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sábado, 3 de agosto de 2013

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA




 CHIKAKATA MBALUNDU
Ao distinguir com Menção Honrosa este romance de estreia, “Cipembuwa”, o júri do Prémío Sonangol de Literatura, em 1986, pretendeu dar a conhecer uma voz diferente no panorama da mais jovem produção literária angolana.

CIPEMBUWA

Anoitecia. O manto negro cobrira há pouco a amplitude telúrica. A cor rubra do sol subsistia em reminiscência no meu olhar incandescido pelo reflexo solar diurno.
A cidade deveria estar a recolher.
Uma quietude imponente começou por assolar o hospital. Os passos das enfermeiras de piquete ressoavam com maior intensidade.
O meu olhar espraia-se pelo compartimento hospitalar, onde me acho internado. Sinto-me manietado em todos os meus gestos. As ligaduras, tal como uma múmia egípcia, cobrem o meu crânio, tronco, braços, inclusive a perna direita que, erguida, baloiça no espaço, suspensa sob o meu olhar apreensivo.
Todavia, à medida que os factos vividos, cinco dias atrás, perpassam, reproduzindo-se em minha mente, consciencializado-me, cada vez mais, das eventualidades susceptíveis de se interporem em nossas vidas.
Trazer à tona da consciência tais factos é visualizar a tarde de sol dominical em que passeávamos pela cidade juntamente com um grande amigo de infância. É relembrar o gesto e o grito de aflição, misto de susto e surpresa, quando um camião se abateu, acidentalmente, contra nós. Recordar estes factos é vivenciar a estupefacção de me reencontrar desperto num local inesperado: o hospital, numa mescla de odores peculiares a estes lugares.
Foi precisamente neste instante que o vi entrando. Vinha acompanhado por duas enfermeiras. O que prendeu de imediato a minha atenção foi a falta do braço direito. Era perfeitamente visível a sua ausência, do ponto onde me encontrava.
Nem o uniforme hospitalar que trazia conseguia encobri-lo
Do braço amputado, dirigi o meu olhar para a sua expressão compungida, dolente, apagada, legível em seu rosto. Era alto e estreito. Nem as vestimentas desmesuradamente grandes eram capazes de iludir o seu corpo.
Ficou postado à beira da cama. Antes que o fizessem deitar-se nela, que era paralela à minha, observei que passara vários dias deitado. Tinha uma cabeleira farta e despenteada.
De tanto de se deitar dum lado, o lado esquerdo era desproporcional ao direito, visto de perfil. O queixo relativamente ovóide emparelhava-se perfeitamente com o seu nariz achatado. As olheiras próprias de alguém que usara óculos faziam sobressair uma expressão escancarada.
Sonolentamente, com um certo esforço, remexia as pálpebras. Não obstante isso, constatei de imediato que possuía uma personalidade forte.
Agora, que o vejo sentado na cama, com a cabeça inclinada e com queixo ovóide roçando seu peito, apercebo-me que as suas profundas olheiras não eram devidas ao uso de óculos, mas sim à dor que o carcomia. Este facto é perfeitamente observável no emagrecimento das faces que acentuam e fazem sobressair os olhos faciais, dando a impressão de ser uma caveira.
O seu empalidecimento denotava claramente que deveria sofrer de uma anemia profunda, ou de outro flagelo devastador.
Deitado sobre o seu único braço, o esquerdo, mantinha o semblante direccionado para minha cama. Com os olhos fechados, esboçava com as pálpebras um leve torpor, que se consubstanciava numa espécie de espasmo visual. Mesmo dormindo, sofria.
Imerso em interrogantes sobre o que se teria passado com o meu novo companheiro de quaro, abstive-me de pensar no desastre que atravessara a minha vida.
Deveria ser para além da meia-noite quando o silêncio do nosso quarto foi quebrado pelas lamúrias aflitivas e lancinantes emitidas pelo companheiro. Como se alguém o estivesse sufocando, acompanhava os gritos com movimentos e gesticulações caóticas. Tudo mostrava qual a intensidade e a amplitude do flagelo que o atormentava.
Correndo, duas enfermeiras entraram abruptamente no quarto.
Uma enfermeira baixa, gorda, tentava manietá-lo, enquanto que a outra tratava de aplicar-lhe uma injecção.
O antídoto deve ter-lhe feito bem e acalmado o seu tormento e aflição. Passado uma hora, tentava excitadamente travar um diálogo comigo. O meu silêncio fez esmorecer o seu ânimo.
Perguntou-me se as ligaduras que me envolviam construíam um óbice para escutá-lo. Abstive-me de responder, pensando que estivesse delirando.
Posteriormente, depois de breve silêncio, insistiu no seu projecto, imprimindo uma entoação de tristeza na voz.
Aquiesci com ligeiros movimentos da cabeça. De facto, é difícil recusarmo-nos a escutar alguém que numa expressão compungida diz-nos querer falar e não ter a certeza de resistir por mais de umas escassas horas.
Meticulosamente, pôs-se a falar. Dir-se-ia que falava para si. Não se importava com atenção que eu poderia manifestar. Tive a impressão de que se desgastava numa verbosidade insurgente, como se pretendesse descarregar um pesadelo fardo que o atormentava...

A mulher, ligeiramente estonteada, lançou-se apressadamente contra uma árvore que se encontrava no centro da lavra. A azáfama laboral interrompeu-se subitamente. Abraçou-a com as duas mãos, até sentir o encaixe dos seus dedos à volta do diâmetro do tronco. Como resposta do contacto do seu rosto contra o caule escuro e rugoso, sentiu, sentiu um arranhão. Afastou o rosto, lançando dolentamente as mãos à cabeça, onde se desenhava um penteado ndondi (1)
Transcorridos uns segundos, achou-se cercada por outras mulheres que aí labutavam. Todas sustentavam em suas mãos etemo lymbundo (2) que, perante o acontecimento, lançaram abruptamente ao chão húmido salpicado por vermes e insectos coveiros. Num gesto que denotava, clara e visivelmente, temor, saíam em socorro de sua companheira.
O homem, numa lassidão mesclada por uma expressão de compreensão sobre o que passava, lançou a enxada de cabo alongando ao solo. Com as mãos sobre as ancas, não se precipitou. Não correu. Não entrou em pânico. Simplesmente, concentrou o seu olhar nos carreiros, onde há pouco a sua mulher ia, paralelamente, disseminando a rama de bata-doce e ele ia soterrando com grandes punhadas de terra húmida e vermelha.
O homem não se dirigiu para local onde se encontrava a mulher, com o rosto congestionado pela dor e perlado de suor, que se agitava estendida no solo, sob o olhar complacente de suas companheiras.
O homem afastou-se. As mulheres amparavam a sua mulher.
Imerso em cogitações, dirigiu-se à lavra vizinha. Distava da sua uns cem metros. Grandes jorros de água tinham caído na véspera. O solo exalava fortemente um odor a lama que impregnava as suas narinas.
Chegou à lavra vizinha. Lançou um olhar perscrutador sobre as mandioqueiras recém-espetadas no solo. Não avistou ninguém. Afastou-se daí, dirigindo-se ao ocimbadi (3) situado no centro da lavra, onde estava a anciã que separava os ramos bons dos maus, colocando as mandioqueiras com este aspecto à sua direita


(1) Penteado simples de duas tranças ou mais.
(2) Enxadas próprias para mulheres, de cabo curto e sob a forma de V.
(3) Porção de terreno liso e duro, feito pelo salalé.
Ao escutar o estalido seco de paus a serem pisados, esboçou um gesto impulsivo que fez cair a quinda colocada próximo das suas costas.
Ao encarar os olhos apreensivamente brilhantes do homem, pôs-se de pé num salto. Seguindo atrás  do homem, acompanhou-o. Não houve qualquer troca de palavras.
A sua mulher já não se encontrava na lavra.
Ao chegar a casa, o homem isolou-se, internando-se no interior da cubata. Na tépida penumbra da cubata feita de pau-a-pique e coberta de capim, pôs-se a aguardar.
A anciã abandonou-o mal se apercebera da ausência da mulher. Decididamente, embrenhou-se pelo matagal que circundava a aldeia. Deixando atrás de si mulembas, mangueiras e bambus, deu de frente com uma lavra. Na berma, sobre as raízes á superfície de uma árvore de proporções avultadas, encontrava-se sentada a mulher.
Transcorrido um espaço de tempo indeterminado, o homem viu, através da porta de dimensões exíguas, dois vultos a aproximarem-se sorrateiramente. Espicaçado pela curiosidade, tentou levantar-se. Algo, em seu íntimo, disse-lhe que continuasse naquela posição: sentado à lareira.
Uma angústia aterradora e penetrante apertava-lhe o coração. Tentado atenuá-la, olhou à sua volta: o tecto enegrecido pelo fumo da lareira; as maçarocas secas, para semente, pendentes do tecto, tal como estalactites, achavam-se de igual modo enegrecidas; a s três grandes panelas de barro, com os bojos salientes, colocadas no canto da cubata, donde advinha um ruído seco, aquoso, tal como o bater das águas sobre uma pedra. Era o ocimbombo (1) em fermentação
Todas essas imagens insurgiam-se contra ele, sentado no olumbambo (2), sem no entanto possuírem algum poder de o distrair e tirá-lo de sua apreensão.
Viu a anciã aproximando-se. Entrou na cubata. A sua mulher achava-se distante, sentada e perdida na invisibilidade da obscuridade nocturna. Ao confrontar-se com a configuração do corpo encurvado e carcomido da anciã, procurou com o seu olhar inquiridor, ler e apreender todos os gestos susceptíveis e capazes de lhe dizerem algo.
A anciã passou ao seu lado, sem se importar com ele. Dirigiu-se ao canto da cubata. Era no mesmo local onde se achavam as grandes panelas de barro em fermentação e com os bojos salientes. A anciã saiu daí com uma cabaça aberta na extremidade.
O nó que lhe apertava a garganta, a angústia que lhe pressionava o coração, foi-se dissipando paulatinamente. Um sorriso de satisfação desenhou-se no seu semblante. Compreendeu, naquele momento, que a sua mulher tinha dado à luz um, rapaz. Na verdade, a cabaça onde se achava a placenta repousava fora  da cubata, na fronteira de demarcação entre o tecto de capim e a parede.
A esteira foi estendida entre o olumbambo e as panelas de barro. A sua aspereza peculiar fora atenuada com folhas de ongonguila. Por cima achava-se estendido um pedaço de tecido encardido.
A mulher dificilmente continha a sua dor. Foi deitada juntamente com o recém-nascido.
As chamas, sob labaredas ígneas, iluminavam todo o compartimento. Sob o clarão avermelhado, o homem olhava, como que hipnotizado, a  mulher  e a  criança aconchegada no peito da mãe. Estava assim tão absorto que não deu conta das mãos rugosas e calosas que, respeitosamente, o afastavam. Voltou a sentar-se no olumbambo, lançando o olhar em todas as acções da anciã: carinhosamente, separou a criança da mãe, deitando-a com a face para o tecto. Meticulosamente, ingeriu uma grande quantidade de água morna, que repousava numa pequena tigela de barro. Em vez de engoli-la, pôs-se, ritmicamente a lançá-la em jorros sobre o corpo da criança. Tudo era feito num ímpeto e numa sofreguidão desenfreada, como se naquela água estivesse o mistério da existência. Chorando aos gritos, a criança reagia contra o processo a que estava sendo submetida.
Dividido entre as lamúrias aflitivas da mulher e as acções da anciã, o homem viu-se na

 (2) Bebida alcoólica.
(3) Superfície saliente dentro  duma cubata, que serve para vários  fins. 
obrigação de sair da letargia que o envolvera. Segurou a criança pelos sovacos. Teve, de imediato, a impressão de que segurava um rato. Manteve-a assim suspensa. A mulher idosa tirou de seus haveres um fragmento de trapo húmido. Decididamente, e orientando-se por uma saliência rota na extremidade, fez uma tira que amarrou no lombo da criança. Voltou a deitá-la ao lado da mãe. O corpo untado com óleo vegetal e as labaredas da fogueira.
Uma vez mais, a anciã inclinou-se para poder transpor a porta de dimensões exíguas e saiu. Deu nus passos para o interior da aldeia. Quando antigiu ao centro. Pôs-se aos gritos: ULÚ, ULÚ, ULÚ, ULÚ. A velha batia compassadamente com as palmas da mão contra os lábios. Os gritos ressoavam cada vez com maior intensidade, propagando-se a toda a aldeia.
O homem sentiu-se enlevado pela alegria que o avassalava e o sentimento de paternidade que em si fervilhava. Com os olhos a irradiarem luz, inclinou-se, ajoelhando-se na esteira.
Concentrou-se novamente na criança e na mulher que o olhava vitoriosamente. E sorriu.
Miraculosamente, os gritos ululantes surtiam o seu efeito.
Um por um, aos pares, as pessoas foram-se aproximando, conglomerando-se no pátio, frente à casa do homem. Com a alegria estampada no rosto, embriagada pela falecidade, o homem correspondia quase maquinalmente às pessoas que, com uma vénia e um sorriso, como se o seu provento fosse colectivo, congratulavam-no por ter dado à luz um presumível caçador ou apanhador de lenha no coração da floresta.
Transcorridos dois dias, quando se deu por terminada aquela procissão, a mulher, o homem, juntamente com alguns familiares mais próximos, reuniram-se. O objectivo era o de atribuir um nome à criança. Sem qualquer controvérsia, a eleição caiu no nome do avô: o grande caçador de bambis e palancas. No decorrer da cerimónia alguém ventilou a aldeia de que era praticamente precoce atribuição do nome. O seu aspecto, debilmente franzino, mostrava claramente quais as escassas possibilidades de sobrevivência do recém- nascido. Portanto, seria uma precipitação...
O homem sentiu-se apreensivo. Franziu o nariz, abanou os ombros. Cruzou a esteira e saiu. Fora, sentiu-se assaltado por uma diversidade de questionamentos. Um pressentimento obscuro perpassou em sua mente. Já o vivenciara durante todo aquele processo que se consubstanciara no nascimento de seu filho.
Recordou- se discussão  que tratava com  o sekulu (1) Kandjaia. O problema circunscrevia-se numa querela de divisão e delimitação de terrenos. Inesperadamente, o sekulu Kandjaia intrometera-se abusivamente em sua vida. Insistemente, pretendia fazer com que lhe cedesse uns metros do seu terreno. Ele fora intransigente e inflexível.
Pelo seu arrojo, subtileza e inteligência resolvera o caso rapidamente. O causador do problema saíra duplamente derrotado. Não conseguiu materializar o seu projecto, ficou de entregar-lhe uns metros da sua lavra, que ele conseguiu provar pertencerem-lhe desde há muito. Assim tinha-se consumado o caso.
Algo ficou, no entanto, incrustado em seu íntimo. Era uma apreensão consubstanciada em desconfianças e previsões inusitadas. Presumivelmente, pensou, deveria residir aí a debilidade e frouxidão do recém- nascido. Não cometera onjamba (2). Não roubara. Não possuía feitiço. Sim, a causa deveria estar na represália do velho Kandjaia.
Os dias avançavam resolutamente. A apreensão do homem não desfalecera. Acentuava-se cada vez mais. As folhas do ongonguila encontravam-se já secas. Foi o dia em que a criança foi atacada por uma crise. Foram momentos difíceis, de consultas ao quimbanda e a outro tipo de a advinhos. Foram momentos de competição no decorrer de todas as noites. No dia em que todas as esperanças se tinham esfumado, a criança resistiu à morte.

__________________________________
(1) Velho
(2) Doença supostamente originada pelo adultério da parte  do homem, durante o período de gestação da  mulher.


O umbigo caíra finalmente...
A mulher pegou nele e enterrou-o ao lado da casa, próximo dos resquícios.
As galinhas cacarejavam. Debicando aos grãos de milho disseminados no solo, iam simultaneamente, remexendoresolvendo a terra com patas. O homem encontrava-se na capoeira. Com uma enxada e quinda, tirava os excrementos de galinha misturados em cinza para o estrume da horta. Tinha-se esquecido da queda do umbigo. Foi por isso que se sentiu surpreendido quando viu a sua mulher e a criança fora de casa, ao sol. Foi naquele dia mesmo que se decidiu, de uma vez por todos, atribuir definitivamente o nome à criança.
Os pilões subiam e desciam num ritmo cadenciado. As duas mulheres acertavam infalivelmente na boca do almofariz. Cada uma levantava a mais alto o seu pilão, a fim de evitar que houvesse uma simultaneidade no acertar na extremidade circular daquele recipiente feito de tronco de árvore e chato na extremidade. Assim que a outra levantou o pilão, a mulher mandou-a parar. O milho que se achava dentro   do almofariz transbordava, disseminando-se pelo chão. Via-se espalhado no chão milho partido e farelo.
A mulher meteu a mão no interior do almofariz, voltando com um punhado de milho húmido. Lançou um olhar compenetrado sobre os grãos descascado que salpicavam as suas mãos. Puxou a quinda que se encontrava a seu lado despejou nela todo conteúdo do almofariz. Enquanto que a outra voltava a meter milho no almofariz, ela sentou-se no chão com as pernas abertas. Segurou no ongalo (3). Com movimentos ascendentes e descendentes, completando-os com sopros expelidos de seus pulmões, ia separando o milho do farelo. Todas as suas acções se sincronizavam num ritmo cadenciado. Colocava os grãos de milho à sua direita e o farelo à sua frente.
A criança nua, esbranquiçada pelo pó o abdómen dilatado, aproximou-se. Tinha a tira atada ao lombo. Descalça, tentava obstinadamente misturar o milho com areia.
A mulher segurou-a pelas mãos. Puxou-a para si. Sentiu naquele momento uma predilecção particular pelo seu filho, franzino doente e débil...
O tempo fez que se construísse posteriormente todo um edifício de veneração.
A partir daí, foram-se desenvolvendo e consolidando laços fortemente arreigados entre a mãe e o filho. Nas vicissitudes da vida, cada um solicitava-o e demonstrava-o da melhor maneira.

(3) Peneira



In “Cipembúwa”, União dos Escritores Angolanos, 1989

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


LUÍS KANDJIMBO,

Um dos raros escritores da sua geração que se dedica ao ensaio e à crítica literária, com obra publicada no domínio poético e ensaio e crítica. Estreia-se com O Noctívago e outras estórias de um benguelense, de onde foi retirado este conto, na ficção narrativa, demonstrando a sua multiplicidade de interesses no domínio da criação literária.


O ARTESÃO DE FOGAREIROS

O homem tinha um rosto magro. Imberbe, sempre luzidio e suado. Uma armadura dentária irregular, possuída pela nicotina de tabaco ambundu. Apresentava uma deficiência no pé esquerdo. Pisava o chão com o calcanhar.
Atraía a simpatia dos alunos que todos os dias, quando saíam da escola, à mesma hora encaravam a sua hilariante figura. O homem que passava com fogareiros. Os rapazes admiravam a sua capacidade criativa gravada naqueles objectos utilitários. Por isso, lhe chamavam kapuka numa comparação com um verme predador de cereais que construía o seu próprio casulo e se deslocava fazendo contracções em movimentos sobre a superfície das folhas.
“Olha o tio Kapuka”, apupavam os miúdos.
Quando começou a fazer aquele novo trajecto, arremessava-lhes pedras. Tudo foi mudando até que se tornou amigos deles. Acontecia às vezes o negócio não corria bem.
Lhes disparatava.
“Tio Kapuka”, dizia um garoto.
“Dos fogareiros”, respondiam os outros em coro.
E le parava. E uma algaraviada pronunciava impropérios obscenos.
“Néfè ya nyoho.Tupa lya só”.
Nas vezes que ganhava dinheiro suficiente nas suas vendas ambulantes, passava bêbado. Falava como se tivesse água na boca. Trajando calças inundadas de remendos cosidos à mão na estatura de assim– assim, como chapéu, calçado do lohakus, carregava ao ombro um avara em que pendiam o saquito do farnel a corda de amarrar os fogareiros. Fazia esse percurso várias vezes por semana, sem contar os desvios para fazer cobranças de dívidas antigas a mulheres que levavam muito tempo a pagar, ultrapassando os prazos de propósito. O artesão chegava a pensar que elas não davam importância às suas necessidades de dinheiro. Um dia foi exigir pagamento imediato a uma dona de casa que no dia da cobrança não tinha. Já iam muitos dias de adiamentos. Não hesitou em dizer que não saía do quintal, enquanto não pagasse. Ameaçou mesmo: “Se você não me pagar, vou falar no teu marido que te vi nas bananeiras do Tomba dormir com guarda da horta no troco de dois cachos de banana”. A dona de casa sentiu a ameaça como se tivesse sido violentamente penhada. Conhecia o atrevimento e ousadia do artesão. Resolveu pagar a dívida.
O Kapuka dos fogareiros, como lhe chamavam os miúdos, morava na periferia do bairro, no limite com uma damba que descia para a ravina e imediações da lixeira grande, onde eram depositados restos industriais da cidade e as águas residuais do saneamento. Os outros artesãos que vendiam na praça não duvidavam da sua vantajosa situação. Lhe invejavam só quando os clientes pediam modelos à Kapuka. Tinha à
disposição tudo, desde chapas a latas das embalagens e outros serralharias para fabricar
fogareiros de diferente qualidade.
Na sua oficina era frequentemente visitado por algumas clientes que encomendavam fogareiros para três ou quatro panelas ou ainda fogareiros especiais para as festas.
Nestes casos só podiam ser as vendedoras de sarrabulho, milho ou então bares e restaurantes que faziam grelhados. Como estas encomendas requeriam muitos artifícios, só assim recorria a materiais que tinha de adquirir nas lojas da Kamunda e nas drogarias do centro comercial da cidade. Deslocava-se por esses motivos para adquirir estanho, ácido, algumas ferramentas. O ferro de soldar quem lhe arranjava era um serralheiro da Metalúrgicas RL
E m troca fazia a entrega de um fogareiro de modelo novo.
Uma vez apareceu-lhe a fazer encomendas uma mulher chamada Kuva. Pediu  insistentemente que lhe fizesse um fogareiro de modelo novo. O mestre tinha no momento vinte e seis fogareiros para entregar na semana seguinte, tirando os que eram destinados à venda ambulante. Não podia receber mais nenhuma encomenda.
A mulher insistiu, acabando por propôr como contrapartida dormir com ele e ficar amante dele. Morar com ele, até quando não quisesse mais.
O artesão fixou demoradamente o rosto dela, a ver se lia algum sinal de seriedade. E pensava “Um fogareiro pedido por uma mulher é porque merece respeito. Um fogareiro
é sempre sinal de responsabilidade pelo fogo da família, marido e filhos. Para que servirá então, se está me falar para ser minha mulher? Uma proposta assim só desafia as minhas vontades. Mas ela é atrevida. Está a vir falar com um homem solteiro como eu, que não precisa mulher para durar muito tempo. Mulheres assim não te deixam trabalhar livremente.
Toma cuidado homem: um batuque em a pessoa que toca bonha, é porque não falta muito para rebentar no momento da dança. Pode ser como esta mulher. Não preciso ir muito longe. Aquela que tinha aqui aparecido pedindo um fogareiro grande para fazer pasteis, tinha feito a mesma coisa. Ah! Aquela tinha vindo do mato e não era de cá. Esta
aqui não! É daqui. Mas como ela quer ficar comigo, aceito. Daqui há mais uns dias certamente vou descobrir o fundo. Mas não sei me vai causar humbula e problemas como aquela outra que afinal tinha filhos grandes e me vieram dar aquela porrada”.
“Não fala assim, fachavor”, disse o artesão. Entrou para o interior da sua cabana.
Ela acompanhou, depois de combinarem o que restava. Mas continuava na dúvida se já a conhecia ou não. Lembrou-se que já lhe tinha encontrado em algum lugar. Foi nas cinzas ou num óbito mesmo em que ele não era conhecido. Atraído pelo choro das carpideiras, aproximou-se da casa. Entrou e sentou-se num dos banquinhos. Partilhava a dor com os parentes e amigos do defunto. Estava à vontade, tinham-lhes servido uma caneca duma bebida qualquer. Viu entrar uma mulher escura, que não era muito alta, exibindo sinais de uma fresca agressão No mesmo instante entraram dois rapazes do grupo que lhe tinha violado.
Notara que ela trazia o vestido empoeirado nas costas. Aquele momento lhe causou uma forte impressão de pena porque os que conheciam teceram comentários, outros lhe zombaram.
A mulher só passou três noites com o Kapuka dos fogareiros. No dia que seria o quarto, o artesão desaparecera. O corpo dele viria a ser encontrado golpeado de punhaladas, uma das quais o pescoço. O que teria motivado o assassino? Ninguém sabia. Corriam dias chuvosos. Parecia que se ia fazer um óbito anónimo. Mas apareceu um primo vindo das terras de origem. Para a curiosidade dos amigos e admiradores descreveu a biografia do artesão. Era descendente de uma numerosa família de ávidos e prósperos agricultores. Foi busca do desconhecido que o levou até à cidade litoral onde decidira morrer.” “Quanto mais aventuras nos acontecem numa terra, mais fortes são as raízes que a ela nos prendem. É por isso que ele morreu assim, talvez o assassino sabia que amando a aventura, ele não se importava com a morte. Para ele é como mais velhos dizem: o pano que é bonito passa por ti quando estás na lavra, mas se fores homem de trabalho livras-te desse pesadelo”. – Disse o primo.
Os instigadores do assassino podiam ser descobertos entre os rancorosos devedores como aquela dona de casa que se considerou penhada com a ameaça de denúncia do artesão. “Me denunciar na presença do meu marido sobre as pragas minha vida!
Isto não é só nosso azar?” Foi assim que a mulher terminara o seu lamento diante do amante, o guarda da horta, de que falara o artesão.
A maldade dessa mulher era conhecida. Não só pela sua fama de infiel mas também por causa da humbula que contraíra, cuja cura só conseguiu num cimbanda da Equimina. Outras proezas compunham o seu perfil. A dedicação aos assuntos domésticos era uma forma de mostrar que a sua laboriosidade comparava-se a outras mulheres.
Não fazia isso só assim. Raramente lhe ocorria admitir fracasso dos meios que utilizava mulheres para atingir os desígnios. Nunca ninguém lhe tinha feito ameaça semelhante.
Foi um desafio que em silêncio se transforma para si num caso de vida ou de morte.
Na noite do enterro, assistiu-se a um a luta entre duas mulheres, Kuva, a que passara as últimas três noites com artesão e essa devedora adúltera que o artesão ameaça denunciar. Com o seu instinto de maldade foi lá celebrar a sua vingança.
“Pode ser essa mulher que mandou lhe matar. Eu sei porque ele me disse que nunca mais ia fiar fogareiros nas pessoas como essa ciwaya. Essa mulher anda fazer muitas poucas vergonhas. Essa mesmo! Como é que o Kapuka lhe encontraram morto nas capilas das hortas do Cavaco, se o tal homem dela trabalha na horta? Estão ouvir? É essa mulher que mandou lhe matar”, vociferava a última amante do Kapuka dos fogareiros.
Quando os miúdos daquela escola chegaram no óbito, ninguém contava. Elas foram porque na brincadeira tinham cultivado uma profunda estima pelo artesão de fogareiros. Quem é que tinha mandado matar o amigo deles? É isso que queriam descobrir.
No mesmo dia que o corpo do Kapuka apareceu morto, um deles achou que qualquer coisa ia acontecer.
“Epá! Eu hoje estou só assim parece que vai acontecer alguma coisa. Vocês já deram conta que o mais velho Kapuka hoje não passou!”.
O uviram aquela discussão. Também pensavam que a morte do artesão tinha a cumplicidade de um cliente qualquer.

In O Noctívago e outras estórias de um benguelense,
Editorial Nzila, 2000