terça-feira, 9 de março de 2010

A SONHAR SE FEZ VERDADE - CONTOS JUVENIS






O SONHO

Por volta dos meus cinco anos, costumava aprisionar uns gafanhotos castanhos gigantes que, ao voarem, ufanavam presunçosos suas belas asas de seda avermelhadas de um amarelo diáfano. Segurava-os com mestria e confrontava-os boca contra boca, tenaz frente a tenaz, voracidade mastigando voracidade. Assim passava eu horas em encarnadas e sangrentas batalhas que ouvira da boca dos avós, nos contos das noites de sunguila (conversa). Ou nos jogos de crianças mais velhas, reconstruindo qualquer feito de qualquer herói da memória colectiva.
Uma águia-real pairou sobre o ninho em círculos concêntricos, e o vento aportou seus pios estrídulos de amor. Reconheci nela o amigo que tantas e tantas vezes sobrevoava, alto nas nuvens, a nossa senzala. Em voo picado baixou até desaparecer no horizonte e, pela primeira vez ao olhar para baixo, vi uma paisagem até ora por mim despercebida. Vi, perplexo, a embocadura de um rio voraz que espraiava, mar adentro, ruidosamente. Desorientado, procurei pela senzala familiar, o casarão do roceiro, os terreiros do café, qualquer coisa tranquilizante, qualquer cheiro conhecido.
Nada!...
Só rio, água do rio e aquela massa infindável que eu então julgava ser um grande lago, do qual não apercebia o fim. Espremi os olhos e vislumbrei três pontos pequeninos que avolumaram ao passo da aproximação. Maravilhei, nunca houvera visto embarcações de tal tamanho, barcos que nunca sonhara existir, gigantes bojudos das águas com línguas soltas ao vento.
A selva logo se manifestou no ribombar dos tambores coma a notícia estranha. Os ecos percorreram céleres caminhos montanhosos até à capital do reino. E ali, os corações encheram-se de alegrias e receios, enquanto aguardavam por mais notícias. Pela embocadura adentro desfilaram as caravelas. Nas margens, as gentes, vindas de perto e de longe, uns a pé, outros de canoas velozmente impulsionadas por braços sinuosos e decididos, aguardaram atrás d chefe local, que trajara suas peles de leopardo, adornara a real cabeça e segurava determinado a lança, os dentes da onça pendurados em argola no pescoço, oferendando-lhe ar imponente, desabrigado e senhoril.
Os velhos preocuparam-se e, de rostos contritos, buscavam um sinal da expressão do mfumu (chefe). Este, vendo-lhes a preocupação, levantou a lança e disse-lhes:
- Enti uwende emavungu, kewatembelanga ko. (A cadeira, trono, na qual o chefe se senta, não estremece - A autoridade de um chefe é inabalável)
As crianças corriam espalhafatosamente até ao rebordo da praia, corpos nus, luzidios negando o chamamento das mães temerosas, as praias engrossando com a chegada de novas gentes, admiradas e assustadas. A maioria ficava pelo rebordo da mata. Por fim, à medida que os monstros marinhos se aproximavam, línguas de pano desfraldadas em arrogância, as crianças foram chamadas e recolhidas. O mestre nganga (curandeiro), observando um milhafre voar razante com um rato morto nas garras, predisse augúrios e maus presságios, desaconselhando o fascinado chefe:
- Ngandu didi muntu, mfundu ba na mamba O crocodilo comeu um homem em conivência com a água – Há perigos que são misteriosos), disse.
O povo inteiro acocorou-se no mato quando do bojo do monstro marinho saíram pequenas embarcações, repletas de gente, que pousaram na água. De longe, as cordas que as sustinham não eram enxergadas e todos acreditaram da descensão maravilhosa, anúncio do poder dos estranhos, deuses albinos. O rato morto caiu aos pés do mfumu, largado pelo milhafre que ainda circulava em cima, talvez ele igualmente espantado.
Os estranhos remaram vigorosamente para a praia, lanças enormes reluzindo ao sol.
As crianças, mal dominando o medo, irromperam em choros e prantos descontrolados, gritos de bicho acossado. As mulheres deitaram a fugir com as crias, como puderam, enquanto os homens colaram os corpos quase nus ao capim vergado. Só o mfumu e mais alguns se quedaram erectos.
Que seres seriam aqueles, tão estranhamente trajados e de pele que nunca recebera o sol? Divindades das águas? Estava anunciado que a salvação do reino do Congo viria de seres albinos, seria esta a hora? Se não fosse, só poderiam ser seres doentios, feras ou divindades malignas esconjuradas pelas rezas e artes ineficazes do nganga, que urgia o chefe a desbaratá-los com o seu espanta raios.
Este, fascinado pelos adornos jamais vistos, pensava que com eles poderia ser a inveja dos chefes vizinhos. Em gesto ousado e corajoso, mostrou-se de longe, sua imponência e ar arrogante anunciando a condição de realeza. Ainda que amedrontados, os nobres imediatamente o seguiram, precedidos pelo conselho de anciãos.
Lá em cima, na tranquilidade do ninho da mbemba (Águia das palmeiras), admirei a coragem dos homens enfrentando aqueles que ainda não sabiam ser o pior dos monstros existentes. Monstro que durante longos e ignóbeis séculos iria alimentar-se na inocência e pureza que agora os recebia. Que regalar-se-ia pantagruelicamente no seu sangue, sofrimento, humilhação e morte. Como desejei poder descer e avisar, gritar com todas as minhas forças de criança que trespassassem imediatamente com suas setas a cobra venenosa que lhes acenava encantos jamais vistos, o mundo maravilhosos do arco-íris.
O nganga contorcionava-se em pasmos de agonia, espuma esvaindo-se-lhe da boca que murmurava sons ininteligíveis. Certamente que pedia, em suas pragas, que o chefe os não recebesse. Talvez sentindo o poder ameaçado, vi-as como curandeiros mais fortes e ferozes, contra os quais desconhecia medicinas.
- Nyoka kababakilanga ya ko ha kati kati (Ninguém segura uma cobra pelo meio – A confrontação desnecessária do perigo pode trazer consequências) - afirmou de novo o nganga.
Que impotente e só me sentia, mero espectador fascinado pela visão do futuro e horrorizado pelo conhecimento do presente.
Os estranhos, os brancos, aperceberam-se do chefe e sua comitiva e acenaram gestos amigáveis, todavia as lanças ríspidas para a defesa. Ordenaram que viessem uns baús e, em acto de magia e feitiços, panos coloridos, quinquilharia da mais variada, miçangas, argolas, sacos e sacolas, espelhos, colares e pentes, flautas e instrumentos de corda pronto rodopiaram no ar em cumplicidades multicoloridas, fascinantes e convidativas. Buzinas, apitos, badalos e tamboretes que encantaram de modo irremediável o próprio nganga.
E o transe hipnótico atraiu inexoravelmente o povo.
As peles trajadas do leopardo, cautelosas ainda em seus passos humanos aos ombros do mfumo, observavam com desconfiança a palidez epidérmica dos forasteiros. Seus estranhos cabelos lisos por baixo de capacetes ainda mais raros, pés revestidos de peles peladas e, no peito, uma carapaça de cágado protegendo-os. Como resistir a tal fascínio?
E as artes mágicas continuaram, agora já vestidas nos corpos dos nobres, enfeitando cabeças da realiza, vomitando sons musicais agreste nas bocas das gentes, adornando esbeltos pescoços femininos, e colares e pinturas sobressaindo nos peitos másculos dos guerreiros. Sim, como resistir a tal encanto e felicidade, que essa gente poderia ser má?
Não!...
Havia pois que mandar vir os tambores e os dançarinos, agradecer o recebido tão realmente e dar as boas vindas aos novos amigos, até porque todos sabiam que um estranho com fome não fala livremente. Havia muito a indagar, a saber e a aprender.
Dias poucos mais tarde, partia para a grande Mbanza capital do reino, uma longa marcha de gente, acompanhando os pálidos emissários, que haveriam igualmente de fascinar o poderoso rei e, o monstro forâneo, engoliria irremediavelmente o primeiro troço da sua conquistada vitima, entre batucadas festivas e honras dignas de boa fé e confiança.
Todo este espectáculo esvaziou-me por inteiro e as minhas pálpebras pesaram como um robusto cacho de bananas. Minha cabeça pendeu para o lado e adormeci até despertar, não sei quanto tempo depois, aos gritos de uma multidão delirante que saudava os barcos a descer o grande rio, Mzadi, sem saber que haveria de ser esmagada até à hora em que resolutamente sacudisse esse peso ignóbil das suas vidas e consciências.
O vendaval viria e a chuva transformadora apareceria para fazer brotar a flor, liberta e anunciadora de novos tempos. Entretanto, diante meus olhos infantis, desfilariam os horrores de cinco séculos de guerras, intrigas, morticínios, profanações, humilhações, comércio de carne humana, todo este cortejo banhado por uma torrente vasta de sangue, muito mais ampla do que o rio em que haviam aportado as caravelas nesse fatídico dia. Rio cuja origem pensavam os invasores nascer num instrumento romano de tortura erguido na Palestina, cruz moradia fétida de um homem enfezado morto pelos seus e pelos romanos, porque ousara libertar suas gentes não só da opressão dos fariseus, como da dominação romana, com palavras de amor e gestos de igualdade. Contra sua livre vontade, viu-se metamorfoseado por aqueles que o seguiram pelos séculos afora, no maior criminoso divino. Inocente, feito morrer para salvar o impossível, a condição humana, assiste do seu lugar no etéreo a uma imensa vaga de crimes cometidos e justificados em seu nome.
Foi pois aos pés desse símbolo, desses dois pedaços de madeira cruzados, que os minkixi (feitiços) dos brancos deglutiram crianças como eu, estraçalharam-nas e enfiaram-nas em barcos que as vomitaram em mundos novos e longínquos. Separados de seus pais e terras por um longo mar de escravidão. Não entendi o gesto dos novos feiticeiros albinos, subtraindo o poder de dominar e escravizar àquele pau em cruz no qual haviam imolado um semelhante e que apregoavam ser a cruz da bondade e da justiça.
Vi assim, desfilar a História no avanço dos tempos, no renascimento do mítico Fénix, no descarregar do peso escravo na tomada de consciência. Desde o início, tal como o vento a soprar benigno por entre os troncos da mafumeira, cada sopro uma melodia, uma canção fina sussurrada, passaram por mim nomes que jamais se vergaram
NZINGA A NKUVU...
Onde vira eu já este rosto, imponente e desdenhante? O mfumu (rei, chefe) que recebera os forasteiros, na mão desdenhante, a cruz do novo pagão imposto. Na mão direita segura a cruz do pagão ora imposto. Meio cobrindo os tecidos de ditombe, a pele do leopardo imponente. Nos punhos grossos e fortes, braceletes aguerridas. Aos ombros largos e levantados, a capa de mabela que se agitava ao vento. Em gesto de desdém, o mfumu ergue a crus forasteira e destrói-a com violência no chão. O nganga albino que ali fora deixado pelas caravelas já idas, acabava então o seu curto reinado.
Ao passar do tempo, o nganga furioso salta ágil como o macaco, revoltado com a tolerância dos chefes passados por não terem logo percebido o mal. Volteia no ar longos arcos de fogo, parábolas infernais, formas mirabolantes de esconjuração. Ofegante, cai no chão de bruços, para na dança silenciosa do gesto mágico, cobrir de pó o rosto, invocando os minkixi que poderão destruir o mal que pressentia vir pelos séculos fora. Da sua boca escancarada brota espuma barrenta, e a água da chuva cai-lhe em cataratas sobre a pele negra e luzidia, tonificando-o
Através dele, os mortos ordenavam ao povo que se levantasse e que não permitisse o dizimar de suas gentes. Segundo o nganga, não andavam nos ares os nkita (espíritos) heróicos queixando-se do abandono, do desleixo e das guerras entre irmãos que permitiam ao branco levar os vencidos para terras estranhas? Teria, perguntava ele, todo o povo que se tornar mvumbi (espírito) no mfinda (cemitério)? Perdera o mwanda, a sua alma, a sua essência?
Não!
O nganga não aceitava que assim viesse a ser, seus minkixi dariam nova força ao povo, este levantar-se-ia sob o comando de outros chefes.
NGOLA KILUANJI...
Vi então o bravo capitão branco, um a quem as gentes chamavam de Novaji (Paulo Dias de Novais) prisioneiro do poderoso rei da Matamba. A cobra já parira seus ovos, o veneno não era novo e inexperimentado, as miçangas e os apitos já não mais encantavam o incauto. Seis anos restou cativo, para conhecer o poder do reino africano e partir para os seus com o recado de não mais voltarem. Todavia, não bastou...
MBULA MATADI...
A fogueira devoradora do capim seco, feito mar e feito fogo. Ei-lo feito terra a amar quando seu corpo, trespassado, partiu para o mfinda, o cemitério, onde os antanhos o aguardavam vitorioso. O sangue ainDa morno manchava a pele de nzuge que meio escondia a pulseira de metal, ulunga (símbolo do poder), torcida em braço forte e inchado. E no fundo do rio, depois da viagem, uenda ku maza (ida para a água), houve festa.
NZINHA MBANDI...
a águia cuja sombra pairou pavorosa sobre as cabeças do invasor. A árvore centenária na qual as cigarras cantavam lendas de heróis guerrilheiros. Ela, que foi a esperança que brotou das rochas de Mpungo a Ndongo, fluindo cristalina para o Kwanza, transbordado em fúria avassaladora num vasto lago único de resistência. Ela, aquela mulher trovejante e soberba, guerreira dos guerreiros, irmã de Ngola Mbandi, que se encontrara com o poder forâneo, soberana livre, para tratar e ser tratada de igual para igual. Senti-me orgulhoso dessa mulher trovejante e soberba que vergava os canaviais inimigos guerreira das guerreiras, irmã de Ngola Mbandi. Ela que soube mostrar ao governador branco que em sua terra ninguém se lhe sobreporia, que não lhe exigiriam tributo humilhante, que ali fora como soberana livre, enviada do grande Ngola Mbandi, para tratar e ser tratada de igual para igual. Ela, que fustigara as hordas inimigas pior que a febre do mosquito amarelo.
EKUIKUI…
A florescente semente do milho perene nas lavras da liberdade, escondendo no seu seio as lanças atentas. A vida gerada nas caravanas marfineiras, no zumbido labor das abelhas em bolas de mel. Não como as vozes dos fracos que anunciavam em lamentos – bem o tínhamos dito, fujamos, somos a geração de compra e venda. Mãe que me trouxeste ao mundo, vem cá ver, estou partido como o nyombe (pequena árvore) reclinado sobre o joelho.
Não!... O nyombe nunca partido, reclinado sim, porque da dura labuta que extrai harmoniosos prantos de alegria à terra mãe, ditosa natureza geradora que nos enche os ventres, emprenha os músculos que seguram as armas e rega o cérebro de sangue fresco e cálido.
Foi também isso que ouvi de MUTU YA KEVELA…
Não somos gerações de compra e venda e tu, África que nos trouxeste ao Mundo, vem ver, estamos fortes como o pau de takula, erectos como mais alto e colossal dos embondeiros (beobab) e firmes como o singelo yombe.
MANDUME…
Não, nunca! Foi o grito do cavaleiro fulminante do sul, a pele do boi negro, as areias do deserto erguidas na poesia das fugas incontritas, o rastro da pólvora sempre acesa que de um lado quer do outro do rio Kunene. Unicamente pelas suas próprias mãos, conseguiu a morte chifruda envolvê-lo no cabedal negro e levá-lo para repousar nas terras férteis do curral. Não coube ao invasor essa glória! Mas do ovo nasce o avestruz que percorre livre os arbustos espinhosos das areias e o leite das vacas amamentará a nova alma.
Exausto, ainda conseguiu ouvir o ribombar da nova e moderna herança. No seu derradeiro esforço, a História descartava o fardo antigo e secular. À beira do Kwanza, a nova luz introduz-se nos corações dos homens e invade as matas, as longínquas chanas, e quebra as algemas finais. A ndua (ave rara e arisca de plumagem muito linda) canta o choro do parto:

“Criar
criar com os olhos secos
criar, criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impudica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar, criar com os olhos secos
criar, criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos
criar, criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos
criar, criar
criar liberdade nas estrelas escrava
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forças similadas
criar
criar amor com os olhos secos” (Poema de Agostinho Neto)

O MOMENTO

Despertei com o badalar do sino, lá longe na roça e, ao olhar para o sol, soube qu era a chamada para a labuta ao começo da tarde dos que não trabalhavam por empreitada.
A meu lado, duas rolas mortas, as mesmas que abatera de manhã, uma delas coberta por um exército de formigas e ataque do qual eu milagrosamente escapara. Abandonei-as e deitei a correr para casa, onde fui encontrar os familiares já preocupados, alguns haviam até partido para o mato à minha procura. Ouvi um bom ralho do meu pai, tios e demais parentes. Passe a vergonha da humilhação da chacota dos meus companheiros, que me diziam já engolido pela jibóia.
Assim foi a minha vida.
Cresci, aprendendo a ler na missão, deixei a viração do café nos terreiros e fui para a casa grande do roceiro para ser instruído nas artes do bem servir à mesa e de lavar loiça. Aí, perdi a inocência e os sonhos deixaram de me perturbar à força das bofetadas que apanhei quando, pano de pó na mão, olhos desmaiados no transe longínquo em mirabolantes aventuras, não cumpria com os deveres caseiros.
Como letras gastas pelo tempo, nas páginas de velhos livros, meu pai foi-se tornando ancião, não tanto pela idade, mais pelas agruras da vida. Fui vendo-o a usar o rolo nos terreiro, a assumir a guarda do quintal, a tornar-se carregador de agua para a casa grande, a pastorear ocasionalmente o rebanho de cabras sob sua guarda, e a ser o terror das onças e das hienas quando vinham rondar os currais.
Enquanto isso, nascia em mim uma fúria conhecida. Nos meus dezanove anos, ouvia o que os ventos traziam sobre a luta incipiente pela emancipação política, percebia o contorno das ideias, a nitidez do sentir do pensar que pairava nos ares, mesmo nas estrelas cintilantes dos céus africanos. Uma melancolia foi-me envolvendo em raiva surda, o peito enchia de sentimentos estranhos e de rajadas de tempestades até ali desconhecidas, sentia que estava a chegar a hora da partida, o momento o corte do cordão umbilical com o passado que vivera. Partir para a cidade grande onde pudesse aprender o que li me estava vedado, e ver o que desconhecia e só desconfiava existir. Deixar desaguar enriquecida, aquela sede vasta de conhecimento no mar profundo do meu íntimo.
E de facto parti para a cidade grande, mas não como pensara que o faria.
Uma tarde de calor, daquele calor exacerbado que se propicia no mês de Março nos trópicos, meu velho pai dirigira-se ao quintal para verificar o fogo que ardia sob o panelão de ferver água para o consumo da casa grande. Os enormes macacos que aí se encontravam há muito amarrados nos postes nos topos dos quais havia a suas casotas, rebentaram as cordas já gastas e os seus guinchos de ódio, como também os gritos sofridos do meu pai, alarmaram-me e, de catana na mão, deitei a correr para o quintal.
O que vi tornou-me frio como o gelo e duro como o ferro. Da garganta do meu velho pai brotavam jorros de sangue por buracos enormes e rasgados. Corri feito louco, sem ver o roceiro que igualmente chegara ao quintal, alvoroçado, de pistola na mão. Célere como um raio, parti para um dos bichos e, de um só e preciso golpe, decepei-lhe a cabeça, o outro fugindo, assustado, para o topo da palmeira. As lavadeiras gritavam, rasgando os panos e rebolando na terra. Meu velho pai, pelo sangue que perdia avulso, acabaria por partir para a mais longa das caminhadas. Em acesso de raiva incontida, virei o panelão da água quente para o chão, destrui-o à catanada, rebentei com a rede do enorme viveiro dos pássaros, relíquia de roceiro, soltando-os em debandada. Só depois notei o fazendeiro e em, catadupas, toda uma série de imagens antigas desfilaram perante meus olhos interiores e vi que afinal já as vira e já as vivera pelos séculos longos da ocupação colonial.
Tata Sivu- gritei (Pai cacimbo)
Com uma explosão de alegria, corri para o homem que representava esses longos séculos de humilhação, para logo e ali o exterminar., todavia tombei em dor, porque a bala que partira da pistola voava como eu nunca poderia. O fogo lambeu-me a anca e fui projectado para o solo. As lavadeiras fugiram do quintal aos gritos, e quedei-me só, com o choro lancinante da alegria que brotava de meus lábios. Havia-me conquistado, renascera. Feroz como a leoa com cria, potente como o elefante.
Dias depois, quando o chefe de posto me enviou para a capital, como terrorista, as velhas choravam à volta do jipe.
- Aué, uá!... O muan’etu wa fuidi! (Ai, o nosso filho morreu).
Ao erguer os olhos, vi no ar a minha águia das palmeiras, a minha consciência ora liberta que iria criar pensamentos e asas novas em outros homens e mulheres.

Esta é a parte final de “A Sonhar se Fez Verdade”, um livro subdividido em quatro partes, nomeadamente “O cacimbo”, “O sonho”, “O momento”. Também inclui “Mabangas” a sair no próximo mês.

terça-feira, 2 de março de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS





In Memória da minha mãe, a veneranda Maria Alice,que faleceu Janeiro passado, com a bonita idade de 90 anos.



A MEMÓRIA

No passado dia 24 de Outubro, a minha mãe, a veneranda Maria Alice Fragata de Morais, fez 85 anos. Se trago isto a público, é porque, ao celebrarmos as oito décadas e meia de vida, o seu bem estar mental, a sua saúde de ferro e, sobretudo, teimosia, nos ilumina como um farol para o caminho da longevidade, rezando todo nós, filhos, netos, bisnetos e trinetos para que sejamos da mesma cepa, já que dos seus irmãos, todos eles vivos, a minha mãe Maria Alice é a caçula.
Porem, como todos os idosos, alguma coisa tem que haver que evidencie a idade e, no caso, é a sua memória, em verdade se diga, muito selectiva. Ela só não se lembra do que não lhe convém, mas a esta idade, só é de louvar a Deus que assim seja.
Há não muito tempo, estando eu a almoçar com o meu tio Abílio, o mais velho deles, e a esposa a minha tia Leonor, casados já lá vão quase setenta e cinco anos, a conversa recaiu sobre a falta de memória que ambos se queixavam e do conselho que o médico lhes havia dado, o de escreverem tudo. Acharam eles que essa recomendação era-lhes particularmente insultuosa e, portanto, não escreviam nada, todavia utilizavam o argumento para se atanazarem a vida mutuamente, como se um desafio se tratasse e tivesse que haver um vencedor e um derrotado, este último, o que se esquecesse daquilo que deveria ter feito.
Depois do almoço, já todos sentados nos cadeirões a ver televisão, o meu tio levanta-se e a minha tia logo lhe pergunta onde é que ele ia.
“À cozinha”, respondeu ele.
“Olha, Abílio, podes trazer-me um pouco de gelado, se fazes o favor?”, pediu-lhe.
Parou e ficou a olhar para ela, certamente porque, após quase setenta e cinco anos de casados, esses favores não se fazem tão docilmente, no fundo não são favores mas sim chatices.
“Está bem.”, respondeu num suspiro revelador.
Aí, para o picar, talvez, a minha tia pede-lhe para escrever, se não ainda acabaria por se esquecer, o que o tornou furioso, mas conteve-se.
“Não será necessário, não me vou esquecer”
“Olha filho, já agora coloca em cima do gelado duas daquelas cerejas que estão no frasco, está? Seria melhor escreveres o que estou a pedir-te, sei que vais esquecer.”
Já perto da porta da cozinha, e com ares de muito poucos amigos, o bom do Abílio respondeu, a voz tremelicando:
“Não me vou esquecer de nada, bolas! Queres uma taça de gelado com duas cerejas em cima, não é?”, e foi-se antes que eu notasse o seu nervosismo e as querelas deles. Como que para o aguilhoar, a doce Leonor, minha tia reverenciada, ainda lhe atirou:
“E olha, coloca também dois biscoitos...”, e só não lhe pediu para escrever, porque ele já não se encontrava nas redondezas.
Assisti a toda esta conversa, pelo canto do olho, curioso e com vontade de rir. Achei que, ao fim de tantos anos juntos, de facto, as conversas têm que ter sempre o seu quê de agressão, de queixa, de imputação mútua das acções, nada mais resta que não seja conhecido e testado.
Ao fim de cerca de vinte minutos, ele regressa da cozinha, com uma bandeja onde se encontrava um prato com um ovo cozido e duas batatinhas, que entregou à minha tia. Esta olhou para o prato, e depois virou-se para ele, sorridente:
“Obrigado, filho, mas esqueceste-te das torradas.”

31/10/04


Este quadro é um dos quatro que integram a peça "Humanidades", que refere toda ela a um tempo de partido único como forma de governo em Angola e , por esse facto, nunca foi levada a cena na altura. Hoje, talvez seja inócua.







PERSONAGENS PRINCIPAIS

KATERÇA – Pai.

MABUNDA – Mãe

CHISOLA – Filha

MUNTU – Filho

BITOLAS – Bebé

MOCHO, CÃES, LENHADOR, CORVO E PICAPAU

No palco encontram-se duas árvores frondosas, com raízes externas, móveis e destacáveis, e dois ou mais ramos. Dentro de cada árvore, bem como de cada raiz, um personagem. Katerça e Mabunda, nas raízes os filhos.

As personagens secundárias (bonecos, telefone, gira discos, etc.) como sempre, são exageradas e coloridas.

A cena está totalmente escura. Aos poucos a iluminação dá a entende o nascer do dia, revelando timidamente o cenário. Numa das árvores, ou qualquer outro sítio visível, um cartaz como os dizeres: “ANOS DO DITO CUJO ÚNICO”.

Ouve-se um ressonar roufenho e sonoro. Um pouco depois, Bitolas desperta faminto e chora estridente.

MUNTU

(Grita) “Papá, papá, quero fazer xixi!...

CHISOLA

(Logo de seguida) “Mamã, dá-me um copo de água quando puseres o mano a fazer xixi!”

Ouvem-se os sons de alguém a levantar-se, a pôr o miúdo a fazer xixi no bacio, e alguém a beber sofregamente. Em seguida tudo se acalma, entendendo-se unicamente o piar do mocho, que poucos segundos depois entra em cena, colocando-se ao lado da árvore maior, em anicho, para passar o dia. Pia mais umas duas ou três vezes, espreguiça-se e tenta adormecer. O ressonar de Katerça começa a irritá-lo. Muda de lugar várias vezes sempre a resmungar e a piar.

MOCHO

“Assim não dá, como pode alguém descansar depois de uma noite de trabalho, com este ruído todo?... Assim não dá, não senhor... Isto não é viver, gaita, todo o tempo a ressonar, já podia ter passado em qualquer hospital para se curar... (bis).

O dia avança. Tudo é claramente visível agora. Ouve-se um despertador, daqueles dos antigos, a tocar.

MABUNDA

“Katerça, ó Katerça, acorda, olha o despertador.”

KATERÇA

“Merda, já?!... (Ouve-se o despertador a ser atirado contra a parede. O bebé grita, assustado) Xiça, Mabunda, dá lá de mamar a esse gajo. Que barulhada! (A árvore agita-se toda)

MABUNDA

“Ó Katerça, não fales assim do nosso filho!” (a árvore movimenta-se)

A árvore (Katerça) move-se do lugar uma trintena de centímetros, entende-se o som de Katerça a urinar virilmente, com os respectivos sons de alívio, e o autoclismo a ser descarregado.

KATERÇA

(Zangado) “Quem tirou daqui a porcaria da pasta de dentes?... Raios!...”

MUNTU

(Espreguiçando-se) “Mamã, hoje não quero ir à escola, está-me a doer um nódulo.”

CHISOLA

(Mexe-se) “Ó mãe, se o Muntu não vai è escola eu também não vou, essa de lhe doer um nódulo já é velha!”

KATERÇA

“Pela careca do Lenine, calem a boca, tanto barulho já pela manhã. Isto aqui não é Congo, poça!”

MABUNDA

“Ó Chisola, sê uma querida e vai dar o biberão ao bebé. Olha, aproveita para lhe mudares a fralda, vai querida, faz lá esse favor à tua mãe.”

CHISOLA

(Muda de lugar, rolando em direcção ao público) “Mãe, hoje é a vez do mano, eu fiz isso ontem.”

MUNTU

(Espreguiça-se outra vez e rola na direcção oposta) “Euuuu?!...”

KATERÇA

(Chateadíssimo, dá três pulos enormes) “Calem-se, já vos disse, e tratem mas é de ir pôr a mesa do mata-bicho (o bebé pára de chorar).

MUNTU

“Mamã, não posso ir à escola, a farda da OPA está suja e se for sem ela não me deixam entrar.”

KATERÇA

“E é mesmo assim, quem não tem farda não tem nada que ir, ou já queres que acusem o teu pai de reaça? Mas ó Mabunda, porque é que a merda do fardamento da criança não está lavado? Sabes muito bem que sou membro do partido e que tenho cargo importante, o meu filho não pode ir com uma roupa qualquer quando tem as fardas.”

MABUNDA

“Deixa-te lá de estórias, se a criança não levar hoje a farda da OPA não vai morrer.”

KATERÇA

“Que não vai morrer sei eu, mas os outros vão falar já sabes que vão logo dizer, olha aquele armado em chefão lá no partido e o filho dele vem sem farda.”

MABUNDA

“Cala a boca homem, até parece que já te esqueceste da mocidade portuguesa (Ri), sempre gostaste de fardas. (torna a rir) O que eras então, comandante de esquina ou arvorado em castelo, não era?”

CHISOLA

“Mamã, quem era a mocidade portuguesa?”

KATERÇA

(Dirige-se à mulher, aborrecido) “Já viste, já viste, queres que sejam os meus próprios filhos a lixarem-me? (para a filha) Não, filha, não é nada, é só uma brincadeira da tua mãe. A mocidade portuguesa era uma prima afastada dos padrinhos. Chamaram-se assim porque era já uma moça quando foi baptizada, portanto Mocidade, e como a madrinha dela era uma senhora portuguesa, ficou então a chamar-se Mocidade Portuguesa.”

A iluminação começa a decrescer gradualmente, permitindo que se veja o cangalheiro a atravessar o espaço cénico, a dançar com o abutre em passo de kabetula. Chegado à árvore ou aonde se encontrar o cartaz, retira-o e coloca um outro que diz ANOS AINDA DO DITO CUJO ÚNICO, DEPOIS. Por esta altura deverá estar a sala quase escura. Sai. Pouco depois a iluminação é a do amanhecer. Entretanto as raízes estão muito maiores, cresceram, duas quase adultas e uma menor. Encontram-se em sítios diversos dos anteriores.

Entra um enorme boneco cão, chega-se à árvore, levanta a pata e urina.

KATERÇA

(Em desespero) “Ó não, ó nãooooo!... (zangado) isto não é vida, ainda nem um gajo tomou banho e já logo isto lhe acontece pela manhã. PORRA!!! Amanhã vou pedir a minha demissão do cargo. Se me começam a mijar em cima é porque algum filho da mãe já me está a lixar, já me quer o lugar. Pois que fique com ele, também já cá tenho o que é meu.”

O cão dá a volta e urina igualmente na outra árvore.

MABUNDA

(Igualmente arreliada) “Ó nãooooo... olha como ficou a minha camisa de noite (chora). Esses senhores lá porque mandam pensam que podem mijar em cima de qualquer um. Poça, já estou farta!”

O dia clareou por completo. Um enorme telefone entra e coloca-se entra Muntu e Chisola. Entra seguidamente um gira discos que se coloca ao lado de Bitolas que, de imediato põe um disco, a todo o volume, do Balão Mágico. Dança, enquanto os outros desesperam, até que Chisola retira a música e parte o disco.

MUNTU

(Aliviado) “Puxa, obrigado mana, esse gajo aí chama a isso música? (Para o irmão) Ei puto, descorta, yá?...”

CHISOLA

(Jocosa) Estou farta de lhe dizer que só ouça essa música pré-histórica quando estivermos fora.”

BITOLAS

“Vocês pensam que aqui em casa só se pode ouvir a vossa música. (Rebolando por toda a cena, grita) Mamã, mamã...”

MUNTU

“Grita filho, grita porque a mamã está bem ocupada a ver se penetra mais uns dez centímetros na terra. Esta seca está a dar-nos cabo da saúde. Esses gajos dos países ricos com a mania que a população mundial está a crescer obrigam-nos à planificação familiar e é isto o que dá, cada vez mais desertificação.”

CHISOLA

(Goza com Bitolas, batendo com uma colher numa garrafa, põe o disco do Man Ré) “Como é meu? O Man Ré aqui é que é bem fiche, não esse porcaria que estava a tocar.”

BITOLAS

(Grita, zangado) “E tiraram o Balão Mágico para pôr essa música? Ó mãe, ó mãeeee!.... (bangão, o cão atravessa a cena, o que de imediato gera um silêncio glacial. Quando sair, tudo regressa ao mesmo. O telefone toca, até que Muntu atende)

MUNTU

“Está? Daqui o Muntu, quem fala?... Oi, Fininho, como é, meu?...O quê?... Fala mais alto, não ouço. Yá, Man Ré meu!... Yá... A parva da tua namorada, quem mais?...”

CHISOLA

(Curiosa e atenta, baixa o volume da música e aproxima-se) “Quem é, Muntu?”

MUNTU

(Divertido) “Adivinha, adivinha.”

CHISOLA

(Ansiosa) “É o Fininho? É o Fininho?...”

MUNTU

(Espicaça a irmã) “E se fosse, o que tens a ver com isso? (ri e fala para o bocal do telefone) Não meu, é aqui a menina da desbunda a querer saber se é o garino dela... (ri) Yá meu... fixe... yá... fixe...yá... (Chisola dá-lhe um encontrão e o telefone cai. Apanha-o).

CHISOLA

“És tu Fininho?”

(Muntu levanta o som da música ao máximo. Bitolas põe-se aos gritos a chamar pela mãe, Chisola continua a falar e ouve-se, o toque da campainha da porta, para o qual ninguém liga. As luzes apagam-se todas e tudo acaba. Quando subirem novamente é só sobre Katerça que fala com Mabunda, bem juntinhos.

Em silêncio, percebe-se todos os outros integrantes do elenco, passeando pela cena.

Um novo cartaz está pendurado, com os dizeres ANOS DO DITO CUJO ÚNICO, JÁ NO FIM.

MABUNDA

“Estou preocupada Katerça. Hoje poisou aqui um bando de corvos, isso sem falar nesse bufo de cão que anda sempre por aí a meter o nariz por tudo quanto é canto, e ouvi umas coisas nada agradáveis. Estiveram aí um bom tempo, de ramo em ramo, a fingir não sei o quê, falando mal do dito cujo único. Estou segura que era para estudar as minhas reacções. Reconheci um deles, vivia lá no bairro antes da independência e tinha fama de ser pideiro.”

KATERÇA

(Preocupado) “O que ouviste, o que foi? Hoje há que ter cuidado com todos, fazem de conta que não são e são mesmo.”

MABUNDA

(Saem todos menos Branca de Neve e os sete anões que a perseguem, em silêncio) “Oh, nada. Bom, não é bem assim. Diziam que agora, logo na nova fase, zangastes-te com eles e deu-te para fundares um partido, até disse que se chamava União Florestal Liberal e que andas metido com uma malta a preparar a derrota do Embondeiro Maior do Dito Cujo Único. Para isso juntastes-te a uns gajos que vivem numa capoeira, etc., etc.”

KATERÇA

(Surpreso, todo ele treme) “EU?!... Sempre fui membro do Dito Cujo Único!... (Receoso) Estás segura de que foi isso que os corvos disseram? Não haveria por lá provocadores da bófia para ver como reagias? Olha que essa malta é sabida, aliás não tivesse sido assim nunca eu teria chegado até onde cheguei... (Dá uma sonora gargalhada) fartei-me de lixar gajos armados em espertos e que pensavam que me comiam as papas de milho!”

MABUNDA

“Posso estar velha, mas não maluca ou caduca, sabes? (ofendida) Minha mãe bem me avisara para não me casar com uma mulembeira, mas enfim, o que a gente não faz quando se é jovem e parva. Crente dos teus arrulhos! Eu, filha de uma mangueira pura, talvez já nem te lembres, lá no quintal do velho Morais, caí no teu conto do vigário.

KATERÇA

(Sem querer cai em cima de Branca de Neve. Logo se levanta. Esta aproveita para sair, seguida dos sete anões) “Mangueira pura? A única coisa pura que tens é a tua boca. Boca para aqui, boca para ali nas intrigas, como agora. Que boca é essa que estás a mandar? São os teus irmãos não é? Nunca quiseram que te casasses com uma mulembeira, é do mato, o gajo não presta, etc. Só que nessa altura não tinhas raízes aqui no Alvalade, já te esqueceste? Era lá no Bairro Operário que vegetavas, num quintalão. Por que razões haveriam de falar de mim, heim? Sempre fui do regime, a favor de regime e pelo regime! Eu, heim? E logo contra o Embondeiro Maior!...”

MABUNDA

(Magoada) “Não precisas de vir com essa conversa fiada para cima de mim, não sou idiota. Depois não digas que não foste avisado. Nos anos fortes do Dito Cujo Único andavas de facto calado e satisfeito, pudera, mas quando começaste a ficar para trás os zum-zuns logo apareceram. Não há fumo sem fogo, não sou tapada.”

(Entram um corvo e um pica-pau, e a iluminação geral sobe para normal. O corvo coloca-se ao lado do gira discos, dá-lhe um forte pontapé o pica-pau encosta-se à árvore (Katerça) e assobia, limpando as unhas com um facão. Gera-se um silêncio total).

CORVO

“Ó pá, esta árvore parece-me um pouco estranha, não achas?... Parece-me que já a vi aí por qualquer sítio, mas onde foi? Sei que foi junto a uma capoeira.”

PICA-PAU

(Dá uma volta em torno da árvore) “Não, não julgo que seja esta, tem um pé defeituoso, mas de facto algo aqui parece não estar bem (Dá um pontapé na árvore que faz “Ai”). Viste, viste? (Repete) Já viste? Porra, uma árvore a falar! É certamente subversiva, só pode ser, temos que chamar a bófia, chama a PISA, a Polícia Investigadora dos Serviços Arbóreos.”

CORVO

(Lacónico) “Também me saíste cá um idiota! Os bufos somos nós, ou já te esqueceste? Essa mania de comeres funji pela manhã é o que dá, ficas com a mente parece um pesa papeis. Diz-me lá porque é que uma árvore não haveria de falar se tu também falas? (Aponta para o público) Julgas que essa malta aí é parva ou quê? (Sentencioso) AGORA!... Se ela choramingou só porque apanhou uns kissendes, é definitivamente da União Liberal Florestal, esses gajos são uns maricas. Armam-se em fortes mas quando se lhes dá um estremeção, cagam-se logo todos! (Para criar medo) Vamos arrancar-lhe os tomates e fazer uma salada de genitais!...”

PICA-PAU

(Vingativo) “E chamas-me idiota? Idiota és tu, explica-me lá como é que vais arrancar os tomates a uma mulembeira? (Brincalhão) E se eu lhe desse umas bicadas nas bilhas? Pica na árvore várias vezes, com esta sempre a responder com um “Ai”.

Os dois riem ás gargalhadas. A árvore agita-se toda e cai assim que eles saem de cena. Em sentidos opostos, entram o cão e o mocho. O cão assobia alegremente e tem na mão um cassetete. Ao cruzarem-se o corvo passa-lhe uma rasteira. Este cai a rir, o corvo ajuda-o a levantar-se e saem os dois em alegre camaradagem.

MABUNDA

“Eu bem te avisara Katerça. Agora o que vai ser de nós e dos nossos filhos? (zangada) Tu e as tuas politiquices.”

KATERÇA

(Aborrecido) “Que politiquices? Esses gajos mandaram como quiseram todo este tempo e agora chegou a vez dos outros. Ele que vão gozar o que conseguiram, isto não é politiquice nenhuma, é a verdade. Porque não poderei igualmente ter uma conta na Suíça, não somos todos farinha do mesmo saco? A única excepção que posso fazer é aquele galináceo, mas isso também ainda está para ver. De resto filha, somos todos lidos e versados na mesma cartilha. Deixa-te lá de contos e vai-te preparando para veres a tua vida melhorada, é a nossa vez, é a democracia multipartidária, ou não sabes?”

MABUNDA

“Ai Katerça, não digas isso, és um mal agradecido, um ingrato. Os teus filhos tiveram sempre escola de borla, hospitais e medicamentos, até tu arranjaste esse teu pé torto em Cuba às custas do Dito Cujo Único, ou já te esqueceste? As rendas da nossa casa custavam menos de uma cerveja, os transportes públicos nos quais nunca puseste o cú, eram quase de graça. Ai Katerça, não digas isso, cospes no prato em que comeste durante tantos anos só porque te tiraram a tesoura da censura ideológica das mãos. E com essa conversa ainda vão acabar por levar o nosso filho para a maldita dessa guerra que nunca mais acaba. Falas à toa sem propor concretamente as alternativas, achas que são esses fundamentalismos estranhos que por aí grassam que te vão salvar nas hora dos Aves-marias? (o telefone toca, ela atende) Alô?... Se é da casa mortuária? ABRENÚNCIO! Não, não, é de uma casa privada... sim, estou segura!... (desliga)

KATERÇA

(Levanta um pouco o volume do rádio, desconfiado) “Casa mortuária uma ova, são é mas é os bófias a agagaçarem-nos, conheço bem essas tácticas, eu mesmo as usava nos meus dias de glória, (ri) já te contei quando aquele filho da puta do correspondente da Reuters queria... (É interrompido pela campainha da porta que toca).

MUNTU

(Que aparece a correr) “Ó mana, deve ser o teu Fininho, vai abrir.”

CHISOLA

(De fora de cena) “Não posso, estou a tomar banho. Consegui encontrar um pouco de água subterrânea ou então já lixei a EPAL ao furar um cano. Agora não dá, manda o Bitolas.

BITOLAS

“Eu não posso, estou a estudar, apanhei aquela revista pornográfica do pai e estou a instruir-me.”

(Ouve-se o arrombar da porta e entre o lenhador, com um enorme machado às costas).

MABUNDA

(Em pânico) “Ai Katerça, socorro, vieram buscar o nosso filho para a tropa... (Chora) ai meu Deus, vão levá-lo... (Grita) Socorro, vizinhos, socorro!... (O telefone toca outra vez, até ao fim da situação) Quem me ajuda, criminosos, ele é ainda uma criança, ai Katerça, viste o que conseguiste com tudo isso?...”

KATERÇA

(Aterrorizado) “Cobardes, cobardes, só sabem agarrar as crianças... SOCORRO, SOCORRO! (o lenhador dá umas machadadas em Muntu, que já se encontrava agarrado ao pai).

MUNTU

(Aos gritos, bem como toda a família) “Não quero ir, socorro, não quero ir, levem os filhos deles, eu não vou (uma última machadada desliga-o do pai), não vou, não vou seus cabrões!...”

LENHADOR

(Coloca-o ao ombro) “Ai vais sim senhor (Sai).

Chisola e Bitolas xinguilam pela cena. Mabunda e Katerça idem, aos gritos. O rádio toca, o telefone sempre a tocar, a campainha da porta toca sem parar, e os gritos dos vizinhos a pedir para abrirem, o corvo, o cão e o mocho atravessam a cena a rir, todos abraçados.

Gradualmente a luz vai baixando até atingir a escuridão total. Segue-se um silêncio sepulcral muito curto, após o qual entende-se do corvo, o picar do pica-pau numa árvore, o latir do cão e, por fim, o lúgubre piar do mocho.

BAIXA A CORTINA.






POESIA


Escreve-se poesia
abstracta
para não ser apagada
pelas borrachas de prata
dos invisíveis
sempre à cata
do incauto
que não deu pelo leão
afiando a pata

guarda-se o lamento
para as estrelas
nas horas mornas do madrugar
embaciadas
lugubremente embaciadas
pelo imenso aguardar

segunda-feira, 1 de março de 2010

INKUNA MINHA TERRA


MARTINHA (Revisto)

A manhã pródiga em luz e calor, aportava, não obstante, uma brisa húmida que já anunciava a vinda do cacimbo. A praia, despida dos banhistas habituais por ser terça-feira, espreguiçava-se pela areia suja e furada por miríades de tocas de caranguejos. No verde-claro da água próxima, duas jovens banhavam-se onde havia pé. A mais velha teria uns catorze anos, a outra, de tronco nu e no qual dois bicos de seios apenas despontavam, não poderia ter mais do que onze, talvez doze.

Serafim enterrou a estaca da sombrinha na areia e, depois de a ter aberto, estirava a toalha estampada, quando a voz o despertou.

“Amiguinho, amiguinho... vem!”

Novamente olhou à volta e não ligou. Sentado, agarrou na revista, quando percebeu que a jovem saía da água e a ele se dirigia, lesta e sorridente. Anichou-se junto a seus joelhos, e entabulou conversa, como velhos e conversados amigos.

“Amiguinho, como te chamas? Eu sou a Martinha”, disse sem esperar resposta.

Serafim sentiu-se pouco à vontade, não descortinando o interesse da garota. Incessantemente olhava ao redor, receando que o observassem feito um mais velho a engatar catorzinhas.

“Muito bem, o que queres?”, disse seco.

“Nada, amiguinho. Não tem medo, aquela é a minha irmã, samo deslocado de Malanji, e só queremo falar contigo”.

Já ouvira muitas estórias sobre crianças da rua e sabia que uma grande quantidade era nativa de Luanda e foragida de suas casas, por vários motivos, sobretudo o da fome. Conhecia ainda que muitas delas actuavam nas praias praticando pequenos furtos, ou introduzindo-se nas casas dos mais desavisados, onde conduziam depois o seu grupo de assalto para uma limpeza maior e mais determinada.

“Deslocadas de Malange, ou são mesmo dum bairro aqui de Luanda?”

“Não amiguinho, te juro samo memo de Malanji, nos mataram a família e tivemo que fugir”, continuou Martinha, agora acenando à irmã para que se chegasse igualmente. “Foi a UNAVEM que nos trouxe até Luanda e agora vivemo aqui”.

Serafim olhou para a garota e tentou descortinar se o que contava era verdade. Estava um pouco espantado com o ar vivo e desenvolto da criança, mostrava um à vontade incomodativo, até porque à medida que falava, descontraída e casualmente, numa carícia sub-reptícia, que ele não percebia se intencional, ia-lhe riscando a perna com o dedo.

A irmã optou por chegar-se e sentou-se do outro lado. Já era uma mulherzinha, embora visivelmente criança. Pouco tinha que denotasse o laço de sangue, se em verdade fosse real. Mais reservada, manteve-se à margem, olhos pousados na areia.

“Esta é a minha irmã, chama-se Joaninha, é minha mais velha”.

“E quantos anos tens tu?”, quis saber Serafim.

“Eu?”, perguntou Martinha.

“Sim, tu, quantos anos tens?”

“Amiguinho, como te chamas?”, indagou Martinha, mais uma vez acariciando-lhe a perna com o dedo.

“Para que queres saber do meu nome?”, perguntou desconfiado e cauteloso.

“Para nada, tamo só a conversar. Como te chamas, amiguinho?”, insistiu.

Receando que as jovens pudessem ser uma armadilha, tornou a olhar para os lados. A praia continuava deserta, na pequena lanchonete a uns sessenta metros, duas empregadas trabalhavam e na paragem do machimbombo (autocarro), umas três crianças, igualmente deslocadas, abrigavam-se do sol.

“Chamo-me Toninho”, disse, mentindo.

“Toninho, queres-me tirar o cabaço (desvirginar)?”, perguntou com toda a naturalidade Martinha.

Serafim deu um pulo instintivo e pôs-se de pé. Não acreditando no que ouvira, olhou espantado para tudo à sua volta, como que procurando testemunhas que confirmassem que aquela criança tivesse efectivamente feito tal oferta. Durante uns tempos rondou a sombrinha até que, pelo espanto na cara das jovens, deu conta da figura ridícula que fazia e sentou-se.

“O que disseste?”, quis confirmar.

Martinha riu, riu e olhou para a irmã. Depois chegou-se outra vez a ele.

“Perguntei se o amiguinho me quer tirar o cabaço”, repetiu com a mesma naturalidade

Serafim quedou-se calado por muito tempo. Tão absorto estava que nem notou que Martinha continuava a acariciá-lo com um dedo, pela perna, como que escrevendo.

“Se me perguntas isso é porque já o não possuis...”, disse, como que falando para si próprio.

“Que idade tens então?”, indagou despertando.

“Tenho doze anos, fiz o mês passado. Olha, amiguinho, és casado?”, insistiu.

“Dizem que são de Malange, onde vivem?”

“Vivemo no Katmbolo”, respondeu Joaninha, falando pela primeira vez. “Vivemo na casa dum braga, ele é que nos ajudava, mas agora nos enxotou”.

“Braga, o que é isso de braga?”, perguntou Serafim.

“Não sabe o que é braga? É assim pula, como tu, branco!”, respondeu pronto Martinha, rindo a bandeiras despregadas pela ignorância de Serafim.

O riso das miúdas ajudou-o a relaxar, descontraiu-se, tentou ver porque é que um branco seria chamado de braga e voltou à carga.

“E quem te tirou o cabaço então?”, quis saber para pôr aquela estória a limpo.

“Foi uns sordado da UNAVEM quando a gente veio de Malanji. Estivemo com eles um pouco, eram assim castanho-escuro, já não sei que país. Depois andamo com indiano e brasileiro, mas fugimo porque os brasileiro não prestam, não têm dinheiro. Nos levavam só e depois nos deixavam, não davam nada, só coca-cola ou cerveja. Hoje já não andamo mais com os da UNAVEM, bom memo é os pula (brancos) português. Nos levam nos apartamento deles, nos mandam tomar banho, nos dão de comer e depois a gente fica lá. Si-deitamo com eles, amiguinho, nos dão biquini, sapato e outras coisas. É bem fixe... Mas amiguinho, responde só então, és casado?”

Serafim sentiu o peito crescer amotinado.

Tinha conhecimento que os contentores espalhados pela ilha de Luanda, sobretudo os que se encontravam ao fundo, do lado da baía, serviam para a prostituição infantil, todavia sempre pensara que as jovens fossem de pelo menos quinze anos, nunca de doze.

Que sociedade produzira tal fenómeno e o alimentava, desconcertantemente?

“Não, não sou casado, mas tenho uma filha que tem só um pouco mais da tua idade e o que me contas deixa-me muito preocupado”, disse Serafim, com bastante amargura.

“Amiguinho, não faz essa cara. Se vives sozinho a gente pode ficar lá contigo, limpamo a casa, fazemo a tua comida. Vamo-te tratar bem, juro!...”

“Já foram à Assistência Social, nunca ninguém vos lá levou?”

“Sim já fomo, mas ninguém nos ajuda. Querem nos mandar numas casa que a gente não sabemos, ou então ficamo só ali. É melhor aqui, os mais velho nos ajudam, temo memo um tem uma casa grande que nos leva lá, xê, QUANTIDADE DE GUARDAS!..., deve ser chefe. Mas quem nos ajuda memo é os braga. Esse da Katambolo, a gente conseguiu fazer lá dois meses, no outro dia disse podemo ir embora, nos mandou sair”, respondeu Joaninha, que se limitava a olhar, ouvir e sorrir.

“E não voltam para Malange porquê, já se pode viajar para lá?”

“Nada!... temo medo, a Unita ainda estão lá, a gente sabe”.

“Se quiserem eu posso vos ajudar, talvez vocês não são é nada de Malange, são aqui de Luanda e só querem andar nesta vida”.

“Nada, amiguinho, juro, somo de Malanji, pergunta só na minha irmã. Viémo memo com os sordado da UNAVEM que nos trouxerem junto com eles. Agora voltar em Malanji, não queremo ainda. Mataram nossa mãe e nossos irmãos, aqui em Luanda está mais fixe”, disse Martinha.

Um grupo ruidoso de rapazes, na sua maioria de quinze ou dezasseis anos, ocupou aquele troço da praia com um desafio de futebol. Eram os lavadores de viaturas e os faz- tudo do mercado cerca. Nas horas vagas, fumavam liamba escondidos nas pedras dos pontões, e dedicavam-se ao roubo nas viaturas e aos banhistas incautos. Igualmente compravam peixe às peixeiras, para o revenderem aos estrangeiros, na estrada. Sempre se ganhava qualquer coisa para a comida ou para a droga.

“Esse braga é daqui!”, gritou em aviso um deles, como que avisando do desforço delas.

“Vives aonde então?”, quis saber Joaninha, agora mais familiarizada.

Serafim não sabia como agir. Por um lado sentia que tinha que fazer qualquer coisa, no mínimo encaminhar as jovens, por outro, rendia-se à evidência da futilidade do acto. Eram crianças já viciadas que só com muito carinho, tempo, compreensão e amor contínuos poderiam revirar o rumo que suas vidas levavam, e essas associações profissionais não existiam, a não ser a igreja. A guerra, que em Luanda e alguns sítios mais não era guerra, mas uma ausência da paz, o egoísmo perturbante dos que dirigiam, a acção dos que agiam na penumbra para manter a paz indefinida e o espectro da guerra nos corações, não levava a que os problemas sociais fossem resolvidos. Tudo era paliativo, remendo de suposto luxo em traje podre e irrecuperável.

“Amiguinho, vives então aonde? Deixa que a gente te ajuda, vamo cuidar bem de ti. Samo criança ainda, mas já temo coração de mulher”, voltou Martinha à carga.

“Não interessa onde vivo. Já viste em algum sítio um mais-velho como eu, que pode ser teu avô, a viver com duas netas que não são netas e que pensam como vocês?...”

“Eh, deixa lá isso. Os mais velhos é que nos ajuda, e a minha irmã tem catorze anos, ela pode então ficar contigo, eu fico só em casa para lh’ajudar”.

Serafim não soube se ria ou se zangava-se. A desenvoltura da criança, por um lado, dava-lhe vontade de continuar a conversa, jornalista que era, saber mais sobre as suas vidas, quiçá fazer um programa para a televisão sobre o drama das meninas de rua já que ninguém falava delas. Por outro, achava que mantendo o diálogo justificava a esperança das duas em encontrarem um abrigo, um apoio, um calor humano, que só seria legitimado para elas se o corpo fosse a moeda de compensação, o equilíbrio emocional no relacionamento.

“Há pouco disseste que tinham coração de mulher, sabem o que isso quer dizer?”, perguntou Serafim.

“Sabemo sim, nós já sofremo muito, mais que a nossa mãe que está morta. Samo criança, mas nossa vida é lutar, é não morrer, assim temo que aprender com o mal que nos segue sempre. Só nosso corpo é de criança, nosso sofrimento é de mulher”.

Contrita, enrolava as mãos uma na outra e foi assim que Serafim sentiu que Martinha falava a verdade. O nervosismo e a amargura envoltos no relembrar, no avivar da memória, nunca poderiam ser um jogo no consciente da criança. Por muito duro que estivesse seu coração, por muito empedernidas que estivessem suas emoções, haveria o momento, como agora, que revelaria o sangue a escorrer pelas pétalas duma infância sofrida, verdadeiro e imolado.

“Olha amiguinho, os mais velhos nos abusam porque não temo onde ficar, nosso corpo tem então que ser a casa deles para nós comer e ter roupa, sapatos. Por isso temo que nos divertir e procurar um mais velho que cuida de nós, tu memo amiguinho, podes ficar com nós duas, estás sozinho. Vamo cuidar bem de ti, te cozinhar, lavar a roupa, minha irmã fica então contigo, podes dormir com ela”.

Um helicóptero da companhia petrolífera nacional sobrevoou o local, em direcção ao norte, aos campos da milionária miséria angolana.

“Minha irmã está falar bem, tem razão. O morteiro rebentou nossa casa, só nós escapamo. Memo nosso irmão caçula de um ano, só lhe encontramo um braço, o resto desapareceu, ficou tudo colado nas parede no chão. Depois, foi só fome e fugir. Foge aqui, esconde ali, alegria de viver só memo os cães é que encontravam, tanto morto pra comer. Hoje a gente quer é se divertir e encontrar um mais velho que cuida de nós. Só memo um braga, os negro como nós é só para nos fazer de criada e nem nos dá nada”, ajuntou Joaninha.

“Mas o braga o que vos dá também? É tudo igual. Uns e outros só querem o vosso corpo e sobretudo porque são crianças. Vocês deviam estar é na escola, a aprender, a brincar com bonecas e não com homens...”

Ambas riram ao mesmo tempo, como se Serafim tivesse dito algo de anormal ou repreensível. Martinha deu-lhe um carinhoso soco no peito, divertida com a ignorância do braga. Este, não percebeu o riso trocista e franco das duas.

“Xê, não vives em Angola então? Escola? Boneca? Brincar? Amiguinho, nossa escola arrebentou, morreu quarenta e cinco crianças. Aprender é só memo andar na rua, a rua é que nos ensina a viver, e boneca?... Boneca anda aonde?”

Boneca anda aonde, perguntou-se a si mesmo Serafim? Caindo dos céus nas asas sibilantes dos morteiros, no morno embalar do fétido cheiro da guerra.

“Nosso coração já não aguenta boneca, brincadeira é aqui memo na água, no mar, na areia. A água, a onda é nossa brincadeira, nossa alegria, faz nos’quecer o resto. Quando temo fome, esses aí que estão a jogar com a bola é que nos dão de comer, mas depois temo que ir no contentor com eles. À noite vem a polícia, nos tira o dinheiro que ganhamo e temo também que entrar com eles. Só memo esses miúdo é que nos ajuda. Mas pra ter casa para viver, só memo com um braga”, disse Martinha com uma leveza e candura que o surpreendeu, já que sua angústia aumentava à medida que ia ouvindo o que lhe era relatado.

“Meu Deus, mas isso é mesmo verdade o que estão a contar-me?”

“O amiguinho pensa então que esta conversa é só pra t’engatar? A gente já viu que vucê é de cá, se estamo ti pidir para viver contigo é porque vucê vive sozinho e nós pudemo te ajudar. Não queremo viver no contentor, levamo porrada, tem que dormir com este ou com aquele, as outras estão nos roubar. Não dá. Agora, em casa de braga, memo se é angolano, a vida é melhor e como o amiguinho não tem mulher...”

”Esqueçam isso de eu ter ou não ter mulher. Na minha casa ninguém vai viver, estão malucas?... O que posso fazer é tentar ajudar-vos, ver se consigo fazer alguma coisa, mesmo quando vocês próprias já me disseram que ninguém vos ajudou. Vou falar com o órgão que cuida da criança...”

Desataram a rir outra vez por causa da angústia de Serafim. Ou estava a gozar com elas ou então era maluco. Quem já viu alguém ajudar só assim à toa?

Retiraram-se para uma distância razoável e conferiram, entre risadas múltiplas, tendo chegado à conclusão que seria melhor deixar o braga em paz, não batia bem da bola. Estavam certas, pelo seu comportamento, que se o convencessem a deixá-las viver com ele acabariam por se arrepender. Esses bragas angolanos também são feiticeiros, e tudo nele indicava isso.

Lembravam-se ainda de ter ouvido, com espanto e maravilha, os mais velhos lá na aldeia contar como os soldados internacionalistas cubanos haviam engravidado os homens de Malange. E muitos desses soldados tinham ficado em Angola, quem sabe este não fosse um deles?”

“Tchau amiguinho, a gente vai já’ué?...”, acenaram de onde estavam.

Serafim olhou para elas e sentiu-se ludibriado nas intenções. Estiveram a gozar com ele sem dúvida, a fazerem correr as águas do tempo, pensou.

Encolheu os ombros e remeteu-se à leitura, já passara, o que estava feito estava feito.

A PRECE DOS MAL AMADOS



CAPÍTULO DEZ


LÁGRIMAS E RISOS


Uma criança é um hóspede na casa, a ser amado e respeitado - jamais possuído, pois ela pertence a Deus.

(J. D. Salinger)


Decorreram cinco dias desde a chegada de Balanta, e a vida tendia a retornar ao normal. A surpresa fora grande, não menos que a alegria e, após os dias festivos iniciais, a aldeia parecia encontrar a tranquilidade perdida há quase dezoito anos. Afinal a paz viera mesmo para ficar, dizia-se sem muito receio de falha, os sinais ominosos não deixavam margem para dúvidas e o regresso de Balanta, com o reencontro da filha, seria um culminar dessa bem aventurança.
Nehone, duvidoso de poder confiar por inteiro em Nazamba, sobretudo com o regresso da mãe, a velha poderia tirar-lhe a ideia da cabeça, já muito haviam sofrido, achara melhor ir sondando a maior parte dos velhos que integravam o conselho. Por intuição, Juba de Leão mandou-o chamar e, sem os rodeios e os salamaleques habituais, talvez por não mais os tolerar ou se sentir cansado, com o chapéu do poder enfiado na cabeça e o cabo de rabo de boi na mão, como sempre fizera quando desejava asseverar autoridade, apenas esperou que se sentasse onde lhe indicara, propositadamente no chão, sem resguardo. Nehone, manteve-se estático, de pé, por longo tempo, porém achou não ser prudente antagonizar o velho e sentou-se, com as pernas para o mesmo lado.
- Sonhei de novo com o sonho antigo. – disse, abruptamente.
Nehone olhou para ele e esperou, não quis responder e encaminhar a conversa, Juba de Leão que o fizesse. De qualquer dos modos, era bom que tivesse sonhado com a neta, ser-lhe-ia mais fácil encará-lo com as palavras certas.
- Sei que andam a tramar a minha sucessão... – Falou novamente Juba de Leão.
Nehone estremeceu quase que imperceptivelmente, não esperava a afirmação de chofre e, sobretudo, despida, crua. Juba de Leão sorriu para dentro. O bagre tinha entrado na nassa.
Como é que ele sabe? Terá sido o neto?
Que lhe dizer? Afirmar que sim, anuir, era desaconselhável. Portanto, negar, só isso, negar! Pelo menos ficaria a réstia ou o benefício da dúvida, caso o jogo fosse o de adivinhar intenções através de sugestões camufladas de verdade aparente, ou charadas disparadas a esmo.
- Não, senhor. Deve ser impressão por causa do sonho, agora mais forte porque a Nazamba se encontra aqui e com a mãe. – respondeu feliz, pensando esgueirar-se deste modo.
- Estou cansado, muito cansado e velho... – adiu, com tristeza.
- É!... a altura de descansar está a chegar. – respondeu Nehone.
- Sei que estão a preparar a minha sucessão... – insistiu.
- Quem o informou, só pode estar a querer criar confusão...
- A minha idade me informou. Chamei-te para te dizer que não estou contra, mas terá que ser Nataniel.
Nehone ponderou e viu a rasteira armadilhada que, com aparente inocência, Juba de Leão lhe estendia. Esquecia-se que ele sendo mais novo, igualmente era velho, já vira muita coisa e conhecia bem o irmão.
- Senhor, sabe que só o conselho pode decidir quem o sucederá. Terá que convocá-lo e apresentar a questão...
- Cuidado que a esperteza não te coma. – respondeu Juba de Leão, desagradado.
- Não entendo, senhor, só lhe respondi a uma pergunta que me fez...
- Está bem, vou convocar o conselho.
- Para quando? – perguntou Nehone, logo arrependido de ter sido tão lesto.
Aldrabões! A perdiz que não sabe esperar, não choca os ovos.
- Amanhã chama o mestre Tuluka para vir falar comigo logo pela manhã, antes do galo cantar, ou do sol nascer.
Nehone sentiu-se aliviado, o mestre Tuluka seria então quem anunciaria ao soba grande a sucessora, Nazamba. Assim, quando convocasse o conselho, tudo estaria resolvido, talvez os netos levassem o avô com eles para Luanda, e Nazamba, após o nascimento da criança, pudesse regressar para ser iniciada e assumir o seu lugar.
- Assim farei, ainda há mais assuntos a tratar?
- Não, vai. – disse, exausto.
Tentando não transmitir a impressão de pressa, e a olhar para os lados, nervoso, Nehone dirigiu-se a passo acelerado para a casa de Tuluka, as coisas começavam a correr melhor e mais rapidamente do que esperava. A vida tinha desses ardis, a cada instante, uma volta ou reviravolta com que contempla, a seu bel-prazer, os arquitectos que pretendem manipulá-la para proveito próprio. Entrou, com passos de onça, e sem se fazer anunciar. Tuluka dormitava no catre. Assustado, ergueu-se.
- Então mano, entra só assim? – inquiriu.
- Desculpa, mas não queria ficar na porta. – respondeu Nehone, procurando um lugar para se sentar.
- O que foi, tanto alvoroço? – perguntou Tuluka, indicando um banco.
- O nosso soba mandou-me chamar e pediu para reunir os mais velhos, quer falar da sucessão.
- Isso é verdade, não estava doente? – suspeitou, Tuluka.
- Não, disse que está velho e cansado, e quer Nataniel para lhe suceder.
Tuluka sentou-se no catre e coçou a cabeça. Nehone não lhe relatava nada de novo, no fundo. Há muito que Juba de Leão pretendia que o neto lhe sucedesse, e até talvez não encontrasse opositores não fosse o sonho repetido vezes sem conta, a sugerir a neta, confirmada na revelação dos amuletos.
- E a Nazamba?
- O que há com a Nazamba? – Olhou para ele, Nehone.
- Vai aceitar? – perguntou Tuluka.
- Mano Tuluka, então não leu no cesto? Vamos lutar contra o que está decidido? Não aceitou ontem, aceita hoje ou amanhã, a Nazamba não é nossa preocupação.
- Assim, temos que nos preocupar com quê? – indagou Tuluka.
- Com que tudo corra bem, sem lutas, sem feitiços e mortes...
- Então vou ter que começar a preparara a pemba, as folhas e os remédios, às vezes leva tempo.... – anuiu, Tuluka
- Dar-lhe já posse? – perguntou perplexo Nehone, que não avançara tanto nas suas intenções.
- Porque não? – insistiu Tuluka.
- Estava a pensar depois das eleições, aí já pariu o filho e pode voltar para ficar o tempo necessário para os rituais.
- Não, mano. Como estão as coisas é melhor que saia daqui já empossada, o regente que a gente escolher, poderá até ser o mano, deverá aguentar, são só uns seis, sete meses... – insinuou Tuluka.
Nehone quedou-se pensativo. De facto, caso não houvesse muita oposição, a neta poderia já sair pelo menos com a indicação do conselho, ou mesmo empossada, todavia os preparativos, por muito apressados que fossem, colidiam com a vontade expressa de Nataniel de regressar muito em breve.
- O conselho não vai aceitar... – retorquiu, Nehone, hesitante.
- Vai. Você é quem cuida dessas questões, eu tenho a minha voz como adivinho, aliás o cesto falará, não irão opor-se...
- Então é melhor falarmos com a Nazamba e o marido, só depois convoca-se o falatório.
- Juba de Leão disse para quando?
- Não, só pediu que o conselho fosse convocado. – informou Nehone.
- Mais logo, pela cair da tarde, vamos falar com eles. – sugeriu Tuluka.
- Poderá ser, vou mandar avisar.
Quando Nazamba e Nataniel foram informados que o tio-avô iria vê-los à tardinha, ambos tiveram o mesmo pensamento, que o velho vinha para levantar o problema que deixara, sabiam que não iria descansar até a situação estar bem definida, para um lado ou para o outro.
- O que quer esse malandro com vocês, perguntou Balanta?
- É um assunto que a mãe logo vai saber, mas terá que ser da boca deles. – respondeu Nazamba.
- Deles?!...
- Sim, mãe. Deles...- respondeu a filha.
- Eles quem, então? – insistiu.
- O avô Nehone e o mais velho Tuluka.
Balanta olhou para a filha, assarapantada. Assunto que metesse o mestre adivinho era assunto sério, todavia, mais não quis saber, Nazamba avisara-a que teria que vir deles, portanto competia-lhes aguardar. Olhou para Nataniel, que baixou os olhos e tossiu.
- Está calor aqui dentro, vou lá para fora um bocado. - disse.
Seja o que for, o marido não aceita...
- Queres um copo de água fresquinha? – perguntou-lhe a mulher.
- Não, obrigado, vou ficar um pouco à sombra, lá fora está mais fresco.
Não aceita, não!... Mas o que será que querem com eles?
- Bebe um copo de água, meu filho. Vais sentir-te melhor. – disse Balanta.
- Não tenho sede, obrigado, vou só sair um pouco. – disse, já junto à porta e de modos a evitar mais conversa.
A tarde passou lenta para Nataniel e Balanta. Nazamba, ciente do que queria e de como iria jogar as pedras, encontrava-se tranquila. Neste últimos dias revira a sua vida, desde o fatídico dia em que fora forçada a abandonar a aldeia, aos anos que passara em Portugal, até ao presente. Na verdade achou que o mundo era uma minúscula esfera redonda eternamente a girar, o que estava em cima hoje estaria em baixo amanhã, afinal o certo não era senão o lado oposto do incerto, a verdade o reverso da mentira. Quando percebeu os passos arrastados de Nehone, logo seguido dos de Tuluka e do marido, foi preenchida por uma estranha calma. Olhou para o rosto angustiado da mãe e sorriu, esboçando um beijo com os lábios. Dirigiu-se à porta, que abriu. Os três homens entraram e sentaram-se à volta da mesa, onde já se encontrava uma jarra com a cerveja, uma garrafa de vinho e vários copos, bem como um prato de milho assado, tapado com um pano.
- Boa noite, mana – disse Tuluka, olhando para Balanta, sentada junto à cómoda, num pequeno banco.
- Boa noite. – respondeu esta.
Nazamba tirou a rolha que tapava a garrafa de vinho e serviu os velhos, sabia que quando e enquanto houvesse vinho, a cerveja ficava para o fim. Estes agarraram nos copos e beberam dum trago, estalando os lábios e escancarando um sorriso de satisfação. A maneira como os recolocaram na mesa, não deixou dúvidas que eram para ser cheios novamente. Tuluka agarrou numa das maçarocas e começou a retirar do caroço o milho, com gestos precisos. Colocou os bagos sobre o plástico da mesa e foi debicando, sem pressa.
- O meu neto não bebe? – perguntou Nehone, notando que Nataniel não se servira.
- Não avô, essa é a última garrafa que tínhamos e é para vocês, vou beber um copo de água, até porque tenho sede.
Nazamba dirigiu-se ao moringue e serviu, perguntando com os olhos à mãe se também queria. Encheu os dois copos, entregando um a Balanta, que estava a seu lado, e levou o outro a Nataniel. Regressou e serviu um para si própria.
- A vossa mãe já sabe porque estamos aqui? – indagou Nehone.
Nazamba e Nataniel entreolharam-se, decidindo quem deveria falar.
- Não. – respondeu, seco, Nataniel.
- Não, avô, ela não sabe de nada, perguntou uma vez e eu disse que seriam os avôs quem teriam que lhe explicar tudo. – complementou, Nazamba.
- Fizeste bem... Boa filha. – respondeu Tuluka. – Mostraste que sabes ser prudente, lembra-te minha filha que o cão ladra com as costas voltadas para o seu dono, e que a perdiz velha não come no descampado, mas sim na encosta do morro.
- É verdade, também revelaste paciência, por isso não esqueças que andar devagar é o segredo do camaleão. – Ajuntou, Nehone.
Balanta mexeu-se, impaciente e fungou propositadamente
Tanto provérbio para quê, porque não falam já?...
- Obrigado pelos conselhos, não vou esquecer, até porque quero aprender e gosto de interpretar a sabedoria que encerram.
- É tua obrigação agora – respondeu Nehone.
Balanta, intrigada porque lhe estava a escapar a insinuação, moveu o banco para mais próximo da mesa.
Obrigação? Obrigação de quê?
Percebendo a ansiedade da mãe, Nazamba achou que deveria cortar aquela conversa fiada a que já se ia habituando, nunca se ia directo ao assunto.
Uma vez já apresentara ao marido a teoria de que os países africanos nunca se desenvolveriam porque o conceito de ligar dinheiro ao tempo, ou vice-versa, era incompreensível para as mentes. Tinha a ver com o clima e com a cultura da subsistência crónica. Assim, para tudo era feriado, por dá cá aquela palha, tolerância de ponto, conversa, só conversa, deixa para a amanhã o que podes fazer hoje. Como avançar-se assim, num mundo moderno onde cada segundo é contabilizado em termos de custos, de perdas e de ganhos?
Andar devagar é o segredo do camaleão?!...
- Eu sei avô, mas melhor é contar tudo à minha mãe.
Nehone olhou para a sobrinha, Balanta, e atirou-lhe, de chofre.
- A tua filha vai ser o próximo soba grande.
Balanta virou estátua de pedra, boca aberta, olhar fixo esbugalhado e não pronunciou uma única palavra, tão grande foi o terror dentro de si. Não encontrara a filha ao cabo de quinze ou dezasseis anos para a perder num minuto, assassinada, envenenada, enfeitiçada. Aguardaram até que se recompusesse, só Nataniel lhe tomou o pulso, e para tranquilizar a esposa.
- É a surpresa, já passa. Nazamba, dá-lhe um copo de água. – disse, este.
Aos poucos Balanta foi serenando, mas começou a tremer.
- Mãe, o que tem? – perguntou Nazamba, preocupada.
- É o choque, já passa, põe-lhe um cobertor por cima dos ombros – ripostou o marido.
- So...so...soba?... – conseguiu balbuciar, quase que inaudível.
Nazamba cobriu-a com um xaile que fora buscar, sentou-se a seu lado e segurou-lhe as mãos, friccionando-as.
- Mãe, recompõe-te e ouve tudo o que o avô Nehone tem a dizer. Eles já falaram comigo, pensei muito e decidi aceitar. Tu e eu devemos isso ao nosso soba Juba de Leão, ou a mãe já se esqueceu?
Como que movida por uma mola, Balanta ergueu-se e colocou-se entre os dois velhos, empurrando-os. Com desdém olhou para eles, de cima a baixo.
- Esqueci o quê, minha filha? Uma coisa não tem nada a ver com a outra, não sejas tu desta vez a estragar a tua vida...
- Estragar a minha vida, como?
- Também já lhe disse o mesmo, mas está obcecada. – aproveitou Nataniel.
- Por favor, Nataniel, não te metas nisto, a vida é minha.
- Não é só tua, também é minha e do filho que carregas na barriga – replicou-lhe.
- O teu marido tem razão, vais-te meter num saco de lacraus. Estes velhos estão malucos, Nazamba. Aquele que come contigo é quem te pode matar.
- Mãe, por favor, primeiro escuta o que eles têm para dizer...
- O que vão dizer? Este meu tio não foi um dos que instigou, e mesmo concordou, com a saída do teu pai e de vocês? E este feiticeiro, alguém o ouviu falar contra? São hoje os mesmos que te querem fazer acreditar que mudaram?
Nazamba sorriu, contente. A mãe, sem o querer ou desejar, encaminhava a conversa para o lado que lhe convinha, acabaria por a ter do seu lado, tinha a certeza.
- Mas é por isso mesmo que aceitei a proposta deles, mãe. Tomás e eu não somos filhos da cobra, mas sim filhos das cobras, não vês?
- O que estás para aí a dizer, não percebi. – disse Tuluka.
- Tio Tuluka, alguma vez já viu galinha fazer filho com cobra? – brincou com ele, Nazamba.
- Claro que não, que disparate é esse? – replicou.
- Como é que o Nataniel e eu, netos da mesma pessoa, o nosso avô Juba de Leão, não somos ambos descendentes da cobra? Só eu?!...
- Isso significa o quê? – insistiu, não vendo a ligação.
- Significa que cobra só faz filho com outra cobra, e não com galinha, como bem sabe e afirmou. – riu-se, Nazamba.
O velho mirou-a, perplexo e foi esboçando um sorriso que, após algum tempo, se transformou em gargalhada de apreciação.
- Muito bem, minha neta, você é esperta. Muito bem! Uma grande qualidade!
- É por aí que queres enveredar? – perguntou à mulher, Nataniel, aborrecido.
- Não falámos sobre o assunto?... Onde está o teu conceito de cidadania? – retorquiu Nazamba, provocando-o.
- Já chega de discussão. Ouve agora o que temos a dizer, se for preciso vamos mesmo mostrar-te a vontade dos antepassados. – disse Nehone, virando-se para Balanta.
- Mãe, escuta-os. Quanto mais cedo acabar melhor, logo partirão. – disse Nazamba.
- Não vou escutar nada, estes dois são feiticeiros que querem acabar contigo e com o teu irmão, não vês? Aqui não há filhos nenhuns de cobra alguma.
- Estás a chamar-nos de feiticeiros, toma cuidado porque as palavras tornam-te escravas delas.
- O que estou a dizer à minha filha, é que por muito que se tenha viajado, uma pessoa deve sempre olhar para trás, é necessário.
- É verdade, minha mãe. Mas o caminho percorrido já o está, aquele a percorrer, está à frente e é para aí que estou a caminhar. Tenta entender, há uma dívida a ser saldada.
- Dívida? Que dívida é essa? – perguntou Tuluka, novamente movido pela desconfiança
- A dívida do tempo... – respondeu, mais para si, Nazamba.
- Mano Nehone, o que fazemos? – perguntou Tuluka.
- Mãe, por favor senta-te e ouve. Suplico-te. – pediu Nazamba, segurando-a pela mão e reconduzindo-a à cadeira.
- Está bem... mas vou estar contra. – respondeu Balanta, amuada.
Uma vez o consenso formado e a harmonia restabelecida, todos se sentaram, cada no lugar que ocupara Nazamba retirou a cerveja da mesa e colocou-a na cómoda, fora do alcance dos dois mais velhos. Sugestionado, Tuluka agarrou na garrafa de vinho e serviu Nehone, depois a si próprio. Observando que a esvaziaram, Nataniel suspirou, levemente aliviado.
Melhor assim, pelo menos já não bebem mais.
Em voz pausada, denotando cansaço, Nehone contou as aspirações e os sonhos de Juba de Leão, falou da linhagem e das razões porque Nataniel não poderia seguir o avô e, por fim, das fantásticas revelações que os amuletos de Tuluka produziram, verdadeiramente inacreditáveis, não tivesse ele visto com seus próprios olhos, e Nataniel estava ali para testemunhar, não acreditaria, nunca. Nazamba era a pessoa que os que velavam pela vida e protecção da aldeia indicavam, e uma vez que ela aceitara, tudo ficava mais fácil. Havia o problema da iniciação, crescera fora dos seus e da terra, tinha muito que aprender, todavia poderia regressar a Luanda de posse tomada e o conselho dos anciãos era apresentar um regente, um dos chefes mais graduados e que já tivesse dado provas de capacidade, até ao seu regresso à aldeia, após o nascimento da criança. Tuluka seria o seu mestre oficial para ensinar-lhe as tradições, os costumes, os hábitos e as crenças, assim como lidar com elas. O regente, seria então o seu ministro principal e que lhe faria ver o difícil lado da governação, da sensatez, da ponderação, da avaliação dos factos e dos acontecimentos, entre outros.
- Vocês estão malucos!... – cortou Balanta, incapaz de mais ouvir.
- Malucos? Olha como fala, minha sobrinha, mais respeito. Não somos nós que mandamos, essa mensagem vem do além, você quer ver?
- Quero, sim, quero ver. – desafiou.
- Olhe que eu assisti, e é verdade. – avisou Nataniel.
- E não tinhas bebido antes, estes velhos não te deram de beber? – não se deixou abater.
- Chega de conversa. Mano Tuluka, por favor consulta o cesto.
Tuluka estendeu a esteira no chão, junto à porta e de costas para a mesma, retirou do saco próprio os amuletos e lançou-os para dentro do balaio.
- Chega mais perto, que é para você ver com os teus próprios olhos. – disse Tuluka para Balanta.
Acendeu um pequeno fogo sobre o qual colocou uma lata, e para aí lançou uns pós que produziram uma ténue nuvem de aromático fumo, talvez de eucalipto, e deu início ao cerimonial, com as cantilenas só de si entendidas. Levantou-se e, saracoteando o corpo, dançou três vezes à volta do cesto de adivinhação. Agarrou num pedaço de pemba branca, e colocou um risco vertical na testa e dois oblíquos nos pomos do rosto. Sentou-se novamente, de pernas cruzadas, e ergueu o cesto acima da cabeça, implorando para que os antepassados lhe mostrassem mais uma vez a verdade e os desejos deles. Baixou o balaio, remexeu-o várias vezes como que peneirando os amuletos, e lançou tudo à sua frente, na esteira. Os olhos dos presentes convergiram para a mensagem, que ele interpretou. Quase no centro, representando, portanto, uma decisão consensual, ao lado das penas de galo e de dois pauzinhos avermelhados, o elefante fêmea, por qualquer lei de equilibrismo natural, permanecia de pé sobre o dente de leão. Balanta olhou, lançou um profundo grito e principiou a tremer, crente que perdera Nazamba definitivamente. Sem saber qual e por que motivo, queriam-lhe comer a filha. Nunca na sua genealogia houvera qualquer tipo de impedimento, disso pensava estar certa, não houvera interdição quebrada.
Nazamba abraçou-se à mãe, enquanto Nataniel meneava a cabeça.
- Agora já acreditas? Já viste com os teus olhos? – perguntou, autoritário, Tuluka.
- Nunca mais afirmes que somos velhos malucos ou feiticeiros. Quem muito fala em feiticeiros, acaba por cair nas suas malhas. – ajuntou, zangado, Nehone.
- Não fomos nós quem indicou a tua filha Nazamba, foram eles, os que vivem debaixo da terra nas lagoas, eles é que falaram. – disse Tuluka.
O silêncio foi longo. Balanta recompôs-se, retirou-se do abraço da filha e ergueu-se.
- Se alguma coisa acontecer à minha filha, nem os maiores feiticeiros da região vos vão salvar – anunciou Balanta.
- Esteja tranquila minha sobrinha, nada vai acontecer à tua filha, ela só vai assumir o destino que lhe está reservado. – respondeu Nehone.
- Nas vossas mãos?... - insistiu Balanta.
- Sim, nas nossas mãos! – responderam quase em uníssono Nehone e Tuluka.
- Por acaso não está ela grávida? – perguntou a velha?
- E depois?... Vai ter o filho em Luanda e volta, não há problema...
- Mãe, será melhor que entendas que nada me vai demover, até porque não fui eu que procurei, nunca tal me passaria pela cabeça.
- Achas que o teu pai iria aceitar tal coisa? – perguntou Balanta.
- Teria um grande orgulho, estou certa. Não foi com a filha do soba grande que ele se casou? E se pudesse estar aqui hoje, depois do que nos aconteceu, com mais razão me apoiaria.
- Vejo que nada conseguirei. Não sabes o que está à tua frente, não conheces as leis e o regime nosso ...
- Posso aprender, mãe. E vou fazê-lo, vou começar mesmo hoje, agora já.
- Assim é que se deve falar. A força do crocodilo está na sua própria cauda. – respondeu Nehone.
- Avô, o que vem depois? – perguntou Nazamba, para fazer ver à mãe e ao marido que nada a demoveria.
Nehone olhou para Tuluka, que se levantou e assentiu com uma suave inclinação da cabeça. Sentaram-se os dois à mesa.
- Minha neta, vai buscar a cerveja e serve-nos, de garganta seca não sai palavra que se entenda.
Nazamba trouxe a cerveja e dois copos limpos que os velhos puseram de lado, preferindo utilizar os usados. Sorveram os restos do vinho no fundo e estenderam os copos, colocando-os um ao lado do outro. Nazamba serviu-os e pousou a garrafa ao seu alcance. Saborearam a cerveja, estalaram os lábios com prazer e sorriram um para o outro, felizes.
- Quando chegar o momento, vais ter que reunir com os mais velhos que te vão ensinar como te preparares. – disse Tuluka.
- Preparar-me, como? – indagou Nazamba.
- Terás tempo para saber, eles é que te vão dizer como e porquê. – respondeu Nehone.
- E depois?
- Depois? Depois escolherão quem te vai ajudar, os teus conselheiros directos, aqueles que serão os teus olhos, os teus ouvidos, a tua boca e até mesmo as tuas mãos.
- Ai minha filha... minha filha!... – começou Balanta a chorar.
- Mãe, por favor, até parece que vou morrer!... – implorou Nazamba.
- Não digas essa palavra. – cortou, rápido, Tuluka.
- Olha, a tua mãe não está bem, está nervosa. Voltamos amanhã à mesma hora. – disse Nehone, acabando a cerveja que tinha no copo.
Tuluka repetiu o gesto, olhou para a garrafa não acabada e, resignado, levantou-se para proceder à arrumação dos seus pertences. Notando o suspiro do amigo, Nehone agarrou na garrafa e acabaram a cerveja de milho, tendo de seguida saído.
- Durmam bem, até amanhã. Voltamos. – disse Nehone.
Balanta não parava de chorar, baixinho, mais parecia o piar de um pinto moribundo. Nataniel, nervoso, não sabia o que fazer, não desejava ser parte de toda a trama, sempre esperançado que a qualquer momento Nazamba acordasse do sonho que vivia e se rendesse às evidências e aos factos. Entendia o seu desejo de acertar velhas contas, mas conhecia muito melhor do que ela os contornos das lutas sucessórias, sobretudo quando as nomeações se haviam transformado mais do que nunca num jogo político e de força dos dois contendores na guerra que grassava no país. Cada um desejoso da posse deste ou daquele soba, já que os mesmos controlavam homens, controlavam jovens para a máquina de guerra, controlavam produção, mandioca, milho, frangos, cabritos, porcos. E ela, mulher desenraizada, aculturada, mulata, onde poderia chegar? Estava certo de que em Luanda, uma vez no seu meio natural, conseguiria demover a esposa das ideias estapafúrdias que agora albergava e conjecturava, aliás contaria com o apoio de Balanta.
Do lugar em que se encontrava sentado, quedou-se a olhar ora para a esposa ora para a sogra e deixou o tempo escoar. Finalmente a velha calou-se, cansada, e retirou-se para o quarto onde dormia com a filha.
- Não fiques assim!... – disse Nazamba, colocando-se a seu lado e passando-lhe a mão pela cabeça, afagando-o.
- Se eu soubesse que tudo isto iria acontecer, nunca teríamos vindo...
- Mas meu amor, o que está a acontecer é o que teria que acontecer, e digo-te isto sem fatalismo. Não acreditas que o destino de cada um é traçado à nascença?
- Isso é um absurdo, o destino somos nós quem o delineamos, até pareces uma mulher sem estudos. – respondeu, meio agastado, Nataniel.
- E as interferências externas que não controlamos?
- Quem disse que as não controlamos? Não poderás parar com toda esta brincadeira de mau gosto, e regressar logo para Luanda?
- E as consequências da quebra do que não deve ser quebrado, quando os factores são extrínsecos? Somos responsáveis pelo que é de nossa monta, nada mais.
- Estou muito cansado e não é o momento nem o lugar para falarmos sobre este assunto, vamos dormir, vai ter com a tua mãe.
Nazamba deu-lhe um beijo da testa, acariciou-lhe o cabelo e retirou-se. Nataniel, exausto, colocou os braços sobre a mesa, deitou neles a cabeça e adormeceu.
No dia seguinte, logo pela manhã, foi ter com o avô, decidido a contar-lhe tudo e a informá-lo que desejava regressar e que tão cedo quanto possível mandasse avisar o camarada comissário para os vir buscar.
Fez-se anunciar e entrou quando ouviu que o chamavam. Encontrou o velho sentado na sua cadeira, agasalhado com um cobertor e com um ar bastante cansado. Sobre a mesa, os restos da comida que não acabara e uma caneca, ainda intacta, de cerveja.
- Tão cedo já a visitar? – indagou Juba de Leão.
- Bom dia avô, vim para o visitar e tratar de um assunto, mas parece-me que está doente. Está a sentir-se bem?
- A velhice, meu neto. A velhice. – respondeu, tendo uma ligeira sezão.
- O avô está com frio? O corpo dói-lhe? – insistiu Nataniel, passando-lhe a mão pela testa para ver a temperatura. – O avô está com febre, e pelo que vejo deve ser paludismo.
- É... O corpo dói-me, mas o corpo de um velho dói sempre. O frio, já passa, e só ir para o sol.
- Aqui não lhe posso fazer nada, mas tenho cloroquina que o avô vai tomar, agora duas, depois venho dar-lhe o resto quando chegar a hora. Volto já.
- Não te preocupes, isto é coisa de velho, o mestre Tuluka cuida.
- Nada disso avô. Vou a casa e volto já. E faça o favor de não beber cerveja nenhuma, só água.
Ao sair, ouviu o velho rir e se lhe pudesse ter lido a mente, descobriria que lhe chamava criança da cidade, já esquecido dos remédios da terra e das maneiras como o povo curava as maleitas. Quando regressou, obrigou-o a tomar os dois comprimidos e uma aspirina e mandou retirar toda a cerveja que encontrou.
- Hoje vou passar o dia aqui com o avô, vai ficar bom, rápido.
- Se é o senhor doutor Nataniel que o diz... – e riu que se fartou.
- É verdade avô, é o senhor doutor Nataniel que o diz, por isso vai ter que respeitar a palavra do médico. – respondeu, rindo igualmente.
- Mas o que é que querias, assim tão cedo?
- Nada de especial avô, estava a pensar que chegou a hora de regressarmos...
- Qual é a pressa, ainda faltam duas semanas para o camarada comissário vir.
- Sei, mas agora já cá está a minha sogra e a barriga da Nazamba está a crescer, acho que a hora da partida está próxima...
Mais uma vez Juba de Leão desatou a rir com gosto. Com os olhos procurou o cachimbo.
- Você é mesmo um médico, mas um médico branco, está preocupado com o crescimento da barriga da tua mulher? Isso não é das velhas? A tua sogra, você acha que alguma vez eu vi a barriga da mãe dela? Só quando nasceu é que Kolele mandou informar que tinha uma filha.
- Mas os tempos hoje são outros, avô, e nós vivemos na cidade onde há hospitais e parteiras...
- Tens razão, estou caduco já nem penso direito. Está na hora de eu ir, de deixar este mundo... passa-me o cachimbo.
- Mas o que é isso, avô? Que conversa é essa? E está doente, não devia fumar...
- Deixa-me fumar à vontade, ou achas que é agora que me vou preocupar com o fumo? Um dia quando estiveres velho vais entender. Quando a gente sente que a nossa hora está já ali, não há medo...
- Então avô acredita no destino, que está tudo escrito? – perguntou, curioso, lembrando-se da conversa na véspera com a esposa.
- Destino? Não sei bem o que é isso, mas que a minha chamada está próxima eu sei, a minha vida foi muito cheia, fiz muitos filhos, deixo descendência grande, cumpri com o que devia cumprir e vou viver noutro sítio, com outras pessoas, vou viajar. A primeira morte foi quando me fizeram a iniciação, depois vêm todas as outras que tiverem que vir.
Nataniel ficou sem saber o que lhe dizer. O velho retirara-lhe os argumentos que pretendera usar para lhe contar o que desejara.
- Mas avô, a falar dessa maneira e com esse sentimento, a sua sucessão?
- Afinal era isso, também tu queres falar da minha sucessão? Pois fica a saber se depender de mim, tu serás o meu sucessor. Mas disso vamos falar noutra altura, primeiro o conselho tem que reunir
- É muito duro o que vou dizer, mas não conte comigo. Não posso abandonar a minha vida em Luanda, sobretudo agora que Nazamba está grávida e vir viver aqui, avô.
- Mas não precisas de viver aqui, podes viver na capital da província, lá também tem hospital e escolas para os teus filhos...
- Já não sou mais um homem do interior, lamento dizer-lhe, capital para mim é só Luanda. Daqui só me restam vocês, a família, que posso visitar uma ou mais vezes por ano, vir apresentar os filhos...
Juba de Leão baixou a cabeça e adormeceu, talvez para não ouvir as verdades terríveis que o neto lhe dizia, ou porque o cansaço tivesse levado a melhor, não obstante ser ainda manhã. Nataniel, angustiado, olhou para o avô e recordou o dia em que a aldeia festejara a sua ida para Cuba, sabendo o que dele se esperava. De pé, sentiu as lágrimas rolarem-lhe pela face. Como podia ter-lhe perguntado se acreditava no destino, que estava tudo escrito, quando ele mesmo nem fora capaz de o ler, quanto mais, escrever?
Perdoa-me meu avô. Perdoa o meu egoísmo e a minha ignorância.
Agarrou no livro que trouxera, sentou-se junto à porta e tentou ler, limpando o resto das lágrimas com as costas da mão. Achou melhor não avisar os outros, ele cuidaria do velho enquanto pudesse.
Minhoca! É o que tu és, uma minhoca egoísta...
Por volta das nove da manhã, estranhando a sua ausência, Nazamba mandou-o procurar. Como o velho dormia em paz, a baba a gotejar na camisa velha e desbotada, Nataniel limitou-se a colocar a mão sobre a sua testa e preferiu deixá-lo assim, com receio de o despertar, sabia que o avô recusaria ir para a cama. Pediu ao moleque que viera com o recado que lhe indicasse a casa de uma das esposas, certamente ao lado na cercadura principal. Informou-a que o velho estava doente, talvez paludismo, seria aconselhável que ela fosse para lá, mas que o não acordasse, qualquer outro problema, que o chamassem de imediato, estaria em casa com a esposa.
- O velho está doente. – disse, ao entrar em casa e sem cumprimentar.
- O que tem? – perguntou Nazamba.
- Penso que seja paludismo, pelo menos parecem ser os sintomas. Já o mediquei e mandei para junto dele uma das esposas. A tua mãe?
- Está lá fora, pelo menos acordou mais resignada.
Nataniel encolheu-se, lá vinha a conversa de novo, achava-se completamente esvaziado. Achou por bem não responder e pediu uma muda, queria ir tomar banho antes de comer. Trocou de ideia e falou para a esposa, aproveitando a ausência da mãe.
- Quando fui ver o avô, era para lhe dizer que vamos partir o mais cedo possível.
- Nataniel, sabes que não poderá ser bem assim, até a minha mãe já concordou...
- Tenho-me mantido afastado de tudo isso propositadamente, mas acho que chegou o momento de começar a bater com o pé no chão, a minha harmonia psíquica começa a estar em causa.
- Meus Deus, que exagero querido! Que não te sintas confortável, entendo, todavia estares a perder o controlo de ti mesmo, por favor...
- O que te quero fazer sentir, é que não vejo uma saída feliz para as tuas intenções loucas.
- Até já pareces a minha mãe a falar. Loucas ou não, vou para a frente e assim que acabarmos de comer, vou pedir que o avô Nehone venha cá. Se quiseres estar presente agradeço, caso contrário nada posso fazer.
- Esta não é a mulher com quem eu casei... – disse Nataniel, sofrido.
- É sim, meu querido, sou a mesmíssima, só que agora mais decidida, até porque carrego no ventre um filho teu. Será que também é da cobra?...
- Nazamba, meu amor, vamos regressar a Luanda...
- Nataniel, só te perdoo porque sei que não estás a fazer de propósito, mas domina os teus receios e trata de me dar o apoio que vou precisar. Pára de pretender que não me entendes.
- Claro que te entendo, não luto contra a tradição, nada tenho contra as cerimónias a que assisti, acredito que tudo isso possa ser possível. Não vejo é o teu futuro aqui, e muito menos como soba grande.
- Mas se fosse ao contrário, Nataniel? Se fosses tu, tudo faria sentido, não é?
- Não podemos enveredar por esse caminho, é mera especulação, eu nunca aceitaria tal proposta, e por razões e motivos mais do que evidentes.
- Talvez... talvez. Mas tu pertences às maiorias, não é assim que te ensinaram lá no partido? Eu sou uma minoria e, portanto, devo-me submeter, não é?
- O que estás para aí a dizer?
- Mas olha que aqui quem está em minoria és tu. – mofou, com ele.
- Nazamba, não brinques com coisas sérias, é a nossa vida que está em jogo.
- Precisamente, meu marido! Finalmente entendeste!...
Furioso, esqueceu-se da muda e do banho, e saiu porta fora.