sexta-feira, 26 de junho de 2009

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


A FESTA DA ILHA

Desafio abertamente qualquer um a contradizer-me, a desmentir-me que, quando a kianda era alimentada com o cartão de abastecimento do Ministério do Comércio Interno, a festa da ilha não era muito melhor, muito mais viva, alegre e participativa. E olhem, até nem chovia para estragar tudo, precisamente no momento exacto em que as kalundús, em seus garridos trajes vermelhos, desciam ao bordo do mar iniciando a cerimónia. Foi um Deus que me acuda com todos os presentes a bazar, porque molhar-se no mar é uma coisa, é digno e estimulante, ser molhado à toa e de sapatos, é outra.
Será que as divindades dos ares (que nome terão, aviandas?) ficaram enciumadas porque para elas não se vê sequer a TAAG ir pôr toalha rendada e farta nas nuvens, e toca de mandar água farta cá para baixo?
Esta festa, como a passada, andou fraquinha. Bem sei, os tempos estão difíceis. Com uma chapa de zinco a cinco milhões, não há barraca que se aguente montar. Minha amiga Antónia, que mantém barraca de comida nos trapas lamentava-se, amargamente arrependida, ter solicitado autorização para colocar uma filial à berma da estrada, para estes três dias.
“Ai vizinho, a grade está quase a quatro milhões, o frango a dois e meio, agora ainda com a chuva as massas não aparecem...”
Coisas da inflação e da kianda!
Porém o melhor da festa para mim, foi a parte explicitamente cultural e que não teve nada a ver com a Organização. Fui arrancado do noticiário, aí por volta das 20.45, por um alarido enorme na rua. Para meu espanto, cliticlop, cliticlop, cliticlop, passa diante da casa, em furiosa cavalgada, um boi nativo.
“As pacaças do parque fugiram oh meu Deus!”, foi logo o meu pensamento, só para recordar que as ditas cujas devem hoje estar a falar Afrikaans. Uns dez minutos depois, cliticlop, cliticlop, cliticlop, o replay no sentido inverso
Eis quando da turba que já pensava ter-lhe saído o totoloto, um mais afoito ou cuja fome era mais acentuada, no melhor estilo de um Prudhomme que não actuasse no Benfica de Lisboa, mas sim nos Forcados de Santarém, em voo olímpico, consegue agarrar-se ao rabo do boi e lá ele arrastado, esfacelando-se todo no asfalto. Mas como a fome miseris est, ou ainda que, por um apurado instinto empresarial, não largou e o boi foi derrubado.
O que fazer a seguir? A turba quer o seu quinhão, sobretudo já corria a boca livre que os bois estavam a ser descarregados na floresta e iam para o Frescangol.
“Traz catana! Quem tem catana?”, gritava o nosso Prudhomme forcado.
E a catana que não saía!...
Finalmente, o meu vizinho Delfim produziu um machado e a besta foi abatida, sem qualquer compunção, ali mesmo no meio da estrada, os condutores tentando adivinhar se tudo aquilo seria para a kianda. Antigamente só se punha churrasco, vinhinhos bons porque pelo resto a divindade era vegetariana. Mas isso era antigamente, hoje a kianda come muito, só que ninguém é que não lhe dá.
O boi abatido, sem dó nem piedade como referi, há que fazer a repartição, a divisão. Nesse momento até estive quase a sugerir que se arrastasse o animal para o meu quintal. Na repartição foi onde o nosso Prudhomme-forcado quis destorcer o rabo, mas não o deixaram.
“Quem lhe apanhou fui eu!...”, disse o voador esfolado.
“Mas nójú é que ajudámo!...”, replicaram logo vários empresários nacionais.
“O machado é meu!...”, lembrou vizinho Delfim.
“Eu só quero as miudezas para fazer jinguinga!...”, procurava a vizinha Mabunda.
“Quem lhi viu é su eu!...”, ouviu-se, de um miúdo atrevido.
Resumindo, estava quase a sair tiro, sai sempre e sobretudo porque ninguém quer, quando miraculosamente apareceu a amiga antiga, a outrora sargento Beti, hoje já com alta e devida patente, a pôr ordem naquilo tudo.
À distância, fez-se o velório dos bifes e da jinguinga, bem guardados por quatro polícias.

14/11/94


SOGRAS

Feliz foi Adão, que nunca teve sogra.
Por esta máxima, poder-se-á avaliar quão enquistada e universal, é a cínica apreciação das sogras, mesmo nestes tempos modernos que até nos permitem a sua aquisição na Internet.
No cenário clássico, a mamã do menino querido, ao ser trocada por outra mulher metamorfoseia-se no terror dos sete mares, que toda a recém casada espera nunca conhecer . Não é à toa que ele, marido, afirma que a única sogra boa é a da mulher dele. Não há canto ou assunto do lar, em que não se imiscui directamente, ou através daqueles subtis apartes para ouvidos com endereço certo e predeterminado. Sogra que se preze, tem que seguir essas regras imemoriais, nem que seja pelo facto de ser esposa e mãe com currículo e antiguidade no posto. Ao dizer isto, só posso ser levado a notar com sincero espanto, o gesto que considero surrealista por variados motivos, de muito boa gente aqui na terra, deitar abaixo todas essas teses anti-sogras, ao confirmar que de facto sogra é coisa boa, pois chegam a ter três ou quatro ao mesmo tempo.
Indo ao cerne da questão, quero-vos falar da Lúcia e do Miguel, um casal amigo com o qual privo de perto, o que me permitiu seguir os altos e baixos do seu relacionamento ab início.
Para o Miguel, na fase do namoro, a futura sogra até lhe parecia bem simpática, por certo, fruto do empenhamento que almejava uma conquista irremediável, capaz de derrubar toda e qualquer possível barreira protectora. Presenteava a senhora com caixas de chocolate, flores ocasionais e, sobretudo, já que ela gostava tanto de andar de carro, com longos passeios. Foi ao cúmulo de a ensinar a conduzir. O Miguel sentia-se feliz com as novas mulheres da sua vida, a futura esposa e sua mãe.
Logo após o casamento, passada a lua-de-mel, a sogra começou a aparecer com frequência, sobretudo em visitas relâmpago bem similares às da polícia económica, até porque morava na mesma rua. Ao fim do primeiro ano de casados, o Miguel começou por fazer sentir à Lúcia que, talvez, fosse aconselhável a sua mãe aparecer um pouco menos, todavia, com o nascimento da criança, as coisas não só não foram por esse caminho como pioraram, porque a Lúcia trabalhava, e ao fim dos noventa dias da licença de parto, teve que regressar ao emprego. A avó impôs-se, assim, como guardiã da criança, gesto aceitável de bom grado, não fosse a mania de prolongar a estadia para alem do que poderia ser considerado horas normais de expediente caseiro.
A situação prevaleceu durante uns dois anos, com o casamento deteriorando paulatinamente sem que qualquer deles tivesse a capacidade de colocar um ponto final na questão, ou seja, pôr a santa senhora fora de casa, mesmo a custos de lhe magoarem a sensibilidade.
Quis o destino que este caso fosse resolvido de uma maneira trágica, mas que, tempos após, levou a situação no lar a recompor-se e hoje a Lúcia e o Miguel vivem felizes.
Certamente que vão querer saber da tragédia, já que a mencionei.
A mãe da Lúcia costumava levar a criança a passear todas as tardes, no novo carro do genro, muito a seu contragosto. Agarrava no neto e dava longas voltas, sobretudo até Viana. Por volta das cinco da tarde, chegava a casa e aguardava o regresso do casal, insistindo em que deveria ficar para preparar o jantar, como sempre. Uma tarde, em que por acaso não levara o neto, teve um grave acidente no qual veio a perder a vida. Quando vieram informar a desgraça, já tempos decorridos da hora habitual da senhora estar em casa, Lúcia caiu desmaiada nos braços do marido que ora desatava a rir ora se punha a dizer “Ai meu Deus, e agora?”.
O relacionamento do casal começou a melhorar quando, ano e meio mais tarde, o Miguel teve a coragem de falar ao padre, mais em jeito de desabafo do que confissão, sobre a angústia terrível que o consumia desde a morte da sogra. Sofria um persistente complexo de culpa, porque o seu riso e dúvidas, tinham como origem a ambivalência de sentimentos que então experimentara. Culpava-se por se ter sentido feliz ao se ver livre da sogra, enquanto lamentava a destruição do sua viatura novinha, não sabendo verdadeiramente como, no momento, aquilatar ou ordenar as emoções.
De facto, feliz foi Adão, por nunca ter tido a necessidade de se queixar da mãe da mulher.

26/06/05

A BRIGA

Casados há pouco mais de um ano, tiveram a primeira briga há dias.
Não foi amuo, não. Foi mesmo briga e da séria, que só não deu reunião de família porque ela, a Rosa, a tinha toda no Kunene. E família grande, diga-se. O mais baixo dos irmãos kwanyama tinha um metro e noventa de altura e quase outros tantos de largura.
Ainda bem para o Celestino, agora banido para o sofá da sala de visitas por duas semanas.
Duas semanas?...
É que a Rosa tinha o espírito de Mandume, forte e guerreiro, e não pactuava com ninguém que ofendesse a sua fé e religiosidade.
Por questões da fé é que o marido foi banido para o sofá da sala de visitas?
Sim! E se olharmos para a questão sob o ponto de vista da Rosa, teremos que conceder que ela teve carradas de razão. Sobretudo quando se entender que o Celestino, mais ou menos ateu, se vira forçado a casar em cerimónia religiosa pela Igreja Católica quando a barriga da Rosa começou a crescer. A questão do crescimento da barriga não foi assim tão problemática, que necessitasse de negociações aturadas, estavam de facto apaixonados um pelo outro e queriam vive juntos, todavia a Rosa procedia de uma família antiga de gente muito religiosa, que já produzira três padres e dois cónegos ao longos dos anos. Casaram-se, pois, pela Igreja, com todo o cerimonial que uma ilustra família podia almejar para a primeira filha casadoira.
O Celestino, mesmo o nome favorecendo, teve dificuldades enormes para mastigar o pouco do catecismo que teve que aprender para o efeito, tendo passado ainda pela comunhão e pelo crisma. Jurou que um dia haveria de se vingar, não fosse ele também filho de Deus.
Enquanto viveram no Sul, frequentou assiduamente a Igreja, ia todos os domingos com a esposa e a família à missa. Mas não conseguiram que comungasse. Após várias tentativas, quando um bom domingo o viram mastigar a hóstia com tanto rancor que até fazia caretas, com metade dos comungantes a olharem estupefactos, foi imediatamente dispensado e liberado pela família, envergonhada.
Vitória que festejou secretamente, embora sol de pouca dura, pois teve que continuar a os acompanhar aos domingos e feriados religiosos.
Reagindo, aprendeu a dissimular dentro do hinário os livros de bolso detectivescos que tanto gostava, a Rosa fingindo que não via, porem não desarmava. A cada momento, lá o cutucava para se levantar, sentar ou ajoelhar. Haveria de transformar aquele coração fechado para a fé.
Quando vieram viver para Luanda, foi o grito da libertação do cativeiro. Com a família distante, foi a Rosa que teve que começar a aquiescer e assim, aos poucos, o lá foi perdendo como companheiro de missas e afins. Não pensem que o amor e relacionamento deles estiolara, nada disso, continuaram solidamente juntos, só que as missas dominicais foram substituídas pelo televisor ou saídas para um curto passeio, após o qual apanhava a esposa na igreja.
Mas como foi então parar exilado para o sofá da sala de visitas?
É que não soube medir a fé e, sobretudo a religiosidade da mulher, talvez por falta de um religiómetro ou por ter-se distraído com a liberdade adquirida.
E ainda por cima, foi a um domingo.
Já deitados, o Celestino deu para contar uma anedota à mulher, sem medir as consequências.
- Ó Rosa, queres ouvir esta?
- O que é, amor?
- Ontem morreram três velhinhas, sabes?
- Três velhinhas, todas no mesmo dia? Onde?
- É verdade. E foram as três para o céu porque tinham sido muito beatas.
- Mas o que é isso?!...
O Celestino, se estivesse atento, teria logo notado a inflexão vocal da esposa e ficado por aí. Mas não, aventurou-se um pouco mais ainda. Só um pouco mais, com aquele espírito dos aventureiros ou dos audazes.
- É como te digo... A primeira, chegada lá, pediu a São Pedro que lhe permitisse ser outra pessoa.
- Celestino, sabes muito bem querido que não gosto que se brinque com assuntos sérios.
- ?!...
- Ouviste, querido?...
- Ouvi, meu amor. Mas deixa que acabe. Ser outra pessoa, perguntou S. Pedro? Sim, disse ela. E que pessoa deseja ser? A Madona.
Neste ponto a Rosa saltou da cama e olhou para ele em sobressalto, estaria doente, paludismo cerebral?
- O quêêêê?!....
- Pois é como te digo, filha. A Madona, e foi-lhe concedida a graça. A segunda pediu para ser a Patrícia Faria.
- A Patrícia Faria? Mas tu estás bem?
Antevendo o golpe de misericórdia, pois por esta altura já estamos todos a ver que o Celestino escolhera a ocasião para se vingar conforme se prometera há anos, rematou, bem humorado:
- A terceira disse que queria ser a Pipalina do Saara.
Apanhada de surpresa, nunca ouvira falar de tal celebridade, a Rosa conseguiu reganhar alguma compostura para indagar:
- A Pipalina du Saara?...
- Olha filha, foi o mesmo que o S. Pedro lhe perguntou. Assim, a velhinha mostrou-lhe um jornal que trazia debaixo do braço, cuja parangona dizia “Pipeline do Saara é montado em quinze dias, por trezentos homens”.
Para terminar este assunto, baixemos uma pudica cortina sobre a cena que se seguiu logo após, e ofereçamos a nossa simpatia àquele incompreendido que ronca feliz no sofá da sua sala de visitas. Ainda lhe faltam mais onze dias. Talvez!...

22/08/04


O PALÁCIO D. ANA JOAQUINA

Torna-se extremamente difícil não falar do Palácio D. Ana Joaquina, sobretudo quando a ignominia do feito nos dilacera a alma ao mais profundo do sentir. Quiçá por já nada se poder fazer, a não ser não domar a revolta que a abjecção do gesto gerou em muitos de nós que, sem desejar ser qualquer tipo de farol alumiando caminhos, se sentem mutilados, diminuídos.
Os mentores dessa castração secular, deveriam ter julgado que um povo sem História é presa fácil para qualquer subjugação, seja espiritual, intelectual e sobretudo moral. Foi precisamente graças a essa amoralidade, crime maior que a imoralidade já que no mínimo isso significaria o reverso da existência de moralidade, que se destruiu quase trezentos anos da nossa História.
E não deixa de ser irónico, sem qualquer culpa para ela, penso, que foi justamente uma empresa do país que exportou forçosamente milhões de angolanos, agrilhoados, pelo mundo fora em naus dantescas, que usou o camartelo para irradicar a Memória duma das páginas mais trágicas da Humanidade, a escravatura. Memória essa que deveria perdurar a todo o sempre, para que a Consciência não soçobre no vasto mar da irreflexão onde, alguns, não se guiam pelos ventos das aspirações de uma conduta cívica exemplar que seus postos exigem, mas sim pelos lodaçais e pântanos dos seus interesses mais imediatos.
Não há justificação para o acto, digam o que disserem.
A realidade são os escombros antigos a entulhar a baía de Luanda, na Ilha do Cabo, onde, por ironia do destino, a mesma água que transpôs os suores e medos ancestrais dos involuntários edificadores de novos mundos, banha agora sua reminiscência impregnada nas pedras amareladas centenárias que ruíram. Como se só por não vermos o céu nublado, pretendamos que as estrelas não existem.
Com tristeza recordo que, não há muito, uma larga franja da sociedade luandense escandalizou-se porque uma estátua ofendia o seu moral, ignorando a força mítica de um Chibinga Ilunga, entre muitos dos símbolos das nossas tradições milenares, sejam de fertilidade feminina ou de procriação masculina. São estas perdas da Memória colectiva que levam a que certos, feitos Seus donos, ajam da maneira que agiram porque, vivendo num mundo que lhes parece particular, passam a confundir civilização com tecnologia, pela possibilidade de, num aso de prestidigitação canhestra, criar uma réplica da Alma.
Só nos resta esperar que jamais se repita o crime nem tudo se perca para as gerações vindouras.

05/12/99

"DESENCONTROS" IN JINDUNGUICES


DESENCONTROS

Filipina Maria Mendes de la Cuenca y Fraga era uma jovem mulher de vinte e seis anos, mestiça, descendência paterna de um aristocrata espanhol deportado para a América Latina por problemas com a coroa e que acabou, Deus sabe como e porquê, os dias em Angola.
Os vinte e oito rebentos africanos deixados com três mulheres negras, levam-nos a deduzir a natureza dos pecadilhos que forçaram sua majestade a correr com o fidalgo para as intempéries das colónias. Nada consta se no curto espaço de tempo que fez na América, teve a oportunidade de pôr à prova a sua prolixidade.
Entre os descendentes angolanos do aristocrata castelhano, três foram de notoriedade merecedora de registo.
Dois bisnetos, o Malaquias e o Francisco, ganharam fama não só por se revelarem a mais eficaz parelha de pumbeiros a ter enriquecido com o trafego de escravos, como por apenas então aprenderem a usar calçado dada a frequência de lugares e pessoas que o dinheiro comprara. A sua não menos larga progénie masculina deu pronto sumiço ao vasto património e fortuna amealhada pelos irmãos, em rixas, putas e vinho verde nas obscuras tascas das fedorentas vielas das metrópoles dos reinos Ngola e Benguela.
Na virada do século XX, notabilizou-se um Hernando de la Cuenca “Tira Bucho” y Fraga, então degredado para o sul da colónia pelo governo de Luanda, onde se tornou funante, e, mais tarde, famoso soldado de cavalaria, por sua audácia nas guerras contra os Kuanyama, a serviço do velho general Pereira de Eça. Combateu na batalha do Môngua as forças de Mandume, rezando o folclore local que teriam até sido amigos nos seus tempos de funante. Morreu pouco tempo após a batalha, putrefacto de gangrena, causada por diversos ferimentos não cuidados, em ambas as pernas. Quiseram-lhas amputar, todavia não consentiu; um de la Cuenca y Fraga sabia morrer, anunciou ao médico.
Daí aos dias de hoje, o nome da família caiu no anonimato e das glórias passadas dos de la Cuenca y Fraga nem os que carregam o ilustre apelido as sabem, em abono da verdade, melhor esquecidas que relembradas, já que será lícito aventar que os buchos do funante Fraga cavaleiro não seriam de bois ou carneiros.
Filipina Maria é casada com Evaristo Mateus, funcionária num dos ministérios na capital, directora de gabinete do excelentíssimo senhor ministro. Para além disso, a ilustre senhora herdou a capacidade de ter visões e falar idiomas estranhos e expressar-se em vozes que não suas e de pessoas já idas. Mas disso pouca gente sabe.
Evaristo Mateus, comerciante mais ou menos abastado, dependendo da frequência das viagens às zonas diamantíferas da Lunda,, casou-se há seis anos com Filipina Maria, com quem tem três filhos.
Faz o que quer e ainda com mais facilidade devido ao dinheiro que possui, mas como nunca arranjou uma segunda mulher, Filipina finge que não vê e por vezes até fica grata quando acomoda uma amante, deixando-a assim em paz na alcova, já que não era muito amiga dessas coisas.
A sua exigência, após o nascimento do terceiro filho, foi a de que ele utilizasse preservativos quando fizessem amor. A princípio, impor a decisão foi difícil, Evaristo não queria aceitar, mas após um prolongado boicote, rendeu-se aos desejos da mulher, com quem se entendia e respeitava.
Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto e dar com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, tendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa.
“Se te aproximas de novo, arranco-te o bucho!”
Estarrecido, Evaristo acreditou ser parte de um pesadelo e mordeu o lábio inferior tão fortemente que sangrou.
“Filipina, o que tens?”, conseguiu balbuciar, quase inaudível.
“Filipina?... sou Hernando de la Cuenca y Fraga. “
Não fosse a seriedade da situação, teria largado uma gargalhada já que essa fora a sua primeira reacção. Notando a camisa salpicada do sangue que escorria do lábio ferido, estremeceu ao ouviu a sua própria voz.
“Parente de minha mulher?”
Filipina, os olhos revirados, olhava-o como que através dos móveis e das paredes.
“Sim, o que morreu lutando contra o Mandume de que tanto falam.”
Filipina ergue-se da cama, avantajada, e deu dois passos em sua direcção, que mais pareciam os de um militar.
“Sabes o que mais?”, perguntou-lhe, erguendo-o pelos colarinhos. “Somos amigos nesta escuridão em que vagueamos...”, e deixou-o cair novamente, regressando à cama.
Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfémia ouvir, não as palavras proferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.
“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.
“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”
“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.
“Sim, tua mulher!”
“Meus Deus, que pesadelo!..”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.
“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando.
Evaristo ganhou compostura e ergue-se, de um pulo. Assustada, a esposa entrou em convulsões violentas, gemendo sons incompreensíveis que mais pareciam mistura de gritos de guerra kuanyama ao revidar violenta carga de cavalaria. Evaristo, aterrorizado, retirou um alfinete da caixinha de costura em cima da cómoda e começou, com ligeiras palmadinhas a picotar a cabeça da mulher, como vira nos xinguilamentos.
“Acalma-te Filipina, acalma-te... ai meus Deus...”
Quando, por fim, notou a esposa inerte nos seus braços, deixou-a cair suavemente na cama, acariciou-lhe a testa. Deitou-se a seu lado, sentindo-se em estado de choque.
“Combater em defesa da pátria? Será que ainda não chegaram lá notícias da independência?!...”, disse em voz alta, como que despertando de um sonho.
Esta foi a primeira experiência de Evaristo com os achaques da esposa e lamentável não se poder informar que desfecho teve o caso do Hernando “Tira Bucho” Fraga no que refere à sua camaradagem com o heróico Mandume, na escuridão em que ambos vagueavam, certamente o limbo. Ou Evaristo nunca relatou à esposa esta primeira experiência com o além, ou se o fez, Filipina, sua sensibilidade não permitindo, nunca transmitiu a preocupação do inditoso antepassado, os segredos da família devendo permanecer no seu foro e resguardados.
Hoje em dia, Evaristo Mateus é especialista em manifestações espíritas.
Não há ninguém nas Lundas que não tenha ouvido os mais bizarros relatos de casos ocorridos. Nas regiões do garimpo, o Hernando “Tira Bucho” de la Cuenca y Fraga é mais famoso que o rei Mandume, embora ambos andem de braço dado e em tu cás e tu lás, muito distintos dos anos e épocas de suas epopeias em que, com afoite, se guerreavam pelas terras, bois e cavalos.
Porque não relatava Evaristo Mateus estes acontecimentos em Luanda, onde só ele e a esposa conheciam a alma penada que os visitava ocasionalmente? Talvez porque impedido de atestar o que o descendente do aristocrata espanhol contava, já que o espírito de Mandume, sempre a lado de Hernando, nunca se manifestara através de Filipina. Havia pois apenas a etérea palavra do Tira Bucho que, quem sabe, até nunca teria pessoalmente conhecido o famoso rei guerreiro apesar de ter contra ele lutado.
No gabinete da directora de sua excelência o senhor ministro o telefone tocou. Filipina, que se encontrava ao computador, girou a cadeira e atendeu.
“És tu?”, soou a voz familiar do esposo.
“Sim, sou eu, mas estou atarefada ...”
“Era para te lembrar do almoço de amanhã.”
“Não me esqueci, mas vamos mesmo fazer jinguinga?...”
“Foi o que pediram. Olha, pelo sim pelo não, diz para prepararem igualmente outros pratos.”
“Está bem, vou já telefonar para casa e mandar a cozinheira, com o motorista, comprar o necessário. Não te esqueças dos vinhos. Tchau.”
“De acordo.”, respondeu, bem humorado.
Chegado o sábado, Filipina e Evaristo receberam na sua mansão no Miramar, com vista panorâmica para a baía de Luanda, os Gomes e os Afonsos, tendo-os deliciado com a fabulosa jinguinga, preparada com as melhores carnes de cabrito da sua quinta em Viana, regada generosamente com um Chateau Haut-Brisson, Saint-Émilion Gran Cru,1993, que comprava às caixas, em Brazaville.
“A jinguinga estava deliciosa, parabéns...”, disse madame Afonso, a grande apreciadora do prato.”
“Para lhe ser franca, nunca soube como a preparar.”, respondeu a anfitriã.
“Mas é bem fácil.”, insistiu.
Envergonhado, o marido, mais mundano e sensível, deu-lhe um suave toque por baixo da mesa. Esta, já farta dos sermões caseiros sobre educação e etiqueta, maneira do esposo lhe relembrar as origens, assim pensava, continuou deliberadamente, sem aguardar a opinião da dona da casa.
“Retire o sangue que guarda com vinagre para não coalhar e coloque à parte todas as miudezas...”, disse, olhando para ao marido.
Pairou sobre quase todos um desconforto. Os anfitriões a fingir delicado interesse, o casal Gomes a entreolhar-se em espanto, e o infeliz Afonso a simular que limpava a boca para esconder, com o guardanapo, o constrangimento.
“A tripa vira-se ao avesso, estica-se bem e lava-se em água corrente, enrola-se à volta dos bocados de rim, coração, fígado, bucho e demais miudezas tempera-se tudo, incluindo a carne, com alho, sal e limão”.
“Depois do almoço, vens falar dessas coisas, minha querida!...”, tentou mais uma vez, o marido.
“Deixe, é sempre bom saber...”, respondeu lesta a anfitriã, olhando intencionalmente para Afonso em modo tranquilizador.
“Também já estou no fim.”, disse, retribuindo, por baixo da mesa, a canelada ao marido. “Vai a lume, com tomate, cebola, alho picado e engrossa-se com o sangue guardado.”
“Bravo, bravo!...”, disse Filipina, jocosa
“E se passássemos lá para fora?...”, sugeriu Evaristo, para desanuviar o momento.
Após o café, os criados serviram os conhaques, aguardentes e licores, no pátio ao lado da piscina, onde uma música suave se fazia ouvir.
Momentos mais tarde, recostados nos amplos sofás baloiço, Evaristo notou a insistência com que a jovem senhora Gomes o mirava. Hesitou durante muito tempo, poderia ser o vinho e a comida em digestão que lhe pregavam a partida fazendo-o ver coisas onde não existiam, mas já ao entardecer, teve a certeza que madame Gomes se insinuava. Foi solicitar-lhe o prazer da dança.
O bolero escorria suave na economia de passos dos dois. A senhora Gomes cingia-o com suavidade, já bebera meia garrafa de licor, em tragos brandos, porém firmes.
“Há muito que não me divertia como hoje.” , ciciou ao ouvido de Evaristo.
“Que bom.” ripostou, um pouco encabulado, o sussurro apanhara-o desprevenido.
Os dois corpos atraíram-se e sentiram que acabavam de cruzar a linha do não regresso.
“Posso telefonar-lhe terça feira?”, perguntou Evaristo, decidido a não perder tempo.
“Terça, às quinze.”, respondeu lesta
A partir daí, a jovem senhora Gomes e Evaristo Mateus passaram a encontrar-se regularmente num apartamento que ele tinha na rua Rei Katyavala.
O romance durava há cerca de um ano. Cada vez que Filipina sugeria um almoço ou jantar para o casal Gomes, Evaristo encontrava sempre uma maneira de dissuadir a mulher. Temia expor seus sentimentos ou gestos, muito mais os da senhora Gomes.
“Porque não vamos passar uns tempos fora?”, sugeriu ela um dia.
“Engraçado, ia-te propor uma viagem.”
“Londres?”
“Pois Londres será, mas o teu marido?”
O marido? Atarefado homem de negócios, importador de mobílias e materiais de construção, perenemente em stress, pouca vontade exibia para as tarefas conjugais.
“Como ando a dizer há tanto tempo que desejo ir à Inglaterra, até já me comprou o bilhete. Nada estranhará. “
Viveram uma semana de idílio em Londres.
De regresso a Luanda, os encontros clandestinos continuaram por muito tempo todavia a rotina começou a instalar-se e Evaristo reclamou. Com receio de o perder, a jovem senhora Gomes aceitou o novo desafio, e acertos em sítios escuros, sobretudo no carro, renovaram a sublimidade do relacionamento.
Foi como se fosse uma segunda lua de mel.
Com a adrenalina em píncaros arriscados, gozaram os prazeres do perigo e do arrojo. Jamais se haviam desejado e amado com tanta ousadia e descaramento.
Num anoitecer de cacimbo, a pedido de Evaristo, foram ao fundo da Ilha, aconchegados às outras viaturas, quais aves arribadouras em reserva protegida.
No passeio do desenfado dos luandenses à Ilha, os faróis do carro que Filipina conduzia, com a sua amiga Afonso, bateram em cheio no do esposo, que sacolejava ao ritmo africano do amor.
“Aquele não é o carro do Evaristo?”, perguntou.
Sem esperar resposta, desligou as luzes e, numa correria louca, seguida pela amiga, abriu violentamente a porta de trás da viatura, que Evaristo se esquecera de trancar, acendendo-se a luz interior. Despidos e boquiabertos, o par não reagiu.
“Tu?!”, gritou Filipina Maria ao ver madame Gomes.
“Tu?!”, gritou a senhora Afonso ao ver madame Gomes.
“Fecha a porta, fecha a porta!”, implorou Evaristo.
Seria impossível descrever o que passou pela mente de Filipina durante os escassos segundos que a paralisaram, de boca aberta, em descrédito. Madame Afonso, de igual modo olhava para o marido da amiga.
Ouviu-se um grito terrível que mais parecia um roncar de leão enfurecido e Evaristo poisou, com medo, os olhos nos da esposa. Logo reconheceu o senho familiar quando Filipina entrava em transe. Sentiu-se insignificante, encolhido em cima da amante.
“Filho duma cabra! A traíres a minha parente?...”, Evaristo ouviu Hernando Fraga dizer.
“Que se passa?, gritaram as madames Gomes e Afonso assustadas, não reconhecendo a amiga.
Da saco que ainda levava a tiracolo, Filipina retirou a pequena faca de caça que sempre carregava para protecção, e avantajou-se sobre Evaristo.
“Despede-te da vida, vou-te tirar o bucho.”, disse Hernando fazendo jus ao nome
Aterrorizado, conseguiu abrir a porta do outro lado e, apenas de camisola, deitou a correr pela estrada, aos gritos de socorro, perseguido pela mulher e pelo espírito do ilustre antepassado, irmanados fisicamente na faca lugubremente zurzida no ar.

SUMAÚMA - POESIA


SUMAÚMA

DE MORAIS, Fragata
2005 UEA

Sobre a obra, Maria Nazareth Fonseca, Professora Doutora em Línguas Africanas, considerou o seguinte:

«Os poemas são construídos com uma intenção de investir no nível da figuração. Por isto é interessante observar como se elaboram as relações entre os títulos dos poemas e os versos que o compõem: por vezes há uma aproximação bem nítida entre a intenção do título e os sentidos produzidos pelos versos; outras vezes, a relação entre o título e os sentidos dos versos se faz pela vertente figurativa na qual as palavras são tomadas pelo poeta para distenderem sentidos previstos (Cf. Poema «Elefantíase», p. 16). A forma privilegiada pelo poeta busca a ligeireza, a captação do instantâneo, a mobilidade dos versos curtos e dos efeitos obtidos pela variedade métrica e rítmica».


TUA BELEZA

Tua beleza
liberta
na seiva
das acácias
paixões

que amansam
o pulsante
coração do colibri
em toque
de chingufo
adormecido
à luz
da lua


PRINCÍPES

Crianças
engraxadoras de estórias
do amanhã

está escrito
que os pastores sociais
os magos
das mil-e-uma-maravilhas

tocar-vos-ão com a varinha mágica
e vós pobres respigo da insensibilidade
sereis para sempre
os príncipes
do não ver


GUERRILHEIROS

Cantam cigarras
lendas
de heróis guerrilheiros
ao compasso leve
das veludadas lágrimas
da mafumeira

ou o capim
coberto de sumaúma
onde se esconde
o kazumbi vadio


TELENOVELA

Esvaziar-me
no mais recôndito
que escrevesse

consumir-me
no mais ardente
que imaginasse

extasiar-me
no mais lúbrico
que sentisse

escrever algo
que fosse
da vida

ainda que da ilusão


PLANTAR

Plantar
é nascer
no reflexo
natural

é medo à morte
vibrado na raiz
solo adentro

é vaidade
reverberada
vegetal


CELESTE

Depenei
um celeste
pena por pena
como se cada pena
fosse sumaúma
que serena
se esfuma



ÓBITOS

O olho do viandante
é rápido
não tanto
quanto os passos
gravados
pela peçonha

na cobra
o morto dança
sortilégios tribais

noites de óbito

ELEFANTÍASE

Meu embondeiro
a pingar múcuas
por raízes
dispersas em prece

jeitoso
elegante
sinuoso

Meu embondeiro
de espíritos albergados
na fundura do casco
em espera do viajante

Meu embondeiro
meu embondeiro

RUGAS

Rolam
as décadas
no semear
depauperado
da quimera

e no olho vítreo
da reminiscência
nem mais a sombra
das luas cansadas
reflecte no opaco
o soslaio
da tranquilidade

terça-feira, 23 de junho de 2009

INKUNA MINHA TERRA


RUMOS

Victória Pimenta tem actualmente oitenta anos, vinte e cinco dos quais vividos em maravilhadas batucadas de amor. Amor puro e refinado de electricista engenhosa dos prazeres do corpo e dos alívios da alma.
Nas últimas três décadas, auto-reformada, vendera os negócios e remetera-se à reminiscência, à contemplação, não do invivido, mas da curteza da obra a que se dedicara com empenho parceiroso de formiga.
Excepção era feita no seu aniversário, por uma elite de pais e filhos penhorados em ocasional manifestação de carinho, com farra de arromba celebrada até altas horas da madrugada. Esse testemunho advinha do gesto reformador e altruísta de Victória, que só não teve continuidade na geração dos netos, por a madrasta natureza ser exigente, indecorosa e cobradora.
Tudo começara no ano de 1939, numa cidade do litoral inkunino, Tubela. Cidade em que raro era a casa, da alta ou pequena burguesia negra, branca ou mestiça, que não tivera seus gaiatos iniciados no prazer dos prazeres, ás mãos da carinhosa Dona Victória, senhora digna e tratada com todo o respeito, não meretriz alguma que dispensasse serviços a troco de moeda ou favores outros desrespeitosos.
Por vicissitudes e incongruências da vida, especializara-se em tirar os tampos a mancebos cujos extremosos pais lhos levavam pelas mãos, a africanizada parisiense cegonha já não escorregava pelas cada vez mais afuniladas chaminés dos conhecimentos carnais dos púberes, adquiridos em nocturnas escapadelas com donzelas duvidadas. Também, por religiosamente acreditarem que, sem prescrita alternativa, a masturbação constante, remeteria os danados rebentos para o remidor fogo eterno, ou , pior ainda, os tornaria inapelavelmente tísicos e manetas.
Em 1936, com vinte risonhas primaveras, Victória Pimenta conheceu Arnaldo Lima, galante e bem falado guarda-livros duma próspera firma de muitos secos e mais molhados. Arnaldo, ou melhor, Arnaldinho, português que chegara a Inkuna uns cinco anos antes, fugindo ás inquiridoras navalhas de três maridos cujas testas ornamentadas pesavam sobremaneira, na lusa metrópole. Como tinha parentes nesta pequena cidade das Áfricas, para lá se dirigiu.
Conheceu Victória, namoraram ás escondidas durante dois anos, aos dezanove convenceu-a que a hora de comprovar o seu amor chegara. Casaram-se finalmente aos vinte, quando a jovem anunciou que se o não fizessem, apregoaria aos quatro ventos que tinha sido indevidamente abusada na sua inocência e escaldante boa fé. Arnaldinho, dando conta da vida a andar caranguejadamente, concluiu que lhe seria muito mais fácil e proveitoso esposar-se.
O pai dela era próspero comerciante, folgado. O futuro emprego estava automaticamente garantido, talvez mesmo uma sociedade de interesses futuros, sem falar na casa para viverem.
Para os momentos da boémia inveterada e enquistada, as aborrecedoras brancas dos afamados bairros da capital portuguesa, substituí-las-ia pelas lustrosas negras da região e isto sem preocupação de ornamentar a testa de ninguém.
Há muito que aprendera que uma multa resolvia os aparentemente insolúveis problemas sociais dos bons nativos. Por tradição, cornos e corneados era uma coisa que não existia em África. Isso era invenção dos capados dos padres e desses franco-mações que não entendiam nada do relacionamento entre raças e dos valores próprios da terra, afirmava de bom tom.
Quando lhe saiu, voluntariamente, das mãos o primeiro cabrito e uns tostões como compensação da desfeita ao desfeiteado, teve a plena certeza que África era sua terra natal e seus habitantes seus irmãos. Gente pacífica e compreensiva, nada de navalhas e correrias loucas com fitos de o deixar exangue!
Victória não soubera resistir à lábia do português. Gradualmente foi achando o homem engraçado, deixou-se seduzir pelos galanteios baratos mas viscosos, e aos dezoito anos rendeu-se, porém ainda casta, à paixão. Seus encontros eram fugidios e curtos, o tempo suficiente para troca de duas palavras babosas, um olhar saturado de labaredas de intenções pecaminosas, e logo o coração a disparar em furiosa cavalgada deserto afora já que os olhares do malandro carregavam toda a experiência dos bairros afamados de todas as colinas da terra onde nascera.
Como poderia uma mestiça donzela, de pequena cidade provinciana, resistir incólume a tal provação? Já incorria em transgressão grave e faltosa ao encontrar-se com Arnaldinho no armazém da loja do pai, por trás dos sacos de milho. Mas como se sabe, o coração tem razões que só dele são, e assim, ao fim de quase um ano de muitos beijos sôfregos, esfreganços rebolados, apalpões propositadamente impenitentes e promessas avassaladoras, Victória entregou-se sôfrega ao madraço. Em cima de três sacos de farelo, perante a vigia de varias ratazanas que, das vigas do armazém, curiosamente os observavam.
Semanas depois, começou a preocupar-se como chegar ao anúncio familiar. Aliás o burgo mexericava sobre os desaparecimentos ocasionais e repentinos do guarda-livros, que tinha fama de putanheiro, malandro, estouvado, rabo se saia, enfim, adjectivos não faltavam para qualificar a vida que levava no burgo.
Mas quem escuta um coração apaixonado, sobretudo se de mulher?
O drama seria os pais, certamente por um lado a desejariam ver casada com um branco. Mestiços que eram, almejariam melhorar a raça, como se dizia então, todavia, por outro, o que se cochichava de Arnaldinho deixava muito a desejar para se lhe entregar pacificamente a filha.
Os meses foram passando e Victória pressentiu que Arnaldinho se tornava obviamente escuso. Após a desfloração, aparecera uma só vez, sem aqueles olhares abrasadores e invocando receio de serem descobertos. Ela, sedenta da memória anterior, bem o puxou para os sacos de milho, porém em vão, o saciado biltre resistiu e solicitou pudor e compostura. Safando-se das garras ardentes da jovem, pulou porta fora dizendo que depois combinariam o próximo encontro.
Escusado será dizer que as olheiras de Victória aumentaram e o seu estado macambúzio levou a mãe, D. Firmina, a falar com a filha. Com poucos meses para completar vinte, em torrentes de vergonha que produziram cataratas de lágrimas, abriu seu coração à progenitora e relatou a odisseia tim-tim por tim-tim. Só não falou das ratazanas porque as não vira.
D. Firmina, que há muito desconfiava das manias e desmodos ocasionais da filha, todavia nunca relacionado com Arnaldinho, manteve-se calma e aconselhou-a a convocar o patife para um encontro.
Depois que o encostasse à parede.
Mesmo não estando, afirmar, em copioso choro, que estava grávida de quatro meses e que ele ou declarava suas intenções mais honestas ao senhor seu pai, e casar-se-iam de véu, grinalda e flor de laranjeira, ou denunciá-lo-ia publicamente que a desvirginara com falsas promessas e pretensões, e que a abandonara abusada da sua honra e castidade O caminho para a igreja seria, deste modo, percorrido sob a mira duma caçadeira, senão várias, pela fama do marmanjo.
Perante argumento tão convincente, Arnaldinho, homem fraco de oposições, mas visionário, anuiu. Voltar para Portugal é que ele não podia... num cair cinzento de tarde, declarou seu amor por Victória, face a um estupefacto e despreparado pai e uma mãe concordante. Informou o senhor Abelardo que não ousara antes insinuar seus sentimentos para com o anjo que lhe iluminara a vida de pecador, porque esperava primeiro formar fortuna. Trabalhava para o comerciante Antunes com fito de amealhar uns tostões que permitissem abrir seu próprio negócio. Já estabelecera contactos com as caravanas que se deslocavam para o interior, a fim de entrar no comércio da borracha, da cera e do mel, talvez mesmo do marfim. Não era homem que se contentava com pouco, ou desejar viver ás custas de outro, e para levar Victória da casa paterna, seria para lhe dar melhor vida, nunca antes. Mas agora, ah!, as torrentes liberadas pelo amor pio que dedicava a Victória, eram tais que soçobrara e seus intentos originais de riqueza não eram mais do que mera ilusão a desnavegar em mares perdidos e vastos.
Quem não ficou muito impressionado foi o futuro sogro que, após a oratória republicana do quase genro, e ouvir a filha babada e a mulher apressada, consentiu. Mas ante a má fama do finório, impunha incondicional condição que este abandonasse o comércio do Antunes e ficasse a trabalhar e viver com eles. Sem alternativas, testemunhado pelos olhares felizes das mulheres, apertou a mão do sogro e abraçou-o efusivamente. Estampou dois sonoros beijos nas faces de D. Firmina, a quem chamou mãe, e saiu apressado, sendo conduzido à porta por Victória, braço no braço do sedutor enganado.
Claro está que quando foi revelado o noivado, as línguas viperinas da cidade logo juntaram dois e dois e adivinharam qual teria sido o passatempo de Arnaldinho naquelas desaparições metódicas e repentinas, sobretudo por que o casamento fora proclamado para breve.
Cinco meses depois, a aliança consumou-se, Arnaldinho sentindo-se tinhoso, mas sempre na desportiva. Conhecia bem as regras do jogo e nunca reclamara da desaparecida barriga da noiva. A população da pequena praça compareceu em peso, Abelardo Pimenta era um comerciante antigo e respeitado. Victória, toda de branco em vestido imponente de cauda de três metros arrepanhada pelas afilhadas Betinha e Finura, ambas de doze anos, trajadas cor-de-rosa, Foi o sucesso e a inveja das solteironas encalhadas. Arnaldinho, cabelos rebocados de brilhantina, igualmente trajado de branco e de sapatos a duas cores, castanho e branco, ostentava um enorme cravo encarnado na lapela, talvez monumento tauromáquico em memória dos muitos enchifrados que deixou na sua querida e distante Lisboa. Como concessão, raspara as suíças marca registada de sempre, o velho Abelardo impusera o peso e respeito de futuro pai e sócio maioritário.
A cerimónia religiosa foi longa, o padre, que já antes bebera à saúde dos noivos e familiares, que não eram poucos, em voz semi-pastosa, elaborou eloquente discurso nupcial, no qual, por entremeio, fez descer todas as bênçãos do mundo sobre a cabeça dos nubentes. Da pequena igreja, a comitiva partiu para a casa de Abelardo e Firmina, por volta das doze da manhã, e a festança começou. Para acabar dois dias mais tarde, já com Victória oficialmente nos braços de Arnaldinho, rumo a Katola, para um mês de lua-de-mel, oferta parental e da recentemente inaugurada casa Abelardo e Arnaldo Limitada.
Durante um ano Victória foi verdadeiramente feliz. Com uma estreita vigilância, apoiada e dirigida pela mãe, reduziu o campo de possível acção extraconjugal de Arnaldinho a zero. O homem parecia reformado e contente com a situação.
De facto, contente estava, reformado não.
O bem torneado corpo de Victória, os seus vinte e um roliços anos bem como a flamejante
consumidora inocência provinciana em questões de alcova, iam mantendo o malandrim com o moral elevado, feito garanhão em permanente cio. Os pais, envergonhados pelos suspiros e gemidos da filha noite afora, mandaram edificar uns anexos amplos nos fundos do quintalejo e para lá transferiram o arrulhante casal de pombos.
Mal sabiam que, ao alforriá-lo da casa grande, reabririam os portões do arrojo ao genro.
Sem ninguém dar por ela, Betinha e Finura iam a caminho dos quatorze, meias mulheres, sobretudo Finura, traseiro farto e arredondado revelando as noites profundas de África, busto montanhoso por onde escorriam volúpias de chovidas promessas, mais parecia ter dezasseis. Igualmente sem ninguém dar por ela, o fadista começou a olhar para a garota de maneira mais acintosa e a fazer contas de cabeça. que tiveram como resultado, oito meses mais tarde, a prova real e dos três fora, em rendição incondicional ao tratante, numa tarde em que Victória fôra a casa da modista.
O caso durou quatro viscosos meses até os dois serem apanhados, na cama do casal, pela própria Victória, que havia esquecido o tecido de um outro vestido em confecção. A coitada, olhos esbugalhados e engasgada ao rubro na patifaria do velhaco, não ousou crer, e desmaiou num surdo “Ai minha mãe”.
Finura, acreditando a madrinha morta, aos gritos, abalou porta fora toda nua, indo-se afogar no rio. O magarefe, foi corrido da cidade a tiros de caçadeira, com o Intendente e um grupo de cipaios atrás do velho Abelardo, para que este não desgraçasse, mais, a vida da família. Conseguiram desarmar e acalmá-lo, prometendo que Arnaldinho seria trazido a justiça, levasse o tempo que levasse.
Efectivamente, meses mais tarde, é devolvido à pequena cidade pela polícia de Katola, e julgado, tendo sido condenado a três anos de cadeia.
Victória, que durante o julgamento jurara vingança, via-se que estava alterada, não era a mesma pessoa. Perante todos, anunciou que a partir da data do seu vigésimo segundo aniversário, para mais ou menos breve, iria ser a fada benfazeja dos jovens virgens do burgo. Deixai vir a mim os pequeninos, anunciava risonha. Que quando assim o desejassem, os papás que lhe levassem lá os catraios, que ela se encarregaria de os devolver ministrados nos becos e caminhos do amor. Tivera bom mestre.
Foi uma comoção pela cidade, o velho Abelardo e D. Firmina julgaram a filha louca, levaram-na a Katola para consultas médicas, que incluíram ainda, pelo sim e pelo não, famosos tululas quer de Katola quer lá de Tubela, mais tarde.
Todavia nada demoveu Victória, vozes internas desarrumavam sua cabeça, quarto por quarto, vassourando que amor com igual amor se consome. O homem fizera, chegara a vez da mulher, é na cegueira dos subterrâneos que a toupeira caminha sua vida e a minhoca enrola suas comidas na terra para a fertilizar.
De regresso abandonou o lar paterno e arranjou casa modesta na periferia.
É evidente que ninguém acreditou no que Victória dissera, sabiam que o seu desgosto era profundo e que, com o tempo, o coração sararia e tudo voltaria ao normal. Não houve, pois, pai que ousasse levar a oferta a sério. Mas quando, ao fim de um ano o velho Abelardo Pimenta morreu de desgosto, logo seguido de D. Firmina, a dádiva tornou-se uma tentação para os jovens adolescentes que, à revelia do consentimento paterno, puseram à prova a oferta da fada do amor, no que foram bem sucedidos.
Victória, como filha única, herdou o comércio dos pais, regressou a casa, colocou gerente à frente dos negócios e, nos amplos anexos, agora reformados para não lembrarem mais a imagem do maldito, deu aso ao que o seu coração de mulher lhe ditava. Pelos vinte e cinco anos seguintes, em altruísmo digno de registo, recebeu os jovens burgueses da cidade, muitos vindos pelas mãos dos pais, para a iniciação carnal.
A cidade cresceu, é hoje urbe importante de província igualmente importante e para muitos e muitos, Victória não só é mitologia. É a pátria agradecida.
Continua viva, sem remorsos de nada e querida de todos. Mesmo dos que não a conhecem, porque sabem que o que fez foi por despeito a um grande amor, entregue e dedicado a um finório, e ainda que o biltre não o mereça, o que está feito está feito.

MOMENTO DE ILUSÃO - CONTOS


DESALMAR

A Vuíla Sabata fugira-lhe a assustada alma.
Precisamente ás quatorze horas e vinte e cinco minutos do dia 15 Junho de 1975, quando, emaranhado na mais recôndita raiva animalesca, entre medos incompreensíveis e razões descontroláveis, esvaziou o carregador da Aka no crânio de um soldado já morto mas ainda inimigo. Coitada, aterrorizada, afugentou-se por entre fendas e buracos obscuros.
Entretanto, com a cabeça feita passador, tantos eram os buracos, o espírito do falecido, quem desfalece morte arrogante vira alma vadia, manteve-se no corpo mais cinco horas.
O que observava lá fora amedrontava-o, como é sabido, as sombras só se habituam a tal, depois dos vivos apagarem a lembrada luz que as faz vaguear, assim com elas não mais bulindo. Assim, acanhou-se, sobretudo por não ter a certeza do furo mais seguro por onde escapulir.
Acabrunhado, no seio de tanto miolo esfarelado e sentindo-se ainda matéria, não entendia por que Sabata, não obstante pertencerem a partidos políticos armados diferentes, esvaziara na cabeça de seu corpo, já inerte, todo um carregador de Aka, outrossim pontapeando-o feito louco desvairado, até se sentir exaurido. Em circunstâncias similares, teria ele feito o mesmo?
Com este ainda humano receio, não apreendendo que doravante seria mera essência desincorporada, que as abusivas balas lhe haviam tornado o material corpo descartável, o espírito do soldado outrora inimigo de Vuíla Sabata, optou por habitar enquanto fosse possível ou permitido, a moradia perversa, o esburacado crânio de que fora dono.
Todavia intuía a mudança e estranhava não se achar ambientado. Faltava ao corpo inerte a ligeireza física habitual, o reboliço das correrias pelos bairros pobres da cidade desconhecida para onde viera impor a desliberdade do seu partido armado, em relação ao outro.
Dali a umas horas estaria escuro, e seu cadáver já velado por cães vadios e esfomeados. Seria a hora do adeus mundano. Por enquanto ia-se entretendo a observar a rigidez a assenhorar-se do corpo, ao qual durante dezoito anos se colara e apegara.
Pasmado, descobriu novas perspectivas, como, por exemplo, a de ver de perto as rodas dos poucos carros que ousavam passar naquela rua, raspando-lhe o furado crânio. Porque não o socorriam? Unicamente os cães a rondá-lo, farejando, farejando e gemendo arreganhados ganidos em alimentadas esperanças de lauta ceia
Ás dezanove horas ganhou coragem, e de um pulo, saiu lesto pelo furo de bala mais cerca.
Os cachorros fugiram como se algum garoto os tivesse apedrejado uns, outros sentaram-se no alcatrão deserto a uivar, até que uma rajada curta de metralhadora os pôs em silvante debandada.
O espírito do então inimigo de Sabata, novamente assustado, subiu célere e ficou a rondar as árvores do bairro desconhecido, motivo de sua morte inesperada, até que as estrelas, sombras de perdidos antepassados, lhe anunciaram o caminho dos errantes, porque morrera fora e longe dos seus, o corpo apodrecido no alcatrão, restos do farto repasto dos cães, atirado, no dia seguinte, para um qualquer buraco e tapado a pressas nauseabundas. Estava desprendido dos vivos, já que quem mantém os espíritos em permanente amofinação, são os que deles se lembram.
Quanto a Sabata, perdeu a alma porque de repente ela sentiu-o gelado, tanto quanto a água matinal na cachoeira. Apavorada, nunca antes se vira em tal estado, comprimida com ocultos medos ancestrais incompreensíveis, anichou-se sem querer no dedo que apertava o gatilho, testemunhando e participando de todo aquele dano. No momento em que Vuíla Sabata pôs a Aka a tiracolo, para poder pontapear o falecido soldado ainda inimigo à vontade, a alma, de tão pequenina e contrita, caiu com o enorme peso da culpa bíblica para o chão, escoando pela primeira fresta do alcatrão.
Sabata sentiu-se ligeiro e etéreo. Com o pecado ora esvaecido do seu humano horizonte, tornara-se, enfim, dono absoluto da inconsciência. Doravante a abjuração principesca e fria seria sua rédea, o raciocínio o inimigo visceral, a razão, moral e a ética os vermes com que saciaria os desejos irreprimíveis da concupiscência da guerra.
Com a ilegalidade de Deus decretada por despacho oficial em gazeta da república, Vuíla Sabata, sabendo-O na clandestinidade, afiou os instintos, metamorfoseou-se no abstracto concreto e reinou senhor incontestado dos irreflexos. Tornando a enfiar um cano de fuzil pelo recto de Federico García Lorca, apregoou por tudo quanto é canto de Inkuna, “viva la muerte”.
Por essas sendas marchou, ao som dos tambores marciais, a juventude forjada para as desigualdades entre iguais. Amor sobretudo com desamor se paga, seria o moto, durante o que pareceu ser uma eternidade opaca.
Mais de duas décadas depois de Vuíla Sabata ter perdido a alma, alguns muitos ainda se indignam ao lerem no jornal diário, ao verem e ouvirem nos noticiários da televisão, que o crime, a amoralidade, o apatriotismo, tomou conta das vidas inviáveis de quase todos.
Esses, devem ser os que constantemente fustigam a esperança jamais banida, para a busca da alma de Vuíla Sabata, a fim de que seja restituída e redimida
Alma porventura agrilhoada no mais fundo de uma arca libanesa ou indiana, trancada a sete chaves com cadeado electrónico inkunino numa caixa forte suíça, após ter forçosamente penado longo e tortuoso trajecto, da fenda no alcatrão por onde escorregara.
Triste consolação de se saber que o que estava feito, afinal poderia nunca ter sido ou estado feito.


MARTINHA

A manhã, pródiga em luz e calor, aportava, não obstante, uma brisa húmida que já anunciava a vinda do cacimbo.
A praia, despida dos banhistas habituais por ser terça-feira, espreguiçava-se pela areia suja e furada por miríades de tocas de caranguejos. No verde-claro da água próxima, duas jovens banhavam-se onde havia pé. A mais velha teria uns catorze anos, a outra, de tronco nu e no qual dois bicos de chucha apenas despontavam, não poderia ter mais do que onze, talvez doze.
Serafim enterrou a estaca da sombrinha na areia e, depois de a ter aberto, estirava a toalha estampada, quando a voz o despertou.
“Amiguinho, amiguinho... vem!”
Novamente olhou à volta e não ligou. Sentado, agarrou na revista, quando percebeu que a jovem saía da água e a ele se dirigia, lesta e sorridente. Anichou-se junto a seus joelhos, e entabulou conversa, como velhos e conversados amigos.
“Amiguinho, como te chamas? Eu sou a Martinha”, disse sem esperar resposta.
Serafim sentiu-se pouco à vontade, não descortinando o interesse da garota. Incessantemente olhava ao redor, receando que o observassem feito um mais velho a engatar quatorzinhas.
“Muito bem, o que queres?”, disse seco.
“Nada, amiguinho. Não tem medo, aquela é a minha irmã, samo deslocado de Malange, e só queremo falar contigo”.
Já ouvira muitas estórias sobre crianças da rua e sabia que uma grande quantidade era nativa de Luanda e foragida de suas casas, por vários motivos, sobretudo o da fome. Conhecia ainda que muitas delas actuavam nas praias praticando pequenos furtos, ou introduzindo-se nas casas dos mais desavisados, onde conduziam depois o seu grupo de assalto para uma limpeza maior e mais determinada.
“Deslocadas de Malange, ou são mesmo dum bairro aqui de Luanda?”
“Não amiguinho, te juro samo memo de Malange, nos mataram a família e tivemo que fugir”, continuou Martinha, agora acenando à irmã para que se chegasse igualmente. “Foi a UNAVEM que nos trouxe até Luanda e agora vivemo aqui”.
Serafim olhou para a garota e tentou descortinar se o que contava era verdade. Estava um pouco espantado com o ar vivo e desenvolto da criança, mostrava um à vontade incomodativo, até porque à medida que falava, descontraída e casualmente, numa carícia sub-reptícia, que ele não percebia se intencional, ia-lhe riscando a perna com o dedo.
A irmã optou por chegar-se e sentou-se do outro lado. Já era uma mulherzinha, embora visivelmente criança. Pouco tinha que denotasse o laço de sangue, se em verdade fosse real. Mais reservada, manteve-se à margem, olhos pousados na areia.
“Esta é a minha irmã, chama-se Joaninha, é minha mais velha”.
“E quantos anos tens tu?”, quis saber Serafim.
“Eu?”, perguntou Martinha.
“Sim, tu, quantos anos tens?”
“Amiguinho, como te chamas?”, indagou Martinha, mais uma vez acariciando-lhe a perna com o dedo.
“Para que queres saber do meu nome?”, perguntou desconfiado e cauteloso.
“Para nada, tamo só a conversar. Como te chamas, amiguinho?”, insistiu.
Receando que as jovens pudessem ser uma armadilha, tornou a olhar para os lados. A praia continuava deserta, na pequena lanchonete a uns sessenta metros, duas empregadas trabalhavam e na paragem do machimbombo, umas três crianças, igualmente deslocadas, abrigavam-se do sol.
“Chamo-me Toninho”, disse, mentindo.
“Toninho, queres-me tirar o cabaço?”, perguntou com toda a naturalidade Martinha.
Serafim deu um pulo instintivo e pôs-se de pé. Não acreditando no que ouvira, olhou espantado para tudo à sua volta, como que procurando testemunhas que confirmassem que aquela criança tivesse efectivamente feito tal oferta. Durante uns tempos rondou a sombrinha até que, pelo espanto na cara das jovens, deu conta da figura ridícula que fazia e sentou-se.
“O que disseste?”, quis confirmar.
Martinha riu, riu e olhou para a irmã. Depois chegou-se outra vez a ele.

“Perguntei se o amiguinho me quer tirar o cabaço”, repetiu com a mesma naturalidade.
Serafim quedou-se calado por muito tempo. Tão absorto estava que nem notou que Martinha continuava a acariciá-lo com um dedo, pela perna, como que escrevendo.
“Se me perguntas isso é porque já o não possuis...”, disse, como que falando para si próprio. “Que idade tens então?”, indagou despertando.
“Tenho doze anos, fiz o mês passado. Olha, amiguinho, és casado?”, insistiu.
“Dizem que são de Malange, onde vivem?”
“Vivemo na Mutamba”, respondeu Joaninha, falando pela primeira vez. “Vivemo na casa dum braga, ele é que nos ajudava, mas agora nos enxotou”.
“Braga, o que é isso de braga?”, perguntou Serafim.
“Não sabe o que é braga? É assim pula como tu, branco!”, respondeu pronto Martinha, rindo a bandeiras despregadas pela ignorância de Serafim.
O riso das miúdas ajudou-o a relaxar, descontraiu-se, tentou ver porque é que um branco seria chamado de braga, e voltou à carga.
“E quem te tirou o cabaço então?”, quis saber para pôr aquela estória a limpo.
“Foram uns senhores da UNAVEM quando a gente veio de Malange. Estivémo com eles um pouco, eram assim castanho escuro, já não sei que país. Depois andamo com indiano e brasileiro, mas fugimo porque os brasileiro não prestam, não têm dinheiro. Nos levavam só e depois nos deixavam, não davam nada, só coca-cola ou cerveja. Hoje já não andamo mais com os da UNAVEM, bom memo é os pula português. Nos levam nos apartamento deles, nos mandam tomar banho, nos dão de comer e depois a gente fica lá. Se-deitamo com eles, amiguinho, nos dão biquini, sapato e outras coisas. É bem fixe... Mas amiguinho, responde só então, és casado?”
Serafim sentiu o peito crescer amotinado.
Tinha conhecimento que os contentores espalhados pela ilha de Luanda, sobretudo os que se encontravam ao fundo, do lado da baía, serviam para a prostituição infantil, todavia sempre pensara que as jovens fossem de pelo menos quinze anos, nunca de doze.
Que sociedade produzira tal fenómeno e o alimentava, desconcertantemente?
“Não, não sou casado, mas tenho uma filha que tem só um pouco mais da tua idade e o que me contas deixa-me muito preocupado”, disse Serafim, com bastante amargura.
“Amiguinho, não faz essa cara. Se vives sozinho a gente pode ficar lá contigo, limpamo a casa, fazemo a tua comida. Vamo-te tratar bem, juro!...”
“Já foram à Assistência Social, nunca ninguém vos lá levou?”
“Sim já fomo, mas ninguém nos ajuda. Querem nos mandar numas casa que a gente não sabemos, ou então ficamo só ali. É melhor aqui, os mais velho nos ajudam, temo memo um tem uma casa grande que nos leva lá, xê, quantidade de guardas!..., deve ser chefe. Mas quem nos ajuda memo é os braga. Esse da Mutamba, a gente conseguiu fazer lá dois meses, no outro dia disse podemo ir embora, nos mandou sair”, respondeu Joaninha, que se limitava a olhar, ouvir e sorrir.
“E não voltam para Malange porquê, já se pode viajar para lá?”
“Nada!... temo medo, eles ainda estão lá, a gente sabe”.
“Se quiserem eu posso vos ajudar, talvez vocês não são é nada de Malange, são aqui de Luanda e só querem andar nesta vida”.
“Nada, amiguinho, juro, somo de Malange, pergunta só na minha irmã. Viémo memo com os da UNAVEM que nos trouxerem junto com eles. Agora voltar em Malange, não queremo ainda. Mataram nossa mãe e nossos irmãos, aqui em Luanda está mais fixe”, disse Martinha.
Um grupo ruidoso de rapazes, na sua maioria de quinze ou dezasseis anos, ocupou aquele troço da praia com um desafio de futebol. Eram os lavadores de viaturas e os faz tudo do mercado cerca. Nas horas vagas, fumavam liamba escondidos nas pedras dos pontões, e dedicavam-se ao roubo nas viaturas e aos banhistas incautos. Igualmente compravam peixe ás peixeiras, para o revenderem aos estrangeiros, na estrada. Sempre se ganhava qualquer coisa para a comida ou para a liamba.
“Esse braga é daqui!”, gritou um deles, como que avisando do desforço delas.
“Vives aonde então?”, quis saber Joaninha, agora mais familiarizada.
Serafim não sabia como agir. Por um lado sentia que tinha que fazer qualquer coisa, no mínimo encaminhar as jovens, por outro, rendia-se à evidência da futilidade do acto. Eram crianças já viciadas que só com muito carinho, tempo, compreensão e amor contínuos poderiam revirar o rumo que suas vidas levava, e essas associações profissionais não existiam, a não ser a igreja. A guerra, que não era guerra, mas uma ausência da paz, o egoísmo perturbante dos que dirigiam, a acção dos que agiam na penumbra para manter a paz indefinida e o espectro da guerra nos corações, não levava a que os problemas sociais fossem resolvidos. Tudo era paliativo, remendo de suposto luxo em traje podre e irrecuperável.
“Amiguinho, vives então aonde? Deixa que a gente te ajuda, vamo cuidar bem de ti. Samo criança ainda, mas já temo coração de mulher”, voltou Martinha à carga.
“Não interessa onde vivo. Já viste em algum sítio um mais velho como eu, que pode ser teu avô, a viver com duas netas que não são netas e que pensam como vocês?...”
“Eh, deixa lá isso. Os mais velhos é que nos ajuda, e a minha irmã tem quatorze anos, ela pode então ficar contigo, eu fico só em casa para lh’ajudar”.
Serafim não soube se ria ou se zangava-se. A desenvoltura da criança, por um lado, dava-lhe vontade de continuar a conversa, jornalista que era, saber mais sobre as suas vidas, quiçá fazer um programa para a televisão sobre o drama das meninas de rua já que ninguém falava delas. Por outro, achava que mantendo o diálogo justificava a esperança das duas em encontrarem um abrigo, um apoio, um calor humano, que só seria legitimado para elas se o corpo fosse a moeda de compensação, o equilíbrio emocional no relacionamento.
“Há pouco disseste que tinham coração de mulher, sabem o que isso quer dizer?”, perguntou Serafim.
“Sabemo sim, nós já sofremo muito, mais que a nossa mãe que está morta. Samo criança, mas nossa vida é lutar, é não morrer, assim temo que aprender com o mal que nos segue sempre. Só nosso corpo é de criança, nosso sofrimento é de mulher”.
Contrita, enrolava as mãos uma na outra e foi assim que Serafim sentiu que Martinha falava a verdade. O nervosismo e a amargura envoltos no relembrar, no avivar da memória, nunca poderiam ser um jogo no consciente da criança. Por muito duro que estivesse seu coração, por muito empedernidas que estivessem suas emoções, haveria o momento, como agora, que revelaria o sangue a escorrer pela pétalas duma infância sofrida, verdadeiro e imolado.
“Olha amiguinho, os mais velhos nos abusam porque não temo onde ficar, nosso corpo tem então que ser a casa deles para nós comer e ter roupa, sapatos. Por isso temo que nos divertir e procurar um mais velho que cuida de nós, tu memo amiguinho, podes ficar com nós duas, estás sozinho. Vamo cuidar bem de ti, te cozinhar, lavar a roupa, minha irmã fica então contigo, podes dormir com ela”.
Um helicóptero da companhia petrolífera nacional sobrevoou o local, em direcção ao norte, aos campos da milionária miséria angolana.
“Minha irmã está falar bem, tem razão. O morteiro rebentou nossa casa, só nós escapamo. Memo nosso irmão caçula de um ano, só lhe encontramo um braço, o resto desapareceu, ficou tudo colado nas parede no chão. Depois, foi só fome e fugir. Foge aqui, esconde ali, alegria de viver só memo os cães é que encontravam, tanto morto pra comer. Hoje a gente quer é se divertir e encontar um mais velho que cuida de nós. Só memo um braga, os negro como nós é só para nos fazer de criada e nem nos dá nada”, ajuntou Joaninha.
“Mas o braga o que vos dá também? É tudo igual. Uns e outros só querem o vosso corpo e sobretudo porque são crianças. Vocês deviam estar é na escola, a aprender, a brincar com bonecas e não com homens...”
Ambas riram ao mesmo tempo, como se Serafim tivesse dito algo de anormal ou repreensível. Martinha deu-lhe um carinhoso soco no peito, divertida com a ignorância do braga. Este, não percebeu o riso trocista e franco das duas.
“Xê, não vives em Angola então? Escola? Boneca? Brincar? Amiguinho, nossa escola arrebentou, morreu quarenta e cinco crianças. Aprender é só memo andar na rua, a rua é que nos ensina a viver, e boneca?... Boneca anda aonde?”
Boneca anda aonde, perguntou-se a si mesmo Serafim? Caindo dos céus nas asas sibilantes dos morteiros, no morno embalar do fétido cheiro da guerra.
“Nosso coração já não aguenta boneca, brincadeira é aqui memo na água, no mar, na areia. A água, a onda é nossa brincadeira, nossa alegria, faz nos’quecer o resto. Quando temo fome, esses aí que estão a jogar com a bola é que nos dão de comer, mas depois temo que ir no contentor com eles. À noite vem a polícia, nos tira o dinheiro que ganhamo e temo também que entrar com eles. Só memo esses miúdo é que nos ajuda. Mas pra ter casa para viver, só memo com um braga”, disse Martinha com uma leveza e candura que o surpreendeu, já que sua angústia aumentava à medida que ia ouvindo o que lhe era relatado.
“Meu Deus, mas isso é mesmo verdade o que estão a contar-me?”
“O amiguinho pensa então que esta conversa é só pra t’engatar? A gente já viu que você é de cá, se estamo te pedir para viver contigo é porque você vive sozinho e nós pudemo te ajudar. Não queremo viver no contentor, levamo porrada, tem que dormir com este ou com aquele, as outras estão nos roubar. Não dá. Agora, em casa de braga, memo se é angolano, a vida é melhor e como o amiguinho não tem mulher...”
”Esqueçam isso de eu ter ou não ter mulher. Na minha casa ninguém vai viver, estão malucas?... O que posso fazer é tentar ajudar-vos, ver se consigo fazer alguma coisa, mesmo quando vocês próprias já me disseram que ninguém vos ajudou. Vou falar com o órgão que cuida da criança...”
Desataram a rir outra vez por causa da angústia de Serafim. Ou estava a gozar com elas ou então era maluco. Quem já viu alguém ajudar só assim à toa?
Retiraram-se para uma distância razoável e conferiram, entre risadas múltiplas, tendo chegado à conclusão que seria melhor deixar o braga em paz, não batia bem da bola. Estavam certas, pelo seu comportamento, que se o convencessem a deixá-las viver com ele acabariam por se arrepender. Esses bragas angolanos também são feiticeiros, e tudo nele indicava isso.
Lembravam-se ainda de ter ouvido, com espanto e maravilha, os mais velhos lá na aldeia contar como os soldados cubanos haviam engravidado os homens de Malange. E muitos desses soldados tinham ficado em Angola, quem sabe este não fosse um deles?”
“Tchau amiguinho, a gente vai já’ué?...”, acenaram de onde estavam.
Serafim olhou para elas e sentiu-se ludibriado nas intenções. Estiveram a gozar com ele sem dúvida, a fazerem correr as águas do tempo, pensou.
Encolheu os ombros e remeteu-se à leitura, com uma vaga e estranha tristeza no subconsciente

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


TEATRO EM ANGOLA


Seria redutor falar do teatro em Angola sem antes fazer referência a toda uma série de experiências ocorridas (e produzidas) nesse espaço geográfico que é Angola e que, de algum modo, introduzem no país essa disciplina artística na acepção em que ela é hoje universalmente conhecida.
Estão em primeiro lugar as representações religiosas feitas pelos missionários cristãos (jesuítas, franciscanos, carmelitas descalços, capuchinhos italianos, etc) nas escolas que desde os primeiros tempos da colonização foram espalhando um pouco por todas as principais localidades angolanas.
Se excluirmos a expulsão temporária dos jesuítas em fins do século XVIII e a de outras congregações em meados so século XIX, essas ordens cristãs puderam proliferar-se e difundir tranquilamente a sua mensagem religiosa, a qual, como é sabido, se fazia com muita frequência através da dramatização e teatralização dos “textos sagrados”.
Na sua forma laica, só em meados do século XIX, concretamente nas duas décadas compreendidas entre 1845 e 1865, encontramos referências precisas sobre um teatro em Luanda, pretexto de diversão e convívio mundanos das “elites” coloniais da capital. A imprensa da época é pelo menos tão pródiga em analisar as virtudes ou defeitos dos actores ou das obras quanto a descrever a assistência aos espectáculos.
Vários nomes podem ser retidos nesta aventura do teatro em Angola em meados do século passado. O advogado Ernesto Marecos, Domingos José Pereira e, em lugar de destaque (numa curiosa antecipação do projecto Cena Lusófona) o Dr. Saturnino de Sousa Oliveira, cônsul do Brasil e considerado “grande benemérito” na época das epidemias. Supõe-se que dirigiu muitas das récitas do Teatro Providência e, posteriormente, da Sociedade Dramática, tomando ele próprio por vezes parte na representação.
Regista-se com curiosidade que todos os espectáculos da época eram interpretados exclusivamente por homens, devendo as senhoras, mesmo na assistência, ocuparem uma galeria a elas especialmente destinadas. A própria diferenciação social imposta pela dominação colonial excluía naturalmente das salas de teatro a presença da maioria da população autóctone.
Cerca de cem anos mais tarde - alterada já a conjuntura social, económica e política da colónia com o aumento da população colonizadora e a adopção de formas mais sofisticadas de exploração e de manipulação das grandes massas angolanas - a situação teatral mantinha-se na sua essência praticamente idêntica.
A nível do teatro institucional, localizado sobretudo no teatro Avenida (ainda hoje é a única sala de teatro minimamente funcional da cidade), permanecia o gosto pela alternância entre o “drama” e a “comédia”, embora não necessariamente associados numa mesma sessão, como no século anterior. A par de algumas tentativas isoladas que iam tentando lançar as raízes de um teatro de confecção local, o grosso das produções era constituído pelas “revistas musicais”, “melodramas” e “boulevards” importados da Metrópole.
Falar do teatro angolano propriamente dito também nos obriga a uma breve incursão pelo passado, em primeiro lugar para tentarmos apurar se alguma vez existiu um teatro angolano tradicional. Pessoalmente estou convencido que não, embora modernos investigadores, dentro e fora de África, tenham cada vez menos relutância em caracterizar como teatro certas manifestações artísticas dos povos africanos que envolvem numa expressão totalizante o gesto, a mímica, a dança, o ritmo e o ritual.
De facto, mesmo admitindo que existem de facto dramatizações teatrais nas grandes liturgias e manifestações rituais e mitológicas, do passado e do presente, tanto em Angola como na África em geral, essas formas de teatralização não podem, a rigor, ser caracterizadas como teatro.
Isto porque apesar da grande importância dada já à encenação, ao jogo e à representação, e apesar de todas as suas formas expressivas, miméticas e lúdicas cumprirem também uma função teatral, essas manifestações culturais não fazem ainda uma clara distinção entre o que é representação e o que é vivido litúrgico (como nas cerimónias de entronização ou de luto).
Basta atentar, por exemplo, para o que acontece entre os Mundombe, que habitam a região Ndombe Grande, a Sul da província angolana de Benguela. Entre eles é possível, durante uma cerimónia fúnebre, fazer-se a identificação do grau de parentesco com o morto apenas pela maneira como cada um chora ou manifesta o seu sofrimento.
Há, portanto, uma espécie de pauta formal prévia, do conhecimento e aceitação de todos, de acordo com a qual cada um expressa os seus sentimentos verdadeiros. Pode, pois, dizer-se que esta atitude implica uma cera teatralização (uma vez que há uma clara representação segundo um esquema pré-estabelecido), sem que haja propriamente teatro (porque o que está aqui em causa é a expressão de uma dor real).
Nem mesmo aquelas formas expressivas em que a teatralização prevalece sobre o litúrgico (as danças colectivas, os cultos de possessão, os ritos de passagem para uma classe cultural, etc) podem ainda ser definidas como teatro, em razão da sua (ainda) acentuada evocação do sagrado ou da sua função predominantemente mágico-religiosa.
O que podemos mais facilmente admitir é que efectivamente todas essa manifestações culturais e outras tradições africanas (as recitações poéticas, os mimos, as narrativas orais, as danças miméticas, as procissões de máscaras, as marionetas, etc.) são o fermento e o material de base a partir do qual se poderão atingir formas teatrais mais elaboradas e que respeitem as leis (em si bastante flexíveis) de estruturação cénica e de dramaturgia universalmente aceites.
Os primórdios de um teatro vamos começar por encontrá-los na literatura e em três experiências concretas ocorridas antes da Independência: a primeira nos bairros suburbanos de Luanda nos anos 50/60, a Segunda em bases guerrilheiras no Leste do país no início dos anos 70 e a terceira nas escolas da capital imediatamente antes da Independência (1975).
Antes de 1975, no entanto, o inventário superficial deste tipo de literatura inclui apenas mais alguns nomes, entre os quais se destacam António Van-Dúnem, Armando Coreia de Azevedo (A Taberna, Muii) e Domingos Van-Dúnem (Auto de Natal), entre outros cujas obras (nunca editadas em livro) dormitam em arquivos privados ou se perderam irremediavelmente.
É por essa razão em experiências teatrais concretas que temos de encontrar os elementos de caracterização do incipiente teatro angolano. Em primeiro lugar na actividade dos grupos Gexto (sigla do Grupo Experimental de Teatro) e Ngongo; nas dramatizações dos grupos carnavalescos Cidrália, Invejados, Fineza, Kabetula, Kazacuta e Kabocomeu, e também no “teatro dos pioneiros da guerrilha”.
O Grupo Gexto (registe-se mais esta antecipação do projecto Cena Lusófona) foi criado nos anos 50 à imagem do grupo brasileiro Teatro Experimental do Negro, de que Abdias do Nascimento é o líder e o jornal Quilombo o órgão divulgador e, entre os seus animadores, encontram-se os já citados António e Domingos Van-Dúnem e ainda Gabriel Leitão, tido como um humorista de “potencialidades ímpares”.
O Grupo Cultural Músico-Teatral Ngongo nasceu em Outubro de 1961 na Liga Nacional Africana (associação cultural que na época servia já para encobrir actividades nacionalistas) e a sua estreia ocorreu em Agosto de 1962 com a peça em três actos Muhongo-a-Kasula, adaptada de um conto extraído da obra Ecos da minha Terra de Oscar Ribas.
A principal característica deste grupo foi concentrar no seu seio um grande número de compositores, músicos, coreógrafos, actores, autores, poetas, declamadores, dançarinos, vocalistas e arranjadores, o que lhe permitiu explorar vias originais e desenvolver uma múltipla actividades nas áreas da música tradicional, da música popular urbana, do teatro, da dança, da poesia e da declamação.
De 1962 a 1966, ano em que virtualmente desaparece “por razões Conjunturais” (sic), o Ngongo realizou centenas de espectáculos diversificados, com uma sucessão regular de temporadas artísticas que chegavam a durar vários meses, tanto na capital como no resto do país e mesmo no exterior. Foi, por exemplo, considerado em Portugal o “melhor grupo de África” de 1965.
Alguns anos mais tarde, concretamente em 1972/73, e ao contrário do Ngongo, que sempre desenvolveu a sua actividade para um público urbano e suburbano, alguns militantes do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), tentavam, com fins pedagógicos, uma interessante experiência de teatro com crianças nas zonas rurais onde se desenrolava a sua acção guerrilheira, experiência essa que ficou conhecida como “teatro de pioneiros na guerilha”.
No teatro pós-independência, a primeira e necessária constatação que se impõe é a de que o teatro angolano feito depois da independência é irrelevante como fenómeno cultural e inexiste ainda enquanto realidade efectiva e estruturada, continuando a pertencer ao domínio da utopia a política cultural que eventualmente poderia ter sustentado a sua eclosão e desenvolvimento. Para o demonstrar basta talvez afirmar que não existe até hoje no país uma única companhia profissional, com sala própria e reportório regular.

José Mena Abrantes

A SONHAR SE FEZ VERDADE - CONTOS JUVENIS


O CACIMBO


Cedinho pela manhã, quase como sempre, enveredei pelo carreiro molhado que me conduzia à figueira brava. O frio apressava-me os passos e obrigava a que encolhesse os ombros, esticando os braços ao longo do corpo.
Tinha eu então nove anos e vivia a idade mágica do mato na qual, o caçador terrível que me suponha, fisga pendendo do bolso traseiro das calções remendados, kalubungu amarrado à cintura num cinto improvisado, partia para a matança magnífica das rolas matinais.
O capim, húmido das lágrimas nocturnas dos ndoki vadios, bordejava o estreito carreiro que aportava à lavra junto à qual se impunha a árvore sonhadora que me prendava quase todas as manhãs com uma sinfonia estrondosa de cru-crus, tchuin-tchuins, tfris-tfius, miriades infindáveis de cantos de aves.
Ao aperceber-me do bando de rolas encoleiradas do preto da dor, tive a deleitosa certeza de que, mais uma vez, sairia vitorioso da batalha que almejava. Por desejo meu, nem filho delas sobraria para cru-cruar seus óbitos tristes à floresta acolhedora. A pedra partiria, do cabedal entesado da fisga, certeira, tiro sibilante após tiro, o chão povoado de cadáver castanho emplumado, um após o outro.
Tinha eu então nove anos de feitiços e artes que hoje miseravelmente não possuo.
Tal era a minha insaciabilidade e a minha coragem, já que cedinho, de madrugada, os ndoki transformados em cobras e onças, ainda não tinham fugido para as moitas, à espera do incauto. As rolas tudo me faziam esquecer, uma única que matasse, pesava nos meus sonhos tanto quanto quarenta nduas arco-irizadas e outros tantos khende-khende enforcados nos laços invisíveis quando vinham debicar o barro preparado com sal, mais às perdizes laçadas nas sebes que protegiam a lavra.
Assim, apressava o passo, as rolas não esperam o preguiçoso, ou será o correr pela mata fora, nunca as alcançando, em seus voos de pau em pau. Esforçava a não intrusão de pensamentos maléficos à mente, os latidos dos cães na senzala cada vez mais distantes, quando o Cacimbo, tata Bangala, vindo não sei de onde, desceu sobre mim inesperadamente em abraço envolvente. O silêncio nasceu da árvore, da pedra e das penas de sumaúma que pendiam ao compasso do grito do cucu. Falou-me e tremi de medo, pensando que morreria e em breve estaria nos braços da sereia, bem entre as pedras e areis do fundo do riacho. Meus pés não ousaram dar mais um passo que fosse, invadido que me sentia dum canto doce, duma melodia de fascínios, em rendição total àquele que se me revelara não inopinadamente.
- Não temas, criança da esperança, sou a origem do rio, a consciência mandada dos antepassados, aquele que te ensinará os rumos do porvir-
E pasmado que fiquei!
Nunca antes ouvira tal voz, conhecera tal amigo, ainda que tudo em mim fosse animado e irrequieto. Naturalmente estendi os braços e acaricei mos meus dedos de criança o novo companheiro. Escorria-me entre as mãos e seu bafo meigo penetrava em todo o meu ser. Abri a boca no mais largo dos sorrisos de gratificação que, perdendo-se nos ares, foi o beijo albergador de toda a selva, o ósculo risonho das aves, o trovejar surdo dos punhos cerrados dos gorilas desflorando a virilidade de seus peitos cabeludos, o cacarejar agudo das galinhas do mato, os guinchos ensurdecedores dos macacos, os saltos acrobáticos e silvantes dos veados e das seixas. Agarrei tudo isso na minha felicidade e alegria e encarcerei-o para sempre no pensamento e na mente, prisioneiro do meu egotismo, escravo da minha razão de ser que, quando na viração do café no terreiro, olhava com inveja para a bicicleta amarela de ferro na qual o menino roceiro passava rolando em zigue-zagues da vaidade. Rolando, horas sem fim.
E nas noites de calor e luar, lá estava eu:
- Meu pai, porque não posso ter uma bicicleta assim?
E meu pai coçava um pé no outro, cuspia por entre os dentes nas mãos, como que arrefecendo qualquer pensamento.
- Ai filho meu, sempre a mesma pergunta! Será que ainda não compreendeste que nunca te poderei comprara uma bicicleta assim?
- Como não podes, meu pai?
Eu sabia, sem querer saber. Compreendia, sem desejar compreender. Digam-me, como poderia aceitar tal argumento quando já o observara fazer e executar outras coisas bem mais difíceis e inimagináveis? Uma vez vi meu pai, na sua cólera contra o roceiro, levantar o camião abarrotado de sacos de café e, tal uma pluma de viuvinha, projectá-lo contra o casarão da roça, tudo ruindo estraçalhado. O roceiro, ignóbil escaravelho, esperneava de fúria no chão lamacento e as andorinhas azuis desciam em voos razantes, arrancando-lhe os cabelos um a um. O milhafre enterrava as garras no ventre adunco e saia voando com as tripas purpúreas para alimentar as crias.
Se meu pai podia maravilhar-me com gestos assim, porque não poderia comprar-me a bicicleta?
- Como?- perguntava ele.
Para lhe mostrar que o que bastava era só desejar, me eis logo com a mais linda das bicicletas, não amarela, mas sim vermelho vivo, a cor da liberdade.
Quantas noites, à luz ensolarada da lua cheia, não os maravilhei em atravessando o terreiro do café, em enveredando por picadas anónimas que me conduziam aos mais recônditos dos desejos e lugares, tacteando a vertigem da velocidade? Fugava veloz na trilha dos meus desejos, das minhas revelações, montado na bicicleta avermelhada, o filho do roceiro desfazendo-se na inveja que o consumia. Sabia-me invencível, o dono da terra que pisava, atraía-me a força dos avós infindáveis. Porém, nos intervalos das escapas aos sonhos, cansei de pedir, cansei de chorar pela almejada e inacessível prenda.
Compreendem agora porquê esse meu riso a tata Bangala, no amplexo ao novo e fascinante amigo, albergou toda a selva?
- Não temas criança da esperança- ressoou de novo nos meus ouvidos- sou a consciências dos antepassados agora renascida, dá-me a tua mão e vem descobrir o que trás já ficou e o que para a frente falta. Vem comigo ao berço da luz.
Não duvidei por um momento. Como ousaria? Estendi a mão e fui elevado aos píncaros de uma mafumeira, que de alta nunca imaginara poder existir. Talvez estivesse tão cerca das estrelas, que se esticasse o braço colhê-las-ia, tal minha mãe colhia as laranjas raquíticas e solitárias da laranjeira, ao fundo do quintal do casarão do branco.
Por momentos pareceu-me estar a duvidar do que me acontecia e, assim, indaguei ao novo amigo como poderia alguém ser tão alto quanto ele, que ali me elevara pela mão?
- Quando se é toda a História de um povo, como tu o és, quando um ser representa todo o sofrimento e humilhação de um continente e os deseja revelar, como eu o sou, tem que ser o que sou.
Ai coitado de mim!
Por fim, adormeci nos seus braços, num ninho de enorme de mbemba, nos últimos ramos da mafumeira. Vi a ngana Lua acariciar-me e beijar-me o rosto. Quando pressentiu que eu estava a adormecer, num sopro apagou as estrelas, pirilampos eternos dos céus, espíritos dos que partiram morrendo em terras alheias, vagabundos do destino à procura do lugar que lhe pertencera em vida. A meio da noite despertei esfomeado e, ao simples constatar, o Pensamento trouxe-me um balaio cheio de iguarias onde, a rir de prazer, meti as mãos e retirei-as cheias de mandioca assada.
Que alegria!...
E seguidamente, de jinguba, oh tanta e tanta, milho torrado amarelento, banana pão aquecida de castanho ao rubro. Que pena que todas as crianças do mundo não pudessem saciar sua fome da maneira que eu o fazia. E tão repleto fiquei que, ao encostar a cabeça no rebordo do ninho e ao colo da Lua, mal me apercebi do Sono, Tata Kilu, a convidar-me para me deslocar ao seu kimbo, desejava que sua vasta família me conhecesse Disse-me que havia que partíssemos ao pestanejar do momento. E fomos, mais céleres ainda, sentados no lombo do javali-mor, cinza mel de cor, na boca do qual flamejavam oito dentes pontiagudos em forma de garfo. Galopamos sobre o pântano de lama até entrarmos numa mata frondosa de árvores gigantes que albergava, num labirinto de música e cor, o seu kimbo.
É verdade, como me lembro tão docemente que mal o javali-mor parara, milhares de crianças, umas alegres e sorridentes, outras tristes e carrancudas, par nós correram em jamais vista algazarra. Tata Kilu ergueu o báculo e todos, como que por magia, logo silenciaram.
- Trago-vos hoje um visitante a fim de que com alguns de vós participe de vossas viagens aos reinos do bem e do mal, da fantasia e do pesadelo. Tratem-no bem.
As crianças, que afinal vim a saber serem os Sonhos Bons e os Sonhos Maus, filhos do Sono, em batuque de arrepiar, levaram-me para o banho da purificação que me renderia gasoso e veloz tal o pensamento pensado. Antevia, pois, com incontida emoção, a viagem através das transparências dos desejos e segredos dos outros. Que viria a descobrir, que veria eu?
Logo após o banho, trouxeram-me de comer –outra vez, pensei admirado?- pitéu farto dos deuses, manjares de águas cristalinas. Folhas de mandioca rutilantes, gafanhotos diáfanos fritos, jinguna de asas opalinas que ainda esvoaçavam sôfregas para a vontade de liberdade. Maboques amarelos, gajajas perfumadíssimas e, para culminar, duas cabaças repletas de leite azedo e mel de mil abelhas enfeitiçadas, tão doce e espesso era.
- Agora está pronto para a viagem, para a jornada- disse Tata Kilu- já estendi o meu manto sobre metade do Mundo e os meus filhos partirão agora para o reino das
trevas, há muito que fazer. Por onde desejas começar, dou-te esse privilégio?
Como nunca antes crera ser possível entrar em qualquer sonho que não fosse o meu, constrangi-me momentaneamente.
- Desejo ver o meu pai, o meu avô e a nossa casa.
Não acabara de falar a última palavra e já irrompíamos vertiginosos o espaço, à garupa de um raio trovejante. Não contive o espanto e a alegria. Meu pai, sentado num banco, com o meu avô ao lado, seu pai. Entre eles, uma cabaça de marufu e um cestinho com jinguba torrada. O velho ancião, o avô, fumava um cachimbo tão gasto quanto ele, a minúscula brasa ardendo em cima. Sua cabeça era branca como a fuba kindele e suas barbas eram pernas longas da ágil aranha, entrançadas a perder nas agruras dos anos escravos, jingongo, malamba.
Por fora da casa, e encostada à parede de barro seco, uma bicicleta encarnada nova e reluzente. Não queria acreditar no que via! Seria que, sentado ali no ninho de mbemba, sonhava eu que meu pai me comprara a bicicleta, ou era ele que sonhava que a tinha comprado para mim? Em que sonho estava eu? Em pânico procurei pelo companheiro que me trouxera, mas já lá não estava. Seria então o sonho do meu pai, certamente.


O velho avô acenou para mim e da sua alva carapinha saltitaram estilhaços de fogo azul, pensamentos metaforizados no espaço, o seu amor pelo neto.
- Para quem acenas, senhor meu pai?- perguntou meu pai, alegre e curioso.
- Para o meu neto que ali vejo vir- respondeu o velho avô- . Descubro a felicidade em seu rosto, por certo que descobriu a bicicleta, reconheceu-a.
Deixei-me cair, leve tal um sorriso de sumaúma, ao lado da bicicleta. Entrei a pressa na casa, saudei o meu avô e ajoelhei-me aos pés do meu progenitor, pousando ele suas mãos em minha cabeça, em sinal de benção. Afagou-me, e suas palavras forma mais doces que mamão.
- Vai, meu filho, vai andar na tua bicicleta.
Oh ventos, oh aves, era só ver-me! Ufano, o mestre rei das bicicletas! Saí voando, transpondo montanhas, competindo nas savanas e nas florestas com o ngulunu e com o leopardo. Nos rios de toda a África, os bagres e os sapos pasmaram das minhas proezas, enquanto os caranguejos volteavam as pedras opalinas em suas correrias, para melhor me perceberem no ápice do relampejo.
Meu pai, agora já na sua esteira, contemplava embevecido o prodígio que gerara. O velho avô abanava, desacreditando, a alva cabeça sobre a qual uma leva de borboletas dançava seu batuque em ritmo alucinado.
Inseguro, outra vez na garupa do relâmpago, maldisse o momento que tudo esvanecera. Meu avô, meu pai, a bicicleta. Olhei para o companheiro e estarreci. A cara alegre e jovial do Sonho Bom, fora substituída pela carranca de seu irmão Sonho Mau, o esgar do pesadelo, que escorrega pelas noites contorcidas de todos.
E quem era então aquele velho que ora descortinava, curvado sob o peso de um latão de água, mal podendo caminhar? Insisti na olhada só para nela reconhecer meu pai, castigado pelos árduos anos da vida, tão velho e gasto, ainda labutando. Assustei-me, cerrei os olhos, socorri-me em vão na angústia, mesmo se o que tivesse que ver já assim o fora determinado. Recusei e recusei, procurei pelo Sonho Bom, olvidando que era no Mau que me encontrava.
E assim, vi meu velho pai deitado na tarimba de sua cubata de tamanhos tímidos. Era madrugada na roça. Apenas o alvor celestial se esboçara, já o galo rompia as brumas teimosas, atirando para as senzalas vizinhas o estridente grito despertador, em sua voz de falsete. Meu pai, ainda me admirava de o ver velho, tossia em voz rouca e remexia-se, sabendo que, logo de seguida, teria que abandonar o prazer do repouso e do cobertor esfarrapado, para badalar o sino, um troço de linha férrea pendurado ao fundo do secador de café. Badaladas agudas que obrigavam os cães a latir e uivar desmedidamente.
A rapsódia da vida diurna iniciava. As senzalas acendendo ao quotidiano, os acampamentos gemendo dos gritos e palavras alegres dos contratados afiando suas catanas, no desenrolar de um destino inconsciente.
Estranhava sentir todas estas emoções, como que se já as tivesse vivido, apalpado. Hoje, sentado na escrivaninha e compondo este conto, ao relembrar os acontecimentos, tenho a noção nítida de que as emoções que experimento se devem à imaginação pura da infância e ao poder de criar e escapar do peso angustiante que a natureza, a floresta, empurrou sobre a mente infantil. Relembro a magia cristalina da inocência, que lhes dava sopro e calor, feita deusa criando novas vidas. Só mais tarde, no desvirginar da poesia, no crescer, no apagar do sopro escorregadio do vento farfalhante nas folhas das palmeiras, percebi a angústia daquilo que já não mais volta, badaladas num ferro pendurado, que desfalecem uma após uma, cada uma levando, então, o anúncio de vida a centenas largas de pessoas adormecidas.
Nessa altura, era então o trajar da selva com todos seus sons, em vaidade não controlada e irremediável, da qual me enamorei louco perdido., derretendo-me feito água em seus braços verdes libidinosos, a minha amada, o meu ar respirado.
Meu pai dirigia-se após, para o quintal do casarão, reacendia o fogo adormecido e no qual ferveria a água para consumo da família do roceiro. Atados a uma palmeira, dois enormes macacos saudavam-no colericamente em guinchos horripilantes, o ódio ensinado e atiçado diariamente para que não houvesse negros no quintal. Assim era a vida, ou talvez assim fosse a morte, onde até aos animais se incutiam as diferenças de castas, as disparidades epidérmicas, os desníveis sociais, enfim, todos os declives que conscientemente o ser humano escolhe para separar-se um do outro, irmão contra irmão. Como se a terra não nos devorasse por igual, como se a fogueira dantesca não nos carbonizasse sem parcimónia, no derradeiro adeus mundano. Quem não responde ao chamamento dos antepassados? Quem?
Novamente senti um profundo calafrio, consumido em cataratas de incertezas no meu desamparo, e desejei regressar ao meu ninho de mbemba, envolto no bafo de nga Lua e da paz benigna, nos braços aconchegantes de tata Ngna Kixibu.
Num último e tímido relance de olhos, o futuro esculpiu-me em segredo de desconfiança, um cadáver banhado em poça de sangue rubro, desenhou-me a pinceladas grotescas a brusquidão das mulheres rebolando na cinza amontoada, fundiu-me nas crateras inimagináveis do ódio milhares de panos multicoloridos e cabelos arrancados em uivos de desespero, óbito inaceitável.
Estonteado, fugindo ao pesadelo que sabia ser verdadeiro, compus uma sinfonia de urros e guinchos dos macacões, e ordenei ao charco de sangue que se erguesse para que lhe desse forma humana, forma do Homem, montanha de sofrimento, no qual talhei a cutiladas trágicas o rosto do meu velho pai., lata de água na cabeça, escultura perene e inolvidável, tombado entre os macacos de dentes afiados, pingando sangue quente, o aroma do sacrifício para um quintal livre de pretos indesejáveis.
E no ápice do renascer, no momento da tomada de consciência, eis-me o raio decepador, o paladar da justiça no porvir.
Nas palmeiras do quintal os pássaros saltitam em dança frenética e cúmplice. Nos céus ameaçadores as nuvens escondem a pressas o sol para que não veja o tiro partir da pistola do roceiro e a bala a penetrar-me profunda na coxa, enquanto a longa jornada do velho começara inopinadamente, o caminho verdejante para o fundo da lagoa era extenso, os macacos afiavam ainda os dentes em seu corpo inerte.
E eu? Caído no quintal, a olhar para a ferida sangrenta na coxa, com a catana ainda segurada na mão, sabia que também deveria partir para outra viagem.
- Ekué, Ekuá!... muana’etu wa fuidi- choravam olhando para mim as duas lavadeiras.
O vento soprou exausto, senti sua ligeira carícia no ombro. Olhei e dei de caras com Tata Kilu, em seu kimbo.
- O dia ameaça levantar-se, vais regressar ao teu ninho e a peneira das estrelas do esquecimento passará sobre teus olhos e vendá-los-á até ao momento do acontecimento, como deve ser.
Já o sol brilhava quando despertei, fresco e excitado.