quarta-feira, 12 de junho de 2013

VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA



VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA
Por Jurema de Oliveira
Resumo: Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.
Palavras-chave: tradição, oralidade e insólito
O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).
O presente trabalho tem por objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo escolhemos as obras dos autores Boaventura Cardoso e Fragata de Morais.
Boaventura Cardoso é autor de Dizanga dia muenhu (1977), O fogo da fala (1980), A morte do velho Kipacaça (1987), Maio, mês de Maria (1997), O signo do fogo (1998), e Mãe, materno mar (2001), enquanto que Fragata de Morais escreveu Como iam as velhas saber, A seiva, Jindunguices (1999), Momento de ilusão (2000), Amor de perdição, Antologia panorâmica de textos dramáticos, A sonhar se fez verdade (2003) e A prece dos mal amados (2005), O fantástico na prosa angolana (2010) Batuque mukongo (2011).
O século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida, as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos sustentadores do gênero insólito:
[...] o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).
Nessa perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”, a base da ficção de Boaventura Cardoso para quem o personagem tem sempre um movimento especial, insólito. Sendo assim, em “A árvore que tinha batucada” do livro A morte do velho Kipacaça, o elemento de destaque é a árvore:
[...] assobiei então e o silêncio da noite que apenas de vez em quando era cortado pelo vento e o silêncio da noite se engravidou então de assobios. Fiu! Fiu! Fiu! E deixei ainda de assobiar, mas o silêncio continuou a se encher de assobios. E imobilizei então de novo o passo. E ouvi então vozes: vozes. E decidi então: passinho passo progressivo. E ouvi então outravez: vozes. Quem vem aí? _ quem falou assim fui eu. Quem vem aí? _ vozearam vozes. E parece que as vozes estavam a vir então de uma árvore que estava: próxima (Cardoso, 2004, p.23).

Para Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos:
[...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’ (CARPENTIER, 2009, p. 9).
A experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso, é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 2004, p. 100) como aqueles que intrigavam o Sô Administrador:
Intrigado, Sô Administrador mandou então chamar os cipaios e falou assim vocês esta noite vão dormir na árvore para apanhar os bandidos. Estão a ouvir? Sim senhor Sô Administrador! – a resposta. Sô Administrador, ainda bem Sô Administrador está nos mandar então acaçar os bandidos que estão na Kaála, já estão abusar muito (Cardoso, 2004, p.26).
As agressões sofridas pelos “caminhantes” durante a noite nas proximidades da árvore denotam o desequilíbrio, a violência que ameaça o domínio do Sô Administrador, do Sô Padre e, por fim, do velho que sucumbiu nas águas, mas a árvore – símbolo de resistência – permanece de pé.
O recurso estilístico maravilhoso é usado por Boaventura Cardoso para explicar experiências oriundas da tradição africana, mas também àquelas decorrentes de situações conflituosas como ocorre na obra Maio, mês de Maria que cenariza o fraccionismo. O romance apresenta fenômenos extraordinários, como recuperação de enfermos, pessoas com poderes sobrenaturais como o empregado Lusala que prevê o incêndio na casa do patrão, as mortes súbitas dos agentes funerais e fiéis de N. S. de Fátima assustados a espera de milagres.
O ano de 1977 começa submerso num universo de incertezas para todo o povo angolano. Numa reunião no palácio presidencial, veio à tona o resultado do inquérito instaurado contra os niilistas. No relato final, a comissão confirmou que havia um projeto fraccionista. A partir deste fato, o Comitê Central incrimina e expulsa os principais membros: Nito Alves e José Van Dunem. A malograda tentativa de recolocar o MPLA no “trilho” da História, idealizada durante a guerra de libertação, abre espaço para as ações repressivas do Estado, que leva ás últimas consequências o desejo de silenciar os dissidentes. Por isso, “o coração se enchia de muitas palavras que acabavam por não nascer” (Cardoso, 1997, p.177) e só encontravam reforços nas preces a Nossa Senhora de Fátima, pois os homens e mulheres “fervorosos” se alimentavam candidamente na fé que move desde a década de 1960 a luta por um Estado angolano livre e igualitário, distinto daquele repleto de cães que vêm
[...] às centenas, se aproximando. Eh? Homens que transportavam o andor deram meia volta e puseram a Santa voltada para os cães, como se estivesse à espera deles. (...). De repente, quando que os cães estavam próximos dos quatro homens, a Santa falou assim: VINDE EM PAZ! Que ela falou altissonante! Eh! Eh! Eh! Todo mundo ouviu a Santa falar aquelas santas palavras. Que aconteceu depois foi extraordinário. Cães começaram estavam se transformar em homens, bons cristãos (Cardoso, 1997, p.227-8).

O real maravilhoso cenarizado em Boaventura Cardoso remonta práticas culturais antigas com cenas que gera espanto até mesmo ao grupo. No conto “A morte do velho Kipacaça”, os membros que promovem o komba são surpreendidos durante a festa, pois o morto retorna para dançar entre os seus. Segundo Todorov, o Fantástico gera “certa reação diante do sobrenatural, mas também, ao próprio sobrenatural. Neste último caso, dever-se-á ainda distinguir entre uma função literária e uma função social do sobrenatural” (TODOROV, 2004, p.166). Verifica-se a função social do fantástico na cena seguinte:
[...] no meio da queimada se vê homem em cima de pacaça de tamanho nunca visto. Tinha tamanho gigante, chifres dourados, peito debruado, patas luzentes: a pacaça. Eh! Quando a pacaça está próxima todo mundo atônito, Ehé! Ehé! Ehé! Em cima da pacaça está um homem: é o velho Kipacaça! Ehé! Ehé! Ehé! Mam’é! Tem na volta dele auréola luzidia. Amam’ééé! Pacaça se imobiliza, se agacha e Velho Kipacaça, ar imponente, triunfante: desce, Ehé! Ehé! Ehé! Mam’é!
Eh! Brioso, cartucheira cintada, arma na mão, Kipacaça atravessa mundo de gente lhe olhando só, atormentada, ama’ééé!, e entra no quarto aonde está a viúva. Mana Teresa, deitada na cama, não está se mexer. Entreabre os olhos mas não reconhece o marido. Carpideiras, as velhas, têm vozes emudecidas e olhares esbugalhados. Silêncio: fora e dentro de casa. Pouco depois vem cá fora e pergunta em tom severo: - Porque é que deixaram de tocar?! – E ordena ngó: - Continuem a tocar e a dançar! Kuatiça o ngoma! Venha a maxaxa! Cantem em memória do Kipacaça, Rei dos caçadores. Cantem e dancem! Kuatiça o ngoma! Eu estou morto!!! Katumbila é o nosso Kipacaça!
 E o Velho Kipacaça entrou na roda dançante (Cardoso, 2004, p.62-3).        
           
O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo assim, o conto “O filho” do livro Momentos de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual afetivo conduz o desfecho do conto:
Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma. (...)
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).

Numa perspectiva numerológica, o sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.
No conto “A seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30).  Essa força sobrenatural oriunda do amor era ponderada constantemente por Mbuta que:
Lembrava as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.
Convencera-se por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros, ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000, p.32).

O questionamento feito por Mbuta acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do batismo de seu bisavô materno:
Jorge contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.
‘Se Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).

Num ritual que envolve preceitos e quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma sucessão de fatos extraordinários:
Jorge Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.
Quanto a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.
Sua essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.
Silenciosa, feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.
Quando sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.
Despedindo-se no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.
A serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).

Nos contos de Fragata de Morais, o real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário sobrenatural.
O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.
A performance experimentada pelos personagens do conto “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso, bem como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual. O que nos leva aqui a buscar a fala de Boaventura Cardoso acerca do ritmo como marca constitutiva de sua obra:
Mais que a música, eu diria o ritmo, que é uma constante na cultura africana, já que a nossa vida, enquanto africanos, é muito ritmada: seja o ritmo na narrativa, ou o andar das pessoas, enfim, o ritmo da vida, a nossa vida. Nós temos muito ritmo, mesmo! Então, é essa cadência rítmica que eu, talvez, de forma consciente ou inconsciente acabo por imprimir aos textos. Na narrativa oral esse ritmo é também dado a partir das repetições, que têm uma carga simbólica muito forte. As interjeições que eu utilizo, abundantemente, por exemplo, em Mãe, materno mar, fi-lo intencionalmente. Porque quando nós falamos, a nossa linguagem coloquial é intermeada por muitas interjeições, de forma bastante diferente dos europeus, que não usam muito isso. Isso tem a ver com nossa maneira de estar, de contar as histórias com gestos, com muitas interjeições, enfim. E é um pouco isso que eu procuro evidenciar em Mãe, materno mar (CHAVES, MACÊDO, MATA, 2005, p.29).

O conto “Desencontros” de Fragata de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:
Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000, p.38).

Hernando de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:
Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).

Os acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).
O projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.
Bibliografia:
1 – CARDOSO, Boaventura da Silva. A morte do velho Kipacaça, Luanda: Edições Maianga, 2004.
2 - ----. Mãe, materno mar. Luanda: Chá de Caxinde, 2001.
3 – Maio, mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997.
4 – CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
5 – CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania & MATA, Inocência. Boaventura Cardoso:
escrita em processo. São Paulo: Alameda, União dos Escritores Angolanos, 2005.
6 – FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
7 – GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
8 – MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.
9 – ---. O fantástico na prosa angolana. Luanda: Mayamba, 2010.
10 – ---. A sonhar se fez verdade. Luanda: Inic, 2003.
12 – - - -. A prece dos mal amados. Porto: Campos das letras, 2005.
13 – Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.
14 – ----. Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.
15 – ----. Como iam as velhas saber. Luanda: Inald, s.d..
16 – ---. A seiva. Luanda: Inald, s.d..
17 – ---. Amor de perdição. Luanda: Chá de Caxinde, s.d..
18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

Mini-bibliografia da autora:
Jurema Oliveira é Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense – Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e publicou pela editora da Ufes – Edufes em 2011 o livro intitulado Entre a memória e a história: a poesia, um estudo sobre a poética insólita do escritor angolano Adriano Botelho de Vasconcelos.


segunda-feira, 10 de junho de 2013

BOM DIA, TARDE OU NOITE A TODOS (AS)




Por razões de força maior estive ausente desta página e dos meus amigos e seguidores, a quem saúdo.
Me eis de volta e espero que de maneira regular e fiel.
Entretanto, tive uma Antologia por mim organizada, "Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos, publicada em Cuba aquando da última feira do livro. Do mesmo modo, a Antologia Caçadores de Sonhos, editada pela União dos Escritores Angolanos, e na qual consto com um conto,  foi traduzida em francês e publicada pela Présence Africaine. 
No prelo, e a saírem em breve, um livro de literatura para crianças e um com uma peça teatral que, certamente aqui constarão em seu tempo devido.

BATUQUE MUKONGO




18
Adulto em mim criança
desencarno do eu centro
pergunto atento
se não me perdi
e tudo é ao inverso
mesmo do verso
no reverso que escrevi
se não seria outra a forma
louça nova da mais fina porcelana
música sagrada embora profana
se desse ouvidos ao mundo
do outro lado da porta
que me dizem ser entrada
quando a pressinto saída