quarta-feira, 1 de junho de 2011

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



Dia 30 em Lisboa, no Parque das Nações, sob os auspícios da Casa de Angola em Lisboa, acto celebrativo dos seus 40 anos de criação, será lançada a antologia

"O Fantástico na Prosa Angolana", de Fragata de Morais.

Formato: 15,5 x 23,0 cm
Número de páginas: 382
ISBN 978-989-8370-02-0
Preço: Kz 3.500,00 (em Angola)
Euros: 27,00

LITERATURA ORAL - PROVÉRBIOS














FUNGA MESU; KULUTFU IUMA IRIKU

Guarda (bem teus) olhos(porque à tua)
frente ainda há muitas coisas.

(Aqui chama-se a atenção das pessoas sobre a limitação do conhecimento de cada um)

Provérbio Cokwe

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


AMIGOS PARA SEMPRE

A amizade, quando sincera, desinteressada e duradoura, é uma coisa linda e que só faz bem, passe o desentendimento ocasional. Na maior parte das vezes, é bem-vinda para os outros, fortalece a confiança no semelhante, descarboniza o motor, como diria o meu amigo Manbeto, mecânico de longa data. A amizade, quando forte, não sucumbe aos abanões das vicissitudes, das intrigas ou do afastamento. Ela perdura, é farol que se vê ao longe. Não é matéria que se encontre em supermercado, para onde nos dirigiríamos e, com a pessoa amiga, se pedisse:

“Por favor, venda-me aí três quilos de amizade, bem pesadinhos e sem gordura!”.

“Só três? Pela cara do(a) companheiro(a), eu levaria uns cinco...”

“Talvez, talvez mais tarde. Agora só desejamos mesmo três, não é?

Efectivamente há que ter cuidado, amizades são assuntos que se devem construir com cuidado, paulatinamente, sem pressas. Há que amanhar e adubar o terreno, plantar-se com carinho e respeito e utilizar-se em pequenas doses.

“Olha, sabes, o Serafim morreu de overdose...”

“Mas não sabia que se drogava!...”

“Não, foi pior que isso. Morreu de overdose de amizade, a Xiquinha deu-lhe tanta de uma só vez que o coração do coitado não aguentou. Puff, lá foi. Eu bem o avisara, olha que em excesso pode causar-te danos sérios, mas sabes como são esses universitários. Sabem tudo.”

“É verdade, sempre juntos, até pareciam que namoravam.”

“Qual quê, aquilo era só mesmo amizade, a Xiquinha até nem gostava de homem, era daquelas que dizia que homem era só para amizade, e olha no que deu. Quem diria!... Overdose de amizade...”

Há amizades assim, que não se contentam em ser edificadas em doses homeopáticas, os seus arquitectos traçam planos imediatos para arranha-céus de oitenta andares de amizade. Que edifício imponente. Mas será que aguentará o primeiro sopro de um vento mais forte?

Conheci dois amigos assim, sempre juntos, estou seguro que se um tivesse sido mulher, aquele casamento seria eternamente abençoado, tal a dedicação mútua. Segundo o registo histórico oral, nasceram quase no mesmo dia do mesmo ano, filhos de duas casas contíguas. Engatinharam juntos, comeram as mesmas caganitas dos ratos no mesmo buraco onde as encontraram, frequentaram o ensino primário como companheiros de carteira, jogaram no mesmo time com a mesma bola de trapos, namoraram as mesmas namoradas no liceu e assim viveram a vida toda, um ao lado do outro, na mesma rua, casados com duas irmãs, também da mesma rua.

E sabem o que solidificou desde cedo essa amizade? O futebol. Se houvesse, naquela altura, uma enciclopédia de futebol, seriam eles. Conheciam toda a história do desporto rei, desde a sua invenção na Inglaterra, segundo uns. Na Mongólia, onde o Gengis Khan usara as cabeças do inimigo para grandes desafios nas estepes ou no deserto, segundo outros. Jogaram juntos em todas as equipes da escola, do liceu, do bairro, e participaram de todos os campeonatos que organizaram e que foram organizados. Eram conhecidos como a dupla da mata e esfola, já que era isso que acontecia. Quando um caía sobre o adversário para o esfolar, logo o outro aparecia para complementar o estrago, para matar. Só no primeiro campeonato escolar, já no liceu, quebraram mais canelas na primeira volta, do que o Justino Fernandes em todos os seus desafios. E naquelas épocas ainda não tinha sido elaborado o conceito de “futebol viril”, para justificar o amace e as luxações infligidas sobre os outros.

Quando oiço o Mateus Gonçalves da LAC, a perorar ou a xinguilar sobre o futebol e os seus (do futebol) ídolos, sinto uma imensa pena. Será que nunca ouviu falar nesses dois, nas suas proezas, na sua eterna amizade? Edificada sobre milhões de bolas de futebol, a começar com as de meia, depois as de borracha, seguidas daquelas que eram de couro e se atavam como se ata um sapato? Porque não os menciona? Algum desafecto bairro-clubista?

Quando Deus chamou um deles, o outro logo ficou a estiolar na sua solidão de órfão. Nada mais o animava, todos diziam que em breve também se iria juntar ao amigo. Amizade tão longa, tão bonita e tão forte, não perduraria por muito mais tempo só com um dos integrantes. Mas foi vivendo. Naquele ar apagado, olhos sempre no vago, ao longe, e com os lábios formando o ocasional sorriso, talvez no momento onírico em que lá se ia mais uma canela adversária, ou se formava aquela dúvida que só para si guardava.

O momento chegado, ao cair da tarde, chamou um dos netos preferidos e informou-o que se preparassem, não iria durar muito mais.

“Que é isso, avô? O senhor ainda tem muitos anos de vida.”

“A minha hora chegou, vai já avisando todos, não quero confusões, e no meu caixão deve ir aquela bola de couro com atacador, a que tem uma fotografia do Peiroteu colada.”

“Mas avô, lá no céu nem há campos de futebol!...” disse o neto, para o alentar.

“Não digas disparates, o que sabes tu? Não só há campos, como grandes campeonatos entre os católicos e os outros, os protestantes.”

“Mas como é que o avô tem a certeza? Quem lho contou?”

“O meu velho amigo de sempre. Ontem apareceu-me num sonho e contou-me isso precisamente. Grandes e renhidos campeonatos!... E mais, informou-me que estou escalado para jogar no próximo domingo.”

O neto olhou para ele e, sem mais palavras, foi informar a família.

05/09/04

A PRECE DOS MAL AMADOS


CAPÍTULO CINCO

A REDONDEZA DA VIDA

Ua-mu-mona mu luanha

u-mu-ijiia ué m’suku.

(Uanhenga Xitu)


O salão do hotel estava decorado segundo os preceitos e hábitos dos casamentos luandense. Ao fundo, para quem entrasse, uma mesa central, forrada de cetim branco e plena de folhados laterais dourados que tombavam em cascata alvissareiras até ao chão, e atrás da qual, revelando que a felicidade nupcial se distingue da felicidade dos convivas e parentes, sobressaiam dez cadeiras de encosto alto, igualmente forradas com a cor alva do momento. No lado esquerdo, e a conveniente distância, outra mesa, esta redonda, albergava um imponente bolo de noiva a quatro níveis, encimado pelo tradicional casal de nubentes, ambos loiros e brancos não obstante os noivos serem negros. Sobre os folhados alvos que lembravam o ondular de qual mar sereno, inclinavam-se, talvez exaustas da longa espera, sete garrafas de champanhe, dentro dos respectivos baldes revestidos de cetim azul e atolados de gelo fino, rodeados por uma floresta de taças alongadas. As mesas para os convidados, igualmente de cadeiras forradas, de azul celeste, distribuíam-se aleatoriamente pelo salão, no centro do qual fora reservado um largo círculo para a pista de dança. Para qualquer estranho aos hábitos e costumes nacionais, seria difícil afirmar que se vivia num país onde a fome e a desgraça acampavam no quotidiano da vida, tanta e diversa era a comida a abarrotar duas extensas mesas laterais, em alas contrárias, que se estendiam quase por inteiro ao longo do salão. No lado oposto à mesa principal, e em lugares estratégicos devidamente estudados, três bares repletos de tudo que se pudesse desejar consumir em líquidos.

Muitos dos convidados, gente importante e embebida de si mesma, as senhoras olhando-se de revés em enciumadas congeminações não exteriorizadas, caso contrário correr-se-ia o risco de cenas antigas de quintalão, já se encontravam no local aguardando a chegada dos noivos, idos pavonear a muita abastança e o pouco pudor pela Ilha do Cabo, num vasto e ruidoso cortejo de buzinadas cadenciadas e intermitentes ligados, com um operador de vídeo sentado na janela da frente do primeiro carro a filmar não se sabe bem o quê, sendo a iluminação pública precária aqui, inexistente ali. Por fim o cortejo chegou e, pouco após, os sons de uma das mais famosas valsas de Johann Strauss, o Danúbio Azul, ecoaram pelo recinto, deixando os convidados perplexos pois esperavam a tradicional marcha nupcial de Felix Mendelsshon. Numa imagem enublada, aparecem na penumbra do hall de entrada os noivos ladeados de um cortejo de jovens trajados, eles, de jaquetas azul-escuro e perucas brancas amarradas atrás com o laço de cetim. Elas, igualmente de perucas de caracóis brancos que tombavam em cacho pelos ombros destapados, trajavam longos vestidos azul-claro de decotes ousados a sugerirem seios de ilusória dureza, anichados inconformadamente em sutiãs demasiado pequenos. Todos de luvas brancas, numa vistosa e comovente reprodução da corte austríaca do século XIX. Os nubentes pararam à entrada, enquanto as alas dos bailarinos da invisível corte europeia evoluíram, no salão, em passos estudados e ensaiados ao detalhe. Pé masculino calçado em botim envernizado e pontiagudo para a frente, pé feminino calçado em sapatinho dourado para atrás. Reviravolta para a direita, mão esquerda atrás das costas na majestosa vénia à dama que, modesta, coloca o seu pézinho atrás para vergar o torso ligeiramente em gracioso sorriso de agradecimento e revelar aos embasbacados maridos, namorados, noivos e demais machos, os portentosos atributos peitorais, promessas vagas de um inacessível jardim das delícias.

Mal saíra o Strauss filho, entra vibrante o Mendelssohn, e o casal, finalmente, entra em triunfo, em passo marcial cadenciado, para a mesa que lhe estava reservada, através de uma arcada também forrada de cetim branco e plena de flores e folhados azuis, a noiva visivelmente grávida. Ele, impecável no seu fraque cinzento, e de chapéu alto, parecia o mais nobre dos aristocratas ingleses, a enorme barriga confirmando a opulência e a acumulaçãode gases certamente. Os convidados, de pé, aplaudiam delicadamente os aplausos que o civilizado século XIX exigia e, comedidos, foram-se sentando aos poucos, entreolhando-se em silencio, sem desejarem revelar ostensivamente o que lhes ia na alma. Muitos, a maior parte homens, dirigiram-se para os bares. Os flashes dos fotógrafos não descansavam, bem como os operadores de vídeo, registando tudo que fosse considerado alvo de registo, pois os custos não tinham sido exigência.

Uma música suave e romântica, brasileira, deu azo a um silêncio natural enquanto os embevecidos noivos se levantaram e, abraçados em terno amplexo, para folgança das mexeriqueiras, abriram o salão.

- Notaste como a nossa afilhada está um sonho? – Perguntou Lucinda a Tadeu, sentada ao lado direito da noiva.

- Nos casamentos estamos todos num sonho. – Respondeu, meio cansado.

- Não sejas irónico, é que está mesmo linda.

Tadeu olhou para a esposa e sorriu. Levantou-se, ofereceu-lhe o braço e, aos acordes da nova melodia, dirigiram-se para o salão para que os noivos, acompanhados pelos padrinhos, encerrassem a parte cerimonial com o corte do bolo de casamento.

Viram Nazamba a entrar, e Tadeu fez-lhe um pequeno aceno com a cabeça, indicando-lhe a mesa ao lado da deles e na qual já se encontrava o casal Silveira. Correspondeu ao aceno e dirigiu-se para lá. Silveira, ao vê-la aproximar-se levantou-se e estendeu-lhe a mão.

- Como está a nossa amiga?

Nazamba cumprimentou-o e dirigiu-se a Madalena Silveira a quem deu dois beijos, sentando-se na cadeira ao lado.

- Bem obrigado, e como estão vocês?

- Como vê, vamos fazendo por isso.

- Está muito linda, Malena. – Disse Nazamba, com sinceridade.

- Você também, já estou a ver que o próximo noivado será o seu.

- Embora já tenha pensado nisso, não estou com pressa nenhuma, aliás nem candidato existe.

- Será o que menos lhe deve faltar. – Disse Silveira, galante.

A dança acabou e o casal Nascimento dirigiu-se a eles, Lucinda à frente, sorridente.

- Só agora, o que se passou? – Disse, enquanto se beijavam.

- Nada de especial, fui a casa mudar a roupa e refrescar-me um pouco. Acabei por levar mais tempo do que pensava. – Respondeu Nazamba.

- Temos que ficar na mesa principal como sabe, mas convidámos um bom amigo nosso para lhe fazer companhia e ter alguém com quem dançar. – Disse Tadeu

- Obrigado, mas não precisavam de se ter incomodado.

- Olha, ali vem ele. – Indicou Lucinda, fazendo-lhe um aceno.

Nazamba viu um senhor alto, elegante e de boa aparência, de andar firme e confiante. Interiormente sorriu, estranhamente satisfeita. Desde a triste experiência com Malaquias o Cigano, jamais se sentira atraída por outro homem e o facto de ter tido uma reacção positiva e inesperada, causou-lhe uma emoção que não conseguiu definir, todavia agradável. Qualquer coisa renascia em si, teve o pressentimento de que iria sacudir a poeira de um qualquer armário, onde guardara a sete chaves uma qualquer desventura que tinha que ser atirada para longe e esquecida. Com um ligeiro olhar de gratidão, que passou despercebido a Lucinda e a Tadeu, aguardou pelas apresentações.

- Olá Nataniel, como estás? – Perguntou Lucinda, enquanto recebia os tradicionais dois beijos nas faces.

- Bem obrigado, e vocês?

- Então, meu caro? – Indagou Tadeu, estendendo-lhe a mão.

Nataniel cumprimentou os Silveira, Mário e Madalena, e baixou a cabeça para Nazamba.

- Nataniel, esta é a Nazamba, nossa amiga regressada de Portugal não há muito. – Apresentou Lucinda.

- Muito prazer, como está Nazamba? – Disse meio curioso e enquanto lhe estendia a mão.

- O prazer é todo meu, Nataniel. – Acanhada, baixou os olhos.

- Bom, já estão apresentados, temos que ir para a mesa dos padrinhos. – Disse Tadeu, agarrando o braço da esposa e puxando-a suavemente.

Os dois olharam-se e sorriram o sorriso do acanhamento natural de quem se vê confrontado com uma apresentação não fortuita, e largados abruptamente por quem os apresentara. Ambos sentiram-se perdidos, mas logo Nataniel segurou a cadeira de modo a permitir que Nazamba se sentasse e sorriu para os Silveira que, com um gesto meio abstracto de mão, indicaram a mesa das comidas e abalaram em direcção às mesmas. Haviam notado a constrangimento dos dois, e uns minutos a sós talvez ajudasse a quebrar a ligeira crispação.

- Lucinda disse-me que é engenheira. – Começou Nataniel, uns momentos após ter-se, por sua vez, sentado

- Não, sou formada em direito comercial, e você?

- Sou médico e oficial superior do exército.

- Que bom, é uma profissão muito nobre, salvar vidas e cuidar dos outros.

- Mas muito desgastante, esvazia-nos de emoções, não imagina...

- De facto... Deve ser algo difícil, sobretudo na sua esfera, a militar.

Por um momento olharam-se, como que perdidos, cada um sentindo o peso dos silêncios.

- Olhe, se começarmos a falar da vida militar, esta festa vai ser a mais deprimente...

- Só posso estar de acordo consigo. - Riu Nazamba. – Não tem fome?

- Sim, comeria qualquer coisa. O que quer que lhe traga? – Perguntou Nataniel, solícito.

- De modo algum, vamos os dois. – Respondeu, levantando-se.

Lesto, soergue-se e puxou a cadeira quando Nazamba se levanta. O gesto pareceu natural e esta sorriu-lhe.

- Onde é que se formou? – Perguntou-lhe.

- Em Cuba, um país que acho maravilhoso, conhece?

- Não, ouvi falar muito de Havana, creio que era ou é uma cidade maravilhosa.

- Não tenha a mínima dúvida, e os cubanos são um povo admirável.

Chegaram à mesa dos pratos quentes e quedaram-se, mudos, a olhar para a vasta fila dos mais variados quitutes, nacionais e de fora. Nataniel passou-lhe um prato e retirou um outro para si, dando-lhe a primazia.

- E a Nazamba onde é que se formou?

- Em Portugal, o meu pai foi para lá viver em 1975, aquela tragédia angolana que tão bem conhece. Mas olhe que linda mesa, há de tudo... – Falou rápido e para desviar o assunto.

- É o espírito dos nativos, festa sem mesa recheada não é nacional.

Ambos riram e Nataniel fez um gesto para que ela se servisse.

- Vamos começar por onde? – Perguntou.

- Vou começar pela lagosta – disse, olhando para a mesa dos frios - mais logo

comerei qualquer coisa quente.

Servidos, voltaram à mesa onde se juntaram aos Silvério. O salão virara um corre- corre de gente a servir-se, e de crianças em brincadeiras e gritos que atrapalhavam os adultos.

- Nestas festas as crianças deveriam ficar em casa. – Disse Silvério.

- Esta lagosta parece estar deliciosa. - Retorquiu Nazamba, fingindo não ouvir o comentário, que desaprovava.

- Às vezes é difícil deixar as crianças em casa, sempre estão melhor com os pais. – Disse Nataniel. Depois voltou-se para Nazamba, – De facto a lagosta está com um óptimo aspecto, bom apetite.

- Ainda não me habituei por completo a ver tanta comida de uma só vez. Bem me diziam lá em Portugal que aqui não havia fome nenhuma, bastava ir a uma festa para o constatar.

- São as disparidades desta nossa sociedade, uns com muito, a maioria com quase nada, mas até esses tentam ter uma mesa farta, faz parte da nossa idiossincrasia.

- Será? Olhe que não creio.

Madalena Silvério começou a sentir-se incomodada com o rumo da conversa e, mostrando o seu despreparo social, bocejou ostensivamente.

Mas festa é para se falar de política?

- Sabe quem fez o vestido da noiva? – Perguntou a Nazamba.

Apanhada de surpresa, Nazamba não soube o que responder.

Mas que pergunta mais disparatada!

- Perdão?!..

- Se sabe quem fez o vestido da noiva, está uma maravilha! – Insistiu Madalena

- Não, ainda não conheço os estilistas, estou de volta há relativamente pouco tempo. – Retorquiu Nazamba com um sorriso.

- Estlistas?, qual estlistas!... Costureira, e olhe que é muito boa!

- Não, também não sei quem possa ter sido a costureira. – Consentiu Nazamba.

- Um vestido daqueles deve ter sido uma nota cara.

Mário Silvério olhou para a esposa num embaraço mal disfarçado. Tossiu para disfarçar. Com nervosismo apenas escondido, quase entornou o copo de vinho, ficando a toalha respigada de púrpura.

- Entornar vinho tinto é felicidade. – Disse Nazamba, para desanuviar a tensão.

- É... é o que se diz. – Fez coro, Nataniel.

- Ainda bem para os noivos, que sejam pois felizes! - Disse Madalena, expansiva.

- E se fossemos dançar, a lagosta pode esperar um pouco, não acha? – Sugeriu Nataniel, olhando para Nazamba.

- Óptima ideia, com vossa licença. - Disse, levantando-se de imediato.

Com o afastamento da parelha, Mário Silvério tirou o guardanapo que colocara no colarinho da camisa, e com um gesto de desagrado ostensivo, colocou-o sobre a mesa.

- Mas quando é que aprendes a comportar-te?

- Então festa é para estar a falar-se de política? – Retorquiu a esposa, amuada.

- Política? Não viste que não se conhecem e aquilo é só conversa para encher?

- Para mim é política. Fome... uns que têm tudo, outros que não têm nada, isso é política ou não? Até parece que nos estavam a atirar indirectas...

- E nós temos alguma coisa a ver com a fome de uns e a fartura de outros? Por favor come e não estragues a festa. E aprende de uma vez por todas que são os estilistas que desenham as roupas e as costureiras que as fazem, vê se aprendes em vez de me envergonhares.

- Pois agora quando eu quiser um vestido irei a um estlista. Acabou-se a D. Firmina a costureira, já que queres pagar, paga.

Mas porque será que aguento tudo isto, meu Deus? Se não fossem os filhos já me tinha separado deste atraso de vida há muito!

- Vai ver quem tu desejares, não me aborreças. E a palavra é estilista e não estlista, devias é ir para a escola.

Quando me conheceste não te importaste, agora que já és senhor toca de apontar o dedo.

Madalena achou bem dar por finda a argumentação, remetendo-se ao prato de jinginga, intimidade muito menos complicada e de seu pleno gosto. As conversas do marido já as conhecia há treze anos.

Vai lá te lixar mazé, quem és tu para me corrigir? Até parece que a fortuna que tens veio de alguma herança! Se não fossem as crianças, havias de ver se já não te tinha mandado à merda há muito! Estilista ou estlista, não é a mesma coisa?

- E espero que mantenhas a boca calada quando eles regressarem. – Sibilou Mário.

- Não te preocupes, põe é uma garrafa de uisqui na mesa e vai dançar com uma qualquer. Gente fina... Cambada de fingidos, quem não lhes conhece!...

- Já não chega o vexame, ainda queres embebedar-te outra vez publicamente?

- Podes resolver esse problema facilmente, manda-me fazer uma cura de dsentuxicação em Londres!...

- Olha que não seria uma má ideia, e a palavra é desintoxicação, não dsentuxicação.

- Se concordares, não tocarei aqui em mais uma bebida a não ser gasosa.

Mário Silvério viu a parelha encaminhar-se para a mesa e voltou-se rápido para a mulher, até lhe seria de agrado tê-la em Londres por uns seis ou sete meses, quem sabe, com sorte até desejasse por lá ficar, ou em Portugal, na África do Sul não, estava muito próximo.

- Está bem, concordo. Vais a Londres por uns tempos, agora mantém-te calada o mais que puderes.

- Melhor ainda, daqui a um pouco vou desenvolver uma xaqueca e vamos para casa, se quiseres podes voltar e diverte-te.

- Enxaqueca, enxaqueca, por amor de Deus, até parece que fazes de propósito!

Nazamba e Daniel regressados a mesa, sentaram-se, sorrindo para os Silvério.

- Pronto, já demos o pontapé de saída. - Disse, Nataniel a Mário.

- Nós vamos fazê-lo daqui a um pouco, assim que a Malena acabar de comer.

- Olha filho, não contes com isso porque está a atacar-me uma daquelas xa... enxaquecas que bem conheces. – Endereçando-se a Nazamba, – Sofro deste mal e fico completamente arrasada, já percorri tudo que era médico em Portugal e Espanha, mas nada, só mesmo deitada. Levas-me a casa? – Pergunta ao marido.

- De facto assim é, fica atordoada a coitada. Queres ir já ou esperas para ver se é daquelas menos violentas?

- Não, leva-me já. Vocês vão perdoar-me por ter que vos dexar.

- Por amor de Deus, sou médico e sei o que isso é, vá, descanse e melhore pronto.

- É uma pena vê-la partir, desejo que melhore rapidamente. – Disse Nazamba.

- Queiram pois desculpar-nos, vamos, filha? – Perguntou Mário, erguendo-se.

Após a saída dos Silvério, sentiram-se mais à vontade, sem aqueles olhares de soslaio que os tornava receosos da frase que brotasse, simples ou inócua, e que pertencia ao mundo do tactear mútuo das revelações sobre cada. Por longos momentos comeram calados, propositadamente calados, como se o silêncio fosse a palavra que fluía no aconchego de uma sensação inexplicável, presente.

- É estranho, - disse Nataniel, por fim – tive o intuito que a minha vida irá mudar, o que me preencheu de um desassossego de espírito.

Nazamba olhou-o, corando. Para disfarçar, pigarreou e levou o guardanapo aos lábios, numa leve carícia.

- Isso vem a propósito de quê, não estou a entendê-lo?

- Talvez nem eu me entenda a mim mesmo, mas conhecê-la, estar consigo, produziu este sentimento.

- Estará por essa razão a rejeitar-me, é isso?

Rejeitá-la? Meu Deus, sinto-me como um adolescente!...

- Muito pelo contrario, é uma aceitação que me intimida...

- Está então a fazer-me uma declaração de amor! – Riu Nazamba, decidida a ver até onde ele iria.

- À primeira vista? – Retorquiu, jocoso, Daniel.

- É o que me parece… mas continue lá.

- Veja, acabamos de ser apresentados, e sem um mais nem quê aparente, gerou-se em mim uma espécie de agitação de emoções, até contraditórias...

- Creio que a isso se chama empatia, como médico deve conhecer o termo melhor do que eu. Não sei porque estranha.

- Não, não é que estranhe, aliás não existe razão alguma para que não simpatize consigo, ou que essa empatia se tenha desenvolvido. O que me preocupa, é eu sentir uma emoção sobre algo que ainda não aconteceu.

- Está-me a dizer que acredita em premonição? É vidente?

Nataniel riu, nunca se imaginara vidente. Acreditava que todos possuíam o chamado sexto sentido, mesmo quando tantos outros existem dentro do ser humano e aos quais não se liga ou percebe, e nem se lhes dá hierarquia. Todavia, recusava que alguém pudesse objectivamente ver o futuro, nem Deus o conseguira, de outro modo não teria concebido o mundo como o imaginou e o criou.

- Acha que o Criador era capaz de imaginar? – Perguntou, olhando-a nos olhos.

- Perdão?...

- Perguntou-me se era vidente, quando ao próprio Criador lhe falhou essa capacidade...

- Vejo que não liga muito à religião...

- Para lhe ser franco, não, não ligo.

Receoso de que Nazamba se tivesse ofendido, nem sabia que religião poderia professar, quis mudar de assunto. Porém, antes de conseguir falar, Nazamba, que pressentira o embaraço, sorriu para o tranquilizar.

- Eu também não ligo muito à religião, acredito que qualquer coisa existe, agora o que é, não sei e nem me preocupo muito. Talvez por me considerar ainda jovem. – Disse, Nazamba.

- As minhas dúvidas não têm a ver com a juventude, mas sim com outras questões. Por exemplo, não vejo bem como pôde Deus criar o Universo, a vida, em apenas sete dias quando hoje, para se listar ou catalogar todas as espécies conhecidas levar-se-ia pelo menos vinte e cinco anos.

- Mas por isso é que Ele é Deus...

- Correndo o risco de a desapontar, não acho que essa justificação elimine as questões que muita gente honestamente se coloca. Diga-me uma coisa Nazamba, quando Deus criou o Universo, que língua é que Ele utilizou para dar nome ao que gerava? Está ciente das implicações, das maquinações, só nesta pergunta? E mais, já que a noção do tempo era abstracta, quantas horas ou anos teria o dia, que até ao terceiro, era trevas?

- Como conseguiu estudar em Cuba, com tantos questionamentos existenciais dentro de si?

- Como assim?

- Não é um regime comunista, permitiam-lhe essas elucubrações?

- Se analisar com cuidado, verá que estas elucubrações, como lhes chama, só serviriam os objectivos do regime.

- Não sei, não sei…

- Os estudos e a apanha dos cítricos não nos davam oportunidade de elucubrar, creia-me.

- Apanha de cítricos? – Perguntou, admirada.

- Sim, enquanto estive na Ilha da Juventude, tive, aliás como todos os outros, de apanhar cítricos. Era a nossa contribuição para com a revolução, uma maneira de dizermos obrigado a Fidel.

- É uma pessoa intrigante. Conheceu-o?

- Pessoalmente, não. Vi-o em comícios várias vezes e nas reuniões que os estudantes tiveram com o nosso presidente quando visitou Cuba.

- Mas afinal já estamos a fugir ao assunto, o que, no fundo, pretendia dizer-me?

Nataniel olhou para ela, suspirou e abriu as mãos em leque, encolhendo os ombros, numa pequena careta de incerteza. Saberia ele próprio o que, no fundo, lhe teria a dizer, quando até poderia estar no meio ou logo ao de cima? Por certo que as alegrias e a felicidade, por serem leves e passageiras, encontrar-se-iam à flor da superfície dum mar de tranquilidade e pétalas perfumadas. Quanto ao resto, teria peso e força suficientes para mergulhar no espesso plasma dos recônditos da mente, e nadar até ao fundo em braçadas fortes que o deixariam exaurido? Arrimar ao lodo da vida, sedimentado durante anos e a chafurdar, rebuscar o que lhe fora solicitado, a pretensão de afirmar uma banalidade abstracta, um lugar comum déjà vu, talvez até um desejo sórdido, levadas as intenções em consideração?

- O que lhe pretendo dizer? – Viu-se a perguntar, perplexo.

- Exacto, sinto-o preocupado em fazer-me sentir que, se tivéssemos sido predestinados um para o outro, de sua parte quiçá não devará envolver-se mais e para além desta festa.

- Não me interprete dessa maneira, Nazamba, talvez tenha sido cedo demais para exteriorizar o meu devaneio.

- Não diga isso, não considero um devaneio o que me disse, muito pelo contrário, gostei de o ouvir e ver que é uma pessoa que se abre e fala de si, e sobretudo não do que tem, mas do que é.

- Deixa-me sem jeito com tanta lisonja. - Respondeu Nataniel, meio ofegante.

- Estou-lhe a transmitir o que sinto, não pretendo lisonjeá-lo.

- E se fossemos dançar? – Cortou, para fugir ao que sentia.

Sem falarem, apenas tacteando a presença um do outro, dançaram umas tantas músicas seguidas, abraçados, ela com a cabeça reclinada no ombro dele, e observados atentamente por Lucinda.

- É melhor sentarmo-nos, a Lucinda já está ali de boca aberta. – Disse Nazamba a sorrir, no fim da terceira música.

- Vamos… efectivamente há que quebrar esta magia.

- Nem se preocupe com isso, durma uma noite feliz e amanhã a realidade terá feito ninho em nós.

Sentaram-se, Nazamba notou que Nataniel buscava as palavras e aguardou.

- Gostaria de continuar a vê-la.

- Vou deixar-lhe o meu endereço e telefones, e poderemos sair quando for possível.

- Já falámos tanto e nem sei nada de si, onde nasceu, quem são os seus pais, por exemplo.

- Mas logo agora?

- E porque não? Quanto a mim, nasci no centro sul de Angola, em Ualali...

Nazamba não o deixou acabar, perplexa, deu um pulo na cadeira e quase deixava tombar as bebidas. Ofegante, olhou profundamente para ele, atabalhoada.

- Nasceu em Ualali, disse isso?

- Sim, o que aconteceu, porque está tão tensa e preocupada?

- Não posso crer…

- Não pode crer em quê?...

- Não posso crer, porque também eu nasci em Ualali...

Foi a vez de Nataniel se surpreender. Agarrou no copo quase vazio do uisqui e encheu-o, bebendo sofregamente.

- Não pode ser, os únicos mestiços em Ualali eram meus parentes...

- Seus parentes, como assim?

- Eram os filhos de um comerciante, nem me lembro o nome dele, marido de uma filha do soba grande...

- Marcelo, o meu pai, era o comerciante casado com Balanta, minha mãe e o soba grande era Juba de Leão, meu avô.

Nataniel levantou-se e ficou de mãos no ar, como que esperando por palavras que teimavam em não sair. Deu conta da figura que fazia e sentou-se. Tirou um lenço do bolso das calças e limpou o suor que lhe escorria profusamente pela testa. Nenhum deles conseguia interiorizar a revelação inesperada e tão inverosímil.

- Juba de Leão também é meu avô. Quem disse que era a sua mãe?

- Balanta, a minha mãe, se estiver viva, é Balanta.

- Balanta, mal me recordo... saí há muito e nunca mais regressei por causa da guerra.

- É natural… - disse, mais tranquila. – E foram acontecimentos melhor esquecidos, pelo menos para mim.

O silêncio envolveu-os novamente num mutismo melancólico, a magia transformada em surpresa, descrédito e incerteza. Fora como se Deus lhes quisesse mostrar que no seio da noção de imperfeição e da lógica aparente, sempre morara a Sua razão e a Sua mão. Que a vida nada mais é do que um jogo com cordelinhos puxados por mãos invisíveis, sempre numa ordem natural própria.

- Nazamba... Quando nos apresentaram o nome quis-me parecer familiar, mas juro, nunca o teria conotado, nem sequer me lembrava... Não crescemos juntos... Vocês viviam na povoação comercial... O que aconteceu?

Não o ouviu, ou melhor, ouviu-o com a percepção de quem vê uma imagem desfocada. As palavras chegaram-lhe em ecos sinuosos e fanhosos, que se desintegravam nos penedos da mente. Concentrou-se, limpou duas lágrimas teimosas e, de voz meio desembargada, respondeu-lhe, ciente de que tinha que vencer as emoções imediatas desta inesperada revelação.

- Saímos em 1975 quando o nosso avô ordenou que todos os mulatos tinham que ir por serem filhos da cobra.

- O quê?... Nazamba....

Quase teve vontade de o castigar, deixar a afirmação esfarelar-se na sua mente e perplexidade, até ele sentir a culpa que o avô comum deveria ter sentido. Dominou a peçonha que pretendia apoderar-se de si, ele não era culpado de nada. Olhou-o e suspirou fundo, como quem vai encetar uma longa e penosa caminhada, quantas vezes percorrida com outras gentes, com outros argumentos e quase sempre com os mesmos fins, os da busca de harmonia interior.

- Fomos para Portugal, o meu irmão desapareceu, o Tomás. Não sei onde anda, mas não desejo falar disso agora. Formei-me, o meu pai morreu de desgosto e aqui estou. Poderemos falar noutra altura? Estou meia tonta.

- Desculpe, Nazamba, fui tudo tão rápido e surpreendente. De facto haverá muito

tempo para nos entendermos.

- Está bem, Nataniel, mas agradecia que me levasse até ao carro, não mais consigo ficar aqui.

- E a Lucinda e o Tadeu?...

- Vou ter com ela e dizer-lhes que me estou a sentir muito indisposta, talvez os rissois de camarão...

- Vá, eu acompanho-a depois até casa. Não ficaria tranquilo deixá-la ir sozinha.

- Agradeço-lhe.

Levantou-se e foi ter com Lucinda. Nataniel observou-as, sentia-se despido de emoções, não conseguia acreditar. Se de facto o Ser Supremo existisse, tinha a mania de escrever por linhas tortas. Como um autómato, seguiu Nazamba no seu carro, até chegarem a casa dela. Desceu e despediram-se num aperto de mão duvidoso, com palavras que nem morada fizeram. E quando, no dia seguinte, lhe telefonou para saber como passara a noite, a voz dela soava rouca e cansada, talvez tivesse dormido pouco.

- Olá Nataniel, como está? É gentil de sua parte estar a incomodar-se.

- De modo algum, não poderia deixar de saber como vai a sua disposição.

- Como deverá imaginar, dormi pouco. É o meu primeiro contacto com alguém da família desde que daqui saímos. Foi um verdadeiro choque.

- Imagino que assim seja. Mas olhe Nazamba, não deixe que isso a perturbe. Considero que até foi bom.

Pensou ouvir um ligeiro riso, talvez de escárnio. Esperou, em ansiedade.

- Vocês homens vêm os problemas por outra perspectiva, às vezes acho que mais realista. Nós agarrámo-nos muito às emoções...

- De facto, ainda bem que assim pensa, todavia não lhe telefonei para retê-la ao aparelho. Seria deselegante de minha parte convidá-la logo à noite para um jantar?

- Não sei, talvez não seja boa companhia.

- Não diga isso, posso apanhá-la por volta das oito?

- Está bem, às oito será, mas está desde já avisado.

- Estarei preparado, não se preocupe. Pois então, até logo Nazamba.

Às oito em ponto Daniel subiu os dois andares que conduziam ao apartamento de Nazamba e fez soar a campainha da porta. Momentos depois, Nazamba abriu para que ele entrasse.

- Boa noite, está ravissante. – Cumprimentou-a, com um beijo em cada rosto.

- Boa noite e obrigada. Entre, sente-se ali e dê-me um só instante, como sabe levamos sempre muito mais a prepararmo-nos. As bebidas estão naquela cómoda, sirva-se, esteja à vontade, não demoro mais do que necessário.

- Por mim, esteja à vontade, o que for necessário.

Nazamba saiu da sala comum e dirigiu-se para o quarto de dormir. Daniel serviu um uisqui com soda e sentou-se num dos cadeirões, com o copo na mão, olhando à sua volta, perscrutando o apartamento, evidentemente feminino na decoração e aparência. Ele teria escolhido outro tipo de cortinados e utilizaria muito mais o artesanato em pedra e as máscaras, que colocaria nas paredes a realçá-las, em vez das reproduções existentes de pintura chinesa, emolduradas com vidro. Gostou dos cadeirões e dos tapetes, bem como a simplicidade do estilo modernista da mobília da sala de jantar. Levantou-se e ligou o televisor para o passar do tempo. Sentiu-se feliz pelo estado de espírito da prima, achara-a mais relaxada e tranquila.

- Aqui estou, demorei muito? – ouviu Nazamba a dizer, um pouco depois

Levantou-se e olhou para ela em admiração. De facto era uma mulher linda, pelo menos assim o achou, e que sabia dar realce a essa beleza. Contemplou-a, sem saber o que dizer.

- Ficou paralisado, ou quê? – disse ela, a rir.

- Desculpe, se já estava bonita antes, muito mais agora. – respondeu, com sinceridade.

- Obrigado, às vezes gosto de me produzir, espero que não esteja em excesso.

- Nada disso, está tudo a propósito e de bom tom.

- Já notei que é galanteador, toda a mulher gosta de ouvir mentiras agradáveis.

- Agora a Nazamba é que está a ir à lata dos bolos.

- É verdade, presunção e água benta cada um toma da que quer. Acabou a sua bebida?

- Já, se quiser poderemos ir.

- Posso perguntar onde vamos jantar?

- A não ser que tenha outra preferência, ao Carrapicho, não muito longe da estação dos correios, na Baixa. É especializado em peixes e mariscos, pensei que à noite fosse melhor.

- Já ouvi falar, e de facto preferiria comer peixe. Vamos?

Daniel afastou-se para a deixar passar.

Como mandou o meu avô uma mulher destas embora?

Deu-se conta do disparate que pensara, e sorriu. Em 1975 teria ela uns doze ou treze anos, certamente que não era o que ele agora admirava.

Desceram a escada, Nazamba sempre o fazia desde que uma vez ficara retida no elevador cerca de meia hora, numa tarde de calor horrível. O seu perfume estendia-se suave, escada abaixo. Na rua, Nataniel fez funcionar o desactivador do alarme e abriu-lhe a porta, fechando-a tão logo ela se sentou. Colocou-se ao volante e, sem sentirem a necessidade de falar, dirigiu a viatura até ao restaurante, cada um envolto nos seus pensamentos. Por sorte encontraram um lugar que lhes permitiu estacionar mesmo à frente do restaurante e Nataniel foi de imediato acometido por uns três jovens.

- Tio, é o Miguelito quem vai tomar conta do carro!

- Eu cheguei primeiro tio, é o Joaquim quem guarda melhor, não sai junto do carro.

- Entendam-se, - disse Nataniel, saindo da viatura. – não vou falar com três pessoas, uma basta. Quem fica então?

- Ficamos nós então, os teus filhos Miguelito e Joaquim, 100 cada.

- Está bem, mas ai de vocês se volto e encontro o retrovisor roubado, vou-vos procurar.

- Vai descansado chefe, ninguém vai mexer no carro, juro.

Fechou o carro e dirigiu-se para o outro lado, onde Nazamba aguardara enquanto as breves negociações decorreram.

- Já me vou habituando a ver tanta criança pedinte, e isso é mau. – Disse Nazamba.

- E haverá de se habituar a muito mais, a vida não é fácil e para quem tem consciência, às vezes é revoltante.

Entraram e Nataniel solicitou um lugar para dois, de preferência com vista para a baía, já que contemplada à noite, Luanda não tem absolutamente nada a ver com a Luanda diurna. A baía, ao reflectir todas as luzes dos edifícios e da sua bela marginal, empresta uma visão enfeitiçante de magia e belezas raras, confirmando que as trevas escondem a verdade para, enganosamente, revelarem o encanto das sombras e das sugestões, com que o vinho da fantasia e dos desejos nos inebria tão amiúde.

Nataniel sentou-se logo após Nazamba, a quem o garçon, solícito, ajudara com a cadeira, e contemplou extasiado as vastas águas que brilhavam de reflexos múltiplos.

- Vão desejar um aperitivo? – Indagou.

Nataniel olhou para Nazamba e esperou, inquirindo com os olhos.

- Sim, vou querer um gin tónico.

- Dois gin tónicos, por favor e um pouco de castanha de caju. – Pediu Nataniel, para observar depois o garçon a afastar-se.

Nazamba olhou por cima do ombro do primo para a baía que, vaidosa, trajava o espelhar da lua meia cheia.

- Que maravilha, não é? E nem damos valor, tomamos esta beleza por garantida, tão habituados estamos. – Disse Nataniel.

- É verdade, em qualquer outro sítio do mundo um restaurante neste local, seria forçosamente de luxo, ou então um covil de poetas. – Respondeu Nazamba, sem desejar ser cínica.

- Covil? Porquê covil e não um paraíso?

-É que para mim os poetas são lobos que uivam à lua, portanto só poderia ser um covil…

- Covil, certamente que não é, o que elimina de imediato os poetas. Talvez esteja mais para o luxo.

- Nem tanto assim, não tem música ao vivo, por exemplo. – Respondeu Nazamba, enquanto recebia das mãos do garçom o menu, após ter pousado as bebidas na mesa.

- Música ainda é novidade, talvez nos hotéis mais caros, mas nos restaurantes ainda não.

O garçon afastou-se um pouco e esperou, cerimoniosamente. O restaurante não tinha muitos clientes, talvez ainda fosse cedo ou os receios não tivessem esvanecido por completo. Fardas novas jamais vistas em Luanda, passeavam arrogantemente pela cidade capital. A paz, embora presente no papel, era sentida como fictícia ou tremelicada, qualquer suave sopro do destino a podia apagar, remetendo a novo o país para as trevas do oblívio e da destruição ímpar. Havia paz a mais na capital, havia sido afirmado por inconformada boca vinda das matas, ao não saber controlar as emoções libidinosas, quando mirava as Evas renderem, sem pudicícia, seus torneados corpos às carícias dos raios solares, nas praias da Ilha do Cabo.

- Já decidiu o que vai comer? – Perguntou Nataniel.

- Talvez um linguado grelhado com legumes, brócolos, se tiver.

Nataniel fez um sinal ao garçom, que se aproximou.

- O linguado é grande ou pequeno?

- É de tamanho médio, mais para o grande e fresquinho.

- O que acompanha? – quis saber Nazamba.

- Com o que a senhora desejar, dependendo de como o vai querer. – respondeu.

- Tem brócolos? Se tiver, desejo-o grelhado, com brócolos e cenoura cozida, nada mais.

- E para a entrada? – Insistiu o garçon.

- Estou a ver aqui uma excelente ideia, presunto com mamão, vou experimentar.

- Quem não tem cão, caça com gato. – Brincou Nataniel.

- Mas olhe que os brasileiros africanizam bastante os pratos portugueses ou outros, já comi um cozido à portuguesa com batata-doce.

- E para o senhor, o que vai ser?

- Traga-me uma sopa de legumes e depois um choco grelhado, mas sem as batatas, só com feijão verde e cenouras também.

- Está de dieta? – Perguntou Nazamba, enquanto colocava o guardanapo no regaço.

- Não, à noite nunca como muito e sobretudo coisas pesadas.

- Poderá parecer impertinência de minha parte, mas desejava-lhe fazer um pedido...

- Faça, até me deixa preocupada com o tom...

- Não, não é nada de grave, todavia sinto-me um pouco constrangido estar a tratá-la com tanta cerimónia, afinal somos parentes!

Nazamba esboçou um sorriso e baixou os olhos.

- Sabe, eu é que não tive coragem de lhe sugerir o mesmo. De facto acho que não ficaria mal tutearmo-nos, não por sermos parentes, não sou muito por salamaleques sociais desnecessários.

- Fico-lhe grato pela compreensão e pela franqueza.

- Mas então... fico-lhe grato? – Divertiu-se com o encabulamento de Nataniel.

- Hábito, é o hábito. Fico-te grato, imensamente grato.

- Também eu, acho que assim há mais sinceridade.

Por uns largos instantes remeteram-se ao silêncio, como que duvidando do novo desafio que a intimidade de tratamento proporcionava.

- Gostaria que me contasses como foi a tua ida de Ualali, a não ser que te seja doloroso. – disse, Nataniel., desejoso de saber.

- Já foi, quando era mais jovem, agora não. Muita água correu por baixo dessa ponte. Lembro-me do meu pai aqui em Luanda, de Tomás, o meu irmão ter desaparecido e de termos que embarcar mesmo assim. Agora, ao olhar para o mar, mesmo ali do outro lado, na Ilha, apanhei umas conchas que tenho guardadas até hoje. Quando encontrar a minha mãe, hei-de devolvê-las ao mar, de onde saíram, terei fechado o ciclo.

- Mas porque abandonaram a povoação comercial?

- Porque o nosso avô decretou que os mulatos, os filhos da cobra como ele nos chamara, tinham que ir com os pais.

- Meu Deus, ele fez mesmo isso?

- Achas que estou a contar uma mentira? – Perguntou, tensa.

- Não, Nazamba, não quis insinuar isso, é que é de facto incrível que ele assim tenha agido.

- Pensas que terá sido o único por esta Angola fora? Todos eles disseram ou insinuaram aberta ou camufladamente a mesma coisa. Porque é que os brancos fugiram, havia razão para tal, a maioria eram pobres portugueses deserdados que logo se adaptariam aos novos ventos? Fugiram uns, porque os comunistas comiam criancinhas e lhes iam roubar tudo. Fugiram outros, porque se lembraram das chacinas de 1961 no norte e repetidas em 1975 em Luanda, e fugiram muitos ainda, porque ouviram discursos em português que significavam outra coisa em umbundu. Mas fugiram sobretudo porque viram o governo e a tropa portugueses abandoná-los à sua sorte. Tudo isso me contou o meu pai, nas suas noites amarguradas de bebedeira.

- É, minha prima, até entendo que tenham sentido o medo do desconhecido, mas que o nosso avô escorraçasse o seu próprio sangue!... O racismo é uma coisa terrível, olha para nós, netos do mesmo avô e portanto só um é que foi apodado de filho da cobra.

- É por isso que rogo a Deus que esteja vivo e possa falar com ele. Amaldiçoou a vida do meu pai, da filha dele e a nossa, o meu irmão nem sei se vive.

- É uma questão muito dolorosa, mas a que terás de fazer face um dia.

- É o que mais desejo, Nataniel. Tenho que apaziguar alguns fantasmas, meus companheiros de há muito.

- Espero poder estar a teu lado quando esse dia acontecer.

- Reconforta-me ouvir as tuas palavras, quem sabe?...

O garçom trouxe as entradas e retirou os copos e os pratos dos aperitivos, desejando-lhes bom apetite, ao que corresponderam com um ligeiro meneio de cabeça.

- Vamos mudar de assunto, afinal é o nosso primeiro jantar. Fala-me da tua pessoa.

- Tive melhor sorte, fui para a Cuba, como sabes e estudei. Não foi fácil, mas nada que se compare com o que te aconteceu. Também não tive ainda oportunidade de ir a Ualali, a guerra não permitiu, é uma zona que quase sempre esteve fora das nossas mãos, é complicado de lá chegar, mas em breve teremos essa oportunidades, tudo indica.

- Achas? Espero bem que sim.

- Com os acordos assinados creio que se tornará possível, até porque há já algum tempo que controlamos a área, espero que não seja para a perdermos novamente.

Quando o garçon trouxe os pratos principais, a conversa já tinha versado para assuntos menos emocionais e, para qualquer bom observador, a linguagem gestual revelaria os horizontes de um namoro futuro que, sem desconfiarem, assentara arraiais em praça comum.