VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA
ANGOLANA
Por Jurema de Oliveira
Resumo:
Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.
Palavras-chave:
tradição, oralidade e insólito
O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto
de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do
mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por
objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo
escolhemos as obras dos autores Boaventura Cardoso e Fragata de Morais.
Boaventura
Cardoso é autor de Dizanga dia muenhu (1977),
O fogo da fala (1980), A morte do velho Kipacaça (1987), Maio, mês de Maria (1997), O signo do fogo (1998), e Mãe, materno mar (2001), enquanto que
Fragata de Morais escreveu Como iam as
velhas saber, A seiva, Jindunguices (1999), Momento de ilusão (2000), Amor de perdição, Antologia panorâmica de textos dramáticos, A sonhar se fez verdade (2003) e A prece dos mal amados (2005),
O fantástico na prosa angolana (2010) Batuque
mukongo (2011).
O
século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e
em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência
nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo
com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida,
as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não
habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer
possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e
consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num
espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos
sustentadores do gênero insólito:
[...] o mundo organizado de repente se desorganiza,
sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o
clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito
contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os
(Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa
perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por
uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando
nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso
oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e
discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as
experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”, a base da ficção de
Boaventura Cardoso para quem o personagem tem sempre um movimento especial,
insólito. Sendo assim, em “A árvore que tinha batucada” do livro A morte do velho Kipacaça, o elemento de
destaque é a árvore:
[...]
assobiei então e o silêncio da noite que apenas de vez em quando era cortado
pelo vento e o silêncio da noite se engravidou então de assobios. Fiu! Fiu!
Fiu! E deixei ainda de assobiar, mas o silêncio continuou a se encher de
assobios. E imobilizei então de novo o passo. E ouvi então vozes: vozes. E
decidi então: passinho passo progressivo. E ouvi então outravez: vozes. Quem
vem aí? _ quem falou assim fui eu. Quem vem aí? _ vozearam vozes. E parece que
as vozes estavam a vir então de uma árvore que estava: próxima (Cardoso, 2004,
p.23).
Para
Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a
sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em
santos não podem curar-se com milagres de santos:
[...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira
inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação
privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente
favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e
categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de
uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’
(CARPENTIER, 2009, p. 9).
A
experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que
envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso,
é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao
mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O
fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos”
(TODOROV, 2004, p. 100) como aqueles que intrigavam o Sô Administrador:
Intrigado, Sô Administrador mandou então chamar os
cipaios e falou assim vocês esta noite vão dormir na árvore para apanhar os
bandidos. Estão a ouvir? Sim senhor Sô Administrador! – a resposta. Sô
Administrador, ainda bem Sô Administrador está nos mandar então acaçar os
bandidos que estão na Kaála, já estão abusar muito (Cardoso, 2004, p.26).
As agressões sofridas pelos
“caminhantes” durante a noite nas proximidades da árvore denotam o
desequilíbrio, a violência que ameaça o domínio do Sô Administrador, do Sô
Padre e, por fim, do velho que sucumbiu nas águas, mas a árvore – símbolo de
resistência – permanece de pé.
O recurso estilístico maravilhoso é
usado por Boaventura Cardoso para explicar experiências oriundas da tradição
africana, mas também àquelas decorrentes de situações conflituosas como ocorre
na obra Maio, mês de Maria que
cenariza o fraccionismo. O romance apresenta fenômenos extraordinários, como
recuperação de enfermos, pessoas com poderes sobrenaturais como o empregado
Lusala que prevê o incêndio na casa do patrão, as mortes súbitas dos agentes
funerais e fiéis de N. S. de Fátima assustados a espera de milagres.
O ano de 1977 começa submerso num
universo de incertezas para todo o povo angolano. Numa reunião no palácio
presidencial, veio à tona o resultado do inquérito instaurado contra os
niilistas. No relato final, a comissão confirmou que havia um projeto
fraccionista. A partir deste fato, o Comitê Central incrimina e expulsa os
principais membros: Nito Alves e José Van Dunem. A malograda tentativa de
recolocar o MPLA no “trilho” da História, idealizada durante a guerra de
libertação, abre espaço para as ações repressivas do Estado, que leva ás
últimas consequências o desejo de silenciar os dissidentes. Por isso, “o
coração se enchia de muitas palavras que acabavam por não nascer” (Cardoso, 1997,
p.177) e só encontravam reforços nas preces a Nossa Senhora de Fátima, pois os
homens e mulheres “fervorosos” se alimentavam candidamente na fé que move desde
a década de 1960 a luta por um Estado angolano livre e igualitário, distinto
daquele repleto de cães que vêm
[...]
às centenas, se aproximando. Eh? Homens que transportavam o andor deram meia
volta e puseram a Santa voltada para os cães, como se estivesse à espera deles.
(...). De repente, quando que os cães estavam próximos dos quatro homens, a
Santa falou assim: VINDE EM PAZ! Que ela falou altissonante! Eh! Eh! Eh! Todo
mundo ouviu a Santa falar aquelas santas palavras. Que aconteceu depois foi
extraordinário. Cães começaram estavam se transformar em homens, bons cristãos
(Cardoso, 1997, p.227-8).
O real maravilhoso cenarizado em
Boaventura Cardoso remonta práticas culturais antigas com cenas que gera
espanto até mesmo ao grupo. No conto “A morte do velho Kipacaça”, os membros que
promovem o komba são surpreendidos durante a festa, pois o morto retorna para
dançar entre os seus. Segundo Todorov, o Fantástico gera “certa reação diante
do sobrenatural, mas também, ao próprio sobrenatural. Neste último caso,
dever-se-á ainda distinguir entre uma função
literária e uma função social do sobrenatural” (TODOROV, 2004, p.166).
Verifica-se a função social do fantástico na cena seguinte:
[...]
no meio da queimada se vê homem em cima de pacaça de tamanho nunca visto. Tinha
tamanho gigante, chifres dourados, peito debruado, patas luzentes: a pacaça.
Eh! Quando a pacaça está próxima todo mundo atônito, Ehé! Ehé! Ehé! Em cima da
pacaça está um homem: é o velho Kipacaça! Ehé! Ehé! Ehé! Mam’é! Tem na volta
dele auréola luzidia. Amam’ééé! Pacaça se imobiliza, se agacha e Velho
Kipacaça, ar imponente, triunfante: desce, Ehé! Ehé! Ehé! Mam’é!
Eh!
Brioso, cartucheira cintada, arma na mão, Kipacaça atravessa mundo de gente lhe
olhando só, atormentada, ama’ééé!, e entra no quarto aonde está a viúva. Mana
Teresa, deitada na cama, não está se mexer. Entreabre os olhos mas não
reconhece o marido. Carpideiras, as velhas, têm vozes emudecidas e olhares
esbugalhados. Silêncio: fora e dentro de casa. Pouco depois vem cá fora e
pergunta em tom severo: - Porque é que deixaram de tocar?! – E ordena ngó: -
Continuem a tocar e a dançar! Kuatiça o ngoma! Venha a maxaxa! Cantem em
memória do Kipacaça, Rei dos caçadores. Cantem e dancem! Kuatiça o ngoma! Eu
estou morto!!! Katumbila é o nosso Kipacaça!
E o Velho Kipacaça entrou na roda dançante
(Cardoso, 2004, p.62-3).
O maravilhoso modifica o cenário,
gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo
assim, o conto “O filho” do livro Momentos
de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada
que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as
entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro,
que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola
valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual
afetivo conduz o desfecho do conto:
Na
sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao
tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao
sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a
si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio
da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A
vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que
situação ridícula, não posso”.
Todavia
os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a
penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a
levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no
explodir tumultuoso do plasma. (...)
Foi,
na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo
inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias
mais tarde.
Do
carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do
cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais,
2000, p. 13).
Numa perspectiva numerológica, o
sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as
mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o
número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o
mal.
No conto “A seiva”, da mesma obra,
Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a
fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na
inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois
“o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos
ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da
fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30). Essa força sobrenatural oriunda do amor era
ponderada constantemente por Mbuta que:
Lembrava
as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes
antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.
Convencera-se
por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar
a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que
curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com
uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros,
ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para
reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por
outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000,
p.32).
O questionamento feito por Mbuta
acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas
experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se
origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor
do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do
batismo de seu bisavô materno:
Jorge
contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João
Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente
de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em
consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam
dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese.
Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe
era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como
então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se
para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia.
Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João
Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do
rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.
‘Se
Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer,
mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).
Num ritual que envolve preceitos e
quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de
sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de
um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como
nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma
sucessão de fatos extraordinários:
Jorge
Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs.
Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu
desnudar-se.
Quanto
a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara,
cada vez mais abraçado a Jorge.
Sua
essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das
mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.
Silenciosa,
feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado
que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a
asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas
sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.
Quando
sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já
roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua
bifurcada silvante.
Despedindo-se
no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo
inanimado amassado.
A
serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao
longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades
da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).
Nos contos de Fragata de Morais, o
real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações
totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário
sobrenatural.
O estilo maravilhoso de que fala
Carpentier no livro O reino deste mundo
(CARPENTIER, 2009, p. 10) não é
privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas
e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia
ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço
fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada
estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de
passagem de um ente querido em Angola.
A performance experimentada pelos
personagens do conto “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso, bem
como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo
em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor
performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual. O que
nos leva aqui a buscar a fala de Boaventura Cardoso acerca do ritmo como marca
constitutiva de sua obra:
Mais
que a música, eu diria o ritmo, que é uma constante na cultura africana, já que
a nossa vida, enquanto africanos, é muito ritmada: seja o ritmo na narrativa,
ou o andar das pessoas, enfim, o ritmo da vida, a nossa vida. Nós temos muito
ritmo, mesmo! Então, é essa cadência rítmica que eu, talvez, de forma
consciente ou inconsciente acabo por imprimir aos textos. Na narrativa oral
esse ritmo é também dado a partir das repetições, que têm uma carga simbólica
muito forte. As interjeições que eu utilizo, abundantemente, por exemplo, em Mãe, materno mar, fi-lo
intencionalmente. Porque quando nós falamos, a nossa linguagem coloquial é
intermeada por muitas interjeições, de forma bastante diferente dos europeus,
que não usam muito isso. Isso tem a ver com nossa maneira de estar, de contar
as histórias com gestos, com muitas interjeições, enfim. E é um pouco isso que
eu procuro evidenciar em Mãe, materno
mar (CHAVES, MACÊDO, MATA, 2005, p.29).
O conto “Desencontros” de Fragata
de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La
Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso,
Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
Uma
noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com
Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques.
Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito
de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de
encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu
uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000,
p.38).
Hernando de La Cuenca y Fraga
retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de
Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo
esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma
blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha
gorgolejando pela boca da esposa.
“E
o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A
tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra
de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da
pátria...”
“Minha
mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim,
tua mulher!”
“Meus
Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo
é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários
Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha
família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).
Os acontecimentos insólitos são
aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias,
logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos
indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um
sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se
relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada
cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante
disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na
teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico,
Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19).
Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações
acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”,
significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do
instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável
(FERREIRA, 1986, p. 1608).
O projeto literário angolano
contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais
e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é
marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura
conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de
múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu
a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando
entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e
Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da
literatura angolana.
Bibliografia:
1 – CARDOSO, Boaventura da Silva. A morte do velho Kipacaça, Luanda:
Edições Maianga, 2004.
2 - ----. Mãe, materno mar. Luanda: Chá de Caxinde, 2001.
3 – Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997.
4 – CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
5 – CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania &
MATA, Inocência. Boaventura Cardoso:
escrita em processo. São Paulo: Alameda,
União dos Escritores Angolanos, 2005.
6 – FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
7 – GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de
gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2007.
8
– MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo.
Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
9
– ---. O fantástico na prosa angolana.
Luanda: Mayamba, 2010.
10
– ---. A sonhar se fez verdade.
Luanda: Inic, 2003.
12
– - - -. A prece dos mal amados.
Porto: Campos das letras, 2005.
13 – Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
14
– ----. Jindunguices. Luanda: Inald,
1999.
15
– ----. Como iam as velhas saber.
Luanda: Inald, s.d..
16 – ---. A seiva. Luanda:
Inald, s.d..
17
– ---. Amor de perdição. Luanda: Chá
de Caxinde, s.d..
18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA,
Flavio (Org.) A banalização do insólito:
questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de
Janeiro: Dialogarts, 2007.
19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São
Paulo: Perspectiva, 2004.
20
– ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção,
leitura. São Paulo: EDUC, 2000.
Mini-bibliografia
da autora:
Jurema Oliveira é
Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria
Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela
Universidade Federal Fluminense – Uff, desenvolve pesquisa na área de
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e publicou pela editora da Ufes –
Edufes em 2011 o livro intitulado Entre a
memória e a história: a poesia, um estudo sobre a poética insólita do
escritor angolano Adriano Botelho de Vasconcelos.
Como é feita a compra do livro O Fantástico na Prosa Angolana? O pagamento pode ser por pay pal?
ResponderEliminarGrata,Maria Elvira Brito Campos
Universidade Federal do Piauí
Caro Fragata de Morais,
ResponderEliminarNao sei por que razao, o seu blog nao aparece no meu com as respectivas actualizacoes...
Kandandu
Namibiano