quarta-feira, 21 de julho de 2010

PALAVRAS AMISTOSAS

O Daniel Teixeira publicou este testemunho no seu Jornal, o que me me lisonjeia e pelo qual lhe agradeço.

O Fragata de Morais não precisa que eu lhe diga aquilo que eu penso que ele sabe...dentro de todos os seus trabalhos que temos publicado neste nosso Jornal Raizonline (o que não quer dizer todos os textos publicados pelo autor, como se entenderá) este é, na minha opinião um dos mais conseguidos (ou mesmo o mais conseguido uma vez que a opinião é exclusivamente minha).

Para nós é uma grande honra ter o Manuel Fragata de Morais como nosso colaborador - em rigor nós é que somos colaboradores dele para colocar a verdade nas suas dimensões - e este texto, de uma clareza narrativa extraordinária, inserido no ambiente do fantástico africano ou de qualquer um outro lugar onde se mistura o natural com o sobrenatural ou o para - natural, espelha um percurso imaginado possível até certa medida, perfeitamente coerente no imaginado de tal forma que tudo se torna possível sabendo-se que é impossível.

O imaginário africano não está só (nunca esteve) e curioso é sabermos que tendo sido nós, europeus, os alegados civilizados evangelizadores, todos os dias e a cada dia vamos aprendendo sempre mais e guardando aquilo que em tempos se julgou primitivo.

Bem haja o Fragata de Morais por este e outros textos que nos tem trazido, pela poética do seu escrever, pelo lirismo conseguido em temáticas a ele tão naturalmente adversas. E obrigado por mais esta lição sobre a arte de bem escrever...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

ANTOLOGIA DO CONTO ANGOLANO - COMO SE VIVER FOSSE ASSIM






FRAGATA DE MORAIS

Nasceu no Uíge e tem vasta obra publicada.Membro da União dos Escritores Angolanos, da União dos Jornalistas Angolanos, é Embaixador de carreira, aposentado. Este conto faz parte do seu livro "Momento de Ilusão".

O FILHO

E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho...
e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando à luz,
lhe tragasse o filho.
S. JOÃO - APOCALIPSE 12


Há sete longos anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso.
No início da gravidez os médicos observaram-na cuidadosamente, todavia, à medida que os meses passavam, insinuaram uma gravidez psicológica.
Ao décimo sete mês, uma amiga, insidiosa, propôs-lhe a possibilidade de uma barriga de água.
“Não sabes o que é, eu explico-te?...”, ofereceu-se.
As íntimas, propuseram os remédios da terra, a visita aos kimbandas, aos adivinhos. Não haveria nada a perder, que não tentasse esconder o que é da terra. Mulher grávida há sete anos só pode ser curada com a tradição, com o debicar engasgado do galo.
Angustiada, cruzou as longas pernas, vestia o robe de chambre azul cor das águas e reclinou-se no cadeirão de couro da vasta sala de visitas de sua casa.
Acendeu, silenciosa, um cigarro. Não queria ser apanhada em kimbandas. Isso não. Seria o perder do pudor, sabia que os rótulos se arquitectam nos vastos silêncios sociais.
Atirou, com displicência, o fósforo para o cinzeiro e serviu, da pequena mesa ao lado uma bebida, levando-a à boca em longos e melancólicos sorvos.
Olhou para o quadro pendurado na parede oposta. Paisagem típica africana, o capim em movimento, fustigado pela brisa da tarde. Suspirou nostálgica, sentindo a paisagem embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e o copo da bebida estremeceu na mão, à carícia do vento melódico que soprava do norte. O fumo nervoso do cigarro esvaiu-se no ar, rumo ás nuvens onde pairavam as águias das palmeiras, enquanto que, contemplando o momento de ilusão, acabou por tombar adormecida anestesiada pela angústia do desassossego, ao badalar dos pios angustiados do mocho ora desperto na árvore soberba.
O marido entrou na sala, olhou o rosto tranquilo e ainda fumegado do cigarro meio perdido de cinza, e retirou-o da mão palpitante.
As águias das palmeiras gritaram estrídulas.
Como todos, igualmente pensara que a estória da gravidez fosse passageira, e por essa razão acarinhara os anseios da esposa, nunca a desfalcando de amor e compreensão.
“Olha a criança mexeu, o nosso filho mexeu, não viste?”, dizia-lhe, mão no ventre ofegante.
E com este acanhamento vestido de verdades aparentes, foi contando aos parentes e amigos as vicissitudes de futuro pai.
Por volta da gravidez psicológica começou a não conseguir pôr cobro à chacota mal disfarçada, aos ditos apenas sussurrados à sua passagem.
O desânimo aproximou-o mais da esposa e passaram horas de deleite encontrando nomes para a criança, para o filho.
“Sim só poderá ser um menino”.
Inventaram creches e escolas.
Mas quando qualquer dúvida renascia, quando o terror se lhe assenhorava da alma, fugia tinhoso para a amante, pronta e aberta, que o compensava pela gravidez inexplicável, mesmo se, no expirar do tempo, partia mais triste do que viera e mais vazio do que chegara, revertido criança na estórias meio contadas dos adultos, de ser ele o filho do dragão, o fruto do pecado e da vergonha sempre eterna que lambe as labaredas do inferno.
Seu pai, era tio de sua mãe.
E na descendência dos mal amados, os antepassados obrigá-lo-iam a carregar até aos fins do caminho, a sarna que há sete anos passara para o ventre frutificado da esposa.
Só poderia ser isso.
Agarrou o sufoco e embrenhou o medo nos seios flácidos da amante.
Regressou a casa encontrando a mulher ainda no mesmo lugar, adormecida. Pensou em acordá-la, não o fez, sentou-se no cadeirão e teve a leve sensação de sentir a carícia do vento no rosto.
No véu de uma memória que não era a sua, o cadeirão de couro da sala era o tronco seco já meio apodrecido no capim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a brisa suave com as mãos, enganando o desespero que a cingia porque, em breve, seria a época das queimadas, a derruba do nicho incestuoso do amor, e assim não poder encontrar-se com o tio para as rezas suplicantes da carne.
No tempo do cacimbo, a terra reveste-se de castanho seco, a mata ressequida é chama lambedora do fogo posto, impudico em labaredas devoradoras. De um momento para o outro, o que era abrigo e escondia momentos prazerosos, nada mais seria do que um descampado com nascente capim verde, pasto das seixas, dos veados, até mesmo das pacaças mais afoitas.
Na espera do tio, deitou-se não longe do tronco e pressentiu, que alguém se sentara. Soergueu-se com ansiedade mas não, não fora o tio que chegara, aliás tê-lo-ia visto.
Recordou o momento acre-doce de devaneio, da entrega rendida ao latejo do desejar. Tinha quinze anos e o tio vinte e oito. Verdadeiramente nunca conseguira explicar por palavras ou pensamentos conscientes como tudo começara, o que a dominara, possuíra, feita animal envolta nos perfumes do cio manifestado.
Uma tarde de calor, o capim alto observando-a, aconchegando-a, excitando-a ao âmago, foi a carícia que fez jorrar a água das fontes internas do desejo. Abrira a blusa e expusera os seios negros e luzidios ao beijar da brisa, ao restolhar das folhas próximas das árvores.
Mulher feita, mulher desejando, arfando sem motivo aparente. Mulher fêmea em aromas vaporosos, ainda que não sabendo.
E quando o tio apareceu feito vadio, como que não conhecendo das tardes de calor da sobrinha, ela fez que não sabia do desejo e do ardor, pretendendo que nunca desejara o que então estava pronto e sacrificial.
E talvez até tivesse sido assim.
Na escuridão da eterna culpa e no despir da razão vacilante, em jeito de despedida, sem saberem ou desejarem, na morte da alma entregaram-se arfantes.
Deram-se a carne perante os olhares nunca adormecidos dos que eternamente vigiam, dos que vivem nos fundos dos rios e das lagoas. E dos que percorrem os caminhos tortuosos dos matos nas noites de luar cheio.
Quando se sentiram saciados, lambuzados do mel e da água viscosa que brevemente os unira na perdição, ficou como marca do diálogo que os corpos mantiveram, a brusca revoada das perdizes assustadas com o lancinante grito de dor do conhecimento que ganhara.
O sangue virginal no capim não foi chorado nem cantado pelas mulheres, como deveria, em afirmações honrosas. O último pingo da seiva amorosa que escorrera envergonhado das carnes já marcadas pela maldição, teimosamente agarrou-se à pequena espiga dobrada, até que a hiena sequiosa o lambeu em gargalhada esdrúxula do pôr-do-sol.
Nunca mais se falaram, quase nunca mais se olharam, mas nos momentos inseparáveis em que ambos sonhavam com as águas do rio transbordando raivoso pelas margens, nesses momentos, como que por acção fatídica, encontravam-se para o amor, para a troca de fluidos, sempre sob a vigilância acesa dos olhares albinos dos que nunca adormecem, dos que vivem com os caranguejos doces.
Aos dezassete anos engravidou. Pérola lançada no chiqueiro.
O tio, em fuga para terras longínquas e inacessíveis, lugares inenarráveis, ninguém mais dele soube.
“Acusa o padre da missão, já tem dois filhos.”, Recomendou-lhe ainda.
Aos dezassete anos engravidou minutos quando foi derrubada a árvore ainda verdejante dos sonhos.
“Acusa o padre da missão, não sejas parva.”
Engravidou horas, dias, semanas, até o aterrador compasso do tempo não permitir mais aquele esconder do inevitavelmente inescondível.
Engravidou desesperos e raivas ancestrais obscuras que desconhecia.
Das mãos paternas, medrou chicotes cavalomarinhados em sulcos ardentes fendidos no corpo tenro, na ira sempre justa e profunda da família secular, e na dança das kiandas injuriadas
Foi fechada, desterrada para o convento das madres carmelitas até ao fim do pernoitar do pecado, para o nascer alvoroso do dragão encarnado, já que a noite não é para ser vista com os olhos do dia.
No parto-morte clamou por vingança no nome daquele que fustigara sua inocência, que saciara seu desejo de virgem-fêmea não conhecedora das regras com que a natureza joga o jogo dos calores e dos suores.
Pois que a natureza se vingasse.
Gemeu as entranhas até o filho nascer e, ao sustentá-lo brevemente nos braços para lhe inculcar todo o fundo tenebroso de sua alma, cuspiu com o olhar embaciado pela dor a maldição perpétua e autófaga. Só então sentiu a força das lagoas profundas a puxar, feliz e liberta.
Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não da febre mas do desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.
A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.
“Que situação ridícula, não posso”.
Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma.
Em seguida veio a paz e o ruído meigo das cataratas deslizando sobre as rochas em musgo.
Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.
Do carcomido ventre da esposa saiu assustado um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas.
O corpo da mulher exalava todo o perfume e aromas mornos das festas das divindades aquáticas.
Ele, coitado, anunciava feliz aos rostos contritos de ansiedade, que o contemplavam em silêncio, que o filho finalmente nascera.
Agora que o desculpassem, teria que ir buscar mel ás colmeias e leite ás tetas das cabras para o alimentar.

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



DYA KASEMBE

Pseeudónimo lieterário de Amélia de Fátima Cardoso, nascida em 1946, em Mumbondu-Muxima, licenciada em Filosofia pela Universidade de S. Dennis, França. Tem vários livros publicados pela Editora L’Harmattan em França e dois pela Editorial Nzila, nomeadamente as “Mulheres Honradas e Insubmissas de Angola” e “Os Amores das Sanzalas”, de onde foi retirado o conto aqui inserido.

TUMUKA

Esta história, muito curta, é talvez a mais insólita de todas as que narramos neste livro!
Estamos em 1953… A Jangada era uma grande barcaça a remos que sem parar transportava viajantes, mercadoria, algumas vezes até viaturas e animais, melhor dizendo, tudo o que era passível de ser transportado, de uma margem a outra do rio que separava o Dondo Kandange. E um belo dia, A Jangada depositou na margem, em Kandange, um Branco, barbudo e de olhar vítreo. O soba da sanzala foi avisado porque o homem tinha chegado sem bagagens e tinha um ar doente, além de que não possuía nenhum documento que permitisse identificá-lo…
Imediatamente, achou-se que ele era uma assombração, um espírito vindo do nada. E a partir desse instante, ele tornou-se o TUKUMUKA (espírito vindo do nada).
Ele tinha ancorado ali, da mesma forma que os destroços de um braço perdido no alto mar acabam por dar à costa. Quem era ele? Um aventureiro em busca de mudança de vida? Um boémio? Quem poderia saber nesta vila do fim mundo? Era branco, o único Branco entre estes indígenas indolentes e menos apressados que o próprio tempo. Seu nome?... Os habitantes alcunharam-no de Tukumuka. Era como uma espécie de fenómeno vivo, aparecido ali, repentinamente, vindo de parte alguma, uma coisa insólita, a que acabamos por nos habituar. Ali estava ele, nesta vila de Kandange, no sudeste de Angola, a alguns milhares de quilómetros da sua Bélgica natal. Para os habitantes de Kandange era uma espécie de amuleto ou porta – desgraça que lhes havia caído em cima, mas de um certo ponto vista era também uma sorte que deviam conservar. Portanto ele era, ao mesmo tempo, temido e adulado. Apreciavam-se os eventuais malefícios. Tukumuka, ninguém conhecia seu verdadeiro nome nem ninguém lho perguntava.
Foi quando Tukumuka mostrou a foto - que ele conservava como único precioso bem da sua vida - desta mulher que ele chamava Madó. Que os aldeões de Kandange puderam então construir uma história à volta do personagem…
Os habitantes nunca tinham visto um Branco chorar; chorar de fazer partir o coração. De uma forma tão apaixonada por uma moça negra, e ainda para mais a filha da feiticeira do fim da estrada. Encontram nisso mais uma razão para o protegerem.
Ele não tinha a fisionomia do português colono, que fazia razias na aldeia, de vez em quando, para lhes demonstrar a sua força e que ele e seus congéneres eram os senhores. Mas então donde é que ele tinha saído?
Todos imaginavam as respostas mais plausíveis, mas ninguém achava a resposta certa ou confirmada.
O facto estava “consumado” e Tukumuka fazia agora parte integrante desta aldeia do fim do mundo. Foi adoptado, naturalmente, pela população. Sim! Era uma das qualidades dos habitantes da sanzala, uma ingenuidade, uma bondade, o facto é que deixavam entrar nas suas terras qualquer ser humano sem nenhuma desconfiança. Ninguém sabia quem Tukumuka nem ninguém lhe havia perguntado porque é ele estava lá.
Tudo o que se via ele era branco e estranho.


A FOTO

A filha da feiticeira do fim da estrada vivia na cidade, onde para alguns, a mãe tinha mandado para encontrar um marido. Na cidade, entre os brancos, ela fazia-se chamar Madó, mas o seu nome verdadeiro era Zenza. A população viu em Tukumuka uma prova flagrante da eficácia da feiticeira.
A mãe de Zenza, Dona Chiquita, fora antigamente uma bela mulher cortejada por todos os homens da vila; mas apesar da sua beleza nenhum homem a quis para esposa. Ninguém sabia quem era o pai de sua filha Zenza e ela também não revelava o seu nome. Todas as suspeitas caíam sobre o mais notável dos mais velhos da vila, porque ele era o único a proteger mãe e filha, enquanto todo o resto da população as rejeitava. Esta animosidade era mais velha que o próprio tempo. Várias gerações família sofreram a mesma descriminação, sem que alguém soubesse a causa ou o motivo. Era assim. Esta rejeição tinha-se tornado quase instintiva. As mulheres não se queixavam e os habitantes também não as perseguiam.
Evitavam os conflitos por medo das maldições de Dona Chiquita. Esta era considerada na aldeia como feiticeira, reputação que já tinha herdado de seus antepassados, já catalogados pela sorte. Como saber a verdadeira história?
E como advinha-la se os responsáveis pelos rumores também não a conheciam, nunca a tinham sabido, e se esta ignorância da origem do rumor era o facto de se terem passado sucessivas gerações? Tudo se tinha perdido, apagado pelo tempo…
Enfim, o rumor que manchava a reputação de Dona Chiquita não tinha qualquer fundamento; era uma mulher já emancipada, levava a vida como muito bem entendia, dando a mesma educação a sua única filha. Mas, nesta sanzala, tal comportamento era motivo de mexericos e condenações.
No entanto, e aí estava mais um paradoxo, os habitantes não proibiam Dona Chiquita de se deslocar à vila, e todos pareciam respeitá-la, mais ou menos, talvez por receio. Para evitar os choques com os habitantes, Dona Chiquita vivia retida com a sua filha que tinha sido obrigada a baptizar com um nome aceitável para as autoridades colónias, que não autorizava os nomes indígenas; além de que toda a criança baptizada deveria ter um colono como padrinho ou madrinha. A madrinha de Madó chamava-se Magda; tinha sido, antes e durante muitos anos, a patroa de Chiquita.
Madó trabalhava no bar de um grande hotel na cidade, o ponto de encontro der todos os cooperantes e outros Brancos que desembarcavam no país. Mulher atraente pela sua graça e simpatia, ela tinha enfeitiçado o belga, de seu verdadeiro nome, Jean-Charles, a seguir baptizado Tukumuka pelos habitantes da via de Kandange.
Jean-Charles era de nacionalidade belga, ficava no país natal cada vez que o marido assinava um novo contrato para trabalhar numa ou noutra companhia de diamantes de Angola. Ficava nove meses sem ver a família e, todos os meses de Dezembro voltava à Bélgica para depois regressar a Angola no mês de Março. Este foi o seu ritmo durante anos.
1953, deveria ser o último ano, pois, sob o ponto de vista financeiro, tinha praticamente realizado o seu sonho: possuir uma bela casa com piscina, uma bela viatura de quatro portas e um jipe todo-o-terreno. Sentia-se cansado e achava-se disposto a viver com os bens já adquiridos durante anos de sacrifícios. Faltavam-lhe cumprir ainda dois meses de contrato, antes de partir definitivamente para a sua Bélgica natal…
E tudo balançou. Aquilo começara como uma banal ligação com Madó, unicamente provocada por um desejo físico. Depois passou a ser ao ritmo de um encontro por mês, depois por semana e terminou por um relacionamento mais sério. Jean-Charles vinha todas as noites ao bar; esperava pacientemente até que Madó terminasse o seu trabalho, e saíam juntos. Acabou por alojá-la em casa dele. Rapidamente sentia-se no direito de a proibir de sair com qualquer outro. Para ele, Madó tornou-se uma obsessão. Proibiu-a de trabalhar, depois de sair, simplesmente. O que no início tinha sido delicioso, tomou o aspecto de um tormento com sequestro. E fechava-a quando partia para o trabalho.
Madó sentia-se infeliz. Um dia, ele esqueceu a chave na porta aproveitando esta aberta, Madó fugiu para sempre. Ninguém sabia onde é que ela estava, nem a própria mãe. Desde esse dia Jean-Charles não foi mais o mesmo. Abandonou o trabalho, esqueceu a família e a pátria… Pôs-se a errar pela cidade como um vagubundo, na esperança de um reencontro Madó.
E Jean-Charles tinha aportado ali, em Kandange, debaixo de um embondeiro gigantesto que lhe servia de abrigo e sob o qual a população tinha construído uma cabana para abrigar o seu Tukumuka.

In “Os Amores das Sanzalas”, Editorial Nzila, 2006

SUMAÚMA - POESIA


TUA BOCA

Tua boca
acre
vazar
da maré

onda baloiço
onde baloiço


CANTAR

Pudera cantar
o que sinto

me oprime

sem lágrimas
feitas chuva

em teus
braços negros

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


A PALAVRA

Há muito que me preocupo com a Palavra, não no sentido etimológico, mas sim a partir do livro primeiro, bíblico.
Ao tentar encontrar uma explicação para mim aceitável, começo por visualizar o Criador, sozinho e a “viver” no abstracto, nem nas trevas nem nas luzes. Qualquer uma delas inexistia, aliás nem o sentido de abstracto tinha despacho oficial.
Tudo teve existência formal a partir da palavra, para quem acredita no Livro. Só pode.
Vamos que, de repente e sem mais, o Ente dá conta da sua solidão infinda e acha merecer companhia. Reinventa-se próprio e cria a Palavra, para dar sentido aos actos pessoais, já que sem ela, nunca poderia ter ordenado faça-se isto ou aquilo, separem-se os céus da terra e haja dia, haja noite. A criação da vida foi pois um acto linguístico. E aqui é onde mais sofro, porque me questiono em que língua terá o Ente falado, primeiramente consigo próprio (quando qualquer rugido serviria) e, seguidamente, com Adão.
E Adão para com Eva e seus filhos, que língua terá usado? A mesma, vulgarizando deste modo a língua divina que os precedeu?
O que terá levado Adão, perante o facto de ter de nomear a bicharada nos ares, nos mares e na terra, a chamar porco ao porco, e não pig, cochon, ngulu? Com que intenção? Simples alcunhas atiradas aos ventos, ou produto de uma observação e reflexão propositadas, todavia sem sentido já que, imagino, os conceitos, a existirem, seriam novidade?
Se formos a fazer contas, porque tudo foi elaborado em seis dias úteis de trabalho, e partindo do pressuposto de que haveria mais espécies animais e vegetais do que hoje, logo chegaremos à conclusão que a matemática está errada.
Seriam necessários muito mais dias para Adão inventar a palavra adequada e colá-la ao respectivo endereço, sem perigo de repetição ou amnésia, sem esquecer ainda de que, naquela altura, na floresta os bichos falavam. Até que ponto poderiam ter interferido nos seus próprios nomes? Porque é que a cobra aceitou ser denominada de cobra e não de Afonso ou Marinela, por exemplo?
Imaginemos um diálogo destes, entre o Ente e o primeiro Homem.
“Tata ngana (não sei como se endereçaria Adão, que tipo de relacionamento ou familiaridade haveria entre os dois), está ali um outro parecido comigo, mais baixinho e cheio de pelos pretos, a dizer que também se chama Adão, só porque Te ouviu dares-me o nome”.
Sem prever que iria criar uma confusão de linhagem milhões de anos mais tarde, o Ente pretendeu ser de ajuda.
“Não te aborreças, só não erra quem não trabalha! Chama-lhe chimpanzé” (traduzido do suposto idioma original).
Satisfeito, Adão continuou a tarefa de apodar os seres, com o agora quase-parente ao lado, em amena cavaqueira. Primo é primo!
Por certo Adão não encontrou dificuldades maiores a nomear a bicharada, qualquer palavrão servia, não obstante o vocabulário reduzido. Só então se inventavam as palavras, à medida das necessidades. Não havia ainda aqueles termos difíceis, como direitor, que todos chamam ao superior que, mais adequadamente deveria ser director (que se lixe o acordo hortográfico), significa dizer, que já per si significa dizer, internet, jet ski, kimbanda, nissan patrol, s’ingravidei-se, já puzeu a mesa? , sim já puzi e, graças a Deus, que não está a chuvar lá fora.
Mas para não fugir ao assunto, o que verdadeiramente me pica, é saber que língua se falava no Início?
Ao acreditarmos no Livro, o idioma único até o acontecimento de Babel, teria que ser o Hebreu. Lógico! Evidente! Incontroverso!
Não só por serem os diálogos primordiais trocados com as várias entidades bíblicas nesta língua, como os seus faladores, supostamente o povo eleito do Ser, também o utilizarem. Todos os troncos da Humanidade, segundo o Livro, daí advieram e um tronco comum só poderá ter a mesma seiva, a não ser que afinal, como nos é atribuída a paternidade da Humanidade, tenha sido Swaili, o que se fala ali no vale do Olduvai., de onde saíram os parentes originais.
Todavia, quando apareceu a oposição, com a expulsão dos anjos rebeldes do paraíso, é lícito de se supor que a língua do regime único, milhões de anos depois rebaptizado (que se lixe o acordo hortográfico) de Estalinismo, tenha encontrado contestação e prevalecido nos moldes originais, por esse facto. Por razões óbvias, não se pode imaginar a oposição, coitada já então no inferno, a falar o mesmo idioma!
Pode parecer-vos gozação de minha parte, todavia não é, são questões existenciais que me coloco amiúde.
Sugiro que a rádio Ecclésia gaste um dos seus sábados matinais, a debater esta candente questão com os seus participantes a que já nos habituou e, meus amigos, honni soit qui mal y pense!

Dezembro de 2004