sábado, 21 de janeiro de 2012

BATUQUE MUKONGO (Palavras do Prefaciador)




Para ser luminosa, a poesia tem de vir à rua com um ritmo próprio, uma certa musicalidade intrínseca, como uma canção silenciosa que soa na alma do leitor, com uma cinestesia formal que faz do verso um edifício, uma paisagem, ou um animal colectivo se movendo entre nuvens de poeira sintagmática, tem de vir à rua com uma faúlha navegante que acende em nossas mãos e nossos olhos essa luz no fundo do túnel das sensações, emoções e sentimentos tão dispares como nostalgia e ansiedade,
dor e prazer, o ser e o nada.
Para isso, basta ser natural, isto é, vir do coração, espontaneamente, e depois se burilar com os instrumentos do corte e da devoção à palavra.
Assim vi acender na polpa dos meus dedos esta poesia de Fragata de Morais, primeiro, como um pássaro a sair, manhãzinha muito cedo, do seu ninho suspenso em curva maleável sobre o rio, depois, como nuvem metamórfica que o oiro do poente recolhe no dorso, e ainda a trago a pulsar nas veias, muito tempo depois de fechar o livro, agora como alpendre de buganvílias, convidando a renovadas leituras.
Num tempo em que virou bíblia da poesia angolana escrever ‘difícil’, nessa ‘outra forma/ louça nova da mais fina porcelana”, num formalismo hermético que a maior parte das vezes não transmite nada ao leitor, ou, outras vezes, serve de camuflagem para certas artes mágicas de aprendizagem de feitiçaria, diria melhor, de prestidigitador que se socorre de cartas já lançadas noutros palcos, trocando-lhes apenas a geografia dos signos, vale esta poesia que bebe nas fontes dos precursores, singela, ela mesma, do coração, humilde na sua condição de “criança da chuva”, a apontar caminhos para as novas gerações aprimorarem e nele erguerem pontes de mãos aparelhadas de nova engenharia literária mais autêntica. O mesmo é dizer que no mar da poesia angolana cabem varias formas e estilos, vários remos, vários varapaus de bordão, pode-se até navegar em submarino ou porta-contentor, há mesmo quem neste mar traga simples jangada de sacos de cocos ou de madeira fértil do Mayombe, não há um único veiculo de cantar a vida vivida, mas, isso é que é, qualquer que seja o veiculo tem de fazer navegação com leme de palavras pré e com sentidas, tem de haver uma estrutura concebida no estaleiro do Belo, isso é que é. Doutra forma, nem o recurso à simples jangada nos salva do naufrágio.
Isto digo. Não muito mais, porque a obra de arte se diz a si própria, tem rosto e boca suas, não carece de testemunho de outrem, quem quer que seja este. Só acrescento. De “Uije na Uizi’ veio caminhando ‘sem desígnio’, ‘pelo funil do trinar das cigarras’, uma ‘criança da chuva’, ‘para o batuque/ tuque norte/ tuque sul/ tuque este/ tuque oeste/ em cada canto do mundo’.
E se me permite o leitor deste makongo batuque, o seu tocador é aquele que “Acreditava que o Sol/ não nasceria para além do horizonte/ por onde deslizavam/ as vozes choradas dos contratados/ em seus cantares saudosos/ da terra deixada para trás”, mas hoje se vê a “subir os morros do futuro pelo fio dos anos/ a reinventarem a História (…) a ver “a crise existencial dos quarenta/ a bater levemente à porta dos setenta/ na lenta cadência de uma sinfonia/ tudo tão distante/ Uiges na Uízis”.
Assim narra o autor uma historia, a sua própria, colada ao barro vermelho das casas do Uije, por dentro da Historia de um pais, podia ser poesia épica, mas é lirismo sentido que aqui fica, naquela duvida antiga que traz o espanto ao ser, olhando o por do sol, e vendo nele apenas o por do sol, sem outro sentido que o por do sol.

José Luís Mendonça

Paris, 25 de Junho de 2011

Sem comentários:

Enviar um comentário