CHIKAKATA MBALUNDU
Ao distinguir com Menção Honrosa este romance de estreia, “Cipembuwa”, o
júri do Prémío Sonangol de Literatura, em 1986, pretendeu dar a conhecer uma
voz diferente no panorama da mais jovem produção literária angolana.
CIPEMBUWA
Anoitecia.
O manto negro cobrira há pouco a amplitude telúrica. A cor rubra do sol
subsistia em reminiscência no meu olhar incandescido pelo reflexo solar diurno.
A
cidade deveria estar a recolher.
Uma
quietude imponente começou por assolar o hospital. Os passos das enfermeiras de
piquete ressoavam com maior intensidade.
O
meu olhar espraia-se pelo compartimento hospitalar, onde me acho internado.
Sinto-me manietado em todos os meus gestos. As ligaduras, tal como uma múmia
egípcia, cobrem o meu crânio, tronco, braços, inclusive a perna direita que,
erguida, baloiça no espaço, suspensa sob o meu olhar apreensivo.
Todavia,
à medida que os factos vividos, cinco dias atrás, perpassam, reproduzindo-se em
minha mente, consciencializado-me, cada vez mais, das eventualidades
susceptíveis de se interporem em nossas vidas.
Trazer
à tona da consciência tais factos é visualizar a tarde de sol dominical em que
passeávamos pela cidade juntamente com um grande amigo de infância. É relembrar
o gesto e o grito de aflição, misto de susto e surpresa, quando um camião se
abateu, acidentalmente, contra nós. Recordar estes factos é vivenciar a
estupefacção de me reencontrar desperto num local inesperado: o hospital, numa
mescla de odores peculiares a estes lugares.
Foi
precisamente neste instante que o vi entrando. Vinha acompanhado por duas
enfermeiras. O que prendeu de imediato a minha atenção foi a falta do braço
direito. Era perfeitamente visível a sua ausência, do ponto onde me encontrava.
Nem
o uniforme hospitalar que trazia conseguia encobri-lo
Do
braço amputado, dirigi o meu olhar para a sua expressão compungida, dolente,
apagada, legível em seu rosto. Era alto e estreito. Nem as vestimentas
desmesuradamente grandes eram capazes de iludir o seu corpo.
Ficou
postado à beira da cama. Antes que o fizessem deitar-se nela, que era paralela
à minha, observei que passara vários dias deitado. Tinha uma cabeleira farta e
despenteada.
De
tanto de se deitar dum lado, o lado esquerdo era desproporcional ao direito,
visto de perfil. O queixo relativamente ovóide emparelhava-se perfeitamente com
o seu nariz achatado. As olheiras próprias de alguém que usara óculos faziam
sobressair uma expressão escancarada.
Sonolentamente,
com um certo esforço, remexia as pálpebras. Não obstante isso, constatei de
imediato que possuía uma personalidade forte.
Agora,
que o vejo sentado na cama, com a cabeça inclinada e com queixo ovóide roçando
seu peito, apercebo-me que as suas profundas olheiras não eram devidas ao uso
de óculos, mas sim à dor que o carcomia. Este facto é perfeitamente observável
no emagrecimento das faces que acentuam e fazem sobressair os olhos faciais,
dando a impressão de ser uma caveira.
O
seu empalidecimento denotava claramente que deveria sofrer de uma anemia
profunda, ou de outro flagelo devastador.
Deitado
sobre o seu único braço, o esquerdo, mantinha o semblante direccionado para
minha cama. Com os olhos fechados, esboçava com as pálpebras um leve torpor,
que se consubstanciava numa espécie de espasmo visual. Mesmo dormindo, sofria.
Imerso
em interrogantes sobre o que se teria passado com o meu novo companheiro de
quaro, abstive-me de pensar no desastre que atravessara a minha vida.
Deveria
ser para além da meia-noite quando o silêncio do nosso quarto foi quebrado
pelas lamúrias aflitivas e lancinantes emitidas pelo companheiro. Como se
alguém o estivesse sufocando, acompanhava os gritos com movimentos e
gesticulações caóticas. Tudo mostrava qual a intensidade e a amplitude do
flagelo que o atormentava.
Correndo,
duas enfermeiras entraram abruptamente no quarto.
Uma
enfermeira baixa, gorda, tentava manietá-lo, enquanto que a outra tratava de
aplicar-lhe uma injecção.
O
antídoto deve ter-lhe feito bem e acalmado o seu tormento e aflição. Passado
uma hora, tentava excitadamente travar um diálogo comigo. O meu silêncio fez
esmorecer o seu ânimo.
Perguntou-me
se as ligaduras que me envolviam construíam um óbice para escutá-lo. Abstive-me
de responder, pensando que estivesse delirando.
Posteriormente,
depois de breve silêncio, insistiu no seu projecto, imprimindo uma entoação de
tristeza na voz.
Aquiesci
com ligeiros movimentos da cabeça. De facto, é difícil recusarmo-nos a escutar
alguém que numa expressão compungida diz-nos querer falar e não ter a certeza
de resistir por mais de umas escassas horas.
Meticulosamente,
pôs-se a falar. Dir-se-ia que falava para si. Não se importava com atenção que
eu poderia manifestar. Tive a impressão de que se desgastava numa verbosidade
insurgente, como se pretendesse descarregar um pesadelo fardo que o
atormentava...
A
mulher, ligeiramente estonteada, lançou-se apressadamente contra uma árvore que
se encontrava no centro da lavra. A azáfama laboral interrompeu-se subitamente.
Abraçou-a com as duas mãos, até sentir o encaixe dos seus dedos à volta do
diâmetro do tronco. Como resposta do contacto do seu rosto contra o caule
escuro e rugoso, sentiu, sentiu um arranhão. Afastou o rosto, lançando
dolentamente as mãos à cabeça, onde se desenhava um penteado ndondi (1)
Transcorridos
uns segundos, achou-se cercada por outras mulheres que aí labutavam. Todas
sustentavam em suas mãos etemo lymbundo
(2) que, perante o acontecimento,
lançaram abruptamente ao chão húmido salpicado por vermes e insectos coveiros.
Num gesto que denotava, clara e visivelmente, temor, saíam em socorro de sua
companheira.
O
homem, numa lassidão mesclada por uma expressão de compreensão sobre o que
passava, lançou a enxada de cabo alongando ao solo. Com as mãos sobre as ancas,
não se precipitou. Não correu. Não entrou em pânico. Simplesmente, concentrou o
seu olhar nos carreiros, onde há pouco a sua mulher ia, paralelamente,
disseminando a rama de bata-doce e ele ia soterrando com grandes punhadas de
terra húmida e vermelha.
O
homem não se dirigiu para local onde se encontrava a mulher, com o rosto
congestionado pela dor e perlado de suor, que se agitava estendida no solo, sob
o olhar complacente de suas companheiras.
O
homem afastou-se. As mulheres amparavam a sua mulher.
Imerso
em cogitações, dirigiu-se à lavra vizinha. Distava da sua uns cem metros.
Grandes jorros de água tinham caído na véspera. O solo exalava fortemente um
odor a lama que impregnava as suas narinas.
Chegou
à lavra vizinha. Lançou um olhar perscrutador sobre as mandioqueiras
recém-espetadas no solo. Não avistou ninguém. Afastou-se daí, dirigindo-se ao ocimbadi (3) situado no centro da lavra, onde estava a anciã que separava os
ramos bons dos maus, colocando as mandioqueiras com este aspecto à sua direita
(1) Penteado simples de duas tranças ou
mais.
(2) Enxadas próprias para mulheres, de
cabo curto e sob a forma de V.
(3) Porção de terreno liso e duro, feito
pelo salalé.
Ao
escutar o estalido seco de paus a serem pisados, esboçou um gesto impulsivo que
fez cair a quinda colocada próximo das suas costas.
Ao
encarar os olhos apreensivamente brilhantes do homem, pôs-se de pé num salto.
Seguindo atrás do homem, acompanhou-o.
Não houve qualquer troca de palavras.
A
sua mulher já não se encontrava na lavra.
Ao
chegar a casa, o homem isolou-se, internando-se no interior da cubata. Na
tépida penumbra da cubata feita de pau-a-pique e coberta de capim, pôs-se a
aguardar.
A
anciã abandonou-o mal se apercebera da ausência da mulher. Decididamente,
embrenhou-se pelo matagal que circundava a aldeia. Deixando atrás de si mulembas,
mangueiras e bambus, deu de frente com uma lavra. Na berma, sobre as raízes á
superfície de uma árvore de proporções avultadas, encontrava-se sentada a
mulher.
Transcorrido
um espaço de tempo indeterminado, o homem viu, através da porta de dimensões
exíguas, dois vultos a aproximarem-se sorrateiramente. Espicaçado pela
curiosidade, tentou levantar-se. Algo, em seu íntimo, disse-lhe que continuasse
naquela posição: sentado à lareira.
Uma
angústia aterradora e penetrante apertava-lhe o coração. Tentado atenuá-la,
olhou à sua volta: o tecto enegrecido pelo fumo da lareira; as maçarocas secas,
para semente, pendentes do tecto, tal como estalactites, achavam-se de igual
modo enegrecidas; a s três grandes panelas de barro, com os bojos salientes,
colocadas no canto da cubata, donde advinha um ruído seco, aquoso, tal como o
bater das águas sobre uma pedra. Era o ocimbombo
(1) em fermentação
Todas
essas imagens insurgiam-se contra ele, sentado no olumbambo (2), sem no
entanto possuírem algum poder de o distrair e tirá-lo de sua apreensão.
Viu
a anciã aproximando-se. Entrou na cubata. A sua mulher achava-se distante,
sentada e perdida na invisibilidade da obscuridade nocturna. Ao confrontar-se
com a configuração do corpo encurvado e carcomido da anciã, procurou com o seu
olhar inquiridor, ler e apreender todos os gestos susceptíveis e capazes de lhe
dizerem algo.
A
anciã passou ao seu lado, sem se importar com ele. Dirigiu-se ao canto da
cubata. Era no mesmo local onde se achavam as grandes panelas de barro em
fermentação e com os bojos salientes. A anciã saiu daí com uma cabaça aberta na
extremidade.
O
nó que lhe apertava a garganta, a angústia que lhe pressionava o coração,
foi-se dissipando paulatinamente. Um sorriso de satisfação desenhou-se no seu
semblante. Compreendeu, naquele momento, que a sua mulher tinha dado à luz um,
rapaz. Na verdade, a cabaça onde se achava a placenta repousava fora da cubata, na fronteira de demarcação entre o
tecto de capim e a parede.
A
esteira foi estendida entre o olumbambo e as panelas de barro. A sua aspereza
peculiar fora atenuada com folhas de ongonguila. Por cima achava-se estendido
um pedaço de tecido encardido.
A
mulher dificilmente continha a sua dor. Foi deitada juntamente com o
recém-nascido.
As
chamas, sob labaredas ígneas, iluminavam todo o compartimento. Sob o clarão
avermelhado, o homem olhava, como que hipnotizado, a mulher
e a criança aconchegada no peito
da mãe. Estava assim tão absorto que não deu conta das mãos rugosas e calosas
que, respeitosamente, o afastavam. Voltou a sentar-se no olumbambo, lançando o
olhar em todas as acções da anciã: carinhosamente, separou a criança da mãe,
deitando-a com a face para o tecto. Meticulosamente, ingeriu uma grande
quantidade de água morna, que repousava numa pequena tigela de barro. Em vez de
engoli-la, pôs-se, ritmicamente a lançá-la em jorros sobre o corpo da criança.
Tudo era feito num ímpeto e numa sofreguidão desenfreada, como se naquela água
estivesse o mistério da existência. Chorando aos gritos, a criança reagia
contra o processo a que estava sendo submetida.
Dividido
entre as lamúrias aflitivas da mulher e as acções da anciã, o homem viu-se na
(2) Bebida alcoólica.
(3) Superfície saliente dentro duma cubata, que serve para vários fins.
obrigação
de sair da letargia que o envolvera. Segurou a criança pelos sovacos. Teve, de
imediato, a impressão de que segurava um rato. Manteve-a assim suspensa. A
mulher idosa tirou de seus haveres um fragmento de trapo húmido. Decididamente,
e orientando-se por uma saliência rota na extremidade, fez uma tira que amarrou
no lombo da criança. Voltou a deitá-la ao lado da mãe. O corpo untado com óleo
vegetal e as labaredas da fogueira.
Uma
vez mais, a anciã inclinou-se para poder transpor a porta de dimensões exíguas
e saiu. Deu nus passos para o interior da aldeia. Quando antigiu ao centro.
Pôs-se aos gritos: ULÚ, ULÚ, ULÚ, ULÚ. A velha batia compassadamente com as
palmas da mão contra os lábios. Os gritos ressoavam cada vez com maior
intensidade, propagando-se a toda a aldeia.
O
homem sentiu-se enlevado pela alegria que o avassalava e o sentimento de
paternidade que em si fervilhava. Com os olhos a irradiarem luz, inclinou-se,
ajoelhando-se na esteira.
Concentrou-se
novamente na criança e na mulher que o olhava vitoriosamente. E sorriu.
Miraculosamente,
os gritos ululantes surtiam o seu efeito.
Um
por um, aos pares, as pessoas foram-se aproximando, conglomerando-se no pátio,
frente à casa do homem. Com a alegria estampada no rosto, embriagada pela
falecidade, o homem correspondia quase maquinalmente às pessoas que, com uma vénia
e um sorriso, como se o seu provento fosse colectivo, congratulavam-no por ter
dado à luz um presumível caçador ou apanhador de lenha no coração da floresta.
Transcorridos
dois dias, quando se deu por terminada aquela procissão, a mulher, o homem,
juntamente com alguns familiares mais próximos, reuniram-se. O objectivo era o
de atribuir um nome à criança. Sem qualquer controvérsia, a eleição caiu no
nome do avô: o grande caçador de bambis e palancas. No decorrer da cerimónia
alguém ventilou a aldeia de que era praticamente precoce atribuição do nome. O
seu aspecto, debilmente franzino, mostrava claramente quais as escassas
possibilidades de sobrevivência do recém- nascido. Portanto, seria uma
precipitação...
O
homem sentiu-se apreensivo. Franziu o nariz, abanou os ombros. Cruzou a esteira
e saiu. Fora, sentiu-se assaltado por uma diversidade de questionamentos. Um
pressentimento obscuro perpassou em sua mente. Já o vivenciara durante todo
aquele processo que se consubstanciara no nascimento de seu filho.
Recordou-
se discussão que tratava com o sekulu
(1) Kandjaia. O problema
circunscrevia-se numa querela de divisão e delimitação de terrenos.
Inesperadamente, o sekulu Kandjaia intrometera-se abusivamente em sua vida.
Insistemente, pretendia fazer com que lhe cedesse uns metros do seu terreno.
Ele fora intransigente e inflexível.
Pelo
seu arrojo, subtileza e inteligência resolvera o caso rapidamente. O causador
do problema saíra duplamente derrotado. Não conseguiu materializar o seu
projecto, ficou de entregar-lhe uns metros da sua lavra, que ele conseguiu
provar pertencerem-lhe desde há muito. Assim tinha-se consumado o caso.
Algo
ficou, no entanto, incrustado em seu íntimo. Era uma apreensão consubstanciada
em desconfianças e previsões inusitadas. Presumivelmente, pensou, deveria
residir aí a debilidade e frouxidão do recém- nascido. Não cometera onjamba (2). Não roubara. Não possuía feitiço. Sim, a causa deveria estar
na represália do velho Kandjaia.
Os
dias avançavam resolutamente. A apreensão do homem não desfalecera.
Acentuava-se cada vez mais. As folhas do ongonguila encontravam-se já secas.
Foi o dia em que a criança foi atacada por uma crise. Foram momentos difíceis,
de consultas ao quimbanda e a outro tipo de a advinhos. Foram momentos de
competição no decorrer de todas as noites. No dia em que todas as esperanças se
tinham esfumado, a criança resistiu à morte.
__________________________________
(1) Velho
(2) Doença supostamente originada pelo
adultério da parte do homem, durante o
período de gestação da mulher.
O
umbigo caíra finalmente...
A
mulher pegou nele e enterrou-o ao lado da casa, próximo dos resquícios.
As
galinhas cacarejavam. Debicando aos grãos de milho disseminados no solo, iam
simultaneamente, remexendoresolvendo a terra com patas. O homem encontrava-se
na capoeira. Com uma enxada e quinda, tirava os excrementos de galinha
misturados em cinza para o estrume da horta. Tinha-se esquecido da queda do
umbigo. Foi por isso que se sentiu surpreendido quando viu a sua mulher e a
criança fora de casa, ao sol. Foi naquele dia mesmo que se decidiu, de uma vez
por todos, atribuir definitivamente o nome à criança.
Os
pilões subiam e desciam num ritmo cadenciado. As duas mulheres acertavam
infalivelmente na boca do almofariz. Cada uma levantava a mais alto o seu
pilão, a fim de evitar que houvesse uma simultaneidade no acertar na
extremidade circular daquele recipiente feito de tronco de árvore e chato na
extremidade. Assim que a outra levantou o pilão, a mulher mandou-a parar. O
milho que se achava dentro do almofariz
transbordava, disseminando-se pelo chão. Via-se espalhado no chão milho partido
e farelo.
A
mulher meteu a mão no interior do almofariz, voltando com um punhado de milho
húmido. Lançou um olhar compenetrado sobre os grãos descascado que salpicavam
as suas mãos. Puxou a quinda que se encontrava a seu lado despejou nela todo
conteúdo do almofariz. Enquanto que a outra voltava a meter milho no almofariz,
ela sentou-se no chão com as pernas abertas. Segurou no ongalo (3). Com
movimentos ascendentes e descendentes, completando-os com sopros expelidos de
seus pulmões, ia separando o milho do farelo. Todas as suas acções se
sincronizavam num ritmo cadenciado. Colocava os grãos de milho à sua direita e
o farelo à sua frente.
A
criança nua, esbranquiçada pelo pó o abdómen dilatado, aproximou-se. Tinha a
tira atada ao lombo. Descalça, tentava obstinadamente misturar o milho com
areia.
A
mulher segurou-a pelas mãos. Puxou-a para si. Sentiu naquele momento uma
predilecção particular pelo seu filho, franzino doente e débil...
O
tempo fez que se construísse posteriormente todo um edifício de veneração.
A
partir daí, foram-se desenvolvendo e consolidando laços fortemente arreigados
entre a mãe e o filho. Nas vicissitudes da vida, cada um solicitava-o e
demonstrava-o da melhor maneira.
(3) Peneira
In
“Cipembúwa”, União dos Escritores Angolanos, 1989