segunda-feira, 17 de setembro de 2012

BATUQUE MUKONGO



13

Memórias encarnadas
na melancolia da Ilha do Cabo
depois do Uíge na Uízi
do Zavula no Cazengo
meu teceiro país agora marítimo
sem onças nem veados
sengues nos rios
camaleões nos paus
nem escusas nduas ou tucanos
lebres hienas helicombres
perdizes ou cordonizes
nem salalé de jinguna
mas com kiandas albinas
kikatas furiosos no olhar
kakulus só para o mirar de alguns
feitiços e feiticeiros poderosos
que navegam a crista das ondas
comandam o engravidar e o parir das marés
descendentes de cabindas
e mussurongos do Kongo dya Ntotela
de kimbundus do Ngola Kiluanji

14

Subi ao morro mais elevado
da memória onde conversam sentados
o velho Amaral do Golungo
o Serra famoso do Queta
o Rocha anguloso da Tombinga
o sábio Mateus do Kisekula
o Ferreira Pinto da descida
do Alto da Bandeira do Cadete
o Bernardo de Sousa
que me marcou para toda a vida
com o amparo da vacina salvadora
o Domingos Van Dunem em suas visitas fugazes
o Roberto Silva pintor aclamado
e hoje esquecido nas vielas da pátria
e tantos e tantos outros
a Kamundai o Kilombo
terras do Cazengo de morros verdejantes
subidos e descidos por camiões
prenhes de sacos de café
e suores dos contratados
café de Angola partido para longe
em sacos cosidos por mão hábeis
grossas e calejadas
café da nossa riqueza
café da nossa miséria
colhido ao som da palmatoada
no zurzir agreste do chicote
nos lombos nus dos perdidos
para São Tomé transferidos
que tanto acumularam em si
para um dia perderem o medo
cada gesto um furacão
que tudo varreu à sua frente
ao som dos batuques
das catanas afiadas ao fio fino
nos segredos do fechamento dos corpos
dos cordões gordurosos atados às cintas
soons de revolta nos murmúrios e olhares
ditos em surdina

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


LUÍS KANDJIMBO,

Um dos raros escritores da sua geração que se dedica ao ensaio e à crítica literária, com obra publicada no domínio poético e ensaio e crítica. Estreia-se com O Noctívago e outras estórias de um benguelense, de onde foi retirado este conto, na ficção narrativa, demonstrando a sua multiplicidade de interesses no domínio da criação literária.


O ARTESÃO DE FOGAREIROS

O homem tinha um rosto magro. Imberbe, sempre luzidio e suado. Uma armadura dentária irregular, possuída pela nicotina de tabaco ambundu. Apresentava uma deficiência no pé esquerdo. Pisava o chão com o calcanhar.
Atraía a simpatia dos alunos que todos os dias, quando saíam da escola, à mesma hora encaravam a sua hilariante figura. O homem que passava com fogareiros. Os rapazes admiravam a sua capacidade criativa gravada naqueles objectos utilitários. Por isso, lhe chamavam kapuka numa comparação com um verme predador de cereais que construía o seu próprio casulo e se deslocava fazendo contracções em movimentos sobre a superfície das folhas.
“Olha o tio Kapuka”, apupavam os miúdos.
Quando começou a fazer aquele novo trajecto, arremessava-lhes pedras. Tudo foi mudando até que se tornou amigos deles. Acontecia às vezes o negócio não corria bem.
Lhes disparatava.
“Tio Kapuka”, dizia um garoto.
“Dos fogareiros”, respondiam os outros em coro.
E le parava. E uma algaraviada pronunciava impropérios obscenos.
“Néfè ya nyoho.Tupa lya só”.
Nas vezes que ganhava dinheiro suficiente nas suas vendas ambulantes, passava bêbado. Falava como se tivesse água na boca. Trajando calças inundadas de remendos cosidos à mão na estatura de assim– assim, como chapéu, calçado do lohakus, carregava ao ombro um avara em que pendiam o saquito do farnel a corda de amarrar os fogareiros. Fazia esse percurso várias vezes por semana, sem contar os desvios para fazer cobranças de dívidas antigas a mulheres que levavam muito tempo a pagar, ultrapassando os prazos de propósito. O artesão chegava a pensar que elas não davam importância às suas necessidades de dinheiro. Um dia foi exigir pagamento imediato a uma dona de casa que no dia da cobrança não tinha. Já iam muitos dias de adiamentos. Não hesitou em dizer que não saía do quintal, enquanto não pagasse. Ameaçou mesmo: “Se você não me pagar, vou falar no teu marido que te vi nas bananeiras do Tomba dormir com guarda da horta no troco de dois cachos de banana”. A dona de casa sentiu a ameaça como se tivesse sido violentamente penhada. Conhecia o atrevimento e ousadia do artesão. Resolveu pagar a dívida.
O Kapuka dos fogareiros, como lhe chamavam os miúdos, morava na periferia do bairro, no limite com uma damba que descia para a ravina e imediações da lixeira grande, onde eram depositados restos industriais da cidade e as águas residuais do saneamento. Os outros artesãos que vendiam na praça não duvidavam da sua vantajosa situação. Lhe invejavam só quando os clientes pediam modelos à Kapuka. Tinha à
disposição tudo, desde chapas a latas das embalagens e outros serralharias para fabricar
fogareiros de diferente qualidade.
Na sua oficina era frequentemente visitado por algumas clientes que encomendavam fogareiros para três ou quatro panelas ou ainda fogareiros especiais para as festas.
Nestes casos só podiam ser as vendedoras de sarrabulho, milho ou então bares e restaurantes que faziam grelhados. Como estas encomendas requeriam muitos artifícios, só assim recorria a materiais que tinha de adquirir nas lojas da Kamunda e nas drogarias do centro comercial da cidade. Deslocava-se por esses motivos para adquirir estanho, ácido, algumas ferramentas. O ferro de soldar quem lhe arranjava era um serralheiro da Metalúrgicas RL
E m troca fazia a entrega de um fogareiro de modelo novo.
Uma vez apareceu-lhe a fazer encomendas uma mulher chamada Kuva. Pediu  insistentemente que lhe fizesse um fogareiro de modelo novo. O mestre tinha no momento vinte e seis fogareiros para entregar na semana seguinte, tirando os que eram destinados à venda ambulante. Não podia receber mais nenhuma encomenda.
A mulher insistiu, acabando por propôr como contrapartida dormir com ele e ficar amante dele. Morar com ele, até quando não quisesse mais.
O artesão fixou demoradamente o rosto dela, a ver se lia algum sinal de seriedade. E pensava “Um fogareiro pedido por uma mulher é porque merece respeito. Um fogareiro
é sempre sinal de responsabilidade pelo fogo da família, marido e filhos. Para que servirá então, se está me falar para ser minha mulher? Uma proposta assim só desafia as minhas vontades. Mas ela é atrevida. Está a vir falar com um homem solteiro como eu, que não precisa mulher para durar muito tempo. Mulheres assim não te deixam trabalhar livremente.
Toma cuidado homem: um batuque em a pessoa que toca bonha, é porque não falta muito para rebentar no momento da dança. Pode ser como esta mulher. Não preciso ir muito longe. Aquela que tinha aqui aparecido pedindo um fogareiro grande para fazer pasteis, tinha feito a mesma coisa. Ah! Aquela tinha vindo do mato e não era de cá. Esta
aqui não! É daqui. Mas como ela quer ficar comigo, aceito. Daqui há mais uns dias certamente vou descobrir o fundo. Mas não sei me vai causar humbula e problemas como aquela outra que afinal tinha filhos grandes e me vieram dar aquela porrada”.
“Não fala assim, fachavor”, disse o artesão. Entrou para o interior da sua cabana.
Ela acompanhou, depois de combinarem o que restava. Mas continuava na dúvida se já a conhecia ou não. Lembrou-se que já lhe tinha encontrado em algum lugar. Foi nas cinzas ou num óbito mesmo em que ele não era conhecido. Atraído pelo choro das carpideiras, aproximou-se da casa. Entrou e sentou-se num dos banquinhos. Partilhava a dor com os parentes e amigos do defunto. Estava à vontade, tinham-lhes servido uma caneca duma bebida qualquer. Viu entrar uma mulher escura, que não era muito alta, exibindo sinais de uma fresca agressão No mesmo instante entraram dois rapazes do grupo que lhe tinha violado.
Notara que ela trazia o vestido empoeirado nas costas. Aquele momento lhe causou uma forte impressão de pena porque os que conheciam teceram comentários, outros lhe zombaram.
A mulher só passou três noites com o Kapuka dos fogareiros. No dia que seria o quarto, o artesão desaparecera. O corpo dele viria a ser encontrado golpeado de punhaladas, uma das quais o pescoço. O que teria motivado o assassino? Ninguém sabia. Corriam dias chuvosos. Parecia que se ia fazer um óbito anónimo. Mas apareceu um primo vindo das terras de origem. Para a curiosidade dos amigos e admiradores descreveu a biografia do artesão. Era descendente de uma numerosa família de ávidos e prósperos agricultores. Foi busca do desconhecido que o levou até à cidade litoral onde decidira morrer.” “Quanto mais aventuras nos acontecem numa terra, mais fortes são as raízes que a ela nos prendem. É por isso que ele morreu assim, talvez o assassino sabia que amando a aventura, ele não se importava com a morte. Para ele é como mais velhos dizem: o pano que é bonito passa por ti quando estás na lavra, mas se fores homem de trabalho livras-te desse pesadelo”. – Disse o primo.
Os instigadores do assassino podiam ser descobertos entre os rancorosos devedores como aquela dona de casa que se considerou penhada com a ameaça de denúncia do artesão. “Me denunciar na presença do meu marido sobre as pragas minha vida!
Isto não é só nosso azar?” Foi assim que a mulher terminara o seu lamento diante do amante, o guarda da horta, de que falara o artesão.
A maldade dessa mulher era conhecida. Não só pela sua fama de infiel mas também por causa da humbula que contraíra, cuja cura só conseguiu num cimbanda da Equimina. Outras proezas compunham o seu perfil. A dedicação aos assuntos domésticos era uma forma de mostrar que a sua laboriosidade comparava-se a outras mulheres.
Não fazia isso só assim. Raramente lhe ocorria admitir fracasso dos meios que utilizava mulheres para atingir os desígnios. Nunca ninguém lhe tinha feito ameaça semelhante.
Foi um desafio que em silêncio se transforma para si num caso de vida ou de morte.
Na noite do enterro, assistiu-se a um a luta entre duas mulheres, Kuva, a que passara as últimas três noites com artesão e essa devedora adúltera que o artesão ameaça denunciar. Com o seu instinto de maldade foi lá celebrar a sua vingança.
“Pode ser essa mulher que mandou lhe matar. Eu sei porque ele me disse que nunca mais ia fiar fogareiros nas pessoas como essa ciwaya. Essa mulher anda fazer muitas poucas vergonhas. Essa mesmo! Como é que o Kapuka lhe encontraram morto nas capilas das hortas do Cavaco, se o tal homem dela trabalha na horta? Estão ouvir? É essa mulher que mandou lhe matar”, vociferava a última amante do Kapuka dos fogareiros.
Quando os miúdos daquela escola chegaram no óbito, ninguém contava. Elas foram porque na brincadeira tinham cultivado uma profunda estima pelo artesão de fogareiros. Quem é que tinha mandado matar o amigo deles? É isso que queriam descobrir.
No mesmo dia que o corpo do Kapuka apareceu morto, um deles achou que qualquer coisa ia acontecer.
“Epá! Eu hoje estou só assim parece que vai acontecer alguma coisa. Vocês já deram conta que o mais velho Kapuka hoje não passou!”.
O uviram aquela discussão. Também pensavam que a morte do artesão tinha a cumplicidade de um cliente qualquer.

In O Noctívago e outras estórias de um benguelense,
Editorial Nzila, 2000

sábado, 4 de agosto de 2012

ANTOLOGIA DA POESIA ANGOLANA

Acaba de ser recentemente apresentada a público a obra de vulto  e muito fôlego da Professora Irene Guerra Marques e do Investigador em História Carlos Ferreira, intitulada "ENTRE A LUA, O CAOS E O SILÊNCIO: A FLOR", (630 páginas) editada pela Mayamba Editora, que muito vem ajudar o meio estudantil e académico nacional e internacional, não só pela sua abrangência, mas pelo seu manifesto pendor pedagógico, como escreve o prefaciador.


Nela estou incluido com quatro poemas do meu livro de poemas "SUMAÚMA", publicado pela União dos Escritores Angolanos, em 2004.

OPTIMISMO

Não
se procure o optimismo
no passo manco do coxo
na mão do falso pianista
no tique sem toque
na bengala do cego

Sim
no espaço mulher flor
entre dois poemas

DILEMAS COLORIDOS

Nas garras avarentas
da incerteza
e preso no olhar
dos teus sorrires
galopei o infindo
dos sonhos
recoberto das vestes
do arco-íris
coloridas por ti
de mundos medonhos

CHINGUFOS

Chingufos
na selva deserta
inchada de abutres

canibais da esperança
edificando
no zero
o terrível ser
do amanhã incerto

TEMPOS SONHADOS

Ceifa a tristesa
os tempos sonhados 
das palavras viçosas
ao apontar o rumo

Receosos
sentimos a obscuridade
perante a agressão marcial
embrenhada no ventre da chuva
que não tombou

Uniu-nos o sonho
ao vislumbrar
nos rasgos azuis do céu
o filtro da dor
da lembrança
do amor
da esperança

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS





ESPERA AÍ, EU TE CONHEÇO?!...

Há dias, ao ouvir esta frase num programa humorístico que a televisão brasileira passa aos sábados, numa “zurrada” total, veio-me à mente uma teoria expandida na década dos 60, denominada “O Fenómeno Pequeno Mundo” (Small World Phenomenon), do já falecido psicólogo Stanley Milgram.
Esta teoria, ou experiência, confirma, ainda hoje de maneira controversa, que, efectivamente, quase todos nós temos uma possibilidade muito próxima de contactarmos (conhecermos) alguém através de uma pequena cadeia de encontros ou conhecimentos sociais.
Esta questão colocou-se, quando se tentou saber, a partir de um quadro N de pessoas desconhecidas, qual seria a probabilidade que cada elemento de N vir a estar ligado a outro membro de N, através de uma cadeia de contactos.
Stanley Milgram, um psicólogo social, numa experiência patrocinada pelo prestigiado Conselho de Relações Sociais da Universidade de Harvard, conseguiu, em 1967, chegar a uma aparente resposta, ao concluir, através da experiência que conduziu, que dois cidadãos escolhidos ao acaso, teriam possibilidades de se encontrarem, em média de cada seis, através dessa cadeia de amigo a amigo. Se, por exemplo, eu disser a um amigo ou parente, que gostaria de conhecer alguém que me cace caracóis amarelos na Patagónia, as probabilidades de isso acontecer, através dessa cadeia, são teoricamente muito reais, chegando lá ao sexto contacto.
Posto isto, se eu tiver cem amigos e cada um deles tiver outros cem amigos, logo ao segundo contacto, já poderei contar com 10.000 pessoas mais ou menos próximas, na busca do meu caçador de caracóis da Patagónia. Na terceira ligação, terei 1.000.000 de pessoas que poderão, numa média de seis, interagir comigo. Sendo mais ambicioso, já que a minha mania são os caracóis amarelos da Patagónia, vou ao quarto contacto e logo as minhas oportunidades aumentam ara 100 milhões de pessoas. Não me venham dizer que não encontrarei o referido caçador e os ditos bichinhos. Se chegar ao sexto contacto, terei a casa infestada deles, amaldiçoando a minha curiosidade, e sendo eu a caçar o caçador, seja onde ele estiver.
Quer dizer que cada um de nós está, a nível mundial, unicamente a seis contactos de separação do outro, o que explica muito do que nos acontece, para bem ou para mal, na interacções que mantemos.
O fenómeno do boato, por exemplo, o tal de mujimbu press, tão efectivo para erguer ou arrasar carreiras, para movimentar círculos ou cadeias de interesses pessoais ou colectivos, muito mais danosos do que os malditos caracóis amarelos da Patagónia, será uma prova irrefutável disso.
Certamente que me irão dizer que não tenho mais nada que fazer, o país com os problemas sociais que tem e eu preocupado com teorias e abstracções. Talvez tenham razão, enquanto fico por aqui com estas cogitações... mas espera aí, eu te conheço?!...

Fragata de Morais

BATUQUE MUKONGO



12

Na varanda a bengala justiceira
do meu avô entrevado
acordava todas as manhãs
ensopada de todos os mijos
acumulados nas salinas do Ambriz
nas madeiras do Uíge na Uízi
no Congo dos belgas
encharcada dos pássaros do dia
José José sacana de miúdo
vem-me levantar vem-me mudar vem-me lavar
e eu na cama ao lado mudo e surdo
para a velhice nunca entrar nos meus dedos
nem na ponta da caneta
que de velho agora escrevo
a dor dos que não regressam
a ida eterna da minha mãe Maria
para sempre Alice
Maria mãe de Deus bela Alice
o meu umbigo enterrado no Uíge na Uízi
sempre distante do que nunca aprendi
por ser meio filho dos que vieram dos mares
mares que mandaram soberanos
antes da existência
de tsunamis a afogar
a perene linhagem materna do Kongo
sem força sem voz sem canção
para ditar o futuro
kadi tsua tsua kayimbila ko
kudi mona a mona nkayi andi (*)
todos mukongo
perdidos neste meu corpo
diluidos neste meu sangue
vivos no meu viver
sentidos no meu sentir
desde a infância embriagada
no perfume genésico da flor branca
na verde esperança dos bagos a suar
as gotas vermelhas da idade madura
para se anular no pó
negro café
da cor múltipla do Homem
a preencher o Mundo africano
ainda ténue e longe da aldeia global
pouca terra pouca terra pouca terra
no comboio sem marcha atrás
para poucos muita terra muita terra
apita fuííí… fuííí… fuííí…
comboio de feitiços
atravessando o meu Zavula
a voz irada do capataz Cardoso
recém chegado da metrópole
ainda com os cheiros do velho continente
ainda não caçara nem sabia
dos gambuzinos
a insultar o velho Efraim
capataz vitalício dos negros
pleno dos cheiros de África
África no sangue latejante da língua
que transforma
a ignorância em lagos azuis de ignomínia
insultos trovejantes de ira

 (*) Aquele que não é circuncidado não canta
      porque não viu a avó