro da Praia do Bispo.
No
presente, Luanda é uma proposta de cópia desfocada e torta de Shangai, um Hong
Kong africanizado ao avesso, cidade feita pirata da terra do nunca, em nome de
um progresso e desenvolvimento. Por isso tem tantas Ruas da Vaidade espalhadas
pelos seus diversos bairros, as réstias das bualas que não conseguiram
adaptar-se à nova vida e ser cidade, não obstante as modernas centralidades. A
alma da nova Luanda é ainda rupestre.
Olhei
de soslaio para Selina e dei conta de que vista de perfil, continuava uma
mulher linda. Usava um par de brincos fantasia e um colar com pretensão a ouro.
Nos punhos, várias pulseiras de diversos materiais e feitios e nos dedos das
mãos, anéis de design duvidoso, não achando melhor maneira para os classificar.
Havia algo de satânico neles, talvez por um, o maior, me parecer uma cabeça de
carneiro, com os chifres retorcidos para trás numa quase perfeita semi-curva.
Uma
vez entrados na rua que nos levaria para dentro do S. Paulo, ela virou-se para
mim, entreabriu a boca com se, mais uma vez, esperasse que as palavras
brotassem por si sós. Esperei e por fim falou.
-
Conheces a Rua Venceremos?
Apanhado
de surpresa, foi a minha vez de ficar como se as palavras necessitassem de ser
empurradas cá para fora. Não acredito em coincidências, tudo obedece a um
amontoado de ocorrências que envolvem milhões de pessoas e factos que acabam
por desembocar num momento. A pergunta naquele local era o somatório sequencial
de muitos anos de várias vidas. Nada é ao acaso. Engoli em seco e perguntei.
-
Queres dizer a Rua da Vaidade?
-
Dá no mesmo, sim a Rua da Vaidade, é aí que eu moro.
Tive
a certeza que ela viu a minha atrapalhação, observou o nascer da ansiedade a
fazer-me arfar de tal sorte que quase me senti desfalecer. Tive que encostar a
viatura para me recompor. Não que seja muito emotivo, sou sonhador mas
controlo-me relativamente bem com a realidade. Desliguei o motor, alheio à sua
presença. Pela minha mente galoparam dez mil cavalos num tropel de cascos e
relinchos ensurdecedores com uma matilha de lobos a perseguirem-lhes. Dez mil,
contei-os um a um e quando finalmente se perderam numa nuvem de poeira no
horizonte que se estendia nebuloso à minha frente, dei conta de Selina a
sacudir-me o braço com violência, surpreendida e estupefacta.
-
O que te aconteceu… Que susto! Estás a sentir-te mal?
Olhei-a
como se a visse pela primeira vez, quem é
esta mulher perguntei-me e quando reconheci o interior da viatura, que
ainda continuava com o rádio ligado, saí do buraco escuro de onde os lobos
arreganhavam as dentaduras esfomeados. Senti-me voltar ao mundo anterior, ouvi
o reverberar da resposta colocada há anos luz, pelo menos assim me parecera, dá no mesmo, sim a Rua da Vaidade, é aí que
eu moro. Como explicar-lhe o que me acontecera, se eu próprio não o sabia?
-
Não sei, parece que me deu uma tontura e tive que parar, não foi?
-
Quando te respondi que morava na Rua da Vaidade foi como se o mundo tivesse
parado, ficaste lívido e a arfar, pensei que te ia dar um ataque cardíaco.
Estás bem?
-
Deixa-me colocar as emoções em ordem, de facto não entendo o que me deu ou
aconteceu.
-
Leva lá o tempo que quiseres, mas vou sair para fumar um cigarro – Dito isto,
abriu a porta da viatura e saiu para o passeio, onde acendeu o cigarro, dando
baforadas longas, seguidas, parecia estar mais tensa do que eu.
Recostei-me
no assento, baixei o volume da música e novamente o coração saiu disparado,
felizmente que ela não estava a meu lado para o notar. Pum, pum, pum, batia desordenado. Pum, pum, pum, ouvia dentro de mim, como um tambor Cokwe vomitando
para longe qualquer boa ou má nova. Comecei a ficar preocupado nunca sofrera de
tensão alta, antes pelo contrário, vangloriava-me de ser considerado hipotenso
como se tal fosse uma condecoração a levar no peito. Senti o primeiro baque
quando ela mencionou o nome da rua em que morava, rua que até eu conhecia há
muito e que me concedia às vezes magníficos concertos nocturnos gerados pelo
sopro melódico do vento, na casa velha de primeiro andar. Qual era a ligação,
se ligação havia, certamente que sim, não acredito no acaso, no imprevisto?
Também não podia ficar ali parado na rua, Selina até já acabara de fumar e
esperava qualquer coisa de mim, teria que deixar as elucubrações para mais
tarde, no meu apartamento com um reconfortante gim tónico na mão e uma boa
música a massajar e provocar o intelecto. Agora havia que partir, estava
suficientemente recuperado, passara-me a camoeca, como se diz na gíria. Olhei
para ela, sorri como que a desculpar-me e fiz-lhe um sinal com a mão para
entrar.
-
Já, já estou melhor, quando chegarmos mostra-me a tua casa, embora tenha um
pressentimento que já saiba qual seja. – Disse, como se nada acontecera, como
se tivesse reatado a conversa onde ficara à última resposta sua.
Para
além de eu próprio, duvido que alguém mais tivesse visto uma pessoa a ser
assolada em plena luz do dia, ao volante do carro, por uma imagem de dez mil
cavalos a fugir de uma matilha de lobos esfomeados. Tinha que me concentrar,
agarrar as pontas soltas de toda esta estória, que começara com o encontro de
Salina.
-
Tanto melhor. - Respondeu secamente, sentando-se e fazendo um gesto indicativo
com a mão direita. - Quando lá chegarmos, digo-te qual é a casa.
Não
foi necessário, conhecia o caminho e sabia qual era a casa, se pudesse apostar
com alguém, apostaria tudo o que tenho. Há momentos das nossas vidas que temos
certezas absolutas, poríamos a mão no fogo se tivéssemos que comprová-las sem
sermos videntes ou adivinhos. estava consciente de que a casa de Salina era a
minha casa orquestra, a casa do medo para as crianças e supersticiosos, a cada
um conforme o olhar que utilizasse para a ver.
Sem
uma palavra, parei à frente da residência e aguardei. Saber aguardar é um dom,
sobretudo na minha profissão, onde nunca pode haver pressa ou impaciência. Daí,
acredito, serem os jornalistas uma raça de beberrões e fumadores. Sem pressas
ou impaciências, aguardamos. Aguardamos, aguardamos sempre pelo formar da
notícia, aguardamos nos centros de convenções, nos hotéis e palácios que sua
excelência o senhor fulano, ou o senhor beltrano, se digne relatar-nos as
mentiras que já tinha preparado para nos contar como verdades indesmentíveis.
Aguardamos, nas ruas onde os cafés e os bares estão sempre próximos e
convidativos, sobretudo se faz frio, com máquinas, câmaras, tripés, microfones,
caça palavras ou esferográficas e pequenos blocos de papel nas mãos. E de
aguardo em aguardo, vamo-nos enchendo de copos e entupindo com cigarros. Eu que
o diga, já viciado no gim tónico, felizmente não fumo.
-
Não queres entrar, ou vais ficar aí parado e sem dizer nada? - Perguntou por
fim, sem que eu entendesse o motivo da agressividade.
-
Estava à espera que te pronunciasses, não sabia o que fazer. - Desculpei-me.
Arrumei
melhor o carro, meio estacionado numa poça de água, à frente da casa de
primeiro andar. Jamais imaginara um dia lá entrar, não obstante a curiosidade
que sempre me despertara. A casa era pequena, talvez uma sala comum, uma casa
de banho adequada, uma despensa e uma cozinha em baixo, uns dois ou três quartos
de dormir e uma casa de banho em cima, não me parecia comportar mais divisões.
Certamente que teria um quintal atrás. Tinha janelas em todos os lados, as do
primeiro andar a necessitar de reparo. Para além da falta de pintura,
descortinava-se a madeira carcomida, talvez pelo salalé nos rebordos do
telhado, onde faltavam algumas telhas.
Conseguimos
atravessar a rua sem molhar na lama os sapatos, graças aos pedregulhos lá
colocados para o efeito. Ao entrar vi as minhas suspeitas confirmadas, a sala
era sim pequena e mobilada com o que mais parecia tralha recolhida aqui e ali,
ou que já tinha umas boas e más décadas de uso. Encostado a uma das paredes, um
armário que fazia de cristaleira e uma geleira com a porta enferrujada na
lateral. O sofá teria sido em épocas melhores de napa, estava recoberto por uma
colcha de retalhos original, embora fosse mais honesto chamar àquilo retalhos
de colcha. Um cadeirão encontrava-se ao lado e directamente em frente ao
televisor antigo. Nas paredes, reproduções de quadros diversos e um calendário
de há dois anos.
Todavia
o que mais me espantou foi a quantidade de bonecos espalhados pelo sofá,
cadeirão e até pelo chão. Bonecos de pano, de plástico, de madeira, de palha,
grandes, médios, pequenos, vestidos, despidos, com braços, sem pernas, com uma
perna só, um braço só, outros decapitadas e, sobretudo o que mais atenção me
chamou, crucificado na parede ao lado do calendário, com um braço pendendo.
-
Senta-te onde quiseres, talvez na geleira haja uma cerveja ou uma gasosa. Já
volto. - Disse, enquanto se dirigia para a escada que ligava ao primeiro andar.
Para
ser sincero, comecei a sentir vontade de me pisgar dali para fora, parecia ter
entrado numa cena de algum filme de terror. A qualquer momento esperava ver um
dos bonecos levantar-se, caminhar manco porque coxo, a perna toda torta,
chegar-se a mim e tocar-me no joelho com uma leve pancada, para me dizer
qualquer coisa como o que vieste cá
fazer, não sabias que tens de trazer um irmão nosso e quanto mais feio e usado
melhor, a bruxa assim o exige?
Dei
então conta que não havia uma única boneca. Com medo, respondi automaticamente
à hipotética pergunta que me havia sido colocada a desculpar-me, não, não sabia, e esperar que isso não
causasse qualquer constrangimento. Não desejaria quebrar as regras de uma casa,
onde entrara pela primeira vez. Para não o enfurecer, garanti-lhe que da
próxima vez traria dois, pensando que, claro, se assim o fizesse, estaria perdoado.
Vi um filme sobre bonecos assassinos, e ficara extremamente impressionado.
Olhei
à volta, mas não me sentei, decidi esperar que Selina descesse. Nem fui à
geleira, cerveja não bebo e gasosa iria dar-me sede, talvez até o frigorífico
estivesse cheio de bonecos, todos a tiritar de frio e com caras de poucos
amigos, se não violentos e decididos a atacar o primeiro que abrisse a porta,
julgando ser a tal bruxa criada na minha imaginação. Era melhor ficar ali
quieto, atento e de pé, pronto para o que desse ou viesse.
Foi
quando notei um gato preto com manchas cinzentas, escanzelado, com falhas de pelo
por todo o corpo e cego de um olho. Seria esse o tal gato rameloso da bruxa? Apercebi-me
dele, porque começou a ronronar e avançar para se roçagar na minha perna
direita, rabo entesado e a abanar ligeiramente, mas só para um lado. O primeiro
impulso foi o de lhe dar um pontapé violento que o enviasse contra a parede, só
não o fiz por medo que Selina ouvisse o miar do bicho em dor e também porque se
sabe que gatos são pessoas que à noite ganham vida e forma humana e colocam
feitiços.
Quem
não os ouviu nos telhados e muros das casas, no breu da noite, encetar
estridentes diálogos que nos põem o pelo eriçado? Não acredito em feitiços nem
em feiticeiros, todavia sempre é bom respeitar o que os outros acreditam e
afirmam, não há nada a perder, o mundo não é como o vemos e percebemos.
Angustiado e enojado, deixei o bicho rafeiro roçar-se pela minha perna direita.
-
Vejo que já fizeste um amigo, o que não é muito comum. O Pepetela não gosta
muito de gente. – Disse Selina enquanto descia as escadas.
Surpreso
com o nome do gato, ofendido mesmo, não consegui conter-me.
-
Então tu vais dar o nome de um dos maiores expoentes da nossa literatura ao
gato? Não sabes quem é o Pepetela?
-
Claro que sei, não sou assim tão ignorante. Quando se dá um nome é para
homenagear alguém ou alguma coisa. Porque não te sentas ali? - Indicou o
cadeirão ao mesmo tempo que corria com o gato que, entretanto, lá se
refastelara.
Automaticamente
para lá me dirigi, sacudindo primeiro uns tantos pelos do bicho, se é que eram
os dele. Quantos gatos não entrariam por aquela janela aberta da cozinha que
antevira? Por que razões o bichano nojento e zarolho não podia aqui receber
seus comparsas de vielas obscuras, ou reunir a sua confraria de feiticeiros das
redondezas e preparar os bungulamentos?
-
Mas não se homenageiam animais com nomes de pessoas!... – Insisti ainda em
desconforto intelectual, afinal também escrevia para ganhar a vida.
-
E porque não? Seria a primeira vez? Olha, dei-lhe esse nome porque o único
livro que tinha em casa, esquecido por alguém, era do Pepetela, O Cão e os
Calús. Não sei se o diabo do gato teve intuição ou não de que o livro tratava
de um cão, foi-o comendo aos poucos.
-
Comendo o livro? – Perguntei, estupefacto. - Sei que cabritos comem tudo,
incluso papel, agora gatos…
-
Pois é, eu bem escondia o livro mas dava sempre com ele e foi comendo, até que
o livro acabou por desaparecer por completo. Decidi então trocar-lhe o nome de
Zacarias para Pepetela, em homenagem.
Comecei
a ver o ponto de vista dela, não deixava de ter uma certa lógica, não é
qualquer gato que come um livro inteiro, não obstante a fome que deve passar
diariamente, mesmo havendo as ruas e os becos onde procurar alimento. Olhei-o
com simpatia, o olho em falta pareceu-me não tão revoltante, como me parecera
inicialmente. Espero que tenha digerido bem a estória, terá sido primeira vez
que um gato comeu um pastor alemão.
-
Se assim foi, o que dizer!... – Respondi, não muito convencido. – Todavia acho
que não o deves tratar por esse nome.
-
Também não sei explicar. O livro foi comido por ele, e não lhe vou mudar o nome
só porque te sentes ofendido. – Disse Selina, melhor humorada.
Esperei
que dissesse qualquer coisa mais. Sentou-se no sofá, agarrou num dos bonecos,
que não tinha o braço esquerdo e lhe faltava parte do cabelo e ficou com ele no
colo, acariciando-o.
-
Já te disse que passo aqui por esta rua com regularidade, para encurtar caminho
quando venho ao bairro visitar uns amigos. Sempre me indagara a quem
pertenceria esta casa, pois é a única com um andar, destoa do resto. Vê como é
a vida, afinal és tu quem aqui mora.
-
Era a casa dos meus sogros, e agora quero que te vás. Obrigado pela boleia,
passa um outro dia. - Disse tão abruptamente, que me apanhou de surpresa.
Levantei-me de imediato.
-
Está bem, gostaria de passar novamente e falarmos um pouco, talvez te possa ser
de ajuda de algum modo. – Tentei amenizar.
-
Não preciso da tua ajuda, obrigado, mas podes passar sempre que desejares.
Descortinei
Zacarias e pisquei-lhe um olho, em solidariedade. Não deveria ser fácil a vida
de um gato zarolho, ou melhor, sem um olho, meio pelado e a viver rodeado de
bonecos mutilados. Se realmente fosse feiticeiro nas horas vagas, poder-lhes-ia
cravar alfinetes no corpo. Com o arrepio que senti, estuguei o passo.
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