sábado, 27 de junho de 2015
Literaturas angolana e moçambicana celebram independência
As celebrações do 25 de Junho Dia da Independência de Moçambique tiveram início terça-feira última, em Luanda, com o lançamento de três obras literárias de autores do Atlântico e doÍndico, ao som da marrabenta, na União dos Escritores Angolanos, a maior Casa das Letras do país Trata-se dos livros “Inkuna Minha Terra” e “Jindunguices,” do escritor angolano Fragata de Morais, reeditados pela Editora das Letras, e “Erotismo como linguagem na obra de José Craveirinha” do moçambicano, Luís Cezerilo, pela Editora Alcance, a quem também coube a apresentação das mesmas. A primeira obra Inkuna Minha Terra foi distinguida com uma menção honrosa do Prémio Sonangol de Literatura (UEA, 1997) e “Jindunguices”, o Prémio Literário Sagrada Esperança (INALD, 1999). Já “Erotismo como linguagem na obra de José Craveirinha”, de Luís Cezerilo, que por sinal já beneficiou de uma apresentação oficial em Maputo, junta-se agora aos festejos da proclamação da independência daquele país irmão, em Luanda. Nesta obra, o autor refere, que a literatura produzida em Moçambique já se tornou visível ao mundo contemporâneo por suas qualidades, alimentando-se no solo fértil do imaginário cultural dos seus ancestrais, assumindo uma postura revolucionária dos anos de luta contra o colonialismo, acertando contas com o colonizador, do qual adoptou antropofagicamente a língua, ou alinhando a sua história com as tendências literárias, mais significativas desde a segunda metade do século XX. Os escritores moçambicanos redefinem a sua identidade, marcada pela diferença, ao mesmo tempo que constroem uma literatura do mais elevado nível estético. Não se entenda por isso que se trate de uma literatura que esteja se afastando das suas raízes ou de lutas políticas e sociais do seu povo. Pelo contrário, trata-se de uma literatura que incorpora os elementos históricos e políticos do contexto da sua própria tessitura, transfigurando-os em factos de linguagem. As obras, que resultam desse processo constituem uma produção que define a sua contemporaneidade, paradoxalmente, à proporção que se reescreve a ancestralidade.
Estruturação
A recém – apresentada obra “Inkuna Minha Terra”, divide-se em duas partes: livro primeiro, composto por 3 estórias: Jogo de Xadrez, Amores, Desalmar; e Livro Segundo, por 6 estórias, nomeadamente:FILHOS
de Ilanda, Martinha, Amizades, O Caçador, Rumos e o Almoço. Já “Jindunguices” é composto por 6 estórias: Desencontros, Xica da Silva, Amor de Perdição, Cartas, Traição e Carnaval.
“Estória” é diferente de “história. “Estórias” nomeiam narrativas de cunho tradicional e popular. A ligação com a oralidade africana é feita através de um modo de narrar que se processa espontaneamente e que remete para a tradição oral e para as histórias contadas à volta da fogueira como em Karingana ua Karingana, de Craveirinha, Esse jeito/de contar as nossas coisas/à maneira simples das profecias/ Karingana ua Karingana/é que faz o poeta/ sentir-se gente. Como afirma Adriano Barbosa, “O conto actualiza e dá vida à mensagem ou tradição… A oralidade é pois a própria vida do conto tradicional.
Num breve pronunciamento em relação a obra, Luís Cezerilo, avançou a nossa reportagem que as apresentações, no mais das vezes, colocam-se no lugar da fala intermediária. Um discurso de outrem que, por via de regra, se institui como discurso autorizado para discorrer sobre o conjunto de escrita consubstanciada numa obra, num livro.
No que se refere à analise conteudística das mesmas, recomenda a leitura do prefaciador escritor angolano, Henrique Abranches, que tão sabiamente soube interpretar a alma do eu-lírico e a realidade social que o circunscreve. No último conto do primeiro livro, o autor, sonhando para além de toda a lógica do mundo visível – não do palpável, porque este está por todo o lado revestindo as mais bizarras formas –, conta-nos a estória inesperada mas quanto significativa do espírito de um morto e da alma fugida do vivo que o matou. É realmente inquietante e pelo menos desconcertante. Mas também é original. Um tema que dá que pensar.
Comungando com a análise e visão de Henriques Abranches, Luís Cezerilo disse repousar de entre muitos contos no dilema que as mulheres de Inkuna enfrentavam, ali trazidas pelas personagens Xadinha e Milocas.
O escritor admite que a obra literária de Fragata de Morais discute predominantemente as questões fundamentais que determinam a condição histórica, social e política do homem angolano, na qual apenas descreve os seus personagens de forma coerente ao mundo em que vivem, fazendo com que o seu discurso ficcional perpasse a fronteira entre estética e ideologia.
Comunga escrita e oralidade na criação de um território linguístico que aponta para a resistência. Há vários registos dentro de um registo. Há história única como matriz da narrativa. Há várias estórias dentro da história.
Esse viés temático leva-nos para um outro eixo teórico: cruzamentos entre Literatura e História. O apelo à história encontra sentido porque os factos literários, em sendo da ordem do humano, não acontecem no vazio, eles reflectem e são reflexo de dada conjuntura social.
Desse modo, Luís Cezerilo realça que as relações sociais são conteúdos significativos, atribuídos por aqueles que agem, tomando outro ou outros como referência: fidelidade, conflito, piedade, e muito mais. Entretanto, essas visões de mundo seriam decorrentes das condutas de um sujeito (escritor) e de outros (públicos) orientados por algum tipo de sentido comum entre eles.
“Equivale afirmar que osVERDADEIROS
motivadores da criação literária são os grupos sociais, e não os indivíduos isolados. O criador individual (o escritor) faz parte desse grupo, dada a sua origem ou posição social, sempre norteado pela significação objectiva de sua obra perante o contexto socio-histórico a que pertence. É nessa relação que se constitui o conteúdo da obra literária, ela situa-se não somente na criatividade do eu-lírico individual, mas também dentro das experiências do grupo social, numa influência recíproca entre esses dois actores sociais, disse. Dessa forma, o escritor sublinha, que nestes contos de Inkuna: Minha Terra e Jindunguices, parece-lhe ser clara a relação entre literatura e história, principalmente com a História de Angola, em que Fragata de Morais quer resgatar a história num momento crucial, o período pós-independência, para retirar daí, como estratégia contra o esquecimento, o sublime ou o horror.
Entende, que a obra de Fragata Morais, pensar Angola e as suas transformações históricas significa pensar o homem, as suas ideias, a sociedade politicamente constituída, a possibilidade de transformações das realidades sociais.
Admite que as presentações, no mais das vezes, colocam-se no lugar da fala intermediária. Um discurso de outrem que, via de regra, se institui como discurso autorizado para discorrer sobre um conjunto de escrita consubstanciada numa obra, num livro. Para além do óbvio que esta afirmação revela, devemo-nos ater ao cuidado que ela exige.
A título de exemplo, refere-se Roland Barthes, que já chamaria a atenção de as apresentações se revestirem de uma intenção ética e moral: na impossibilidade de se apresentar por si mesmo, o escritor é interditado deste momento de sumária apresentação sobre os seus feitos. Ele, convenientemente, se silencia, e se abre assim à interpretação. Se tal afirmação nos é permitida, teremos que admitir que se trata de um desafio arriscado, porém necessário.
Socorrendo-se ainda de Roland Barthes, em o Rumor da Língua refere que a linguagem literária excede sempre qualquer esquema descritivo, escapando sempre às malhas grosseiras de metalinguagem técnica.
“Neste breve momento de estar nas obras Inkuna: Minha Terra e Jindunguices, de Fragata Morais, tomamos Penélope e a Aranha como metáforas – desgastadas e vigorosamente vivas – da constituição da sociedade angolana como um grande texto.
A metáfora neste sentido encontra-se num sintagma em que aparece contraditoriamente a identidade de dois significantes e a não identidade de dois significados correspondentes ou na transferência analógica de denominações, segundo Émile Benveniste (1995)”
Reparo
O escritor reconhece que o significado do texto literário não está marcado dentro do texto, mas sim no facto de libertar o que está dentro de nós. Cada conto novo constitui seu próprio leitor, definindo a reciprocidade existente entre o significado constituído, dado pelo autor e sua consciência no processo da leitura.
Nesta perspectiva, o valor e o entendimento do texto literário dão-se pelo conhecimento do contexto em que está inserido e ainda mais pelo depreender de elementos contidos no contexto de vida do leitor. As palavras no entanto, têm esse condão de retratar como só unicamente elas, a alma irretratável, de outra maneira, de quem as escreve e profere. Aquela parte dos homens a que chamamos espírito e, assim, os seus estados.
“Fragata de Morais é um homem de seu tempo, representando-o sob diversos modos. Em sua obra, misturam-se e separam-se, num jogo concomitante, o sujeito e o narrador. O filósofo Giorgio Agamben, em Profanações (2007), retoma a discussão sobre o par função-autor e autor, estabelecido por Foucault. Agamben lembra-nos que, para Foucault, a marca do escritor “residia na singularidade de sua ausência, aguardando-lhe, no jogo escriturário, o papel de morto”.
Ponto de vista
Sob esse ponto de vista, Luís Cezerilo considera que em Fragata Morais a função-autor é exercida plenamente, pois caracteriza “o modo de existência, de circulação e funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade”. (Agamben 2007: 56).
O também psicólogo e poeta refere que a história de vida de Manuel Augusto Fragata de Morais, passou a confundir-se não só com a luta pela independência de Angola como com a história da cultura em seu país. Em1996, o autor foi homenageado com o Prémio SONANGOL em Literatura, como resultado do seu contributo na consecução do projecto de nacionalização e da literatura angolana.
Para Luís Cezerilo, a Literatura angolana assume a sua responsabilidade nacionalista de construir o mundo no qual se insira a Nação bem como a sua identidade que procuram transmitir aos seus leitores.
“Nestas obras, as estórias que se seguem nos livros, Inkuna: Minha Terra e Jindunguices, são tecidos das cordas subtis da realidade concreta e presente, da geografia de Angola, das viagens e porque não das aventuras, que aos poucos vão enlaçando o tear da própria subjectividade narrativa”.
Já no que se refere à sua obra “Erotismo como linguagem na obra de José Craveirinha” referiu que teve vários cruzamentos. “ Por Exemplo, se nós encontramos no “Inkuna: Minha Terra”, de Fragata de Morais, em Pepetela ou em Lopito Feijó, extactamente tem a mesma dimensão. “O Atlântico e o índico cruzam-se num denominador comum”.
Satisfação do escritor
“Tive a honra e o prazer de ter estado com o Presidente Agostinho Neto na independência de Moçambique depois de termos saído Nankuro, em que o Presidente Julio Keniata tentou que os angolanos desavindos encontrassem uma via de chegar à independência de uma maneira que permitisse o país raucanda que teria tido outros contornos e que não seria ideal por razões diversas por três décadas. Fragata recorda com alguma nostalgia o arrear de uma bandeira colonial e o hastear de uma nova bandeira de uma pátria livre, respeitada e independente, abençoada com uma enorme carga de chuva. “Foi para mim uma honra e glória ter estado nessa cerimónia. Foi a minha primeira independência africana”, argumentou. Por sua vez, Carmo Neto, secretário-geral da União dos Escritores Angolanos, ao intervir no acto, considerou a literatura um incomuncerável depósito de conhecimento, memória e experiências que a humanidade jamais produziu ou irá produzir.
Uma fonte privilegiada para se fazer buscar o conhecimento e experiências com vista a construir o trono de implicações das formas imagéticas que refletem simbolicamente a realidade das sociedades. Recordou que, em quase 40 anos de idade da UEA, pode afirmar-se que é substantiva a sua contribuição na construção do bem e na destruição da barreira contemporânea que todos nos procuramos combater por meio da literatura ou enterrá-la quando necessária.
sexta-feira, 15 de maio de 2015
ESTÓRIAS PARA BEM OUVIR
LANCEI ONTEM O MEU ÚLTIMO REBENTO, EDITADO PELA LYEA / TEXTO EDITORES, PERANTE UM PÚBLICO NUMEROSO, INTITULADO ESTÓRIAS PARA BEM OUVIR.
SEGUEM AS PALAVRAS DE APRESENTAÇÃO DA OBRA,
PELO PROFESSOR ANTÓNIO FONSECA:
Permitam-me antes de mais dizer-vos que, apesar da minha
habitual dificuldade em exprimir, teorizar pontos de vista em torno do texto
literário, constitui para mim uma honra estar aqui presente para apresentar-vos
o livro “ ESTÓRIAS PARA BEM OUVIR”, do confrade e amigo Fragata de Morais, já
que o mesmo, sendo uma nova criação, projecta para a contemporaneidade
elementos essenciais de culturas matriciais angolanas, aquelas que em larga
medida constituem-se como elementos fundamentais que dão corpo e sentido à
angolanidade, matérias que são para nós sempre gratificantes abordar.
O presente livro de
Fragata de Morais, “ ESTÓRIAS PARA BEM OUVIR”, constituindo-se como novos
textos, novas criações literárias, partindo das literaturas tradicionais do
universo que se expressa nas línguas kimbundo e umbundo, vem dar corpo à ideia
já expressa por Henrique Guerra, quando afirmava em Três Histórias Populares: “
A reinvenção da tradição literária dos povos africanos de Angola – ORATURA – é
sem dúvida um dos vectores de desenvolvimento da moderna literatura angolense,
em busca constante de uma identificação e personalidade cultural. (…)
Põe-se amiúde a hipótese de a Literatura Tradicional poder
ser aproveitada para a criação de uma Literatura Infantil Angolense. (…)
É uma
literatura de tipo pragmático, visando incutir nos sus consumidores um estado
de predisposição que os leve a encontrar respostas de actuação prática contra
as agressões do meio físico e social que as envolve.
Finalidade conseguida sem recorrência a um tom didáctico
formal, em jeito de diversão; eis um elemento aproveitável para a literatura
infantil, o de ensinar recreando, o de moldar espíritos através da actividade
lúdica; e ainda outro aspecto, a superação do real através do mítico, num jogo
que a criança entende e aceita.”Porém, acrescentamos nós, tratando-se de textos
destinados a um público- auditório indiferenciado, pois qualquer um de nós,
nestes textos poderá encontrar respostas para os problemas de que as sociedades
contemporâneos, e a nossa em particular padece.
A propósito desta temática, importa dizer que temos para
nós que os textos orais possuem frequentemente um elevado valor estético e que
por eles se perpetua toda a vida das comunidades em que se desenvolvem; que as
verdades que contêm, os comportamentos que condenam e as condutas que propõem,
frequentemente possuem um carácter universal e que por eles se procede a toda
uma formação intelectual e se desenvolve o raciocínio lógico e o espírito
crítico e ainda que apresentando-se privilegiadamente tais textos em espaços
colectivos como os jangos, em círculos da vida social e comunitária
portanto, constituem-se como elementos importantes da socialização do indivíduo
e como factores que favorecem a coesão social. Por outro lado, temos para nós
que, apresentando-se a literatura oral nas línguas nacionais ou na língua
portuguesa, com as suas naturais interferências, constitui um elemento
particular de identidade cultural, de preservação das línguas nacionais e de
enriquecimento do universo simbólico e do imaginário da língua portuguesa.
Temos por isso que, numa altura em que, como dizíamos, se
busca o resgate dos valores morais e cívicos, a recuperação de textos da
literatura oral para a escrita, tal como o Fragata nos propõe através desta
obra, seria um caminho a seguir. Aliás, grandes referências da literatura
mundial a esse percurso não foram alheios e, a literatura infantil em
particular, encontrou na literatura oral a fonte daquelas que são as
referências mundiais neste domínio, como é o caso da obra de Hans Cristian
Anderson. Aliás, importaria a propósito acrescentar que, tal como disse Arlindo
Barbeitos a propósito, “ a realidade é que as formas referidas encerram muitas
vezes vários dos géneros que a literatura escrita contém”. Porém, se é
justamente esse um dos argumentos de valor aqui trazidos pelo nosso autor à
obra, ele, Fragata de Morais, ultrapassa "a versão oral inicial que o
hábito ou o mestre consagraram” dando novo brilho e luz às palavras, ao mesmo
tempo que enquanto recupera as mensagens para os dias de hoje, ultrapassa pela
prosa-poética estilos e formas anteriores algumas experimentadas nos anos
oitenta entre nós.
Importa dizer que, quanto a nós, esses anos constituem o
período áureo da literatura infantil angolana que foi marcado pela recuperação
e recriação de textos tradicionais, processo que apresentando nos nosso dias um
tendência minguante, é aqui rompido eloquentemente, com leveza e mestria pelo
Fragata de Morais que, nesta obra de grafismo e, ou, ilustração matizada por
elementos próprios da nossa cultura, e que assim vem dar corpo ao que se
expressa na Politica Angolana do Livro e da Leitura, nomeadamente desenvolver
linhas editoriais que culturalmente correspondam à nossa cultura e ao nosso
imaginário. Como dizia, o autor Fragata de Morais ao recuperar para o livro
presente os nossos próprios objectos que proporcionam maravilhas, como o
kalubungu, do kimbundu, os nossos próprios seres e entes mitológicos, como o
ekixikixi por exemplo, vem romper com a persistência na literatura de coisas
que nos são alheios como sejam os elementos comuníssimos no lendário europeu
como sejam a varinha de condão, os cavaleiros andantes, as fadas fascinantes e
boas e por aí adiante, teimosamente entre nós usadas por alguns autores.
Para lá do que foi
dito, acrescento que “Estórias para bem Ouvir”, começando pelo título, reitera
a necessidade de bem ouvir as normas de conduta consideradas virtudes e as
práticas condenadas como defeitos, o que sem dúvida, é um dos “ problemas que estamos com eles”, e
para cuja solução, se literariamente faladas e melhor ouvidas, poderá este
livro ser uma fonte de inspiração para o trabalho futuro. Quaisquer um dos
contos quer integram este livro do Fragata de Morais, “João Grande e João
Pequeno, o Elefante e a Rã, a Menina Preguiçosa, o Pássaro Malvado, o Azar, o
Leão e o Lobo” que percorreram o tempo, aqui numa narrativa-poética, simples e
bela, perpassados por elementos culturais das comunidades de que emergiram as
formas orais iniciais dos textos em que o autor se baseou para a sua hábil
escrita, de ensinar sem forçar, numa acessível a todos os ouvidos e a todas as
mentes, em nosso entender, ao terem sido escritas como o foram para esta obra,
ganharam um lugar garantido na história da Literatura e, em particular, na
história da literatura infantil angolana.
Finalmente, devo dizer que mau grado a discussão que a
forma de grafar um ou outro termo originário das línguas nacionais usado poderá
suscitar, remetendo-nos uma vez mais
para a maka do acordo ortográfico, maka com k é claro, matéria em que kotas e
kandengues, sem fundamentalismos chegaremos a um entendimento, kota com k, é
claro, porque com c, aqui ainda significa apenas “nível de terreno”, não
obstante isso, em nada, em absolutamente nada a obra sai prejudicada, porquanto
a linguagem coloquial, o percurso que nos leva a percorrer a alma popular de
que se alimenta o nosso imaginário, o tempo de ontem e de hoje, num jogo lúdico
entre tema-espaço e gente, tendo como recurso uma narrativa-poética das palavras,
assim justamente o impõe.
Por isso, resta-me apenas dizer bem haja ao Fragata de
Morais e desejar que editorialmente esta obra seja um grande sucesso…..
António Fonseca
sábado, 14 de março de 2015
MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS
O MUNDIAL
Decorridas várias semanas do
término do Mundial 94, quiçá se possa referir ao evento com um pouco menos de
subjectivismo e com maior probidade.
Não será intenção descrever os
feitos da grande equipe brasileira e da sua mais do que merecida vitória, muito
menos das técnicas e tácticas desenvolvidas e usadas nos campos pelo
diabo-virado-santo Parreira.
É mister sim, e sem pitada de
ironia, alertar desde já para as técnicas, e sobretudo tácticas, que poderão
vir a ser impostas aos jogadores no campo do amor, no período dos mundiais.
Esperemos cheios de alento que seja unicamente nos mundiais, porque se a moda
esdrúxula passar para os campeonatos nacionais, Deus nos ajude, estará tudo
perdido.
Num estudo elaborado e conduzido
por dois pesquisadores israelitas, em cerca de quarenta jogadores de futebol
daquele país, chegaram-se a indesmentíveis conclusões, que certamente não serão
do agrado de todos, já que ao partir-se do princípio que todos os jogadores
podem, ver-se-á que uns poderão mais do que outros, segundo a relevância física
do posto. Consagra-se assim a máxima por nós bem conhecida, a cada qual segundo
o seu esforço e trabalho.
Concomitantemente, a D. Maria,
esposa amantíssima do guarda-redes Fulano de Tal, poderá ser agraciada com os
favores e calores do extremoso marido até três dias antes do tira-teimas. Se o
dito cujo for tão bom a furar a baliza lá em casa quanto é a guardá-la nos
relvados, ter-se-á um momento nublado para a infeliz consorte, por três dias
que sejam.
Todavia, se a D. Maria for esposa
do avançado Sicrano de Tal, porque o desalmado exaure todas as energias
correndo de um lado para o outro para meter o afamado golo, a coitada não
poderá ver, na alcova, seu marido a avançar e meter o que todos sabemos que
mete, oito dias antes da partida.
Que me perdoem os pesquisadores,
eles próprios talvez maridos competentes, isto não é partida que se pregue a
ninguém.
É evidente, que as esposas dos
defesas são metidas a meio caminho, neste pesquisa, e lá em casa, devendo a
abstinência sexo-desportiva decorrer a partir de cinco dias antes do páreo.
Por aí se poderá imaginar o
sofrimento do futuro campeão mundial que, ao fazer todas as partidas, passará
no mínimo um jejum espartano de mês e meio, isso não contando que o regime seja
aplicado durante o período de preparação.
Não nos admiremos pois, se os
treinadores desejarem levar a rigor os valores científicos das pesquisas, para
benefício do desempenho da equipe que se venham a verificar violentas
manifestações púb(l)ícas das esposas dos jogadores, com as dos avançados a
liderar, unidas para jamais serem vencidas.
E para que elas se vinguem,
sobretudo as consortes dos futebolistas do Petro Atlético de Luanda, aos quais
é exigido muito mais que um tetra, com o resultante desgaste do arcaboiço e
afins, é dever patriótico tornar público o nome e local de trabalho destes
briosos e talvez inditosos pesquisadores.
Mas meditai
antes, ó abnegadas damas, porque uma viagem a Israel é algo oneroso. O pecúlio
hoje é escasso, não mais se viaja por duas grades de cerveja. Ser-vos-á mais
fácil e prático permitir que os vossos maridos impunes furem o boicote, até
porque o treinador não estará de vigília todas as noites e em todas as alcovas.
Quanto aos malandros, os senhores
Alexander Olshanytsky e Mordechai Halperin, pesquisadores no Centro de
Jerusalém para a Impotência e Infertilidade, não se encontrando ainda
satisfeitos com os possíveis danos que venham a causar, desejam ir mais além e
prometem pesquisa feroz nos restantes domínios do desporto.
Felizmente só jogo à sueca!
04/08/94
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA
JOFRE ROCHA
Nasceu em Cachimane, Icolo e
Bengo, em 1941. Para além de poesia e prosa diversa, escreveu também Estórias do Musseque, um conjunto de
contos que retratam a vida do povo angolano, de onde foi retirado o extracto
que aqui faz testemunho, um manifesto da luta desse povo pela liberdade.
Destacado nacionalista e militante anti-colonista, após a Independência veio a
ocupar vários cargos, destacando-se entre eles os de Vice-Ministro das Relações
Exteriores, Ministro do Comércio Externo e de Presidente da Assembleia
Nacional.
DE COMO NGA PALASSA
DIÁ MBAXI, KITANDEIREA DO XÁ-MAVU E DEVOTA CONHECIDA DESDE SANTA’ANA ATÉ À
SENHORA DA MUXIMA, RENEGOU TODOS SEUS SANTOS E ORAÇÕES
A notícia correu muito depressa,
como aquele vento maluco que desde a ponta da Ilha sobe até a Lixeira, varre
todo o musseque até o fundo da Calemba e da Maianga, pra ir morrer lá longe nos
confins da Samba.
Foi assim mesmo, como um vento assanhado
que trazia atrapalhação nas nuvens carregadas de chuva, que o caso começou
naquele dia tão triste como esquina da Mutamba sem gente. Porque a raiva desse
vento é que foi sacudir as vigas de ferro, fez voar os luandos e os zincos e,
com um barulho muito grande, deixou cair a antiga kitanda do Xá-Mavu.
As kitandeiras ficaram sem o
negócio, sem o dinheiro, muitas mesmo sem a vida.
Naquele dia, rios de sangue
correram no meio do peixe, dos kiabos, da takula, dos jipepe e jisobongo, os
gritos não calaram na boca dos feridos. Foi desgraça grande e o povo que se
juntou a chorar os amigos e os parentes não parava de crescer, com gente a
chegar de todos os bairros onde a notícia tinha saído como raio, levada de boca
em boca.
Essa desgraça entrou em muitas casas
do musseque onde os filhos a chorar se cansaram de esperar a mãe que tinha ido
comprar peixe e nunca mais havia meio de aparecer. O luto cobriu as cabeças de
monandengues e bessanganas, as caras fecharam-se mais com a desgraça que
ninguém contava que ia acontecer naquela tarde. Mesmo assim, foi ainda um
bocado de sorte porque o chuvisco que caiu antes da ventania fez enxotar muitas
pessoas que nessa hora queriam também ir nas compras sem saber que era mesmo a
sorte delas que estava lhes afastar desse lugar.
Nga Palassa diá Mbaxi andava já
há muitas semanas com aquelas coisas na cabeça. Ela andava mesmo assustada
porque estava adivinhar qualquer coisa de mau que ia passar. Todos santos,
desde a Sant’Ana até a Senhora da Muxima, lhe conheciam como devota, como
mulher pobre mas de palavra. Todos os kazumbis lhe ajudavam, toda a gente sabia
bem. Por isso é que todas pessoas lhe davam respeito, ninguém queria ficar na
boca zangada de Nga Palassa porque ninguém podia escapar das pragas dela. E
ela, quitandeira antiga, sabia bem os casos que tinham passado com o falecido
Rebocho antes de construir a kitanda do Xá-Mavu e, se os santos dela tinham lhe
trazido uma febre grande pra não ir na kitanda nesse dia de azar, outras
pessoas, coitadas, não tiveram essa sorte, morreram lá. Nga Lelesa diá Xiku,
nga Fefa diá Lumingu, Marquinha e muitas mais, até a ranhosa da velha Tonha,
ficaram nessa vingança do Rebocho.
Esse nome de Xá-Mavu, mesmo que
muitas pessoas contam outras estórias, Palassa sabe bem onde é que saiu: naquele
tempo da rusga geral quando os homens com corda na mbunda eram levados para o
posto do Chefe «Poeira», é nesse tempo que o nome nasceu porque, toda a gente
dizia, onde a carrinha do chefe passava só deixava lá barro. E era verdade
mesmo porque a carrinha passava nos becos mais apertados, no meio dos quintais,
das cubatas, partia paredes de pau-a-pique e só ficavam os monandegues, os
velhos e o barro, porque os homens e os muzangalas, esses iam na corda. Quando
aparecia a carrinha «Internacional» não podia haver sossego, toda a gente já
sabia. Os apitos dos cipaios tiravam os monandengues do sono com susto nos
olhos e a aflição das mulheres não podia parar, todo o dia a pensar se o homem
tinham lhe deixado passar no caminho até no serviço.
Nga Palassa, kitandeira
respeitada em todo musseque, era pessoa antiga nessa vida de pôr negócio. Vida
dela noutro tempo era ir todas semanas na Funda e Calumbo comprar kakussos e
bagres para vender em Luanda. Não era só ela, muitas quitandeiras iam lá pôr
negócio de peixe fresco, que naquelas lagoas era muito.
Também essa sorte de mão de não
morrer cedo, era de muito tempo já. Porque uma vez, na viagem de ir na Funda, o
comboio descarrilou e muitas pessoas ficaram mal. Palassa diá Mbaxi, kilumba
nova ainda, nem só desmaio se teve. Aiué, bons tempos aqueles… Nos panos
pintados, com as missangas nos braços e nas pernas, bonita de verdade, hum...
Deixa! Palassa era tentação de muitos homens naquele tempo.
A lista dos pretendentes era
grande, tão grande que ela hoje não pode mais lembrar todos nomes. Lembra ainda
o Adão Tavares, bom amanuense naquele tempo - funcionário de verdade que queria lhe montar casa e tudo. Também o Xico
Afonso, tipógrafo da Imprensa Nacional, de boas famílias, o que lhe estragava
era só o vinho. Havia ainda João Catita, bom farrista e amigo de todas
mulheres, animador número um dos «Maravilhosos», grupo de Carnaval que deu que
fazer e... quem mas? Ah! O velho Kuriata, esse velho Kuriata com idade pra ser
pai dela e que perdeu a cabeça quando lhe viu a primeira vez na lagoa da
Kilunda. Coitado velho, todo peixe que ofereceu na kilumba Palassa não serviu
pra nada.
Mas quem perdeu a cabeça de
verdade foi sô Teixeira o comerciante de Calumbo que por ela deu peças de pano,
missangas bonitas, tudo pra ganhar o coração de Palassa bonita. E ganhou mesmo
com a sorte dele, o amiganço passou em Calumbo com os parentes todos de Luanda,
os garrafões de vinho ninguém podia contar.
A vida é assim, dá muitas voltas,
na cabeça da pessoa até fica lá aquele munhungo que dá na gente medo de cair. A
vida dá muita volta, sim os monandengues viram muzangalas, os muzangalas viram
homens fortes, os homens perdem as forças e viram velhos de cabeças brancas e
boca sem dentes. E como esses monandengues esses muzangalas e homens que perdem
a força com a idade, assim também a kilumba bonita de panos pintados, missangas
nos braços e nas pernas, virou a bessangana Palassa diá Mbaxi, kitandeira
afamada do Xá-Mavu, devota conhecida que tinha acendido velas em todos altares
desde a Senhora da Muxima, Sant’Ana e Santo António de Kifangondo. Sim, Palassa
era devota de verdade, mas isso foi noutro tempo, quando não tinham passado
ainda na vida dela os casos que vou contar.
Ainda hoje Palassa guarda nos
ouvidos os sons da festa que o comerciante de Calumbo deu quando Filomena fez
dezasseis anos. Foi festa rija, com música, muita comida, muita bebida, porque
Mena, era a filha bonita do sô Teixeira com a kitandeira do Xá-Mavu, Palassa
diá Mabaxi.
Mas os anos passaram, levaram
todos os sons da festa e fizeram também virar o coração de muitas pessoas. A
loja pequena de Calumbo cresceu tanto, tanto, que nasceu dois armazéns grandes
em Luanda. Comerciante grande agora, sô Teixeira virou negociante na Baixa de
Luanda e a kitandeira de panos bonitos não lhe lembrou mais, casou com patrícia
dele que mandou buscar lá na terra.
E os anos passaram, os sons de festa acabaram
e o comerciante grande de Luanda esqueceu a kitandeira bonita que ia pôr
negócio de cacussos nas lagoas de Kabemba e Kilunda. Mena, a menina bonita que
era toda vida de Nga Palassa, hoje não corre mais como os pés descalços na
areia do musseque, só anda nos carros do pai, a entrar e a sair nas lojas mais
caras da Baixa, a ir no cinema e nas boates com amigos e amigas bonitas como ela.
As anos passaram muitas coisas
viram e na vida da Mena entraram casos que fizeram cair tudo à volta da mulata
bonita.
Os dias eram muito curtos para vida dela e foi
uma noite num bar de luxo que conheceu o homem. Engenheiro chegado há pouco da
Universidade, disseram-lhe depois.
E esse homem, que sabia falar palavras
bonitas, entrou na vida da Mena, pouco a pouco tomou conta do coração da menina
bonita de Nga Palassa. O tempo foi andando, os dias ficaram ainda mais curtos,
as noites também, até que um dia o sonho acabou. O engenheiro afinal não era
engenheiro, tinha feito desfalque na casa onde trabalhava, a justiça estava à
espera.
À espera ficou também Mena, à
espera dum filho que daí a meses devia nascer. Quem não esperou mesmo nada foi
o pai Teixeira, que não quis mais nem ver a filha, quando soube do caso. Os
vestidos mais caros, a casa cheia de tapetes, os carros de luxo, tudo acabou
pra Mena. Ela chorou muito, durante dias e dias as lágrimas não param nos olhos
bonitos da mulata Mena.
E Nga Palassa, a quitandeira
antiga a de kakussos e bagres, foi quem chamou a filha, a sua menina bonita
crescida na Baixa, que.já não sabia andar com sapatos na areia do mussueque.
Voltou a embalar sua menina nascida no mato de Calumbo, ali no burburinho e o
barulho dos monandengues.
E foi ali mesmo no coração do
museque, no meio de todos os cheiros e barulhos da vida, que o neto de Palassa
diá Mbaxi veio ao mundo, menino gorducho de olhos grandes e cara redonda. Mas
não trouxe alegria aquele neto bonito, trouxe o luto na casa de Palassa: Mena,
a sua Mena bonita nascida no mato de Calumbo, morreu pouco depois de ter dado à
luz. Morreu ao cair duma noite de cacimbo, longe das belezas da cidade Baixa,
longe dos amigos e da música das boates. Morreu no fim de dum dia triste com o
sol cansada a mergulhar lá longe, no meio dos últimos gritos das kitandeiras e
dos barulhos da vida do musseque.
Palassa diá Mbaxi chorou sua
tristeza, perdeu o gosto da vida e os cabelos brancos começaram a pôr cinza na
kindumba bem tratada da bessangana bonita dos outros tempos. Passaram cacimbos
e chuvas, árvores mudaram as folhas, luas chamaram outras luas mais novas e
Palassa diá Mbaxi não esqueceu a sua menina morta ao trazer uma vida ao mundo.
A dor cavou rugas na cara, deixou luto no coração, cobriu a cabeça dela com a
cor sem vida da cinza. De sô Teixeira, aquele comerciante de Calumbo que por ela tinha dado peças de pano, missangas
bonitas e uma festa grande que durante tempos e tempos tinha ficado na boca de muita gente, nunca ouviu falar mais.
E Rui Filomeno, neto da
kitandeira Palassa e do comerciante Teixeira que ele nunca conheceu, cresceuno
meio das alegrias e tristezas da vida do musseque. Ali aprendeu de tudo sobre a
miséria dos homens, ali apareceu a conhecer o Mundo, ali aprendeu a amar a
vida. Foi muito tempo depois, Rui Filomeno já tinha tirado a 4ª classe e andava
já no Colégio das Beiras graças aos negócios da avó, quando os casos passaram.
Desde esse dia Palassa diá Mbaxi, devota conhecida e respeitada que toda a gente
pegava medo de ficar nas pragas que saíam na boca dela, desde esse dia não quis
mais saber de todas seus santos e orações.
Nesse tempo, Rui era já muzangala
forte, faltava poucos anos ia mesmo entrar na tropa. E a festa da Ilha nesse
ano foi festa de verdade, no musseque quase não ficou ninguém. Todos foram
apaziguar os deuses, pra ver a se a raia do mar não acabava de engolir a terra
da ilha, pra ver se as sereias não caçavam mais os pescadores na vida deles de
todos os dias no meio do mar. Toda a gente foi pedir pela sorte dos pescadores,
pela vida dos marinheiros, pela vida de todos axiluandas. Desde Sambizanga até
o Bairro Cazenga até o Marçal, toda a malta do musseque invadiu a ilha, pronta
para a festa. E, desde a Ponta até o Lélo, todos percorreram a ilha a cantar e
a dançar. Os machimbombos desciam cheios de gente contente, outros iam mesmo a
pé, já com o ritmo da festa nos olhos e o gosto da alegria no coração. Rui e
sua malta andavam preparados há muito tempo, as violas e as puítas estavam afinadas,
ninguém podia faltar. Ele então que já andava de olho na Quicas, a garinha mais
bangona do bairro, não podia deixar passar a oportunidade. Tinha de ficar mesmo
tudo resolvido ali no dia da festa, sem falta.
A alegria durou o dia inteiro, os
sons da música chegaram muito longe levados na voz do vento que trocava sembas
com as folhas docoqueiros. Festa mais animada do que aquela, ninguém do
musseque tinha visto ainda, não senhor. Chegou a noite, as farras rebentaram
cheias de animação. E toda a gente farrou a noite inteira, as violas rebentaram
as cordas, as vozes ficaram roucas de tento cantar.
A malta do Rui nem lembrou mais
voltar no musseque, a ilha tinha um feitiço forte que não lhes deixava
abandonara a festa no meio, assim tão boa a como estava.
De manhã, os corpos cansados
dormiam na areia da praia, com a música doce das ondas nos ouvidos a tornar o
sono mais bom. Depois foi o acordar do novo dia, dia mais bonito, saborear com
muito apetite o muzongué de peixe grosso e mergulhar mais uma vez no espelho
das águas onde o céu aparecia sem nuvens. A festa já quase terminada, nos olhos
ainda com restos de sono começava aparecer uma saudade da noite que tinha
passado.
Foi já nesse dia seguinte que a
desgraça veio, quase tão de repente que deixou todos bouamados. Toda a gente
ficou com uma pergunta na boca, porque tinha acontecido aquilo depois de uma
festa tão animada, tão cheia de via. Kalunga não tinha ficado satisfeito?
Estava um sol preguiçoso nem
quente nem frio, no mar nem eram altas as ondas e a malta, com um assobio de
satisfação nos lábios, preparava-se pra voltar na vida de todos os dias no
musseque. Nessa hora, Rui Filomeno, no meio da água, sentiu uma dor na perna e
não conseguiu mais nadar. Deu ainda um grito nos amigos pouco distantes mas atrapalhação
que lhe veio nessa hora não lhe deixou nem boiar, os braços os olhos muito
abertos queriam segurar a vida que Kalunga tinha vontade de lhe roubar. E,
quando Rui Filomeno desapareceu pra sempre no fundo do mar onde lhe chamavam as
vozes das sereias em festa, viu ainda na praia o vulto da Quicas, a moça que
naquela festa tinha lhe jurado ser o seu amor por toda a vida.
Um chuvisco miudinho começou a
cair nessa hora, devagarinho, e a canção do vento nos coqueiros era só um choro
baixinho, mas
, o que corria nas caras dos
amigos sem forças e sem vontade pra nada ali na areia da praia, eram mesmo
lágrimas de tristeza, lágrimas quentes de verdade.
Ninguém abriu a boca no caminho
pra o musseque e os amigos, com os olhos vermelhos de tanto chorar, mal tiveram
coragem de levar a roupa de neto e dar aquela notícia de desgraça na avó
Palassa.
Palassa diá Mbaxi levantou os
braços e os olhos no céu e um grito de dor fugiu-lhe do peito ferido. A
tristeza não lhe deixou nada as lágrimas que lhe rebentarem nos olhos correram
por toda a parte, foram misturar-se com as águas do.Bengo e do Kuanza e
contaram a desgraça daquele dia até nas sanzalas mais distantes,
onde os monandengues ouviram de olhos muito abertos os casos que tinham feito Palassa diá Mbaxi,
kitandeira afamada do. Xá-Mavu e devota conhecia que tinha acendido velas na
Senhora da Muxima, porto Kipiri e Santo António de Kifangondo, renegar até o
fim da vida todos seus santos e orações.
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LIVRO PUBLICADO PELA EDITORA NZILA
BATUQUE MUKONGO (extracto)
Chegada a hora parti
do verde Cazengo
subi os morros do futuro
já longe do meu quarto onde as
manhãs
suplicavam nos dentes do meu avô
e reconstruiam o viveiro dos
pássaros
as casas toscas dos macacos
o cantarolar de minha mãe
sobrepondo-se ao longínquo ruido
das máquinas do café junto ao
secador
onde os meus pés
eram repasto das matacanhas
almoço dos mauindo
jantar das ovitakaia
naquela doce dor do coça-coça
que só acabava com o perfurar do saco
pela agulha mestra na mão de
minha mãe
da lavadeira
ou qualquer outra mais velha
que me xingava
com longos muxoxos
a cheirar a tabaco
filho do branco com matacanh’ééé
não tem vergonha não tem
vergonh’ééé
o mona yá mundele
não tem matacanha uevu
não podia ser africano
africano branco não existia
muito menos branco africano
branco africano não existia
pouca terra pouca terra
pouca terra
para uma longa guerra fera
sentiam que branco africano
era de pouca sobra
era filho da cobra
sem espaço nessa obra
mas estes tinham um braço negro
e pouca terra pouca terra
não mais foi quimera
desceram o rio
subiram a serra
sentiram frio
conheceram o medo
aprenderam feitiços
conheceram chirangas
envolveram-se de missangas
e artes de fechar o corpo
para nunca ser morto
pelos poros abertos
penetrou na mente
a frescura da nova semente
a nova África na forja
mão negra na mão branca
no coração de Angola
na luta pela mesma mãe
feita de terra vermelha
de onde saía trémulo o salalé
logo jinguna
de onde caiam das árvores
as larvas aleitadas
em katatu transformadas
tudo eles beberam
tudo eles comeram
chupados os ossos
arrotado o marufu
lambidos os dedos
vencidos os medos
andaram por todos os caminhos
mão de branco na mão negra
abriram sulcos perenes
na terra esventrada
no zunir sibilante da bala
inimiga
no vup vup vup das pás
circulantes
dos helicópteros traiçoeiros
vup vup vup para a morte
vup vup vup para a vida
vup vup vup para os sem sorte
chamados para outro norte
vup vup vup asas de metal
enchidos de balas os corpos dos feridos
o medo estampado no esgar
do soldado que mal compreendia
porque matava em terra alheia
gente que mal não lhe fizera
e os olhos vítreos dos mortos
colados perdidos no caleidoscópio
das pás girantes das aves
metálicas
vup vup vup
desafiando o tempo
pelo fio dos anos
a reinventarem a História
olhares dos antepassados
chamados pelo batuque
do colono vup vup vup
em pás girantes
nas sombras da noite africana
nos caminhos dos pirilampos
acende-apaga
acende-apaga
almas errantes dos que morreram
longe do umbigo
de todos os umbigos da bela
pátria anunciada
numa estrela de amarelo brilhante
em bandeira negro-rubra feita
pátria
tecida com fiapos de dor
amor e esplendor
sangue escorrido
nos trilhos cambaleantes
onde irmãos se perderam
peões dum mundo alheio
nem preto nem branco
digladiando-se pelo ovo por
nascer
defendendo visões não suas
com o abismo sempre a crescer
cavado pelo odor do petróleo
ofuscado pelo brilho dos
diamantes
África órfã de mãe
África apagada no horizonte do
sofrimento
empurrada para ravinas profundas
ravina capitalista
ravina marxista
ravina leninista
rasgando teus seios mãe África
de chirangas brancos
tocando chingufos africanos
escavando de tuas entranhas
minérios de ti incógnitos
África pouca terra
pouca terra pouca terra pouca
terra
apita tuííí… tuííí… tuííí…
no comboio do Katanga
por entre todos os comboios
de Alexandria ao Cabo
pouca terra pouca terra pouca
terra
mãe África de filhos varridos
para debaixo das folhas do
desgosto
para dentro dos buracos das
toupeiras
sem vontade de voltar
pouca terra pouca terra pouca
terra
no comboio de esperanças
apita combóio
apita tuííí… tuííí… tuííí….
comboio de fumaça encardida
subindo o morro da miséria resplandecida
sob o troar dos canhões
ante o punho erguido das estrelas
de uma noite que parecia não ter fim
@ Fragata de Morais / União dos Escritores Angolanos
2011
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