segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO



(Capa provisória)

Quando me veio a ideia de elaborar a presente antologia, de imediato se me colocou a grandeza e delicadeza da tarefa face à vasta gama de escritores nacionais, e sobre o que eu poderia antever como imaginário, fantástico, real e ou irreal, entre muitas outras perspectivas, numa sociedade em que as fronteiras entre o mundo visível e aquele invisivel sempre estiveram tão intimamente ligadas.

Face à oralidade das sociedades africanas, da qual Angola não teria como escapar, este universo de ambiguidade não poderia deixar de ter residência visível nas diversas obras dos escritores angolanos que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram férteis na produção de textos em que diversos mundos se interligavam com acontecimentos estranhos, acontecimentos que com muita frequência fugiam ao entendimento de serem ou não reais perante a percepção do aceitável e ou do credível.

Óscar Ribas, um dos mais conceituados nomes da etnografia nacional, nascido em 1909 e já falecido, autor de vasta obra em que recolheu a extremamente valiosa literatura oral africana na zona de Luanda, afirmara que os contos ordinariamente reflectem aspectos da vida real. Neles figuram as mais variadas personagens: homens, animais, monstros, divindades, almas. Se por vezes, a acção decorre entre elementos da mesma espécie, outras no entanto desenrolam-se misteriosamente, numa participação de seres diferentes.

Confrontei-me, deste modo, com a questão do fantástico, algo que não pode ser explicado via racionalidade, e com as possibilidades do verosímil versus o inverosímil, o real e o sonho, o natural e o sobrenatural. O que procurar, o que e como inserir? Seria o fantástico, o estranho, o maravilhoso e a fantasia contidos na panóplia de obras de escritores angolanos a mesma coisa? Quedar-me-ia unicamente com o texto, vamos chamá-lo por contraposição adulto, ou igualmente com o tradicional, o juvenil e o infantil? Na oralidade africana, contar, o sunguilar, é parte intrínseca da vida. É às noites, sob o agasalhar dos fogos, que as tradições, os usos e costumes são propagados de geração em geração, através dos contos, das estórias, das adivinhas, dos provérbios. Contar, relatar, gravar na memória colectiva é uma das acções mais antigas da história da humanidade, reflectidas em testemunho nas grutas espalhadas pelo mundo inteiro.

Acho que me preocupei mais com os aspectos do estranho, do maravilhoso, talvez mesmo até do insólito, na recolha que levei a cabo, deixando o fantástico maioritariamente para a literatura tradicional e para a literatura infantil, narrativas em que o narrador ou o escritor mais se preocupa com a mensagem, com a valorização moral e com um fim que transmita uma postura considerada de funcional na sociedade.

Tzvetan Todorov, um filósofo e linguista búlgaro desde 1963 a viver em Paris, no seu livro “Introdução à Literatura Fantástica”, estabelece normas a respeito do fantástico na literatura, diferenciando entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Segundo ele, em um mundo que é o nosso, que conhecemos (infira-se ocidental e moderno), sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então essa realidade está regida por leis que desconhecemos… O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um género vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.

Não irei referir nesta apresentação o que me levou a incluir um e não outro escritor, até porque a linha divisória não me permitiu estabelecer fronteiras entre o estranho, o maravilhoso sempre existindo um subgénero transitivo entre eles. Segundo Todorov, seja como for,não é possível excluir de uma análise do fantástico, o maravilhoso e o estranho, géneros aos quais se sobrepõe. Acho que os contos e os excertos de textos mais largos que me serviram de base, englobam-se largamente no objectivo a que me propus.

Fragata de Morais
Coordenador

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

HARVARD UNIVERSITY

Tive o prazer de ver o meu blogue adicionado no Department of Romance Languages and Literatures desta prestigiada Universidade, para consulta dos seus estudantes de literaturas africanas de expressão portuguesa. Alegro-me em compartilhar este sucedido, que abre assim uma porta de informação literária sobre Angola e um escritor seu.

domingo, 4 de outubro de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPÍTULO SEIS



Os sonhos dos gatos
são povoados de ratos.

(Provérbio libanês)

Nataniel colocou o intermitente a sinalar que iria virar para a direita e reduziu a velocidade. Na porta, os guardas bateram continência e ergueram a barreira. Conduzindo com cautela, devido aos pequenos grupos de pessoas que circulavam entre os vários edifícios que compunham o que se denominava genericamente Hospital Militar, enveredou para a primeira travessa à esquerda e estacionou junto ao pavilhão dos registos centrais.
Não obstante serem oito da manhã, o calor começava a criar um mal-estar que agudizar-se-ia a partir das onze, ou meio-dia. O ar abafado que pairava sobre a cidade, impregnava-a de um cheiro peculiar. Odores fabricados por uma cidade suja e abarrotada, numa vastidão inconformada de lixeiras, onde mendigos, moscas, mutilados, moscardos, deserdados da vida, cães famintos e crianças sem um amanhã, procuram o seu quê de comida, o seu quê de fé. Buscam o trapo farrapo que sirva de calção. O parafuso que alinhe o fuso da existência enroscada. O prego enferrujado que sustente a viga torta pregada no tecto de zinco carcomido pela memória do tempo. Procuram, buscam, remexem, desenterram, reviram, apalpam, exumam restos dos restos, permanentemente na procura ávida de um pouco de esperança, esquecida vezes sem conta no cavado de uma lata de leite-de-moça meio acabada, onde ainda ecoa o arroto saciado de quem a usou e a atirou fora.
Por uns instantes gozou o ar condicionado da viatura, escutando o que restava da entrevista que a deputada ministra da saúde concedia a um programa radiofónico, gravada na véspera, em que afirmava que a meta a atingir seria a da saúde para todos no ano 2.000. Quanto despudor, quanta desfaçatez implícita na afirmação. Só se poderia acreditar em tal, caso a intenção viesse a ser bafejada pela intervenção divina porque o objectivo nela contida pecava pela omissão, pela análise da realidade nacional, nomeadamente a extrema pobreza, o subdesenvolvimento, as estradas fechadas e pontes partidas, as minas de todo o tipo plantadas a esmo pelo país, a inexistência de produção interna, o analfabetismo crónico, a mortandade generalizada nos hospitais, lares, ruas, contentores, becos ou prisões, o subemprego, o desemprego, o mal emprego.
Um colega bateu no vidro e acenou um bom dia, apontando para o relógio de pulso. Nataniel sorriu e tentou concentrar-se no sprint final do que a ministra dizia sobre a saúde pública, área que lhe era de interesse particular. O celular tocou e atendeu, preparando-se para sair, já que não conseguia prestar atenção. Desligou o motor do carro, enquanto a mulher, Nazamba, lhe recordava o almoço na casa do general Tadeu mais tarde, e pedia-lhe que não esquecesse de comprar um ramo de flores para oferecerem a Lucinda.
 Sabes que me é difícil sair daqui...  tentou desculpar-se.
 Manda lá a tua secretária ou a enfermeira, Nat, aí mesmo à frente há uma casa que vende flores, não podemos ir sem levar nada.
Conseguiu abrir a porta e esgueirou-se, com o volante a barrar-lhe os movimentos porque tentava sair com a pasta debaixo do braço.
 Está bem, eu resolvo isso, não te preocupes. Como está o nosso filho esta manhã?
- A não ser que seja minha imaginação, senti um pontapé.
- Pontapé? A criança ainda não te pode pontapear – disse-lhe a rir - Posso ligar para ti daqui a um momento, estou a tentar sair do carro.
- Deixa querido, só desejava recordar-te as flores.
- Está bem, ligo mais tarde, cuida de ti e não te esqueças que te amo. – Lançou-lhe um beijo e desligou.
Como o tempo passa, ainda parece que foi ontem...
Afirma-se permanentemente que o tempo passou, olha-se para os filhos dos outros e logo se afiança, como o tempo passou!... À descoberta do primeiro cabelo branco grita-se um terrível, oh meu Deus!... Sempre na eterna esperança de que o tempo passe sem passar, não se discernindo, a não ser na curiosidade infantil através de uma qualquer pergunta que possa parecer estúpida, que o tempo não tem significado.
Um ano de casados poderá ser tanto um bilhão de anos-luz, quanto os simples doze meses em que se convencionou dividir o denominado ano solar. Em qualquer dos casos, merece, por amor às variadas convenções matrimoniais, ser festejado com um almoço e um ramo de flores.
Nataniel era o director para a área hospitalar, e atendia ainda os doentes no período da manhã. Nunca se vira talhado para a burocracia dos gabinetes, todavia, por militar que era, sabia que ordens eram para ser obedecidas, a fase acabaria por ter fim próprio, e ver-se-ia alçado para outros destinos, talvez aqueles que ele mesmo pudesse esculpir com denodo e propósito.
Entrou pela porta lateral, para se furtar à longa e ruidosa fila de pacientes que aguardavam, na pequena sala. O corredor, quase intransitável com a afluência de gente encostada às paredes à espera da chegada dos médicos, mais parecia uma feira de fim-de-semana.
- Bom dia colega, ouviu a entrevista da nossa ministra? – Cumprimentou-o um outro médico.
- Bom dia Dr. Aristides, por acaso ouvi, mas pouco de novo disse.
Um amontoado de mutilados, a maioria sentados com as muletas entre as pernas ou apoiando-se nelas, quase todos deficientes desses membros, um sem as duas, sentado numa cadeira de rodas conversava efusivamente a um canto. Todos sentiam-se donos do tempo, mesmo quando o não eram, nem sequer das próprias vidas mais do que nunca tornadas incertas e errantes. Nas noites escuras das suas almas, rebolando nos suados colchões para além das insónias, das dores, dos medos fantasmagóricos ancestrais, rebelavam-se em silêncio contra os invejosos que através dos feiticeiros haviam enviado a praga que lhes comeu as pernas, os braços, as mãos, até mesmo o rosto, quando não pernas e mãos, braços e pés, e, pior de tudo, que lhes comeu as ilusões e as expectativas definidas e por definir, de vida.
O tempo que julgam ter, diminuirá até ao retrocesso que dividirá o positivo em negativo, o momento em que se saberá do futuro e não do passado, a caminho do reencontro de Adão com o Criador, revertido ao Paraíso, e esquecido mais uma vez do mal e do bem, da maçã e da Eva. O barro troglodita original, esvaziado do Sopro que lhe conferira carne e pouco espírito, cairá para o chão feito pó, de onde fora recolhido. E na sua solidão reconquistada, Deus mergulhará por fim nas trevas do caos de onde dimanara, sem que nunca a sua mente tenha sido entendida, talvez pela inexistência.
O corredor, com a passagem constante de gente, representava a diversão que os fazia momentaneamente esquecer os membros perdidos, deixados em qualquer mata da guerra a fim de que a saciedade dos deuses do acaso, num jogo de cabra-cega, decida quem vai ou quem fica, quem chora ou quem ri, quem agradece ou amaldiçoa a parte que lhe coube. E aos que se despiram da mente petrificada no horror daquele segundo, os mais afortunados, restaram as cidades onde se viram donos das suas ruas e becos e nas quais se transformaram em patrões absolutos dos contentores abarrotados dos restos dos comeres dos saciados. No fim da escala, aqueles a quem a perda da mente deixou o eco da violência no trinar da explosão metálica do engenho, restou-lhes a clausura tenebrosa em hospícios onde se convive e vive com o profundo do inconfessável, agrilhoados, amarrados, manietados e amordaçados, no abençoado silêncio do que não se vê.
Assim, sem atento às próprias deficiências e sofrimento, riam das dos outros por as acharem, à vista, piores ou mais confrangedoras.
- Bom dia, Natália. – Cumprimentou, com um sorriso, a enfermeira assistente.
- Bom dia, senhor doutor, como está?
- Menos mal, mas sempre se está menos mal quando se começa o dia, não é?
- Tem muita gente a atender, houve internamentos devido a um ataque no Kwanza Norte.
- Sim, já sabia. Esta maldita guerra nunca mais acaba, só porque há um facínora que sonhou ser presidente.
- Há-de acabar um dia, esse monstro não poderá viver para sempre.
- Sim, mas entretanto estaremos todos velhos, mais uns tantos milhões de angolanos terão morrido, o país todo destruído e ele sem nunca ter sido presidente.
- Há-de acabar doutor. – Reafirmou a enfermeira. – Mas tomaram mesmo o Golungo Alto?
- Não, atacam e fogem. Matam, roubam, levam as crianças, enfim, aquilo que sempre fazem.
- São gente sem consciência, assassinos.
- São muito pior que isso, a guerra é uma coisa cruel, mas estes vão para além da crueldade.
Ele próprio experimentara que as frentes de batalha, nas quais achara a comunhão dos companheiros perante a inevitabildade da aniquilação mútua, foram um vasto campo de aprendizado quanto ao comportamento humano e valeram-lhe, como experiência, talvez tanto quanto a cadeira de psicologia na universidade. A dor permanente, ainda que meio anestesiada, que lhe roera a consciência nos hospitais de campanha nos campos de batalha, libertara-o, na cidade, dos instintos primários de fera acuada no turbilhão da selvajaria humana perpetrada sobre semelhantes. Viu-se médico transformado em mecânico de seres humanos, a concertar gente meio estraçalhada entre a vida e a morte, tendo que se narcotizar na insensibilidade a fim de que a mente não estilhasse inesperada em sobrecarga.
- Acho que primeiro vou tomar um café e concentrar-me, poderá ser, Natália?
- Vou já prepará-lo, doutor. Quer umas bolachas a acompanhar?
- Não, obrigado. Só o café.
Reviu os momentos em que se perguntou vezes sem fim, se alguma guerra poderia ser considerada justa e o que faria se tivesse que tratar ou salvar com igual prontidão e dedicação uma vida do lado oposto, uma vida inimiga? Qual a mais valorosa, a de mais valia face à consciência e às virtudes cristãs embebidas pelos missionários e que a lavagem cerebral em Cuba não conseguira extinguir por completo? Não sabendo o que responder a dúvidas tais, e para manter a sanidade mental, empederniu-se na justificação de que na guerra não poderia haver espaço e tempo para a consciência. A consciência era uma benesse a ser banida, algo como a apendicite, presente e aparentemente desnecessária. Advogava, assim, que os chavões clássicos políticos, as palavras de ordem impregnadas a golpes de martelo ideológico, as técnicas marciais tanto da guerra quanto da mente, aprendidas em academias militares, teriam forçosamente que liderar os passos do soldado para que pudesse manter nas mãos o objecto mortífero da preservação própria, a arma. Nada mais. Com esses dois ingredientes alcançam-se vitórias e produzem-se os suicidas que, quando bem sucedidos, se transformam nos heróis que atapetam a via da consciência marciana colectiva, e ajudam a formar a Pátria.
O celular soou novamente, levantou a capa, reconheceu o número e não atendeu, deixou-o retinir até ao fim, depois desligou-o.
Pode esperar, falo com ele mais logo.
Nos hospitais de campanha, por vezes com os obuses a sobrevoarem em cruzamentos sibilantes, o medo fora o mais lúcido e temperado dos amigos que o acompanhara, aquele que o levara a dedicar-se com eficácia à missão de curar e salvar com a noção sempre presente da auto-preservação, o instinto com que a natureza dotara todas as bestas, das irracionais às contrárias. Face ao cataclismo, desde os primórdios da existência, tanto o homem quanto o bicho fugiram aterrorizados por igual. Ele, não era da estirpe dos heróis ou dos loucos. Seu medo era controlado e nunca contra ele lutara, pelo contrário, reconhecera-o e aceitara-o como a bússola orientadora das decisões acertadas. As paredes cimentadas do vasto hospital concediam-lhe a segurança e a tranquilidade não conhecidas nas enfermarias de campanha, onde o simples vento a ondular na tela das tendas moldava as assombrações da infância, porque a natureza a tudo se sobrepunha, indelével. Inadvertidamente pensou nas flores a comprar para satisfazer a urbanidade das relações.
A enfermeira entrou, colocou as fichas dos pacientes que tinha a examinar em cima da secretária.
- Deseja já o café ou daqui a mais um pouco?
- Pode trazê-lo já, obrigado.
Olhou-a de soslaio e espreguiçou-se, o primeiro paciente era sempre o que mais lhe custava atender, o espírito necessitava de se movimentar pelos estranhos caminhos da vontade, sempre contrariada pelo conhecimento das estórias que iria ouvir, de pressentir lábios a articular palavras invisíveis. O primeiro paciente era o cataclismo anunciado. Bocejou novamente e esperou pelo café, consciente de que os doentes o aguardavam desde o dia em que decidira ser médico, e por ele aguardariam até à sua morte. Não reconhecia porque sentir culpa. Observou a enfermeira a preparar o café, a maneira graciosa como ela o vertia na chávena e, como um estampido de relâmpago, descobriu atractivas as nádegas dela, até então desapercebidas.
Mas esta bunda aqui todo o tempo, e só agora é que a descubro?
Pensativo, baixou os olhos e suspirou tão profundo que ela voltou-se e observou-o, surpresa.
Que suspiro! O que se passará?
Havia dias em que se sentia preso numa teia de dúvidas existenciais, onde face à transitoriedade da vida tudo se transformava em futilidade. Ao notar pela primeira vez as nádegas da enfermeira e a atracção que sobre si produziram, achou que na constatação talvez residisse a felicidade completa, o batucar de uma bunda cheia gracejando intenções ao deslocar-se pelo consultório seria o fim da banalidade hospitalar.
Como reagirá se me insinuar?
Talvez lhe solicitasse doravante uma infinidade de processos, de taças de café, e nos dias em que aparecesse com os decotes até então inócuos, atiraria o lápis para o chão para a ver dobrar-se. De lado a fim de lhe apreciar o perfil, de frente para que a deusa da sorte o bafejasse e a visão dos seios se materializasse, de trás se mais sortudo, já que fora a bunda que lhe revelara os instintos de caça adormecidos. Quando a sua ajudante colocou a bandeja na secretária, Nataniel olhou-a tão profundo nos olhos que a assustou.
- Credo, senhor doutor! - Disse, recuando dois passos.
- O que lhe deu? Só a olhava!
- Mas de que maneira! Até me assustou, parecia que estava a olhar para uma alma
do outro mundo.
- Alma do outro mundo? - Nataniel riu e colocou os cotovelos sobre a secretária.
Se soubesses o que me passou pela mente, logo verias que a alma é bem deste mundo.
Abotoou os dois primeiros botões da bata, afastou as fichas para um canto e agarrou na chávena de café.
- Esteja tranquila, não foi nada. Hoje sinto-me abandonado.
- Abandonado, o senhor doutor?
- E porque não? Nunca se sentiu abandonada, sozinha no mundo, cheia de dúvidas sobre a sua vida e o rumo que leva?
- Creio que todos nós, uma vez ou outra, mas isso é passageiro.
- Hoje é um desses dias. Ao olhar para toda esta gente mutilada, pergunto-me se vale a pena. Gente que será abandonada, largada à sua sorte com um par de muletas ou próteses, e com o dever de se sentir agradecida.
- Não é bem assim, senhor doutor, milagres é que não se podem fazer.
- Não espero que se façam milagres, mas que se criem situações de vida melhores para eles, aliás, para todos. A maior parte abandonou as aldeias e partiu para uma guerra que nunca compreendeu para além das palavras de ordem e os chavões políticos. Vi o que eram as frentes durante muitos anos. Sabe que sou proveniente do mato, não sabe?
- Sei, até sei que um dia poderá vi a ser o soba grande da sua região.
Deve estar doida varrida!
- Não diga disparates. Está-me a ver soba grande?
- E porque não? Um soba culto, educado e que saberá governar com visão o seu povo, sobretudo depois de ter vivido esta guerra atroz.
- Deixe de sonhar, qual governar povo qual quê, esse tempo já acabou para sempre, acha que algum soba governa hoje alguma coisa?
- Sobre isso, verdadeiramente não sei, mas lá no mato acho que o soba ainda manda.
- Olhe minha amiga, mandar é uma coisa, governar é outra. A única coisa que os sobas governam é o mundo invisível, porque neste, no visível e moderno, eles não estão preparados seja para o que for, a não ser que tenham estudado.
- Mas esse é o seu caso!
E ela a dar-lhe!
- E acha que vou abandonar Luanda para ir para o mato, sem água canalizada, sem luz eléctrica, sem escolas para os meus filhos quando crescerem?
- Lá isso é verdade, não seria fácil.
- Então pare de sonhar para os outros aquilo que não deseja para si. Por favor mande alguém comprar um ramo de flores – disse esticando-lhe o dinheiro.
A enfermeira agarrou no dinheiro que lhe era estendido e sentiu-lhe o calor dos dedos, ainda que não se tivessem tocado. Enrubesceu e saiu apressada, confusa.
Nunca pensara na enfermeira como possível aventura amorosa. Aliás, nunca pensara numa gesta extra conjugal desde que se casara, sentia-se feliz como estava, não era homem de grandes façanhas. Entendia que a natureza humana não era monógama, assim tivesse sido nunca a raça humana teria sobrevivido com a fêmea a parir uma cria de ano e meio em ano e meio. Gostava do certo e do habitual, situação muito mais cómoda e tranquila.
Nunca vi uma mulata tão corada, será que?...
Conjecturou que, se se empenhasse, com o tempo levaria a perdiz a comer da sua lavra. Enfermeiras sempre acabam nos braços dos médicos como amantes ou esposas, assim como as hospedeiras nos braços dos pilotos, a ocasião sempre fez o ladrão e a surpresa e ofego dela confirmaram a possibilidade. Nataniel sorriu e sorveu o café, envaidecido.
- Porque não, quem sabe? – Falou alto, afagando o ego.
Agarrou no Jornal de Angola e folhou-o. Começou a ler mas logo desistiu
- Sempre a mesma merda.
Foi para a página do necrotério e vasculhou-a para ver se reconhecia algum nome ou face.
Olha, a Tininha faleceu, será que a Nazamba sabe? Que repouse em paz.
Com a quase inexistência de salas de cinema, de teatros, ou centros culturais, os enterros, para alem dos casamentos, eram os principais pontos de encontro da pequena burguesia urbana. Tanto em uns quanto em outros, alianças de circunstância são forjadas através da maledicência politiqueira, arranjam-se despudorados namoros, aconchegam-se em surdina casos extra conjugais debaixo das árvores, exibem-se sem qualquer tipo de modéstia os últimos modelos de roupagem adquirida na Europa ou América Latina, enquanto o morto, o falecido, ouvirá para além do túmulo que em breve o acolherá, as palavras laudatórias sobre a sua vida na maior parte das vezes de crápula, e testemunha no seu silêncio tumular todos estes fazeres e dizeres, por entre sorrisos e larachas dos que nem um punhado de terra se dignarão atirar para a cova.
Os óbitos e os casamentos tornaram-se, para a emergente burguesia, a convergência natural da exteriorização das manifestações sociais. Ministro, deputado, ou empresário reconhecido cujo celular não soe estridente quer no bolso do casaco quer na mão do guarda logo atrás, não é ministro, deputado ou empresário. E quanto mais estapafúrdia for a melodia do bichinho electrónico, maior frisson causará, já que todos os olhares estarão convergidos sobre si, seja por reprovo, por inveja ou por admiração. A mesma admiração que demonstra o sentimento de estranheza de quem é subitamente surpreendido por um determinado acontecimento ou realidade inesperados.
A enfermeira bateu à porta e entrou com um ramo de flores que poisou sobre a estante.
- É melhor colocá-las num jarro com água – sugeriu, evitando olhar para ele.
Nataniel esboçou um sorriso e concordou.
Não quer olhar para mim, mas que diacho, não lhe fiz nada!
Efectivamente nada fizera, mas seus olhos pensaram e foi o que ela vira, aqueles olhares que falam e dizem tudo de maneira atrevida, talvez porque quem para eles olha, ainda que de maneira furtiva, assim observa e sente.
- Depois mande-me entrar os pacientes pela ordem de chegada, a não ser que haja alguma urgência.
Estirou-se e aguardou que ela terminasse, confirmando que de facto o traseiro da enfermeira era atraente.
Não, não vale a pena meter-me nisso, só acabarei por arranjar complicações.

HUMANIDADES - TEATRO

A CAIXA


PERSONAGENS PRINCIPAIS

HONESTO JAMORREU – Locutor
SÓNIA SEVIRA - Locutora
APRESENTADOR
CANGALHEIRO
OUTROS

No palco, um enorme televisor, a caixa. Com dimensões mínimas de 345cm X 250cm (poderá ser alterado), sobre um estrado que representa a mesa.
A todo o comprimento do ecrã, num pano que enrola e desenrola sobre si mesmo (ver o mecanismo mais fácil), pintados, o logótipo da estação e, mais tarde os anúncios publicitários.
No início ver-se-á o logótipo da estação emissora:

As cores dos anúncios, bem como os trajes dos bonecos, serão sempre vivas, berrantes, exageradas e de traço nítido.
Os bonecos serão grandes e ridículos. Existirá um “público” que serão os actores excedentes do “PARAÍSO”, sentados em semicírculo.
As luzes, ao subirem, revelam a caixa, o televisor, o seu logótipo e o público sentado conforme já descrito. Ouve-se o genérico da estação emissora, após o qual entra o apresentador, um enorme porco-espinho, que se senta atrás da mesa (que poderá ser retirada quando necessário) e faz a abertura da programação.


APRESENTADOR
“Minhas senhoras e meus senhores, muito boa noite. A CAIXA DE EMBURRECIMENTO COLECTIVO, esta vossa e sempre amigável estação televisiva, tem o prazer de dar início a mais um programa descartável, referente ao dia (Dar a data). Assim, os caros telespectadores poderão ver de imediato a nossa página publicitária, na qual vos apresentamos os mais inebriantes e os mais parvos anúncios, logo seguida da página para os mais pequenos, a dos desenhos mais do que desanimados.
Depois, para os amantes incondicionais desta bela cidade à beira-mar, Sónia Sevira apresentará o programa “Raios Te Partam Luanda”, com exclusivo patrocínio da paciência dos munícipes.
Ás dezanove e trinta terão o desporto, em cuja página internacional apresentamos a aliciante partida de futebol, transmitida em diferido e realizada o mês passado, entre o ASA e o Atlético Petróleos de Luanda, exclusividade das linhas aéreas nacionais, a famosa “Nunca Falha, Chega Quando Chega e Passem Bem”.
Segue-se o bloco noticioso, onde mais uma vez vos apresentamos as notícias nacionais e internacionais de anteontem.
Ás vinte e uma, mais uma página publicitária, para os resistentes à insónia, seguida da emocionantíssima e cada vez mais ininteligível porcaria de novela local, “A Verdadeira Vida do Beto das Vinhaças”, patrocinada por tudo quanto é vinho e cerveja neste país… Hoje no seu quinquagésimo capítulo. No episódio de mais logo, será que Dedaldino Xibode concretizará seus intentos escuros e dá o golpe na garina do mega empresário malangino Beto das Vinhaças, de férias em Portugal a tratar de assuntos brilhantes, para um conhecido político?...
A NÃO PERDER!... Tenham pois uma boa noite e queiram prestar atenção ao programa que segue (sai).

Enquanto sai, o logótipo da “CEC” é enrolado, para dar lugar ao da “PUBLICIDADE”, acompanhado da música introdutória atinente (a ser cantada, em caricatura, pelos actores).
Segundos depois o pano é novamente enrolado para revelar, como fundo, uma floresta tropical, com os sons que lhe são peculiares, e um fundo de tambores.

Entra um enorme chimpanzé aos pulos, percorre toda a cena a bater os punhos no peito e emitindo gritos terríveis.
Pode implicar coma audiência, sem agravos.
Bem visível, um sexo descomunal com duas pequenas campainhas amarradas à volta, como testículos que, com os pulos, retraem-se, por uma mola.
Por fim cala-se e acalma-se, encosta-se a um canto e fica a coçar os testículos por um largo tempo, olhando para as senhoras, com ocasionais grunhidos de prazer.
Pelo lado oposto, entram as duas senhoras em conversa.
Uma delas é toda espalhafatosa e está limpa. A outra tem a roupa suja e amarrotada.
Falam e riem muito, sem darem conta do bicho e este tão pouco delas.
Quando, finalmente, se concentra nelas, põe-se outra vez aos pulos, contente. Parte em corrida para elas, antes porém dando três voltas à cena.
As senhoras demonstram reacções de horror e de prazer, fazendo um espalhafato incrível.
A senhora limpa vai refugiar-se no seio dos espectadores, agarrando-se a um deles como protecção, sentada no seu colo.
O chimpanzé dirige a sua atenção para a que ficou na cena, a suja. Executa uma dança kabetula de alegria, dá dois enormes gritos e outros tantos murros no peito e agarra a senhora, agora aterrorizada, arrastando-a para fora de cena numa guerra incrível.
Faz-se, após, um curto silêncio e durante o qual só se ouve a senhora limpa, mão no peito, a arfar. Por fim acalma-se e, de onde está, sempre espalhafatosa e exagerada, fala.

SENHORA LIMPA
(Agora sorridente) “VIRAM?!... MAS VIRAM MESMO?!...QUE HORROOOR... (Levanta-se e começa o regresso à cena) Mas viram mesmo bem? Olhem, fiquei sem pio... Quem diria!... A minha melhor amiga, a ser agarrada assim!... Que horror!...
(Já em cena, vira-se para o público) Mas o principal, minhas senhoras, para que coisas como estas não vos aconteçam, é necessário que sejais modernas (da carteira tira um pequeno serrote com o qual penteia o cabelo).
A mulher moderna, a mulher desenvolta e emancipada nunca passeia pela selva sem ter a roupa lavada com Sabão Macaco, sabão que lava até a avòzinha e o periquito…Como viram, o sabão que faz a diferença (aponta para si, atira o serrote fora e sai)).

Ouve-se então um jingle a três vozes femininas:
“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”
Faz-se silêncio. Muito ligeiramente percebem-se os sons da floresta, bem como a voz em off da senhora suja levada pelo macaco.

SENHORA SUJA
(Risadinhas) “Ai chico, seu macaco, seu malandro (novas risadinhas). Está quietoooo, seu bicho... Oh xico, NÃO FAÇAS ISSOOOOO!... (risadas e gritinhos de prazer). Já te disse que não, para com isso bolas!... (Zangada) TIRA A MÃO DAÍ, GAITA!...

Pequena pausa após a qual ouve-se outra vez o jingle referente ao sabão.

“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”

As luzes apagam-se brevemente, sendo o pano enrolado para revelar uma farmácia moderna, identificada com o nome de “FARMÁCIA ATÉ QUE ENFIM”.
A música de fundo é alegre, viva, um zuk ou algo parecido. Entra um falo, quanto maior melhor, erecto e de cabeça encarnada luminosa com duas antenas que terminam em bolinhas igualmente luminosas, e usa óculos. Os testículos, cheios de pelos.

VOZ FEMININA OFF
(Muito autoritária) “Você aí, alto lá!... (o falo vira-se, olha para todos os lados para verificar se é a ele que se endereçam).
Sim, você! Tome cuidado com o que faz, veja lá onde se mete, não seja abelhudo e ande por aí a enfiar o nariz em qualquer buraco! Nunca ouviu falar na doença do século?!... (O falo, que estava erecto, verga-se logo).
Pois é amigo, não brinque com a sorte, proteja-se contra o Sida!...
(Entram duas mãos e enfiam um preservativo pelo falo abaixo. Tenta resistir, mas por fim cede). Pois então proteja-se, o seguro morreu de velho (Enfática), e as camisas RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA são a protecção que deseja...
Utilize Resistência Democrática e faça amor como o homem mais moderno e dinâmico... pronto para qualquer partida ou ocasião, sem o sentido do déjà vu!..
Siga o nosso conselho, use Resistência Democrática e proteja-se na cabeça, não deixe que lhe lixem o juízo! Use-as e abuse-as, são elásticas e acomodáveis” (O falo sai aos pulinhos, levado pelas duas mãos).
O pano enrola novamente para revelar uma agência funerária típica. A música de fundo é a apropriada. Entra o cangalheiro todo vestido de preto e com um abutre ao ombro. Coloca-se ao lado de um dos caixões e endereça-se ao público.

CANGALHEIRO
(Voz grave, séria e pausada) Meus amigos, vós aí na paz do vosso lar tranquilo, já pensastes no vosso futuro mais além?... Exacto, no Além, na eternidade (Acaricia o abutre)... Não deixeis a resolução dos vossos problemas pessoais, mesmo a íntimos. Vinde visitar-nos (Abre os braços com amor), cuidaremos de vós...
(Aponta para o espectador mais próximo) O senhor(a) aí, deixe que lhe mostremos o nosso desvelo e carinho. Não é uma promessa, é a marca de registo da melhor agência nacional (olha para o abutre e sorri), a AGÊNCIA MORTE FELIZ, onde morrer vai para além de um simples dever ou prazer... MORRER É UMA OBRIGAÇÃO!... (muda o abutre para o outro ombro, depois de lhe dar uns beijos sonoros no bico).
O nosso lema é morra amanhã e pague hoje... Parta alegre e confiante, não espere que os herdeiros o enterrem, porque à única coisa que enterrarão será o seu dinheiro. Em bares e vida fácil!... (Por breves momentos ouve-se um tango, no qual dança com o abutre. Tira uma pequena garrafa do bolso e dá uns tantos goles. Oferece a alguém e torna a metê-la no bolso).
Minhas senhoras, cavalheiros, não se acanhem, temos todos os modelos.
(Aponta de novo para alguém), É membro do comité central do seu partido?... Temos aquele modelo ali, uma cópia fiel do Mercedes Benz 280S, e enquanto não for desta para a melhor, poderá utilizá-lo para guardar os kwanzas, porque os dódós, estou seguro que já os guardou na Suíça.
(Aponta para outra pessoa) É deputado?... temos o modelo XL, mais condigno para as vossas citroenadas, não dê ouvidos aos invejosos, aqueles que o vêm com a vidoca feita. (Aponta) É dono(a) de lanchonete?... Olhe para esta maravilha de caixão, estilo contentor amachucado a cheirar a pincho torrado.
Na agência MORTE FELIZ temos tudo a seu gosto, faça já a sua reserva!... (ouve-se um jingle alegre, durante o qual o cangalheiro agarra o abutre e, desajeitadamente, marca o compasso da música batendo com ele no chão):
Somos casa de tradição
Agência Morte Feliz
Confie em nós de coração
Agência Morte Feliz
Estamos à sua espera
A sua morte feliz

As luzes apagam-se e quando forem reacesas ver-se-á de novo o logotipo CEC, com o respectivo indicativo. À mesa, o porco, o apresentador inicial.
Assoa-se na manga da roupa, com barulho.

APRESENTADOR
“Alô, alô criançada, alô-alô... chegou a hora do vosso programa. O momento (Assoa-se com as mãos, para o lado, sacudindo depois os dedos) desculpe... o momento que tantos desejais.
Eis aí miúdada, eles aí estão os vossos desenhos desanimados (Faz o gesto indicador com a mão. Não sai)
Entram o pato e o rato por lados opostos, mocas (de espuma) nas mãos. As meia-cena encontram-se e agridem-se mutuamente, de maneira alternada, nas respectivas cabeças.
PATO

(Bate) “Toma seu rato comunista!...”

RATO

(Bate) “Aiii!...Toma seu pato revisionista!...”

PATO

(Bate) “Aiii!... Toma seu rato trotsquista!...”

Esta cena repete-se várias vezes com “maoísta, marxista, albanês leninista, estalinista maoista, esquerdista fidelista, etc.”, até caírem exaustos para o lado, um nos braços do outro. Saem rastejando, todavia sempre a baterem-se.
Imediatamente após, entra Branca de Neve perseguida pelos sete anões, em louca e alegre confusão. Ela corre por todo o lado, até pelo meio dos espectadores, aos pulinhos e risadas, o mesmo fazendo os anões, que tentam beliscá-la, agarrá-la, apalpá-la, tudo isto com uma intenção sexual nítida.

BRANCA DE NEVE
(Como descrito) “Seus malandros!... Parem. Desistam, nunca me agarrarão!... Malandrotes, seus espertalhões!....Parem” (o apresentador começa a ficar irrequieto).

UM ANÃO
(Babando-se de desejo) “Branca de Neve, se te agarro, ai se te agarro!... Vem minha cabra, vem ao teu bode mal cheiroso!... (espirra e raspa os pés no chão, como um bode) há quanto tempo sonho com isso... se te apanho!...”

BRANCA DE NEVE
(Ri, goza) “Malandro, querias não é?!...” (passa pelo apresentador e faz-lhe uma festa fugidia)

OUTRO ANÃO
(Já cansado) “Isso não vale Branca de Neve, tens pernas maiores do que as nossas, isso não vale. (Arfando) Pára, gaita!... Dá lá uma oportunidade a um gajo, porra!... (grita para o apresentador que, de seguida, logo parte atrás dela) agarra, agarra-me essa fulana!”
OUTRO ANÃO
(Quase que a agarrando) “Cerquem-na por ali, cerquem-na por ali que ela hoje não escapa... (Ri de antecipado prazer) Quando te apanharmos vai ser o teu totoloto... (puxa um espectador pelo braço) venha, venha que a gaja é boa!...”

TODOS
(Excitadíssimos) “Agarrem-na, agarrem-na, hoje não se safa!...”

Uns momentos após tudo congela por uns segundos, antes de se apagarem por completo as luzes. Se por acaso o espectador também foi tentar apanhar Branca de Neve, fica lá onde estiver, ele que volte ao lugar. Saem todos, gira o pano e quando as luzes acenderem, vê-se novamente o logotipo CEC e, à mesa; Sónia Savira, (Tara) a locutora.

SÓNIA SAVIRA
(Faz um monte de caretas e esgares ao falar) “Minhas senhoras e meus senhores, queremos pedir desculpas, todavia, por um lamentável erro técnico estávamos a apresentar no programa infantil o filme didáctico de mais logo à noite para os adultos, Branca de Neve e as Sete Tesões.
Mais uma vez as nossas mais sinceras desculpas.
Dando, pois, continuação à programação, temos o famoso programa “Raios te Partam Luanda”, hoje na sua milionésima edição e apresentado por esta vossa amiga Sónia Savira, patrocinado por todos os governos provinciais desta capital, desde 1975.
Começamos com as imagens que relatam os factos do incrível acidente ocorrido ontem à noite na cativante Ilha de Luanda, junto ao Hotel Panorama... “

(Por trás dela, decorrerão todas as situações a apresentar, sempre visíveis para todo o público.)
Entram, por lados opostos, duas viaturas que chocam frontalmente. Os condutores saem e começam logo à batatada. Um, está nitidamente embriagado. A locutora levanta-se e dirige-se a um deles).
“Temos aqui a nosso lado os causadores deste acidente que felizmente parece não ter feito vítimas mortais. (Fala com o condutor sóbrio) O senhor, por favor... O senhor, quer contar para todos nós por suas próprias palavras o que realmente aconteceu?... Como se chama?”

CONDUTOR SÓBRIO
(Recompondo a roupa, ajusta o penteado e sorri para o público) “Eu me chamo senhor Quintino, mais conhecido por Zanga Mau, e vinha por ali (aponta) nas calmas a comer os meus pinchos e a chupar as minhas geladinhas, quando este senhor (aponta)... FILHO DA PUTA, te parto os cornos! Vinha fora de mão e me bateu! (lamenta-se) Olhe só, veja o meu carro, até parece que caiu naqueles buracos do Cazenga. Agora vou ter que fazer outra viagem nas Lundas... (vira-se para o outro) seu sacana, tens sorte de estar aqui na Caixa de Emburrecimento Colectivo, com a senhora Sónia Savira, senão te arrebentava com as fuças, ias ver como eu te fo...”

SÓNIA SÁVIRA
(Corta-lhe rápido a palavra) “Calma amigo, não disparate, não diga asneiras porque já chegam as minhas!... Calma!... Não lhe chega a namorada ferida a sangrar ali no carro?... (Leva-o até lá) Olhe, olhe todo o sangue que por ali vai (o condutor olha, não reage. Sónia Savira volta-se para o público, toda sorridente). E agora vamos ouvir o outro lado da estória.
(Dirige-se ao condutor ébrio) O senhor aí!... Sim o senhor, queira por favor contar-nos o que aconteceu, mas antes diga-nos como se chama.”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Surpreendido, como que despertando) “Meu nome?... auá, como é mesmo antão meu nome?... (quase caindo) a mana quer saber como foi?... Ai tia, me jonjaram, me perseguiram.
(Com voz menos pastosa) Olha prima, ia só aqui na minha mãozinha (indica o lado esquerdo da estrada), juro mana, a garrafa do kapuca até estava vazia, quando me apareceu não sei donde esses dois carros mesmo que a prima está a ver embora aí! (Triste) Ai mãezinha, nem te conto, isso é só mesmo azar na minha vida. Veja então cunhada, dois carros me baterem ao mesmo tempo!...”

SÓNIA SÁVIRA
(Olha para o carro do condutor sóbrio) “Olhe ali o sangue da sua noiva a escorrer, meus Deus até parece um rio. (Volta-se rápida para o outro, surpresa) Dois carros que bateram contra si, disse? Eu só vejo um!...”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Aparvalhado e surpreso) “Ai mana, só está a ver um?...Deixa antão porque vucê estás com prubremas das vistas...” (saem os dois condutores).

SÓNIA SAVIRA
(Risonha) “Mais uma cena desta nossa Luanda!
Aproveitamos para chamar a atenção dos senhores motoristas... beber causa acidentes. Não beba se conduz, mesmo se esta nossa Caixa de Emburrecimento Colectivo faz-lhe ver os prazeres do vinho a toda a hora.
(Entram três jovens latagões, todos arranhados e desalinhavados. Colocam-se, em linha, de lado. Sónia Savira desajeitadamente arranja as suas chuchas ,num largo sorriso). E agora a nossa equipe de reportagens leva-nos até ao Palanca onde um grupo de terríveis meliantes conhecido pelo nome de Queen Girls, violou, guitarrou e pianou estes pobres rapazes ontem à noite (Repete o gesto de arranjo das chuchas, sorri para os rapazes e suspira profundamente).
Pois é, foram violados um a um, imaginem o terror que terão sentido. O que os nossos telespectadores talvez não saibam, é que este grupo de marginais, o notório Queen Girls, é formado por uma única jovem, lutadora de luta livre e aliás muito conhecida no bairro, e que dá pelo nome de Kiki Langalanga Ninfô. Mas ouçamos os infelizes rapazes!...”

PRIMEIRO RAPAZ
“Olhe, foi mesmo essa Kiki Langalanga Ninfô, nós já lhe conhecíamos de nome e de fama, mas nunca tivéramos acreditado. Aí no bairro passa o mambo que ela já fazia a mesma coisa lá em Kinshasa.
(Ao evocar o acontecimento começa a chorar) Nós vínhamos das nossas namoradas que estivéramos a dançar com elas, quando ali naquela zona mais escura onde paráramos para mijar, fôramos assustados com este acontecimento então! (acaba por controlar o choro).

SEGUNDO RAPAZ
(Mais jingão e entusiasta) “Olha minha, assim derepentemente nos sai na frente uma pessoa, ué, até pensámos que era um kifumbe, só depois é que vimos que era uma mulher. Não vais acreditar, minha, tinha uma pistola na mão e nos manda então tirar as calças.
(Imita) Ô tirras us carrrças u je te arrebantarr les couilles, gritou ela para mim. Com a vida tão cara, pensámos que era uma mãe desesperada, toda lixada, marido não ganha, enfim, julgávamos que era uma mãe que necessitava roupa para os seus filhos, toca então já de nos despir, pronto, paciência, ficávamos assim mas ajudávamos uma mãe em necessidade. Quem bem faz, bem recebe.

TERCEIRO RAPAZ
(Mais à vontade, apontando) “Ele foi o primeiro, ela lhe agarrou e lhe violou. Nós só ali a vermos (meneia as ancas, no gesto esclarecedor), ela só dizia -TOMA...TOMA...TOMA...- (os outros fazem o mesmo, com ritmo, a cada TOMA), depois, ainda queria mais, nos mandou embora deitarmos todos de costas (mímica o que narra) e até parecia marimba. Cada um foi violado e estamos bem zangados, por isso viemos denunciar aqui, porque nem um polícia apareceu, é sempre assim. Então com medo ficámos só calados o tempo todo e depois ela fugiu e disse um dia volta mais...”

SÓNIA SÁVIRA
“Aproveitamos este triste episódio para chamar mais uma vez a atenção da nossa polícia. Alô senhor comandante provincial da polícia, esta cidade está cada vez mais cheia de bandidos. Todos nós somos roubados, assaltados e agora, veja-se, violados!... Certamente que a si não lhe acontecerá o horror que estes jovens sofreram, rapazes inocentes a caminho de suas casas após terem visitado as suas namoradas. Hoje foram eles, amanhã poderá ser um velho. Se fosse consigo, estou certa que baixaria o cacete nessa tal de Kiki Langalanga Ninfô, mas como não é, que se lixe. Assim, cumpra com o seu dever, pois com a falta de homem que há por aí a concorrência será enorme e desleal.
(Saem os rapazes e ela suspira alto ao vê-los partir). E por hoje é tudo no “Raios te Partam Luanda”. Esta vossa amiga Sónia Savira, deseja-vos um caté mungu’ué...” (levanta-se e sai).

A sala torna-se repentinamente escura e no écran aparece projectado -Corte de Energia-. Quando a mesma for restaurada, estará à mesa da locução o locutor Honesto Jamorreu.

HONESTO JAMORREU
(Fala com grandes meneios de cabeça, parece que está a rematar uma bola com a mesma, etc.) “Caros telespectadores tivemos que interromper a nossa emissão por uns momentos devido aos habituais cortes de energia, pelo que pedimos as nossas sinceras desculpas (falha de novo a energia e tudo se repete).
Caros telespectadores, em nome da Edel, Empresa de Electricidade Liquidada, mais uma vez as nossas sinceras desculpas. Como devem ter seguido atentamente, acabamos de apresentar o conhecido programa de Sónia Savira, “Raios te Partam Luanda”, um programa de factos e acontecimentos que dignificam a nossa urbe.
Porem eu, Honesto Jamorreu, este vosso mais humilde locutor, também conhecido em certos círculos como a pérola da simpatia, a inteligência do tremoço, o nó fofo da gravata, (pausa onde, vaidoso, analisa o efeito das suas palavras) irá hoje sublimar-vos, proporcionar-vos a masturbação intelectual das vossas vidas (pausa, sorridente e meneando a cabeça várias vezes, para ver o efeito das suas palavras novamente).
Vou conceder-vos a oportunidade única... impar... de testemunhardes o acontecimento do ano, mesmo do século... nem o Bin Laden terá tido tanto sucesso (enfático) o acontecimento que jamais aparecerá nessa merda de programa “Raios te Partam Luanda” ou qualquer outro programeco, televisivo ou político.
(Como um anunciador de circo) Minhas senhooooooras, meus senhoooores, em directo para os vossos laaares, ooooo maiooooor espectáculoooooo doooooo mundoooo!... (Cresce ainda mais de voz) AQUI CONVOSCO O SENSACIONAL, O MELHOR, THE SUPER BEST, HONESTO JAMORREU E A SUA SUPERPRODUÇÃO -TUDO A PARVOÍCE LEVOU-!” (Saca uma pistola e dá um tiro na cabeça, caindo para trás. O público delira, grita, bate palmas e pede bis).

Atrapalhadíssima, todavia sempre sorridente, entra Sónia Savira que, em enorme felicidade por poder apresentar ao vivo a cena na CEC, faz um espectáculo de primeira.

SÓNIA SAVIRA
“É HORRÍVEL, É HORRÍVEL.... Minhas senhoras e meus senhores, QUE MARAVILHA, QUE SENTIDO DE PROFISSIONALISMO, QUE SHOW, SÓ MESMO O HONESTO JAMORREU!... OH, QUE HOMEM!...
(Ganha compostura. Desajeitadamente arranja as chuchas) Caros telespectadores, por razões imprevistas e alheias à nossa vontade, vemo-nos forçados a interromper esta emissão. Boa noite!” (Sai precipitadamente)

Alguns segundos depois, entram cinco pessoas em fila e dobradas uma sobre a outra completamente cobertas por um pano preto. Esta forma tem duas enormes cabeças, uma à frente a outra atrás. Dá uma volta ou duas pela cena, ocasionalmente balindo como carneiros, e sai. As luzes apagam-se e, como se de muito longe, ouve-se uma sirene da polícia.

BAIXA A CORTINA

OBS: Este quadro faz parte de “Humanidades” (Um estudo crítico satírico, mais ou menos permitido na época), escrita na década dos oitenta, em que a nossa televisão era muito simples e rudimentar e a parabólica era ainda coisa do futuro.

SUMAÚMA




MALAMBAS
Malambas
toldam teus olhos
kilumba
porque o galo
canta aziago
com o kissonde
ferrado à pata

CAMINHOS
Onde vais
mãe
enxada às costas
no sulco
dos antepassados

que um dia nasceste

calcinados
numa guerra
que não obraste

DENISE
Imagens cruzadas
no momento
que a Paixão
olvida a Dor
para fingir Amor

XICA DA SILVA

A criança teria uns doze anos se tanto. Seus passos incertos mostravam que estava ébria ou drogada, e pela cercania do lugar a última suposição seria a mais acertada. Não muito longe, num beco imundo, porém afamado em determinados círculos luandenses da malandragem ou dos poderosos, residia uma senhora cujo negócio era o das bebidas alcoólicas não ortodoxas e da liamba.
Xica da Silva, seu nome de guerra, soava flagrante desonraria à histórica brasileira de quem tomara de empréstimo o homónimo.
De há algum tempo que a polícia mantinha o local sob vigilância, após várias denúncias de mães da vizinhança reclamando que liamba estava a ser vendida a crianças.
Se houvesse quem comprasse a droga, o problema era dos que o faziam, justificava-se Xica da Silva, sobretudo porque entre os seus clientes se encontrava gente afamada.
“Não me façam falar, vão lá à merda ó pá!...”, respondia a quem a criticava.
E como contra factos não há argumentos, o negócio ia de vento em popa. Só que ultimamente a Xica da Silva, talvez para olvidar ou amenizar os enrascanços da conjuntura, dera para iniciar-se, ela própria, nos caminhos enganadores da liamba.
“Grande ganza, meu!...”, dizia, em galhofa.
Junto ao local de venda, no quintalão escuso e sombrio, com uma porta de emergência que dava para o beco de trás, mandou construir três pequenos quartos onde colocou uma cama e uma mesa de cabeceira, um armário e duas cadeiras. Nesses quartos, suas excelências despejavam nas várias catorzinhas, que Xica da Silva mantinha em permanente rotação, as respectivas frustrações e tomates.
Naquela noite, sentados numa mesa, num pequeno alpendre, o senhor coronel Silva, o senhor vice-ministro Trancredo, os senhores deputados Beltrano e Feltrano, três ilustres empresários nacionais e dois libaneses, os verdadeiros donos das empresas. O quintalão fora fechado a qualquer outro visitante, e o pequeno exército de quatorzinhas, sob a batuta da madama, esmeravam-se para que nada faltasse às ilustres individualidades.
“Tragam mais gelo”, comandou o coronel, homem de barba bem cortada, antigo comando das forças portuguesas passado para as FAPLA no alvor da Independência.
Xica da Silva fez um gesto e prontamente o gelo apareceu, trazido por uma das ninfas, a bela Luzia.
À medida que os charros iam sendo acesos e fumados, a conversa ia-se tornando pastosa e suas excelências riam muito mais. Xica da Silva, juntou-se a eles. Começara a misturar negócios com promiscuidades sociais desde que entrara na ervanária confraria.
“Ó Xica de onde é que veio esta erva?, não é nada má!...”
“Do Bengo, senhor deputado. Esta é da que cresce mesmo ali junto ao rio, por isso é boa.”
“Muita boa, mas eu prreferrirre haxixe.”, disse um dos libaneses, com uma ponta de saudosismo.
“Uma pena, uma pena, nós não temos cá isso.”, retorquiu um dos empresários, sócio minoritário do libanês que falara.
“Sejam nacionalistas meus senhores.” Disse, a rir, o outro empresário, tragando em longo.
“A mim isto dá-me uma fome danada.”, falou novamente o coronel, dono de afamado restaurante luandense.
Xica da Silva, ao ouvir a reclamação, pronto mencionou o menu do dia, confeccionado especialmente para a ocasião.
“Temos gambas grelhadas com alho, caril de camarão, garopa grelhada com batatas cozidas e salada, funji de carne seca, cacusso com feijão de óleo de palma e cabrito, tudo à moda da casa. Há vinho branco e tinto e cerveja.
Os convivas concordaram em abanando a cabeça e cada um solicitou o prato que desejava, as beldades servindo-os individualmente. Todas trajavam tópes brancos bastante exíguos, calçõezinhos que mais desnudavam do que tapavam e, nos pés, uns ténis brancos e meias curtas igualmente brancas condizendo com o bom gosto e apurado senso sexo-empresarial da madama.
O jantar foi servido, Xica da Silva comeu com eles e a alegria era evidente. Se as coisas continuassem assim, em breve teria dinheiro para mudar de vida e de bairro, talvez também comprar uma casa em Portugal ou na África do Sul, ou aliar-se ao libanês e passar a comercializar o tal de haxixe, que ela desconhecia.
“Ó Xica, explica lá como é que consegues fazer uma muamba de camarão tão boa!”, solicitou um dos representantes da casa das leis.
“Muamba, senhor deputado?”, perguntou, surpresa.
“Sim, muamba. Esta muamba que comi estava uma maravilha, nem a minha esposa consegue fazê-la assim!”, repetiu.
Xica da Silva largou uma gargalhada e cobriu a boca com o guardanapo, para não mostrar os dentes cariados.
“Não é muamba, senhor deputado. É caril, o caril de camarão que o senhor pediu.”
Desataram a rir e o assunto foi motivo de pilhéria por muito tempo, o senhor deputado achando que a liamba era mesmo da boa, afinal comera caril a pensar que saboreara uma deliciosa muamba. Louvado fosse o quintalão da Xica da Silva.
“Posso-lhe ensinar como se faz, mas não dá para comer lá em casa.”, propôs Xica da Silva.
“Pois diga, que venha lá a tal receita!”, pediu o coronel, dono de restaurante afamado. Talvez organizasse ele próprio umas patuscadas para uns dois amigos e umas tantas fulanas seleccionadas.
“Num tacho põem-se duas colheres de sopa de azeite, duas de chá de caril, uma colher de sopa de sementes torradas de liamba, meia chávena de folhas de liamba e meia chávena de chá de coco ralado ou leite de coco. Leva-se ao fogo, sempre mexendo com uma colher de pau e junta-se as gambas ou o camarão, deixando a cozinhar a fogo brando. Uns minutos antes do fim, colocam-se umas duas rodelas de ananás em cima e pronto. Foi isso o que o senhor comeu.”, finalizou a Xica da Silva.
O libanês, satisfeito com o cabrito que manjara, agarrou na sobremesa, uma das beldades, e desapareceu com ela pelo primeiro quarto à sua frente, entre a chalaça dos outros.
“Olha que isso logo a seguir ao jantar dá congestão!...”, anunciou um dos deputados, não conhecedor do estômago de camelo do libanês, curtido com o leite azedo e queijos de ovelha dos rebanhos da família, nas montanhas e cedros da sua bela terra.
Mal o libanês desaparecera, ouviu-se um bater surdo e seco na porta, como se alguém a pretendesse deitar abaixo.
“Polícia, abre!”
Foi um ver se te avias.
Fugiram pela porta dos fundos, e dirigiram-se para os seus carros, duas ruas mais abaixo. O único a ser apanhado foi o coitado do fenício, calças na mão e sem saber o que acontecera, tão emaranhado estava nos afazeres da carne e da liamba com a quatorzinha.
Xica da Silva, algemada, dava instruções em voz alta e de última da hora, a uma ou várias das meninas certamente escondidas, porque ninguém as via.
“Amanhã volto. Fechem tudo e não abram para ninguém. Estes gajos não sabem com quem se estão a meter!...”, disse, ciente de que quem fala verdade não merece castigo.

BENFIQUISTAS DO MUNDO UNI-VOS


Como vivemos numa sociedade em que nos temos de desculpar de tudo, os maus-olhados são muitos, sinto-me forçado a um ponto prévio a fim de acalmar as vozes diversas a favor ou contra as idiossincrassias de origem colonial.
Metade do meu coração, aquela parte mais antiga e que guarda as memórias primordiais, é benfiquista de cepa, aquele Benfica do Otto Glória, do Torres, do Eusébio, do Simões, do Calado, do Águas, do Coluna, do Costa Pereira e de muios mais outros que não caberiam neste memorial. É o Benfica da minha meninice, dos seus desafios escutados em mornas tardes de domingo, ao som de um rádio de válvulas, ligado à bateria de um camião, no meu eterno Závula. Sou tão benfiquista quanto zavulista, ou o contrário, mesmo se nascido na Uizi.
A outra metade, a parte mais recente, a parte da dipanda, é petroatlétiquista de cepa, de cartão passado, embora quota não paga, seja honesto frizar.
Isto vem a propósito do sofrimento que, como benfiquista, experimentei há dias e por dois motivos. O primeiro, porque ansiava, e oh quão, ver o Porto derrotado. Deste modo sofri todo o desafio, até ao apito final do árbitro. O segundo, durante os noventa minutos, fui forçado a desbaratar uma mais valia moral acumulada com denodo junto aos meus santinhos, em preces ferverosas para que estes ajudassem o Sporting a levar avante de maneira exitosa a sua árdua tarefa. Tendo sido ouvido por estes, mesmo se com o património e reserva de pedidos delapidados, pulei de alegria. Uma alegria que só quem é do Benfica conhece e que me fez recordar um acontecimento ocorrido há muitos anos, talvez uns trinta e cinco, quando o pai de um amigo meu, benfiquista doentio e fiel depositário da história de todos os Benficas do Mundo, adoeceu gravemente. À beira da morte, em seu leito, chamou os filhos e fez-lhes um pedido que logo acharam insólito.
“Meus filhos, não vou durar muito mais, de hoje não passo, por isso desejo como último pedido que atendam ao que vos vou solicitar. Prometam!”
“Pai não diga isso, ainda tem muitos anos de vida”, quase responderam em coro.
“Não, tem que me prometer. De hoje ou amanhã não passo, sinto-o”.
Os filhos, atrapalhados, julgando ser a senilidade do pai a beter à porta, acabaram por anuir.
“Está bem pai, diga lá o que é. O que deseja?”
“Quero que me façam sócio do Sporting e...”
Não o deixaram acabar, de facto o velho estava a fica senil, só podia. Ele, a pedir para ser sócio do Sporting, o seu mais directo e visceral inimigo desportivo de toda uma vida? Ele, que ao Peyroteu sempre chamou de Peidoteu!
“Não me cortem a palavra, acalmem-se. Depois disso, quero que ve vistam com uma camisola do Sporting e coloquem o meu cartão de sócio no bolso das calças. Ouviram?”
Claro que só lhes restou um sim pai e cumprirem o que seria o último desejo seu. Dias depois, já vestido com a camisola do Sporting, cartão de sócio da mão, procedeu ao balbuciamento da despedida, enquanto a família se desfazia em lágrimas, certificada que estava de que, de facto, o velho estava prestes a chutar a bola.
A muito custo, o filho mais velho, também benfiquista doentio, não aceitava o que via. Tentou, uma úlima vez que fosse.
“Mas pai, porque nos obrigas a ver isto, morreres sportinguista, tu que sempre foste do Benfica...”
Num último estertor, o velho balbuciou as suas derradeiras frases.
“Filhos, fiquem a saber que um benfiquista nunca morre!”


OFTALMOLOGICAMENTE FALANDO

Sempre me fascinei com o uso que ocasionalmente é dado a palavras. Não são poucas as vezes que o tal exercício fez a razão das minhas crónicas, não no sentido pejorativo, mas sim na prazerosa descoberta de que, afinal, um pouco do mestre Tamoda reside em todos nós, quer o queiramos ou não.
O uso da palavra é, para mim, uma arte maravilhosa, sobretudo quando retirada ao seu “habitat” e transformada em ideia muito mais movimentada, muito mais musicada, em outras palavras, muito mais artística, por isso transcendental.
Conhecer alguém “só caralmente”, como me informou aquele FAPLA, no Uíge, em Janeiro de 1976, quando eu lhe indagara se conhecia o general Ndozi e se já avançara para mais ao norte com a famosa brigada, não acontece todos os dias e com qualquer um.
Podemos correr muito no calçadão ou em qualquer outro sítio, mas acabamos quase sempre por “engordecer”, não é?
Mas vamos ao que interessa.
Há dias, a minha enteada, estudante finalista num colégio de e para a elite (seja ela qual for) e que por delicadeza me abstenho de mencionar o nome, dizendo todavia que lá também se fazem sentir as julianas vinte mil léguas submarinas do nosso ensino, relatou-me que, ao ditar a matéria, por falta de material didáctico na cadeira de “Organização do Estado” (onde é que eu já vi isso, no meu passado juvenil?), o querido profe, em eloquência ambaquista, alertava que o tal de assunto, “no sentido oftalmológico e pessoal” ... etc., etc.
A miúda, apanhada desprevenida, só depois desta experiência concordou, sob meu espicaçar, ler os discursos do mestre Tamoda (obrigado Uanhenga Xitu), inocentemente indagou:
“Senhor professor, o que quer dizer isso?!....”
Profissional e dedicado, o mestre, que não leva desaforo para casa, retorquiu:
“Bem!... A menina sabe não é?!... Oftalmológico.... (Espera, para ver se efectivamente ela sabe. Confiante, continua). Vem de oftalmologia... e a oftalmologia tem a ver com a cara!... E pessoal, tem a ver com pessoa, não é?!...
Enquanto quase todos rabiscavam a pressas o ensino do mestre, uma dúvida persistiu. Quase vencida, todavia ainda não convencida, a garota exige esclarecimento. Afinal para o ano já vai para a Universidade.
“Professor, isso quererá dizer na visão das pessoas?”
De igual modo, o esclarecido do bom profe, meio vencido porém sempre convencido, dá a dica final, em apoteose, se eu estivesse lá para bater as merecidas palmas:
“Sim, sim, pode ser... Entre parênteses, coloque “na visão das pessoas”.
Sendo assim, e dia de descanso decretado pelo Criador, colocada que está entre parênteses a nossa visão pessoal, em detrimento do sentido oftalmológico e pessoal, desejo-vos um muito bom dia, mesmo se caralmente não conheça muitos de vós.