terça-feira, 1 de maio de 2012

BATUQUE MUKONGO


8

Nessa minha rua vermelha de barro
no Uíge na Uízi
cavalgam as sombras o futuro
no urro da onça desdentada
no riso ventríloquo das hienas
nos panos garridos da esguia ndua
sombras a dançar o xinguilar milenar dos ndoki
o bater fúlgido das asas das águias
nga nkala yi mbemba
nga nkala yi mbemba ya zungilanga vana mwelu a nzo
e ntangu’a mpasi ke ya ngangu ko ee yolela
e ntangu’a mpasi ke ya ngangu ko1
a hora da dor não é de esperteza
cantava minha avó na roda
para a filha já perdida
com um que viera dos mares
mas sempre cantava
e a dor morria
ao apagar a linhagem
ao esbater a forma
ao esvair da lembrança
ao apagar o traço da raça
nessa longa longa viagem
de quem parte sem volta
galopando a bicicleta ora velha
dos desejos e sorrisos retraídos
à luz do estafado candeeiro
a encher a sala de um véu diáfano de luz
onde se suicidavam as mariposas
num frenesim de bater de asas poeirentas

se eu fosse mbemba (águia)
se eu fosse mbemba para rodear à porta
a hora de dor não é de esperteza ee yolela
o tempo de dor não é de esperteza

9
Luz por onde se perdiam os meus olhos
Vislumbrando o esboço
da nova casa apercebida
no norte do Kwanza
rio sem idade
pleno da sabedoria dos mais velhos
e dos risos dos jacarés às suas margens
numa cidade de flores e de agoirento nome
Salazar no cataclismo de ser Mundo

O FANTASTICO NA PROSA ANGOLANA


ARNALDO SANTOS
Arnaldo Santos é natural de Luanda, onde nasceu a 14 de Março de 1935, Até à adolescência viveu no Bairro do Kinanxixi, topónimo que ocupa um lugar privilegiado na sua produção narrativa. Escritor e poeta de vasta obra, obteve, em 1968, o Prémio Mota Veiga, um dos poucos atribuídos em Luanda nas décadas de 1960 e 1970. Foi co-fundador da União dos Escritores Angolanos, tendo feito parte dos seus corpos dirigentes desde a proclamação (1975) até 1990. Está representado em várias antologias editadas na Alemanha, Argélia, Brasil, Inglaterra, Itália, Portugal, Kénia, Russia e Suécia.


A LIBERTAÇÃO DOS HOMENS–JINZÉU

Os anos foram passando desde a chegada das naus, do alto, o Kinaxixi da Quianda viu crescer ao longe a cidade de São Paulo de Assumpção de Loanda. Porém, a cidade de São Paulo era muito estranha. Nessa Loanda estavam insistir conviver, lado a lado, duas cidades distintas. A Loanda Cidade Alta, e a Loanda Cidade Baixa.
No entanto, só uma delas, a Cidade Alta que corria desde o pequeno morro junto à ilha onde se erguia a fortaleza de São Miguel, eriçada de pesados canhões de boca larga, até na Ermida de São José (que virou depois Hospital Maria Pia), ousava enfrentar o Kinaxixi de Quianda.
– Essa Cidade Alta. É que mandava em tudo... – explicou assim, devargamente, Kuxixima.
Mais do que alta, ela era altiva e sobranceira percorria todo o cimo da crista do morro guarnecido das cruzes da Igreja dos Jesuítas, e da Igreja de Nossa senhora da Conceição, e também das bandeiras e estandartes dos aquartelamentos militares. Dessa maneira a Cidade Alta seguia altíssona e festiva até nas encostas da Maianga do Rey, onde os escravos dos moradores iam buscar água. Dominando o casario, ficavam também nesse plano alto, os palácios dos Governadores, do Bispo, e a Santa Casa de Misericórdia com seu hospital.
A outra cidade, era, aparentemente, mais modesta. Nela a vida fervilhava entre tabernas, armazéns de escravos, sobrados com sanzala e as cubatas que se confundiam com as areias das barrocas.
Não raramente a Loanda Alta baixava nessa Loanda da praia, e nela se esponjava, se embriagava.
Assim, naquele arco da baía que se desenhava do sopé do morro da fortaleza de São Miguel até na Ermida da Nazareth, essa azáfama não passava despercebida na arriba do morro do Kinaxixi.
Aqueles seres minúsculos que davam pelo nome de homens, indo e vindo pela praia, desavindos, causavam muita estranheza. As terras deviam andar muito abrasadas porque esses homens, que eram brancos e pretos, pareciam reduzidos a salalé-formigas brancas e jinzéu, formigões pretos, e não tinham parança ao sol, sempre em busca cega.
No entanto, embora assim todos minúsculos pequeninos, havia uns que eram diferentes. Eram os homens-jinzéu. No Kinaxixi lhes chamavam assim de homens-jinzéu porque talqualmente os quissondes seguiam agarrados uns nos outros, quais colares de missangas pretas. No entanto, diferentemente dos quissondes, não marchavam. Andavam se arrastando presos entre si, e não sabiam para onde ir. Nas lhe unia a sua livre vontade de seguirem uns atrás dos outros. Estavam-lhes a ligar correntes de ferro, muitas vezes presas nos pés ou nos pescoços. Os lubambos.
– E foi então que no Kinaxixi todos esses casos começaram a levantar sérios cuidados... – disse Kuxixima. – Este foi o princípio de todas as estórias...
Naquela região do Kinanxixi só tinha uma verdade. A vida inteirinha naliberdade da natureza. Não havia outra; não conheciam. Esses casos dos homens-jinzéu presos acorrentados não podiam acontecer no Kinaxixi. E na hora de beber água na lagoa, doía pensar no sofrimento daquela gente.
Dias a seguir aos dias, eles víamos homens-jinzéu passar dos quintais do major Gabriel, grande negociante de escravos no sítio da Sanzala-ia.Mabangela, atrás da Igreja da Nazareth, até na Sanzala do Kixima-ia-Mbakanhá para beberem água. Essa água tinha o sabor de
bacalhau, foi assim então que lhe deram esse nome no poço. Mas os homens-jinzéu eram escravos, tinham sido comprados, não podiam refilar o gosto da água. Bebiam.
Os soldados da linha da Sanzala Bua Mbonge, que ficava mesmo ao lado, estavam-lhes a vigiar com espingardas e bacamartes, até que eles regressassem novamente no quintal do braga, ourives, no quintal do major Gabriel, ou nos outros quintais dos donos de escravos.
Nesses tempos, estavam a vir em Loanda navios e navios para carregar produtos e peças. E eram peças os dentes de marfim, as bolas de cera, os rolos de algodão e também as pessoas.
Todas essas peças, os comerciantes carregavam nos porões dos brigues, escunas e pataxos. E amarrados uns nos outros com os lubambos estavam também os homens-jinzéu. Era muito triste.
As Quitutas do Kinaxixi que brincavam muito em todos os pequenos charcos, viam-lhes todos os dias assim amarrados, se arrastando lentamente e comentavam:
–Que crime é esse que esses homens cometeram para lhes fazerem sofrer dessa maneira?
Mesmo a Quianda, espírito pai-mãe da lagoa, quando elas lhe contaram, não soube o que havia de lhes dizer.
– Essas são makas dos homens da cidade. Não se metam... – avisou.
Porém, todo esse sofrimento as Quitutas filhas d’água do Kinaxixi, iam vendo, e se comoviam até que os homens–jinzéu eram embarcados como peças, sufocados nos porões. E então, um dia, não puderam mais se conter e se zangaram.
– Vamos no Bungo... lhes buscar...? Propuseram.
Esse era um dia do ano de 1730, em que durante quarenta dias a chuva grande d’água gorda nunca deixou de cair. As tranças d’água estavam a ligar as nuvens com o Kinaxixi. Chovia, chovia e de todos os lados vinham as águas para a lagoa. Mesmo do sítio da Santa Maria Magdalena, ali pertinho do Kinaxixi as correntes não paravam. Foi então que as filhas d’água repetiram na Quianda da lagoa:
– É hoje. Vamos no Bungo... lhes buscar. – Afirmaram, resolutas.
A Quianda sabia que elas queriam libertar os homens–jinzéu, mas se preocupou com os excessos que podiam ocorrer desse grande entusiasmo. Por isso lhes recomendou com voz de Mãe:
– Cuidado... desçam devagar fele-fele nas barrocas... não
corram...
O espírito d’água da lagoa queria-lhes explicar a razão daqueles conselhos mas elas não chegaram a ouvir mais nada. Mal ouviram a autorização não escutaram as outras recomendações. Saltaram pelas margens e cavalgaram na zuna barroca abaixo, aquela berrida estivessem a levar, na direcção do Bungo. Pareciam, eram só candengues felizes de se livrarem da vigilância dos mais-velhos.
Então nessas corridas sem modos, brutucu-brutucu salta aqui, brutucu-brutucu salta ali, atropela, varreram tudo na frente, areias, paus, troncos, e cavaram um caminho fundo para o Bungo, que mais tarde lhe chamaram o Njila-ia-Kinaxixi.
As quitandeiras da Quitanda do Bungo foram as primeiras que lhes viram chegar com paus e pedras em confusão, e recearam. Mas adivinhando que as águas estavam zangadas, fugiram com medo, tat’ê!, mam’ê!, , os balaios e quindas na cabeça. Umas foram nos jimbungo, o lugar dos bambus, mas foram apanhadas, e outras foram na Caponta. Mesmo os soldados da linha do Bua-Mbonge, no fortim deles, não resistiram. Vendo que os espingardões e os bacamartes não faziam farinha contra essas águas furiosas, que já tinham dado berrida nas quitandeiras e enterrado o Poço do Bacalhau, ala... Não esperaram mais as ordens dos chefes e abandonaram o fortim, fugindo cada uma para seu lado, se escapulindo qual os pucos.
Estava enfim livre o caminho para as Quitutas. Então as filhas d’água do Kinaxixi, em ondas e ondas de alegria, uma a uma invadiram as cubatas e sobrados e puseram em fuga os moradores, até que, por fim chegaram nos quintais onde estavam presos os homens-jinzéu ligados uns nos outros pelos seus lubambos.
Mesmo quando o Major Gabriel da sanzala Mabanguela, o Braga, ourives, da sanzala Bua-Mbonge e os outros donos de escravos, que tinham ocorrido nas pressas com os seus criados armados de pás e picaretas para tentar travar as filhas d’água do Kinaxixi, já nada
conseguiram. Era tarde. As Quitutas do Kinaxixi já tinham abraçado os homens– jinzéu e lhes recebido nas sua vidas que levaram com elas, contentes por lhes poder entregar no mar.
Mais tarde, muito mais tarde, quando as pessoas passavam no Njila-ia-Kinaxixi, esses casos elas recordavam, ainda espantadas. E tentavam adivinhar como depois os homens–jinzéu foram aparecer vivos nas suas sanzalas.
No entanto, o exemplo das corridas das Quitutas do Kinaxixi, a cavalgarem na zuna pelas barrocas abaixo para libertar os homens-jinzéu, outros filhos–pequenos do Quinaxixe muitos anos depois, iam-lhes seguir também.
Mas estas são outras estórias. As do Quinaxixe.

In As estórias de Kuxixima, INIC, 2003

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


JORNALISTAS FUTUROS

Há mais ou menos um ano, a dilecta Gabriela Antunes, enviou-me a casa uns três estudantes do curso de jornalismo, da décima primeira classe, para um trabalho na disciplina de português, que os mesmos teriam que fazer sobre o meu pequeno livro.
Se falo disso, é porque só hoje me foi facilitada, por mera casualidade, a oportunidade de leitura desse trabalho, através de um dos próprios entrevistadores/alunos.
Descrevendo partes do que supostamente terá sido apreendido, a aluna deixou-me um tanto ou quanto perplexo pela inovação que emprestou, não à estória já publicada, mas ao desenvolvimento de uma nova experiência jornalística no domínio da interpretação e relato.
Bem aventurada a Gabriela Antunes, heróica e insigne mestre do curso!
Assim sendo, logo no início da sua tese, a jovem situou o velho avô, e o pai do principal personagem do conto, com uma “uma cabaça de mafume e um cestinho de jungula torrada”, colocada entre eles. Feita a digestão que terá sido do marufo e da jinguba originais, numa outra parte do livro, o herói da estória acorda “ao lado de duas rolas mortas, as mesmas que ele abatera de manhã, uma delas coberta de kissonde ao qual ele milagrosamente abandonou-as e correu para casa onde foi encontrar os familiares já preocupados”.
Quem ficou preocupado fui eu, sobretudo quando o coitado de meu já virado anti-herói, escafedeu-se da minha compreensão porque “perdeu a inocência e os sonhos deixaram de o perturbar a força de bofetadas que apanhou quando o pano de pó na mão, olhos desmaiados no trouse congiguo da imaginação em mirabaletas aventuras...”.
Como o coração ainda titubeasse, não soçobrando na onda gigantesca da imaginação da futura jornalista, esta, em pura poesia parnasiana, canta a saga dos macacos “que estavam presos numa gaiola no quintal sentiam-se inquietos talvez pelo calor, soltaram-se e atacaram o velho pela garganta, o menino apercebeu-se, correu para a cuzinha buscar uma catana e com toda a aplicação e medo cortou a cabeça do animal”.
Por esta altura do campeonato, tive que agarrar na minha, para ver se ainda lá estava, porque “o pai ao menino já não era, partira para a longa caminhada”, caminhada essa que não deve ter sido muito longa porque, quando o roceiro lhe deu um tiro na perna, “ele pensava com ele mesmo que era outra pessoa, agora num elefante feroz, leoa com cria, ligeiro como um leopardo”.
Ligeiro fui eu ao pôr o trabalho de lado, contudo tendo antes a futura jornalista, a benevolência de me informar, que eu era uma pessoa que “gosta da arquitectura (a que cresce para os lados e não para o alto)” e que, segundo a minha boa pessoa, “os jovens escritores têm dificuldades no domínio da linguagem e que o que influência muito é a escolaridade de Hoge”.
Para me arrasar por completo, a jovem estudante da décima primeira classe de jornalismo, e aluna da doutora Gabriela Antunes, num rasgo à la Lopito Feijó, crítico emérito e eminente da praça local, encerra a tese clamando que “o livro apresenta muitas palavras em Kimbundu e Kikongo, é muito complicado. As personagens não vêm o nome”.
De lágrimas nos olhos, só me resta relembrar o meu velho amigo Elias dia Kimuezo no seu “Mama kudilé ngo ué, eme muene, ngi mona”.

21/02/95

In “Memórias da Ilha-Crónica”, Nzila Editora