sábado, 4 de agosto de 2012

ANTOLOGIA DA POESIA ANGOLANA

Acaba de ser recentemente apresentada a público a obra de vulto  e muito fôlego da Professora Irene Guerra Marques e do Investigador em História Carlos Ferreira, intitulada "ENTRE A LUA, O CAOS E O SILÊNCIO: A FLOR", (630 páginas) editada pela Mayamba Editora, que muito vem ajudar o meio estudantil e académico nacional e internacional, não só pela sua abrangência, mas pelo seu manifesto pendor pedagógico, como escreve o prefaciador.


Nela estou incluido com quatro poemas do meu livro de poemas "SUMAÚMA", publicado pela União dos Escritores Angolanos, em 2004.

OPTIMISMO

Não
se procure o optimismo
no passo manco do coxo
na mão do falso pianista
no tique sem toque
na bengala do cego

Sim
no espaço mulher flor
entre dois poemas

DILEMAS COLORIDOS

Nas garras avarentas
da incerteza
e preso no olhar
dos teus sorrires
galopei o infindo
dos sonhos
recoberto das vestes
do arco-íris
coloridas por ti
de mundos medonhos

CHINGUFOS

Chingufos
na selva deserta
inchada de abutres

canibais da esperança
edificando
no zero
o terrível ser
do amanhã incerto

TEMPOS SONHADOS

Ceifa a tristesa
os tempos sonhados 
das palavras viçosas
ao apontar o rumo

Receosos
sentimos a obscuridade
perante a agressão marcial
embrenhada no ventre da chuva
que não tombou

Uniu-nos o sonho
ao vislumbrar
nos rasgos azuis do céu
o filtro da dor
da lembrança
do amor
da esperança

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS





ESPERA AÍ, EU TE CONHEÇO?!...

Há dias, ao ouvir esta frase num programa humorístico que a televisão brasileira passa aos sábados, numa “zurrada” total, veio-me à mente uma teoria expandida na década dos 60, denominada “O Fenómeno Pequeno Mundo” (Small World Phenomenon), do já falecido psicólogo Stanley Milgram.
Esta teoria, ou experiência, confirma, ainda hoje de maneira controversa, que, efectivamente, quase todos nós temos uma possibilidade muito próxima de contactarmos (conhecermos) alguém através de uma pequena cadeia de encontros ou conhecimentos sociais.
Esta questão colocou-se, quando se tentou saber, a partir de um quadro N de pessoas desconhecidas, qual seria a probabilidade que cada elemento de N vir a estar ligado a outro membro de N, através de uma cadeia de contactos.
Stanley Milgram, um psicólogo social, numa experiência patrocinada pelo prestigiado Conselho de Relações Sociais da Universidade de Harvard, conseguiu, em 1967, chegar a uma aparente resposta, ao concluir, através da experiência que conduziu, que dois cidadãos escolhidos ao acaso, teriam possibilidades de se encontrarem, em média de cada seis, através dessa cadeia de amigo a amigo. Se, por exemplo, eu disser a um amigo ou parente, que gostaria de conhecer alguém que me cace caracóis amarelos na Patagónia, as probabilidades de isso acontecer, através dessa cadeia, são teoricamente muito reais, chegando lá ao sexto contacto.
Posto isto, se eu tiver cem amigos e cada um deles tiver outros cem amigos, logo ao segundo contacto, já poderei contar com 10.000 pessoas mais ou menos próximas, na busca do meu caçador de caracóis da Patagónia. Na terceira ligação, terei 1.000.000 de pessoas que poderão, numa média de seis, interagir comigo. Sendo mais ambicioso, já que a minha mania são os caracóis amarelos da Patagónia, vou ao quarto contacto e logo as minhas oportunidades aumentam ara 100 milhões de pessoas. Não me venham dizer que não encontrarei o referido caçador e os ditos bichinhos. Se chegar ao sexto contacto, terei a casa infestada deles, amaldiçoando a minha curiosidade, e sendo eu a caçar o caçador, seja onde ele estiver.
Quer dizer que cada um de nós está, a nível mundial, unicamente a seis contactos de separação do outro, o que explica muito do que nos acontece, para bem ou para mal, na interacções que mantemos.
O fenómeno do boato, por exemplo, o tal de mujimbu press, tão efectivo para erguer ou arrasar carreiras, para movimentar círculos ou cadeias de interesses pessoais ou colectivos, muito mais danosos do que os malditos caracóis amarelos da Patagónia, será uma prova irrefutável disso.
Certamente que me irão dizer que não tenho mais nada que fazer, o país com os problemas sociais que tem e eu preocupado com teorias e abstracções. Talvez tenham razão, enquanto fico por aqui com estas cogitações... mas espera aí, eu te conheço?!...

Fragata de Morais

BATUQUE MUKONGO



12

Na varanda a bengala justiceira
do meu avô entrevado
acordava todas as manhãs
ensopada de todos os mijos
acumulados nas salinas do Ambriz
nas madeiras do Uíge na Uízi
no Congo dos belgas
encharcada dos pássaros do dia
José José sacana de miúdo
vem-me levantar vem-me mudar vem-me lavar
e eu na cama ao lado mudo e surdo
para a velhice nunca entrar nos meus dedos
nem na ponta da caneta
que de velho agora escrevo
a dor dos que não regressam
a ida eterna da minha mãe Maria
para sempre Alice
Maria mãe de Deus bela Alice
o meu umbigo enterrado no Uíge na Uízi
sempre distante do que nunca aprendi
por ser meio filho dos que vieram dos mares
mares que mandaram soberanos
antes da existência
de tsunamis a afogar
a perene linhagem materna do Kongo
sem força sem voz sem canção
para ditar o futuro
kadi tsua tsua kayimbila ko
kudi mona a mona nkayi andi (*)
todos mukongo
perdidos neste meu corpo
diluidos neste meu sangue
vivos no meu viver
sentidos no meu sentir
desde a infância embriagada
no perfume genésico da flor branca
na verde esperança dos bagos a suar
as gotas vermelhas da idade madura
para se anular no pó
negro café
da cor múltipla do Homem
a preencher o Mundo africano
ainda ténue e longe da aldeia global
pouca terra pouca terra pouca terra
no comboio sem marcha atrás
para poucos muita terra muita terra
apita fuííí… fuííí… fuííí…
comboio de feitiços
atravessando o meu Zavula
a voz irada do capataz Cardoso
recém chegado da metrópole
ainda com os cheiros do velho continente
ainda não caçara nem sabia
dos gambuzinos
a insultar o velho Efraim
capataz vitalício dos negros
pleno dos cheiros de África
África no sangue latejante da língua
que transforma
a ignorância em lagos azuis de ignomínia
insultos trovejantes de ira

 (*) Aquele que não é circuncidado não canta
      porque não viu a avó


O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



JOÃO TALA

Uma das promissoras vozes na literatura angolana, nasceu em Malanje, a 19 de Dezembro de 1959. Foi, sobretudo, na poesia que este escritor e médico mostrou a sua veia literária, sendo uma das maiores revelações da década de 90, com vários prémios literários nacionais. Estes contos, retirados do livro Os dias e os tumultos, mostram-nos uma nova faceta do escritor, com a mesma acutilância e pujança que a sua poesia revelou.

GEORGINA

Ora, eu simplesmente não gostava de igrejas. Assombravam-me. Meu pai também desistira delas a pensar – como repetia embriagado – a defunta minha mãe que se ajoelhara perante todos os santos, enquanto o cancro da pele reduzia-a, maltratante, matando-a por dentro e por fora.
Eu fora até à Igreja dos Espíritos em busca de Georgina, a quem chamava “meu anjo”, porque disseram-me, logo após o meu regresso, que andava lá num reencontro consigo mesma. Uma busca convicta, à medida que a perdera há anos.
Cultiváramos amizades com a despreocupação permitida da infância, quando ainda ignorávamos os dias que começavam com a cor dos tumultos.
Seremos, brincávamos, toda a infância até quando a mulata Georgina despontava, a florescer: os mamilos já a fazerem pontas ameaçando trespassar a blusa encarnada, a bunda a peneirar os movimentos do corpo, na sua subida de idade. Eu que ainda não ejaculava sequer, sentia qualquer coisa ardente e desesperante, mas algo insensato, que só explicaria quando mais crescido desmistificasse o amor e a lascívia, naturalmente.
Nesse tempo, ela devia ter treze e quanto a mim a idade que mais convinha. Corava quando por vezes eu deslizava os olhos sobre sua meia estatura, para depois os deter na cintura. Isso deprimia-a com vergonha de que tinha crescido.
Avante. Tínhamos realmente crescido, numa altura em que os acontecimentos exaltariam a hecatombe. A guerra arrastava um país, a esmagar a época. De tal modo, alguns anos mais tarde, vi-me numa caserna militar. Partilharia escombros, valas comuns e incomuns como são as trincheiras. Palpitavam-me os fusis e o estrondo do medo. É este o meu infortúnio.
No dia em parti, Georgina juntara-se aos lamentos amargos de minha avó, enxugando- lhe as lágrimas.
A guerra durou o que podia, sem vitória para ninguém nem derrota para esquecer.
Eu voltava, ao encontro de Georgina. Com ela sonhei a tranquilidade de um lar, como então o país a recobrar-se das tenebrosidades.
Marchei para aquele submundo, o bairro Mártir, da noite a crescer preenchendo vidas mercantis, rumo à Igreja dos Espíritos (o novo espaço de Georgina). Procurei-a e, cansado, deixei-me numa das praças da noite agravando a minha sede pela cerveja. Não sei por quantas doses comecei a tropeçar, exacerbando o discurso. Ébrio, dei-me a falar de amor.
É sabido, quando falamos de amor, os homens se unem à nossa volta para ouvirem as nossas experiências. Não desse amor ao próximo que as religiões instruem não. Mas do amor erótico, adulto, que nos faz esquecer o pão e as necessidades. Engano deles porque
eu falava de Georgina. Começaram a exigir-me que usasse de termos mais adultos, impróprios
– «a seguir, o que é que se passou... anda fala lá... ou não fizeste nada, diabos?».
Nada fizera. Esses tipos não entendem o amor.
A igreja surgiu ao amanhecer. Infinita catedral! O ar lá dentro é como uma sombra, bastante visível entre centenas de candeeiros a querosene iluminando o engima, invertendo a alvura das paredes. Reconheci um certo clima melancólico como nos tempos em que ia com minha mãe às missas.
Os candeeiros emanavam um forte odor a querosene e fuligem que estimularam a minha asma e me incitaram a tossir. Como que excitado por minha tosse, um homem gordo e desproporcional, trajando um uniforme azul escuro com feitio de batina e touca vermelha descaindo na face, surgiu correndo, esbracejando um violento «põe-te lá fora já!». Empurrou-me brutalmente à porta numa atitude pouco cristã. Fê-lo porque sou um estranho à sua congregação. E também para proteger a irmã Georgina de um mundano.
Mundano ou mundiano não são os termos que me atormentam. Atormentam-me sim as procuras inconclusivas, as febres da pós-guerra. Assimilara que o mundo são as voltas que damos. O gordo não me confunde. Ele não é o Cristo. Na sua igreja Cristo é uma figura, uma escultura de ébano!
Nunca vi igual. Por isso, tinha-o metodicamente raciocinado. Ora, o olhar de Cristo sempre me reteve como um olhar mágico. Ei-lo naquela escultura parecendo perscrutar estas coisas desta vida imprestável dum mundo em vão. E um ébano fá-lo parecer negro e estranho. Bem uma escultura trabalhada com mãos difíceis. Das linhas incisas aos mais profundos sulcos; os erros dos contornos, a tortuosidade e saliências, demonstram a imperfeição do artista, que certamente esculpira com toda a arte mas, também, com a infalível fraqueza humana. Pobre pecador de mãos trémulas. Qualquer pessoa sofreria quando, de um pedaço de tronco, se afigurasse pouco a pouco o distinto rosto do Santo, e a cada golpe de escopro fosse como se ao corpo do Homem quebrasse os músculos, os tendões e os ossos. E o ressentisse entre pregos, no calvário, na cruz da
nossa alforria.
Estava a contar, foi logo assim que o gordo devolveu-me à porta. Voltei à casa onde minha avó opunha-se vigorosamente contra a minha busca. Segundo ela, jamais achara amor tão descabido. Eu não lhe conferia sentidos. Aliás, que pode uma velha entender do amor nos dias e nos reboliços de hoje? Mas desaprovou-me do mesmo modo:
– Porque desejas tu, meu neto, filha de ngueta?
Depois aumentou:
– Nem sabes que a vida levas para a dar na filha de um ngueta. Você pensa é fácil para quem não está habituada a esta porcaria... – Dizia-me com o dedo apontado a esteira.
– É chata a avó Chica. Teimava em julgar-me o amor pela cor do corpo. A descendência de Georgina punha “tartarugas” na sua velha mente. Nada de ideias porque o mundo em nada melhorara, pelo contrário nenhuma, palavras demolidoras carregadas de uma metáfora experiente que a nós, pequenos revolucionários (ou que o tínhamos sido), lembrava-nos ainda a réptil classificação de “serpentes” na língua. Uma língua de intolerância. Deveria – pensava – ter antes morrido para não ver certas coisas. Agora tinha de as ver todas. (“não é justo, avó nos veja a todas como “corvos” em tuas noites.
Há sol a renascer na alma; a pomba já voa.”)
Avó Chica é quantas vezes destes gestos indizíveis; persistia na sua ignorância de julgar o amor conforme as raças. Para ela eu devia ceder aos caprichos daquela lá, a Anita Martins, que ia e vinha tentando me agradar. Não nego que é uma mulher bem dotada. Não nego. Anita tem partes, andou nos livros, estudou dactilografia. Avó gostava dela e muito.
Pé ante pé ia à espreita de Georgina mas, o sacerdote impedia que a visse. Da última vez reservava-se-me uma surpresa: o sacerdote chorava desamparadamente!
Insólito – nunca ninguém o fez desse modo. Parecia um touro aos soluços, chorando com todo o seu tamanho. As gotas do que desalento faziam-me dó. Uma sujeira. Sou de
opinião que os homens devem inclinar suas lágrimas para dentro, assim não há o dissabor de vermos os dejectos de nossas tristes emoções caindo-nos dos olhos, sujando-nos a virilidade.
Chorava, afinal, porque também amava Georgina! Não era um amor educativo, religioso, não. Amava como qualquer homem ama uma mulher. Jamais se pronunciara  disse – para não quebrar o seu sigilo.
Não concordo. Um sentimento escondido é pior do que cadeia. É burrice aprisionar-se a si próprio. Não comungo esse tipo de sigilo.
Para o meu augúrio contou-me que passara ali um sargento e entusiasmara Georgina. E o militar prometera um tempo inteiro só para ela. Prometia a nuvem, o elance e o lar.
Mas que tempo tem para o dar uma tipa um sargento? Parece trecho de romance.
Já o vi o pior no cinema...
Disse-me ainda o gordo que quando o sargento se foi embora, ela ficou embriagada.
Embriagada?! Estremeci diante da verdade: a “embriaguez” feminina é pior do
que própria lua-de-mel.
O facto levou a que o gordo lhe ditasse oito dias a pão e água. E que se confessasse ante a estátua da Sala-Maior, que simbolizava um qualquer santo africano. Ela cumpriu mas, depois foi-se embora livre de pecado e de monges rabugentos.
Discordei do castigo dado à Georgina mas, não estaria agradecido do seu comportamento, julgo, leviano. Também eu sofria com o facto.
Agora não é mais a Georgina quem busco. Busco apenas um modo frio, exigente, de a retractar no esquecimento. Tê-la presente mas esquecida; torná-la memória emudecida, um mínimo de morta e fantasma. Para já, dizer, o amor também faz vítimas!
Habituava-me ao bairro Mártir. Suas praças movimentadas distraíam-me. Ia lá para me embriagar, escutar música e dançar. Estava ébrio quando, certa vez, notei olhinhos sobre mim. Eu ria a e mulher que os possuía os deitava o meu rosto. Ela faria a noite e o dia caber em mim... abri aqui uma lacuna:
– Ouve lá, quantos anos tens?
A idade torna-se mais importante do que o nome por causa da prostituição infantil.
O fenómeno catorzinha nos envergonhava a todos; nos sentíamos mais pobres, ultrajados no íntimo, porque são as crianças, que continuam a nossa infância.
– Quantos?– repeti, curioso.
– Dezoito, moço – respondeu balançando uma perna levando com a mexida o rabo todo.
– Ainda bem. Já cá pensava se não terias dez.
Ela sorriu envergonhada com os olhos no chão. Uma fingida mas’é. A culpa não é dela. A falta de tudo transtornava-nos a todos. Ela simplesmente desenrascava os dias.
Na mesma noite conheci a minha primeira prostituta – essa pequena criatura de tronco adelgaçado e acinturado para fazer sobressair enormes matakus. Tinha um volume de seios firmes, mamudos, prestáveis, atirando-os para frente com a marcha felina. O encanto me subjugava. Bebeu cerveja comigo, fumou os meus cigarros e com a música de Kinshasa, forte e palpitante, iniciamos a viagem, a aventura, o jogo.
– Como te chamas, afinal tens de ter um nome...
– Os homens me chamam Tita – respondeu.
– Ah, os homens. O nome é uma graça, próprio para ti. Aceito o menu.
Perseguindo pela insatisfação, então já uma vaga lembrança de Georgina, continuava à procura de Tita.
De regresso à casa, avó Xica nunca me vira – dizia – tão triste. Achou-me isolado de modo que convocou astutamente Anita Martins de quem suportava os sermões bem intencionados, tributários de uma religião do bom ser e do bem-estar. Não mais a minha. Tal religião. Eu ia e vinha com Anita me esperando. A pequena Tita me enfeitiçara.
Concluindo, Georgina acabava na dupla Anita & Tita. Eram duas híbridas como duas gémeas na minha confusão mental. Porém, no espaço ruidoso de Tita não pode existir uma Anita Martins. Tita apenas gatafunha o seu nome enquanto Anita lê romance. Tita não lê romances; ela é um romance.
Continuava a ir ao bairro Mártir á procura de Tita até que certa vez tive a primeira das duas grandes desilusões: Tita fora com outro homem, continuava ao seu munhungo.
Quando avistei o Gordo que persistia em busca de Georgina, disse-me: “não se amam putas”. E disse-o com muita naturalidade.
A última desilusão foi a surpresa de ter encontrado, subitamente, uma Georgina longínqua, possuída de maus espíritos, delirantes. Estava ela com o corpo amassado, dorido, pálido, com olheiras profundas. Antes, o sargento que a desencaminhara, partira e não mais voltou.
Nunca se vira tanta água nos olhos duma mulher até ao que chamei de massacre
solitário de Georgina. Loucura!
Chamamos o doutor Gamba Manuelle que estava de regresso com uma bagagem extraordinária, findo a hecatombe. Ele curava as insónias e as chagas da guerra um
pouco por toda a parte. Preferia palestras sobres as feridas da vida, as escaras do espírito.
Pedimos que tratasse veladamente Georgina.
O doutor alegou ser um infortúnio, uma psicopatia remota. Deu-lhe comprimido para secar as lágrimas. – Oh!, de mal de amor ninguém faz diagnóstico – desajustou-se o Gordo.
Todos nós lhe gritamos:
– Ché, cala a boca seu sacerdote. Este não e doutor dos musseques, ouviu?
– Doutor, é verdade que o amor também faz vítima?
Já não me ouvia, no seu carrinho já, os faróis perdiam-se embora na noite.
E m Georgina permanecia a loucura. Teimava na nudez. Tita (que no entanto regressara) cobria-a, cuidava do pudor. Os mais sensatos dos homens fechavam os olhos para que não a vissem nua e fétida. O gordo orava, incitava-nos que orássemos com ele. Eu duvidava das rezas mas, orava para pedir a Deus que recolhesse profusa alma de
Georgina.
Nesse cacimbo (ó Georgina!) casei-me com Anita Martins enquanto amantizava a bela Tita.

In Os Dias e os Tumultos, União dos Escritores Angolanos, 2004