quinta-feira, 23 de setembro de 2010

PROVÉRBIOS E ADIVINHAS DE ANGOLA

Adivinhas e provérbios são propostos à noite, nas conversas colectivas, como forma de transmissão oral do conhecimento. Nunca de dia.

Uma adivinha umbundu:
Ekamba lyange liluka ngo, onjokasyasya.
(o meu amigo anda sempre a mudar e nunca larga a casa).
De que amigo se trata? O caracol

Um provérbio kikongo:
Kunda kia mfumu, keki fonguanga kua wantu wole ko.
(Na cadeira do chefe não se sentam duas individualidades)

sábado, 4 de setembro de 2010

A ROTA DO RIO CURVO (Inédito)

Quando me procuro e não me acho
Me vejo e não me encontro
Sigo a rota do rio curvo
Por margens reflectidas
Do que fui e não encarnei

Sou ou não sou nunca sendo
na linha vergada do pensamento
Nos fins de todos os tempos.

A SONHAR SE FEZ VERDADE - CONTOS JUVENIS


MABANGAS

Agarrar umas trinta mabangas das grandes e tirar as conchas.
Numa panela média pôr dibungo, tomate maduro, kiabos e cebola a gosto.
Juntar jindungo para fazer chorar e não esquecer o azeite de palma e sal.
Refogar tudo e servir com funji

(Receita encontrada dentro de uma mabanga gigante)

Ao ver os bravos pescadores partirem para o mar alto em seus dongos, sempre pensara que desenvolveria a arte de escrever para poder relatar suas estórias de barcos, de kiandas e outros espíritos do mar.
Talvez também por ter nascido no mato em sítio onde nem sequer lagoa havia. O rio que mais perto passava era o Lucala.
Vi pela primeira vez o mar quando o meu padrinho, o senhor Gomes, que entre os brancos do café era conhecido por Pipa pela maneira como bebia vinho, veio viver para Luanda, dois anos antes da independência. Não irei descrever a sensação de angústia e êxtase que senti ao contemplar aquela vastidão infindável de água verde e azul, como se Deus tivesse reunido todas as águas do mundo.
Porém tudo isso lá vai, como também o senhor Gomes, meu padrinho.
A partir dessa data considerei-me novamente órfão, mais uma vez abandonado. Meu pai havia morrido afogado uma noite de luar no Kwanza, junto ao Dondo. Minha mãe, a mestre cozinheira lá em casa, na sua loucura fora apanhada um jacaré, no rio Lucala.
Creio ser oportuno mencionar terem sido essas curiosidades pelas coisas das águas que deram azo ao meu infortúnio, embora haja muita gente que não acredite nestas coisas, e esses, os incrédulos, dificilmente se afogam nas majestosas águas da baía de Luanda
O meu pai, como referi anteriormente, foi encontrado na margem esquerda do rio Kwanza, num banco de areia. As autoridades afirmaram, à época, que tivesse quiçá mergulhado, sofrido uma congestão e, após, o seu corpo arrastado até ao banco de areia na margem. Com a devida solidariedade que o momento impunha, fizeram notar sem rodeios ao meu padrinho, a sorte que o meu pai tivera em afogar-se num momento em que as chuvas eram ariscas, não obstante a sua época, senão o rio estaria cheio e tumultuoso, o que teria impedido o aparecimento do corpo e, já reconfortado, mandou organizar um batuque daqueles que só mesmo no mato. É verdade, ainda hoje se fala desse acontecimento. Há mais-velhos que quando os encontro e falamos do antigamente sempre recordam o famoso batuque como data de referência a tudo e todo o resto, como relembrando ano de farta colheita ou de guerra passada.
A minha mãe, grande cozinheira lá de casa, a quem a senhora Gomes queria ensinar custe o que custasse, a receita das mabangas porque se aproximava a quarta feira de cinzas e queria imitar tradição da Ilha de Luanda, de quem muito ouvir falar por uma senhora que lá por lá vivera uns tempos, olhou naquele dia para os moluscos recém importados da capital e deu um grito de susto.
“Auá, ngana tata nzambi”é! (Ai meu Deus!)
“ Deixa-te lá de estórias que isto não faz mal a ninguém, vai-lhes mas é tirar as conchas. Isto são mabangas, não te lembras, já o ano passado te havia falado delas, não pudemos foi arranjá-las a tempo Vivem na areia, debaixo da terra do mar”.
Apenas acabara a senhora Gomes de falar quando viram uns moleques avisar que estava lá fora um morto.
Minha mãe começou a partir sua primeira mabanga, tremendo de medo. Ia a manhã a meio.
Depois a minha madrinha e o chefe do posto entraram, e os sipaios depositaram o corpo molhado na parte cimentada do quintal, junto à copa e à cozinha.
“ Olha ó Zefa, o teu homem morreu”, gritou o chefe-de-posto lá para dento.
Chegando esbaforida ao quintal, minha mãe olhou para o fino fio de sangue que escorria no canto da boca do marido, olhou para o sangue das mabangas que lhe manchava as mãos, e endoideceu ali e pronto.
Desse dia em diante, criou o hábito se dirigir diariamente ao Lucala, que passava bem perto, e escarafunchar na areia, pensando encontra as mabangas. Na sua loucura todos dias eram quarta-feira de cinzas e meu pai reclamava o seu almoço de funji de mabangas, como mandava o costume ensinado pela senhora Gomes.
Um dia não voltou mais, o feiticeiro jacaré comeu-a. Encontram o corpo num buraco que desabou, à margem do rio, todo inchado e já meio comido.
Foi a partir dessa lamentável ocorrência que o senhor Gomes se tornou para mim o padrinho Gomes. Chamou-me e, de ar solene, como requeria o momento, desabafou:
“ Pronto rapaz, isto agora é um monte de sarilhos!”
Fez uma pequena pausa para reflexão, não tivesse esse sido talvez o meio mais adequado e correcto para começar.
“ Não te podemos baptizar outra vez, os teus pais já o fizeram, mas ficas nosso afilhado. Passas desde hoje a viver cá em casa e quando fizeres nove anos vais para escola”.
Esta promessa ele cumpriu.
Quando atingi os nove, anos apareceu lá em casa, por si chamado, o senhor padre Ambrósio e após uma longa conversa, que meteu hortaliças e cabritos no meio, ficou acordado que eu começaria na mesma semana seguinte, na missão. O padrinho informou-me à frente do senhor padre, que não iria ser criado do padre por custear o meu ensino.
E isso assim foi. Na missão católica estudei três anos, até à nossa vinda para Luanda, quando e onde vi o mar pela primeira vez.
Então perguntei à minha madrinha para me mostrar onde viviam as tais mabangas que tanta desgraça haviam causado e ela levou-me a ver a baia de Luanda num sábado à tarde.
Explicou-me que quando a maré baixava poder-se-ia deslocar pelas águas rasas e, remexendo no lodo, lá estaria o molusco.
Durante todo o ano, à sorrelfa, fui esgravatar na areia e no lodo. A minha mãe aprecia-me sempre, no fundo raso da água, entre as mabangas.
Via seu rosto transparente e alvo a falar-me.
“ Ouve a receita que te vou dar”, dizia ela.
De tantas vezes a repartir acabei por memorizar, todavia sempre apreensivo tentando descortinar o porque daquela aspiração
Tempos largos mais tarde, quando não mais aguentava as dúvidas, dirigi-me à minha madrinha para indagar tudo sobre o assunto, mas tive que parar pois ouvi a voz velada e preocupada do meu padrinho.
“ Caraças, estamos lixados. Essa malta lá em Portugal vai mesmo entregar esta merda a esses gajos dos comunistas pretos”
“ Crês?”, perguntava a madrinha temerosa.
“Não haja dúvidas e quem não fica cá sou eu. Pelo menos por agora”
Mas antes chamaram-me e o padrinho falou assim:
“Escuta meu rapaz, aqui vão-se passar um monte de coisas que tu não vais compreender. O país vai ser todo teu (riu-se para o lado) e como já estás quase um homenzinho, não precisarás mais da nossa ajuda. O teu padrinho aqui vai para Portugal, e quando tiver a vida organizada manda buscar-te.
Entretanto vais ficando a tomar conta da casa, para todos os efeitos ela é tua, e vamos deixar-te um dinheirinho que te ajudará nos primeiros tempos. Usa-a com cuidado porque terá que durar até receberes o nosso bilhete de chamada”, e deu-me uma patada carinhosa no ombro.
A minha madrinha permitiu-se um sorriso pálido numa careta involuntária, como que a dizer “ desenrasca-te pá!”,
No dia seguinte apanharam o avião.
A independência veio e a minha vida melhorou. Melhorou mesmo muito.
Primeiro fui engraxador de sapatos e botas durante uns tempos. Depois, com a casa do padriho, montei a pensão “Até Que Enfim” e durante vários anos tive um rendimento fixo. Mas como tudo que é bom é sol pouca dura para os destituídos da terra, apareceu lá em casa um capitão do exército a informar-nos que teríamos que bazar porque a casa era dele, de um primo dele
E mostrou papel e tudo.
Quando lhe perguntei como se chamava o tal primo, disse que era Gomes. Contudo juro que nunca na minha vida tinha visto aquela cara e ainda por cima como tinha o meu padrinho, um pula (branco) de quatro costados, um primo bumbo (negro)?
Desalojado e sem proventos, quando os tempos correm bem não se pensa no amanhã, tentando ganhar algum na batota, surgiu-me a ideia da apanha de mabangas e minhocas ali junto à ponte da Ilha, já que isso rendia, por ter tanto copéra (estrangeiro cooperante) a comê-las só à toa sem respeito pela tradição uns, e a usá-las na pesca outros…
Mudei assim mais uma vez o ramo de negócios e tornei-me técnico superior de manbangas e afins. Como podem ver, de facto, o destino de minha família estava de uma maneira ou de outra ligado à água.
Familiarizei-me como a Ilha e os seus habitantes e soube das festas que dedicavam à kianda por ser necessário apaziguá-la.
Andava ofendida, há muito que as festas não se faziam porque o governo tinha proibido. Mesmo assim as velhas e os velhos reuniam e observei como punham uma toalha branca e nela, comida farta. Que desperdício, eu com tanta fome e aquela boa gente a deitar pitéu divino para o mar. Pratos cheios da mais variada comida, garrafões de vinho ao lado dos quais se sentaram umas senhoras todas vestidas de vermelho. Vi mesmo coisas que já esquecera, figos, passas, ect.
Como me doía a barriga só de olhar! Aí e então, fiz o juramento, logo voltaria para tirar a barriga da miséria. Quando todos se retirassem, já que ninguém deve observar o repasto das divindades porque podem rejeitar a oferta como insuficiente.
E se de facto elas rejeitassem?
Ficaria tudo ali a apodrecer para os cães pitarem? Ninguém iria dar pela falta de uma galinhazita de churrasco, um pacotinho de figos secos e qualquer coisita mais. E depois, eu era gente do mato, no fundo desconhecia essas estórias das divindades das águas marinhas. Lá nas minhas bandas o feiticeiro era sempre o jacaré.
Assim, momentos depois de ter comido e bebido da tolha na areia, ouvi o lamento angustiante de minha mãe:
“ Ai meu filho, o que fizeste?”
Foi esse o meu pecado original e único. Agora os meus filhos, caso os viesse de ter, seriam filhos da sereia, a minha vida estava a ela amarrada. A minha descendência seria alva como o kilombo-kia-hassa (albino) e serviria as divindades aquáticas.
Tudo isso minha boa mãe me informou naquela noite.
Um ano passou e nunca mais pensei no assunto, mas pelo sim pelo não fui-me mantendo afastado da Ilha. Mas a naquela tarde, a fome apertando, com a maré bem baixinha, entrei pela baía de Luanda à cata dos desejados moluscos a aí fiquei horas a encher o saco grande de plástico.
Quando a maré enchera, ao regressar, caí num fundão e, lá e, baixo, bem à minha visita, minha mãe mostrou seu rosto alvo e cabelos compridos douradíssimos a ondularem pelas correntes. Seus braços estendidos pareciam querer emergir do mar, seu sorriso chamando-me, convidativo.
Dei-lhes as mãos com amor e abri a boca para saudar, porém a água penetrante roubou-me injustamente a palavra e desrepeitosa feriu-me os pulmões.
Quis balbuciar uma desculpa por ter esquecido a sua vida, os seus ensinamentos, a sua morte, a cada frase esboçada, a cada gesto de desculpa e amor, a cada intenção não expressa, os pulmões sacudiam-me raivosos e a água do mar dominava-os senhoril.
Quando percebi que minha mãe finalmente me havia perdoado, lá bem no fundo do mar olhei para cima, para o cimo da água e contra o azul infinitivo dos céus, vi um corpo que não era negro mas alvo como o de um albino. Aquele rapaz morto, boiando lá em cima, seria alguém doutro. Um incauto que fora à água quando não devia e nem sequer nadar sabia. Coisas das gentes do mato!


Transcrição de uma notícia aparecida no” Jornal de Luanda” do dia 21 de Julho de 1981:

“Não terão sido poucas as vezes que alertamos as autoridades para o facto de dezenas de crianças buscarem sustento e pecúlio nas lodosas águas de baía de Luanda. Para além da proliferação de doenças endémicas várias que o luandense assiste ao triste espectáculo de ver algumas dessas crianças a serem retiradas das águas, seus corpos inertes.
O nosso colega, o conceituado jornalista Manuel Baco, teve a ocasião de ter testemunhado hoje um caso desses, ao cair da tarde. Todavia, e a isso há que fazer referência, o insólito da ocorrência não está, infelizmente, na morte do rapaz, assunto hoje já quase banalizado, mas sim no que o cadáver agarrava em suas mãos fortemente apertadas.
Para quem queira verificar a veracidade do que afirmamos, a mabanga gigante que o inditoso rapaz apertavas nas mãos, talvez como pretensa bóia de salvação, está exposta no Museu de Ciências Naturais, bem como o minúsculo manuscrito que vinha no seu interior e em cuja primeira página se descrevia uma receita tradicional de Luanda, para funji de mabangas”.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS

Com a declaração pelo presidente Obama da saída do Iraque das tropas norteamericanas, veio-me à mente uma crónica que escrevi em 2005 baseada numa notícia sobre Bush, o filho. Sou, assim, obrigado a relembrar este homem que tornou o Mundo tão mais inseguro.


OS PORTA-RETRATOS DE BUSH

O presidente George Bush é um homem que gera uma panóplia vasta de sentimentos nas pessoas, mundo afora.
Há quem veja nele o antigo rei cruzado, montado em engalanado e garboso alazão branco, partido a reconquistar a terra santa e hoje, mais do que nunca com a falta de petróleo a terra prometida, a fim de expandir a fé cristã e a bíblia do império. Nos escudos dos nobres que o acompanham na sagrada missão de combater os infiéis e o império do mal, a heráldica do ducado de Halliburton, que já produziu um vice-rei intitulado Dick Cheney, a do condado de Schlumberger, que nas suas fileiras inclui o cavaleiro John Deutch, ex-director da CIA, a do marquesado de Baker Hughes, a do baronato de General Electric e aquela de toda uma vasta gama de brasonados, muitos deles tão bem conhecidos em Angola.
Para outros, é a figura reincarnada do demo, o anticristo ou o antiprofeta do Islão, a personificação do anjo do mal, ou maior perigo a que actualmente a Humanidade faz face, o homem que deu forma e conteúdo ao terrorismo e que se arroga o direito de se julgar Aquele da segunda vinda, o Messias salvador do Mundo.
Não será assim de estranhar a erupção generalizada de manifestações tanto a favor quanto contra, que se testemunham um pouco por tudo quanto é canto do globo. A partir das milhentas piadas que a Internet faz circular, inofensivas e com o fim de ridicularizar a pessoa, a manifestações organizadas de rua com objectivos políticos determinados e até, podemos imaginar, aos mais mirabolantes planos de eliminação.
Decidida e definitivamente, Bush filho é alguém que se tem que levar em conta.
Há muita gente que não dorme por causa dele, assim como há outra tanta que dorme melhor por sua causa.
Dos que não dormem, só para dar mais raiva, há um que merece nota, não tanto pelo que faz, mas sobretudo pelas razões que o faz e pelo modo iconoclasta como ele o faz. Este Dom Quixote plebeu, com o engenho e a arte dos teutónicos, atanaza a vida da polícia alemã e a do coitado do administrador dos parques de Bayreuth, um tal de Josef Oettl, que há mais de um ano sente um cheiro fétido a fezes, a merda, (comigo é assim, no popular) nas visitas aos seus domínios de competência camarária.
Fosse só isso, talvez não houvesse notícia, farto de ver esterco de cães nas ruas e parques da Europa está qualquer um que por lá tenha passado. O problema dele, do Josef, é muito maior, pois essa porcaria toda cheira a política e ainda por cima, tem o presidente George Bush como alvo preferencial e artístico.
Não é que o pobre do administrador dos parques de Bayreuth já colectou, pelos bosques do seu burgo, cerca de 3.000 montes de excrementos todos eles com um pequeno retrato bandeira, emoldurado, do nosso Bush a adorná-los?
Claro que, primeiramente, os políticos locais acharam que aquela brincadeira, passageira, esperavam, nada mais fosse de que um protesto qualquer por causa da invasão ao Iraque. Mas à medida que o gracejo mal cheiroso continuou, para gáudio de muitos, logo se pensou que o(s) artista(s) plástico(s) queria(m) demonstrar uma reprovação à campanha de reeleição de Bush., o que não foi o caso, pois já com o aguerrido do George eleito, a trampa continuou.
Imaginem pois a dor de cabeça da polícia alemã, que já aumentou a caça ao(s) artista(s), contudo sem grande resultados, segundo o seu porta voz, o senhor Reiner Kuechler. Mas o mais engraçado de tudo isto, é que se for(em) apanhado(s), nada poderá ser feito contra ele(s). É que não existe legislação que puna alguém por usar boa e bem cheirosa bosta, como pedestal para porta retratos ou porta bandeiras, mesmo se do Bush.

27/03/05

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

SUMAÚMA - POESIA


NAUFRÁGIOS

Nas ondas
dos naufragados
não temas
o feiticeiro
que em cantos de sereia
dança solitário
nas goelas do tubarão

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



FRAGATA DE MORAIS

Nasceu no Uíge, em 1941. Diplomata de carreira, ex Vice-Ministro da Educação e Cultura, também foi Presidente da Comissão Executiva da União dos Escritores Angolanos. Inclui, em quase todos os seus livros a narrativa do fantástico, embebida nas profundezas no tradicional angolano, muitas vezes em contradição com o moderno urbano. Os contos aqui contidos, fazem parte dos livros “A Seiva – Contos Angolanos”, e “Momento de Ilusão”.

DESALMAR

A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma.
Precisamente às catorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975, quando, emaranhado na mais recôndita raiva animaleja, entre medos incompreensíveis e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já morto, mas ainda e para sempre inimigo.
Com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas.
O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam a tal, depois dos vivos apagarem a luz que as faz vaguear, o esquecimento, portanto com eles não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo mais seguro por onde escapulir.
Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes, esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, enquanto o pontapeava feito louco desvairado, até se sentir exaurido.
Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo?
Com este receio mais do que natural, não apreendendo que doravante seria mera essência desincorporada e que as balas intrusamente lhe haviam subtraído a descartável matéria, o espírito do soldado inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar aquela moradia desumana enquanto fosse possível ou permitido, o esburacado crânio de que fora dono.
Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade desconhecida, para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação ao outro.
Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver velado por cães vadios e esfomeados. Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara.
Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia
Às dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala mais cerca.
Alguns dos cachorros, trespassados por uma súbita corrente fria, fugiram como se alguma turba de garotos os tivesse apedrejado. Outros sentaram-se no alcatrão deserto a uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada.
O espírito do então inimigo de Sabata, novamente assustado, subiu célere e ficou a rondar as árvores do bairro desconhecido até que as estrelas, sombras de perdidos antepassados, lhe anunciaram o caminho dos errantes, porque morrera fora e longe dos seus. Para ali quedaria o corpo a apodrecer no quente alcatrão tropical, na manhã seguinte nada mais do que restos do farto repasto dos cães, a serem atirados para um qualquer buraco e tapados a pressas nauseabundas.
Estava desprendido dos vivos, já que quem mantém os espíritos em permanente amofinação, são os que deles se lembram.
Quanto a Sabata, perdeu a alma porque de repente ela sentiu-o gelado, tanto quanto a água matinal na cachoeira.
Apavorada, nunca antes se vira em tal estado, comprimida com ocultos medos ancestrais incompreensíveis, anichou-se sem querer no dedo que apertava o gatilho, testemunhando e participando de todo aquele dano. No momento em que Vuíla Sabata pôs a Aka a tiracolo, para poder pontapear o soldado ainda e sempre inimigo à vontade, a alma, de tão pequenina e contrita, caiu com o enorme peso da culpa bíblica para o chão, escoando pela primeira fresta do alcatrão.
Sabata sentiu-se ligeiro e etéreo. Com o pecado ora esvaecido do seu humano horizonte, tornara-se, enfim, dono absoluto da inconsciência. Doravante a negação seria sua rédea, a razão a inimiga visceral, a moral e a ética os vermes com que saciaria os desejos irreprimíveis da concupiscência da guerra.
Com a ilegalidade de Deus decretada por despacho oficial, Vuíla Sabata, sabendo-O na clandestinidade, afiou os instintos, metamorfoseou-se no abstracto concreto e reinou senhor incontestado dos irreflexos. Tornando a enfiar um cano de fuzil pelo recto de Federico García Lorca, de quem nunca ouvira falar, apregoou por tudo quanto é canto de Angola, “viva la muerte”.
Por essas sendas marchou, ao som dos tambores marciais, a juventude forjada para as desigualdades entre iguais. Amor sobretudo com desamor se paga, seria o moto, durante o que pareceu ser uma eternidade opaca.
Mais de duas décadas depois de Vuíla Sabata ter perdido a alma, alguns muitos ainda se indignam ao lerem no jornal diário, ao verem e ouvirem nos noticiários da televisão, que o crime, a amoralidade, o apatriotismo, tomou conta das vidas inviáveis de quase todos.
Esses, devem ser os que constantemente fustigam a esperança jamais banida, na busca da alma de Vuíla Sabata, para que seja restituída e redimida
Alma porventura agrilhoada no mais fundo de uma arca libanesa ou indiana, trancada a sete chaves com cadeado electrónico angolano numa caixa forte suíça, após ter forçosamente penado longo e tortuoso trajecto, da fenda no alcatrão por onde escorregara.

In “Momento de Ilusão”, Campo das Letras, 2000