domingo, 2 de maio de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


EXERCÍCIOS MENTAIS E SENILIDADE

Ao chegarmos à média idade, notamos que começamos a esquecermo-nos de pequenas coisas, pequenos acontecimentos e situações e entramos em parafuso, preocupados com a nossa memória que já não mais responde aos comandos tradicionais.
É uma reacção primária e normal, todavia se pararmos para pensar um pouco, cedo chegaremos a uma conclusão óbvia; a de que a memória, tal como o corpo, sem exercício, não funciona de maneira adequada e começa a mirrar, a tornar-se esparsa e espaçada.
O tema de hoje ocorreu-me ao pensar nos 86 anos que minha mãe em breve celebrará, e nos 81 anos que o meu querido amigo e confrade no esgrimir de palavras e ideias, o nosso Uanhenga Xitu, aliás de Agostinho Mendes de Carvalho ou, melhor dito, seu nome de kimbundu, celebrou há dias, com muito carinho de todos nós. Ambos são pessoas activas e envolvidas, a minha mãe não tanto quanto o ti Mendes nas mesmas lavras, claro. Mas nas dela, é um prazer ver, desde que a memória não lhe seja muito solicitada. Se não, o caso vira prazeroso para todos nós, por ela não se dar por achada,
Li um programa, elaborado por uma americana, a senhora Kimberly McClain, que é uma espécie de guia prático, uma receita, para ajuda do refrescamento da memória, que consiste em exercícios práticos e simples, para que não passemos horas a indagarmo-nos onde é que o raio da chave da casa ficou, para onde é que fugiu o telemóvel, se desligámos ou não o gás da cozinha, culparmo-nos por não termos recordado o aniversário da Maricota, etc.
Esses exercícios são um pouco o que seria a aeróbica para o corpo ou, já que estou a falar de mais velhos, a ginástica sueca, ou a musculação soft do John Weismuller (vejam que já nem me recordo como se escreve), lembram-se?
E não há, hoje, qualquer sombra de dúvida que, para aqueles que se mantêm permanente e mentalmente activos, a senilidade é uma praga ainda bem longe. Perguntem aos mais velhos(as) que passam a vida a fazer palavras cruzadas, passatempos, a jogar xadrez ou damas, quebra-cabeças, a escrever, a desenhar e ou a pintar, a dançar kuduro ou a tarrachinha, a inventar engenhocas com os restos das latas e artefactos velhos e usados, ou a atazanar a vida de colegas quer no Parlamento quer no Governo com picuinhices que fazem muito bem à saúde mental.
É claro que, numa sociedade como a norte-americana, crescentemente mais envelhecida e “engordecida” (a minha palavra preferida), com o mal de Alzheimer respandido, assim como com outros tipos de doenças mentais, esta preocupação com a memória, atirou a comunidade científica para pesquisas múltiplas, sobretudo no que refere ao scanning e mapeamento do cérebro, onde, com ajuda de alta tecnologia, já o esquadrinharam quase todo para aprenderem e entenderem o seu funcionamento, a fim de que o envelhecimento não signifique necessária e imediatamente uma questão de senilidade.
Aliando-se os exercícios mentais aos antioxidantes, como o selénio, a vitamina C e E, ou às ervas tradicionais, poder-se-á contribuir para um retardamento do processo da perda de memória e a proteger-se o cérebro. Já é evidente que os processos para evitar-se o “engordecimento” (que me perdoem o bisar do termo, mas trata-se de amor à primeira vista) que leva às paragens cardíacas, como alimentação correcta, manutenção de um colesterol e pressão arterial baixos, exercícios físicos regulares, são os mesmos que protegem o cérebro, daí procurar-se saber se as mesmas drogas para o colesterol serão eficazes para a nossa matéria pensante.
A receita para a memória, que a senhora McClain utiliza, numa possível relação causa-efeito, inclui, entre outras coisas, uma dieta alimentar saudável correndo paralela a exercícios físicos diários, técnicas de relaxamento e exercícios de memória diversos.
Mesmo sabendo que os mais velhos(as), por tendência natural, são avessos a tudo isto que referi, aqui deixo o recado. Toca de exercitar, de comer bem, não em quantidade mas em qualidade se possível, e fazer exercícios mentais, como memorizar o que o vosso guarda-roupa tem lá dentro, por exemplo, ou quando é que viram o vosso neto tomar banho pela última vez.

04/09/05

SUMAÚMA - POESIA


INCONSCIÊNCIA

Ascende
a inconsciência
milenar

pragas escarradas
por homens
a mulheres
desejadas espelhos
de virtudes
em si
não reflectidas



ECOS

O eco
percorre
o calor
em fibras sinuosas
à sombra da bananeira

no perene vigiar
do surucucu

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO (NO PRELO)


BOAVENTURA CARDOSO

Nasceu em Luanda a 26 de Julho de 1944. É licenciado em Ciências Sociais e membro fundador da União dos escritores Angolanos, com vasta carreira no Governo. Autor de vários livros, segundo Luandino Vieira, é um escritor revelado no pós-independência e dono já, em sua bibliografia, de títulos importantes na afirmação e re-definição da literartura angolana contemporânea. O excerto aqui inserido faz parte do livro “A Morte do Velho Kipacaça”


A ÁRVORE QUE TINHA BATUCADA

Pintadas de fresco na memória, cenas de O Laço da Meia-Noite. Teimosamente: apesar do esforço. E passava das onze da noite, vinha assim do cinema, noctívago quase só. E vinha assim andando e assim andando, noctambulosamente, passos quase na fronteira luz e escuridão: linha divisória de espaços sociais. Tinha nó na garganta: medo engravatado.
Silêncio cortado: cão a ladrar. E acelerei então: o passo. Cacimbante, luarenta: a noite. Capim seco tinha então cheiro de queimadura. E tinha pirilampo, pontinho luminoso: adiante. Sem intermitência, não era pirilampo: certifiquei. E experimentei então descontrair assim: assobiando. Breve sensação de segurança.
Porém minhas pernas não estavam então acompanhar o esforço para me descontrair assim. Pontinhos luminosos agora estavam então aumentar. E parei: assustado. Mas impetuosamente veio então assomo de coragem: decidido, retomei o passo. Sob a minha cabeça. Os pontinhos luminosos. E dos lados: os pontinhos luminosos. Sem querer tossi então e alguém também tossiu. E tossi: tossiu.
Tossia e na noite luarenta ecoavam tosses. E retive então o passo assim e olhei assim para os lados: ninguém! Oh! outra vez: na passada. E assobiei então e o silêncio da noite que apenas de vez em quando era cortado pelo vento e o silêncio da noite se engravidou então de assobios. Fui! Fui! Fui! E deixei de assobiar, mas o silêncio continuou a se encher de assobios. E imobilizei então de novo o passo. E ouvi então. E decidi então: passinho progressivo. E ouvi então outra vez: vozes. Quem vem aí? - quem falou assim fui eu. Quem vem aí? - vozearam vozes. E parecia que as vozes estavam a vir então de uma árvore que estava: próxima. E ventava. Capim seco e galhos secos começavam então a rolar, a rolar a rolar assim pelos carreiros muitos. Fantasmas pareciam. E estava então calado. O eco é que então continuou vozeando: quem vem aí!!! E me sentia pequeno perante uma voz tão potente e cavernosa. E comecei então a ouvir, vindo da árvore que agora estava à minha frente, uma mistura de sons e ruídos e gargalhadas e batucadas e barulho de pratos e cães ladrando e gatos miando. E não estava a ver ninguém. E não me atrevi a dar passo. E fiquei então estático. Um som oco crescia e crescia assim: eram cabaças se entrechocando. E desceram então da árvore e vieram então cá em baixo se movimentando ás voltas, dançado. E não via ninguém de repente comecei então a ser esbofeteado. E tentei me esquivar, me defender: em vão. E aguentei bofetadas e pontapés até cair no desmaio.
Imponente, vertical, alicerçada na força telúrica, resistente às intempéries do Tempo e da Natureza. Caminhantes de todos os caminhos passavam. Uns passavam sem parar e outros paravam e lhe segredavam então. Caminhantes de muitos caminhos passavam. Uns cansados da caminhada paravam e descansavam para no corpo dela os seus sentimentos e desejos. De muitos caminhos, os caminhantes lhe veneravam. E tinha então caminhantes que vinham lhe fazer pedidos para resolver casos. Caminhantes de todos os caminhos iam passando. E uns passavam então e nunca mais regressavam. E tinha outros que passavam e repassavam. E a Chuva e o Frio e o Sol e a Noite e o Dia eram dos caminhantes que passavam. Guardava então segredos de muitos caminhantes e guardava lamúrias e desejos e sentimentos e queixumes. E guardava tudo então, porém não revela nada. E ninguém podia desvendar então o que estava lá encerrado. Um dia vieram então caminhantes armados de catanas e machados para lhe matar e ver então o que é que ela tinha lá dentro. Queriam lhe roubar as prendas valiosas que ela recebia de muitos caminhantes e que guardava então no seu corpo. E os caminhantes, depois de muitas horas e suado e extenuados, desistiram de lhe golpear com as catanas e os machados. E no corpo dela não havia então nenhum sinal e nenhuma marca e nenhum golpe. Por isso os caminhantes desistiram.
E no começo da estrada que dava para a Kaála, frondosa e imponente: a árvore. Durante o dia era igual a tantas outras. Na sua sombra os passantes vinham então se refrescar e recobrar energias para a distância longa. E descontraídas as crianças vinham então: lúdicas. Era uma árvore igual a tantas outras. E tinha gente que só dava por ela pela sua imponência. Durante o dia tinha então pássaros e passaritos e passarinhos que vinham ainda brincar nos seus galhos. E vinha então o Bulikoko, gigante e pousava na copa da árvore e nidificava e começa então assim sorridente té… té… té… e o Huicumbamba de pescoço dourado respondia e então uei… uei… uei.. Mas quem traquinava mais, salitante, era o Mukorikori, rabo de junco tri… tri… tri.. O Mukuku-a-tumba, esse não vinha sempre. Mas e quando vinha avisava então assim du... du du… eh! e a gente que morava cerca sabia que era a chuva que estava vir lá então das bandas de Kangambo, nuvens engrossando e passando pelo Cemitério e Kapopa e depois descarregava. Bons pássaros e passarinhos, amiguinhos de todas as horas. E tinha também uns pássaros que só vinham nas horas aziagas eh! kiiuik… kiiuik… kiiuik… era entaõ o Yngo, de crista alta. Mas quem metia mais medo era inda o Kakoko. Passava raras vezes. E pousava então mais vezes nas casas abandonadas, e nas torres. Quando vinha, o Kokolo se enfiava nos buracos da árvore e começava então a chorar, eh!
Era uma árvore normal e igual a tantas outras, até aquele dia. E depois tinha mais gente que, passando à noite pela árvore, fora então agredida. Tinha cada vez mais gente. E veio então a PSP averiguar e não viu ninguém. E no outro dia a cena se repetiu então. Notícia correndo, gente vindo. E até povo da Vila Matilde e Campo da Aviação e Kangambo até, desceu e veio então: curiosamente. E durante o dia era uma árvore normal e sem nenhum sinal estranho. De noite é que ninguém se atrevia então a ir lá satisfazer a curiosidade. E de dia uns lhe olhavam: respeitosamente. Os mais velhos descobriam então a cabeça e se inclinavam perante a árvore. E tinha até gente que mesmo de dia estava então evitar passar por ela.
Corria, bocante: a boca! Intrigado, Sô Administrador mandou então chamar os cipaios e falou assim vocês esta noite vão dormir na árvore para apanhar os bandidos. Estão a ouvir? Sim senhor Sô Administrador! - a resposta. Sô Administrador, ainda bem Sô Administrador está nos mandar então acaçar os bandidos que estão na Kaála, já estão abusar muito, Sô Administrador - quem falou assim então o chefe dos cipaios, nome dele conhecido de Cinquenta e Um por causa das palmatoadas até naquela conta que ele gostava então de palmatoar nos presos. E fiel servidor do Sô Administrador e sempre solícito na execução das ordens dele e bajulador, o Cinquenta e Um estava sempre singraxar no Sô Administrador. E quando tinha folga ia sempre na casa do Sô Administrador se oferecer para regar o jardim e baloiçar então com os meninos no baloiço e até mesmo lavar com prazer os pezinhos chulécheirosos do Sô Administrador. Os presos evitavam então dar encontro com ele. E um dia os presos estavam assim a trabalhar na estrada e assim a trabalhar e a carregar pedra e a britar pedra. E de repente chegou Cinquenta e Um e chicoteou então um preso que estava ainda descansar. E o preso se revoltou e lhe deu na cara. Ih! O Cinquenta e Um à noite veio então lhe buscar e nunca mais ninguém soube dele.
De manhã cedinho Sô Administrador tinha então no gabinete, agredidos e alquebrados: os cipaios. E vomitou raiva toda dele nos cipaios, disparatou as mães deles. Matumbos! Cobardes! Vocês são piores que as mulheres! Cinquenta e Um adiantou ainda dar explicação e a resposta do Administrador foi lhe abonar então uma série de bofetadas.
Sô Administrador, irritado, mandou então pôr cerco na Kaála: a rusga. Nada. E os bandidos não apareceram. Do gabinete dele todos os dias só ouviam então berros e disparates um monte. E ele andava então desorientado. Assim então resolveu comandar pessoalmente as operações. Se muniu então de armas e cordas e cacetes e mobilizou então cipaios todos e, à noite, pela calada cercaram a árvore. E com ele também estavam então alguns comerciantes.
No dia seguinte a notícia: correu. E Sô Administrador estava mal no banco de urgência.
Depois de ter pregado vários sermões contra os bandidos, Sô Padre decidiu também ir lá desafiar então o Satanás. E na árvore deixou a batina e o missal e os óculos e foi levado então em estado de coma. E nem as benzeduras lhe safaram.
Caminhantes. Vinham de muitos caminhos. Passavam e reparavam e olhavam: atónitos. Caminhavam caminhos de muitos caminhos e: vinham. E paravam e olhavam e olhavam e retomavam: caminhos. Caminhantes. Vinham de muitos caminhos.
Cortar a árvore! Cortar a árvore! - decisão tomada. Alguns aconselharam-lhe acorrentar primeiro e a deixar ficar assim pelo menos durante três dias. E assim os bandidos não podiam então fugir.
Sol ardente, Sô Administrador, Sô Padre, os comerciantes, meio mundo, todos vieram. À ordem de começar e os homens e dez homens à volta da árvore, começaram então a arremeter machadadas no tronco da árvore.
Ninguém estava acreditar então no que estava acontecer. E passadas mais de três horas desde que os homens tinham começado a amachadar, tronco da árvore estava na mesma: intacto. E os homens tinham já as mãos a sangrar e quase não se aguentavam de pé. Sô Administrador, esperançado, incitava os homens a prosseguirem e os homens prosseguiam então exaustos. E uns então começavam a cair, mas sob as ameaças da autoridade se levantavam então para depois caírem novamente. Seis da tarde: tudo na mesma. Sô Padre já tinha então se retirado, sem ninguém dar conta. E pouco depois, Sô Administrador, alguns comerciantes, com medo da noite, se retiraram também. E veio então a noite e com ela a batucada: outra vez então.
Caminhantes, a Noite e o Dia e o Frio e o Vento e a Chuva, caminhantes de muitos caminhos, caminharam e foram ter com a Tempestade. Lhe contaram então tudo o que se estava a passar. A Tempestade lhes mandou então esperar, enquanto se preparava. E depois partiram juntos caminhantes de muitos caminhos. Quem vinha no comando era a Tempestade. Caminhante, a Tempestade é quem estava a puxar todos: a Noite e o Dia e o Frio e o Vento e a irmã dela, a Chuva. Tempestiva e tempestuosa vinha então a Tempestade tempesteando. Por onde passava arrastava tudo: tempestuosamente. E chegou a assim, peito inchado e assim começou então a berrar em voz troante e gritante e ribombante e faiscante.
Companheiros da mesma caminhada, o Vento e a Chuva lhe ajudavam então a engrossar a voz. Troante. Intempestivamente a Tempestade se retirou. Com ela os caminhantes da mesma caminhada. E a árvore estava lá: firme, imponente e frondosa.
Os cipaios entraram apressados no gabinete do Sô Administrador e da lá saíram então pouco depois. Tinham de cumprir a ordem! Era uma ordem do Sô Administrador e eles sabiam que não podiam sequer contestar. Sô Administrador falou assim se não cumprirem com a minha ordem mando-vos todos nas minas da Kitota! Dito não tinha contradito.
Se puseram então a: caminho. Cinquenta e Um estava apreensivo e quase e quase não falava. Agora é que Sô Administrador me arranjou um trinta e um! - pensou no pensamento dele. Como é que ele ia convencer então o velho a vir em Malange se ainda no mês passado lhe tinha espancado? E o velho estavam lhe acusar então de ter enfeitiçado um comerciante, por isso um mês antes tinha estado na Administração. A carrinha ia rolando estrada fora e entrou na picada. Cinquenta e Um: cara dura, caladura, sem faladura.
Bocaram: a árvore tinha então milagre. Caminhantes, vieram: peregrinamente. Cegos e paralíticos e mulheres de ventre infecundo e homens sem geração e solteirona desamada e kafofo de visão camoneana e kaleijado coitadito e marido cornudo na tourada conjugal e caloteiro fugindo da cobrança e pobretão sonhando os milhões na lotaria. Todos: vinham. Caminhantes. Peregrinos. Vinham de muitos caminhos. Caminhos de muitas desgraças e: vinham. E partiam: desiludidos.
As mulheres, na lavra, só quando viram já a chevrolet verde, eh!, começaram a desaparecer bofele-felê, bofele-felê.
Carrinha parou: Camburi tinha ninguém derepente. E tinha só galinhas e cabras circulando. E fumo na cozinha era sinal de que o povo tinha fugido tinha momentos - Cinquenta e Um confirmou irritado. Bateram palmas e entraram para dentro das casas e nada.
Veio então a noite e nada. No relento da noite os cipaios dormiram ao relento. Cinquenta e Um: desconseguiu no sono. E pensou na surra que Sô Administrador lhe ia então surrar se voltasse sem o Velho. Ih!
Madrugada: Cinquenta e Um despertou cipaios. E despertos. Ordenou: buscas nas cercaduras. E porém: advertiu. Nada de brutalidades: tirar mel sem espantar abelhas. E os homens foram então e Cinquenta e Um ficou só assim: expectante. E no fumar tinha então ligação directa: cigarro acendia com cigarro.
Um a um gente regressando. Cipaios se excedendo em tácticas de tirar mel sem espantar abelhas. E Cinquenta e Um se animando, vendo gente vindo. Distribuía cumprimentos e sorrisos.
Gente receosa, desconfiando. Cinquenta e Um mandou descarregar carrinha: garrafões de vinho e malas de peixe e panos e cigarros e muita coisa. Gente desconfiando: mão que ontem trazia chicote, hoje trazendo mão cheia, benemérita. E Cinquenta e Um tinha cara alegre e estava a abraçar a gente então.
E o Velho estava aonde? Não estava aparecer. E Cinquenta e Um solicitou imenso que lhe fossem então chamar e o assunto era importante e tinha uma mensagem muito boa da parte do Sô Administrador. Repetiu: o pedido. Gente estava receosa, não estava então acreditar.
Cinquenta e Um então persuadiu: não trazia nem armas e nem cacetes e nem chicotes.
Veio: o Velho. Cinquenta e Um estendeu então a mão e o Velho não lhe correspondeu no cumprimento. E mostrando simpatia Cinquenta e Um botou então mansas faladuras. Falou assim então que o Sô Administrador lhe mandou chamar para uma missão importante. Eu sou feiticeiro não posso ir falar com o Sô Administrador! a piada do Velho. E secundado pelos cipaios, Cinquenta e Um insistindo. Tinha gente que na mira da oferta aconselhava então o Velho a aceder. E o Velho nada. Cinquenta e Um insistindo. E o Velho nada. Bola vai e bola vem, só duas horas mais tarde é que puseram: acordo.
De Camburi a Malange, viagem de nem duas horas estava então a durar dois dias. A carrinha que na ida não teve problema, no regresso estava andar e a parar. Andava e parava e o condutor descia e ia então lá à frente no motor ver então o que é que estava acontecer e depois manivelava e entrava na carrinha e a carrinha então começava a andar e depois outra vez estava a parar. E assim então foram andando. Andando e parando. Cinquenta e Um, cadavez a carrinha parava descia também da carrinha e olhava à frente no motor e ficava então a disparatar a mãe dele do condutor. Depois, a carrinha foi ainda se enterrar na lama e todos os cipaios desceram na carrinha e ouviram os disparates do Cinquenta e Um. Alguém que queria lhe lixar no Sô Administrador falou então para todos os cipaios. E então depois disparatou não só a mãe dele do condutor e também a mãe deles dos outros todos cipaios.
E Cinquenta e Um estava mais zangado porque o Velho não queria descer na carrinha. E queria se meter com o Velho e um dos cipaios na mãe dele do Velho eh! podia então piorar a situação. A carrinha andava e parava e o condutor descia e ia então lá à frente no motor ver então o que e que estava acontecer e depois manivelava e entrava na carrinha e a carrinha então começava a andar e depois outravez estava aparar. Dez paragens seguidas e Cinquenta e Um perguntou no Velho se não percebia nada de mecânica e se ele não podia fazer alguma coisa. E o Velho falou que não sabia nada de mecânica. E assim então foram andando. Andando e parando. Cadavez a carrinha parava os cipaios então não adiantavam: palavra. Cinquenta e Um estava então a desconfiar é o Velho que estava então a fazer parar a carrinha andar e parar e por isso lhe perguntou então outravez se o Velho não podia fazer nada e o Velho falou então assim nada. Cinquenta e Um tinha: fúria contida. E foram andando. Em cada paragem Cinquenta e Um estava xingar a mãe deles dos cipaios todos e falava então alguém que queria lhe lixar no Sô Administrador. E o Cinquenta e Um estava sempre com a vontade dele de bater no Velho e estava sempre a travar: os socos morriam nos punhos feitos nos bolsos. E assim então foram andando, andando, andando até chegar a Malange.
E o Sô Administrador já estava cá fora e vai e vem e vai e vem no quintal da Administração. E o Cinquenta e Um quando viu Sô Administrador estava então a passear no quintal começou então a tremer de medo. E para surpresa dele Sô Administrador quando viu então o Velho estava descer na carrinha começou então a sorrir e o Cinquenta e Um experimentou ainda sorrir e depois então, vitorioso, sorriu com o Sô Administrador.
Caminhantes. Vinham de muitos caminhos. Passavam e repassavam e olhavam: atónitos. Caminhavam caminhos de muitos caminhos e: vinham. E paravam e olhavam e retomavam: caminhos. Caminhantes. Uns passavam olhando para frente e outros passavam olhando para trás. Uns passavam com o Tempo e passavam e outros vinham com o Tempo e vinham. Só árvore é que não passava e não vinha. A árvore: estava.
De boca em boca: a notícia. A árvore ia ser derrubada! Foram buscar um Velho em Camburi que vai derrubar árvore! E o Sol nem tinha ainda meia andança e já tinha então gente muita à volta da árvore. E todo o mundo veio. E Sô Administrador veio. E Sô Padre falou então que não acreditava em feitiçarias e blasfemou o Velho, Satanás em pessoa
O Velho se ajoelhou diante da árvore e ficou assim algum tempo. E gente atenta. E depois subiu em cima da árvore e toda a gente começou a ouvir então gente conversando em cima da árvore: lá. E tempo depois, da árvore começaram então a cair trapos, penas de galinha, ossos. E caíram então as cabaças, muitas cabaças.
Ninguém se atreveu a falar. Não dava mesmo para falar. Eh! Eh! Eh!
O Velho desceu e ordenou então que os homens que começassem a cortar então a árvore. E os homens começaram pum! pum! pum! E cada machadada a árvore gritava ai! ai! ai! E o grito vinha do fundo das raízes e subia pelo tronco e se espalhava pelos braços da árvore. E a gente viu: o sangue. A árvore jorrava então sangue ai! ai! ai!
Seis da tarde a árvore batucante estava ainda de pé. E o Velho estava então transpirar no olhar furioso do Sô Administrador. Cinquenta e Um desconteve: a represa. Desembrulhou então a língua, enfureceu o cavalo-marinho, atiçou a besta e o rio arrastou pedras, cada pedra, pedradas, pedragulhos e rebentou então: o dique. O Velho foi nas águas.

INKUNA MINHA TERRA


O ALMOÇO

Fora jurado amor à primeira vista.
Ninguém duvidava, ao ouvir Malaquias “Gordo” contar, com paixão, a estória do seu matrimónio, que engorda há quinze anos.
Conhecera a então futura esposa num dos programas matinais de culinária, que a T.P.A.
(televisão de Angola) quinzenalmente apresentava naqueles anos idos. A fama de bom garfo, aliada ao facto de ser dono do mais famoso restaurante de luxo de Luanda, levara a que o convidassem a presidir ao júri do concurso. Aos concorrentes era atribuído um valioso prémio, com base na receita mais original, no prato melhor confeccionado perante as inquiridoras câmaras televisivas, e nas parcas chamadas telefónicas recebidas no programa, sobretudo de aborrecidas donas de casa querendo dar palpites gastronómicos.
Embasbacado, mesmerizado nos jeitos e trejeitos culinários das mãos da fada Serafina Coquillage (assim se inscrevera), entrou em acelerada órbita amorosa quando ela, sem o querer, acariciou castamente o corpo engordurado do coelho.
Ao esquartejá-lo, cada golpe de retalho, era uma insinuante frechada de Cupido no já esfrangalhado coração de Malaquias que, boquiaberto, inalava os suados respirares da amada.
Quando Serafina começou a temperar o bicho com sal, pimenta, vinho branco (um copo), alhos e louro (uma folha), Malaquias havia tomado a decisão mais intempestiva e séria de sua vida. Se a senhora fosse solteira, ou desimpedida, nada, mas absolutamente nada, se interporia no caminho de sua felicidade. Chamaria a si a grata tarefa de desencalhar aquela frágil nave das rochas do desamor e da solidão para, incólumes, navegarem os mares doces da vida compartilhada entre caçarolas, almoços, amores e jantares.
O continuado carinho demonstrado por Serafina, ao segurar o tacho que levou a lume com o azeite (cinco ou seis colheres de sopa), a cebola picada, o ramo de salsa e um pouquinho de água, para refogar o inditoso lapin, confirmou a justeza das suas pretensões.
Mulher assim não era para andar à solta, a desperdiçar tempo e talento em programas de televisão, ainda por cima para gente que nem apreciava ou entendia a arte e o amor envolvidos. Era um atirar de pérolas aos porcos...
Sentia que Serafina Coquillage, o pseudónimo que escolhera revelava toda uma alma preparada a servir repastos dignos das kiandas (sereias), dar-se-ia por realizada não só a gerir a vasta cozinha do seu famoso restaurante na Ilha de Luanda, como a de sua casa, na qualidade de esposa amantíssima.
Serafina teria uns trinta anos, com uma cor negra a fugir para o castanho que reluzia ás luzes dos projectores do estúdio, corpo bem roliço (85 quilos) e mais para o baixo de que para o médio, e uns serenos abaulados olhos.
Viúva há quatro anos, o anafado marido morrera de enfarte cardíaco, irresistente aos bons tratos do garfo. Sua razão de vida encontrava-se nas panelas, tachos, frigideiras, esfregões e afins. Não por ser mulher, mas sim por chamada divina, um sacerdócio.
Imbuída desse espírito, ganhara concursos por tudo quanto era canto, apresentando agora seus melhores pratos no programa televisivo das dez da manhã. Levar a palavra do bem comer aos ímpios, convertê-los, era um gesto da mais alta sublimidade.
Extravasando transcendência, metia agora no tacho, onde deixara o roedor a alourar, a polpa de tomate (2 colheres de sopa) e o resto dos ingredientes (uns quatrocentos gramas de nozes picadas, pimenta preta ralada, cravinho e o decilitro de natas).
Com a coração a estoirar, mesmo antes de terminada a confecção do prato, Malquias decidiu que daria nota dez àquela fada gastronófila.
“Que maravilha, que destreza! Merece o máximo!...”, ia cochichando, suficientemente alto para os outros dois membros do júri, um, empregado seu, o ouvirem.
Quando Serafina Coquillage colocou o aromático coelho já preparado e enfeitado de salsa picada, sobre rodelas largas de pão torrado, não conseguiu esconder a enorme alegria. Tão cedo o programa terminou, dirigiu-se a ela e apresentou-se.
“A senhora foi deliciosamente maravilhosa”, disse, enfatizando a palavra deliciosa. “Poderíamos sentarmo-nos ali a um canto do estúdio e provar a peça de arte que confeccionou? Dei-lhe nota dez, nem que fosse só pelo seu nome artístico...”, continuou, estendendo-lhe uma mão adiposa, mas firme.
“Quão gostoso é ouvi-lo”, respondeu, sabendo que encontrara, por fim, a alma gémea
Depois de terem comido o coelho que Serafina (Valente era o verdadeiro nome) confeccionara, Malaquias levou-a a casa para se preparar e irem, dali a uma hora, almoçar no “Pantagruel”, seu famoso restaurante.
Decidira que seria depois da sobremesa. Sabia de antemão que o cérebro e o coração funcionam muito melhor quando o estômago está satisfeito. Seria logo após a sobremesa que lhe formularia o pedido de casamento. Caso negasse, poderia sempre tentar conquistá-la propondo-lhe a gerência do restaurante. Nunca fora aventureiro, todavia iria arriscar num jogo de tudo ou nada. Onça que não caça é onça velha, morre de faminta vida.
Ás doze e meia, como combinado, tocou à campainha da casa de Serafina, que não se fez esperar. Exsudava antecipação e seus vastos seios não o escondiam, ofegava. Malquias, cavalheiro, abriu-lhe a porta do carro, esperou que se sentasse e fechou-a com cuidado.
Serafina adorou, confirmava um pouco a ideia que fizera dele, atencioso, bom garfo e o suficientemente gordo para a tornar feliz. Aceitaria qualquer investida do adiposo garanhão, dentro das medidas da decência e do socialmente aceitável.
“Depois da sobremesa, tenho uma proposta muito importante para lhe fazer...” atirou, para sondar.
“Sobremesa? Não me fale de sobremesa, que é parte mais importante de qualquer refeição para mim”, disse, meiga e enternecida
Malaquias tremelicou de emoção, o Mercedes guinando de vontade própria, ligeiramente para a esquerda.
“Espero que tenha parfait de laranja...”, continuou Serafina, emocionada.
“Parfait de laranja?... Creio que não temos, mas doravante se não o encontrar na carta das sobremesas, paro de comer por uma semana. Juro-lhe!... Aliás, vaaiii ensinar o nosso maitre doceiro como o confeccionar da maneira que gosta”, emendou rápido, não se perdoando por não ter o referido parfait.
“Quanta doçura de sua parte! Até é bem fácil de preparar, leva poucos ingredientes. O estimado Malaquias mistura bem o leite condensado (uma lata), o iogurte natural (um casco), o sumo natural de laranja (um copo), e as cascas raladas das mesmas (pouco menos de uma colher de sopa)”, disse Serafina, ciente que lhe fazia uma declaração de amor.
“Por favor Serafina, não continue, comove-me... e estou a conduzir...”, disse Malaquias com sinceridade, o Mercedes fugindo novamente para a esquerda.
“Ó meu querido amigo, não seja modesto”, riu com pudor.
“Olhe, depois continue a misturar, numa panelinha, a gelatina (sem sabor, e em pó), e a água (meia chávena) até a dissolver. Quando tiver ganho consistência mínima, coloque em taças, intercalando camadas de creme, com camadas da mistura obtida com a castanha de caju picada (cerca de meia chávena), e o chocolate branco ralado (igualmente meia chávena)”, estimulava, a meiga Serafina, mais uma vez Coquillage.
“Tempera suas palavras com tal carinho e saber, que me deixa extasiado!... Disse alternar camadas de creme de laranja, com a mistura da castanha de caju e chocolate branco? Será que ouvi bem?”.
“Ouviste Malaquias!”, disse-lhe, sem notar que o tratara por tu.
“Oh Serafina, como me enche a alma com esse parfait!...”, retorquiu, segurando-lhe a mão sem aperceber. “Continue, continue meu bombom, e depois?”.
“Oh Malaquias, como me derretes com tuas palavras, sinto-as como se fossem a mais doce tarte de framboesas... mas deixa-me acabar! Depois enfeitas com rodelas de laranja e pedaços da castanha que sobrou, e pões na geleira até estar pronto!...”
Foi ao verem, apavorados, o outro carro contra o qual iam inevitavelmente chocar por estarem fora de mão, que Malaquias notou, atordoado pela ousadia, que segurava a mão de Serafina, e esta, espantada, que já há algum tempo o tratava por tu, contra todas as regras da boa educação, tendo-lhe incluso confessado a sua maior fraqueza, a tarte de framboesas.
Durante as duas semanas do internamento de ambos, na mais chique clínica privada de Luanda, a cozinha do restaurante “Pantagruel” esmerou-se no envio dos melhores pratos para o patrão e sua futura esposa. É que Serafina Valente, logo após o desastre, perante a surpresa dos médicos que lhes colocavam o gesso nas pernas, aceitara novamente a proposta de Malaquias “Gordo”, feita ainda quando nos bancos do carro acidentado.
Quanto ao magnífico BMW do outro condutor, desprestigiadamente atirado para a berma do passeio e destruído quase por completo, o problema era da seguradora, o que estava feito estava feito.

Luanda, capital de Angola, no ano de graça de 1996

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


JOSÉ MENA ABRANTES

NANDYALA OU A TIRANIA DOS MONSTROS

Cenário e adereços - Um círculo em tecido claro, com 4 metros de raio. Três estruturas metálicas em forma de V deitado: a face que assenta no chão (forrada de plástico) forma em relação à outra (coberta de serapilheira) em ângulo de 45graus. Um pequeno banco de madeira. Um braseiro/fogueira transportável. Três tubos rígidos de plástico transparente. Um cachimbo, um arco e um bastão. Um plástico grande.

1. A Invasão dos Monstros

(Um grupo de pessoas sentadas no chão, à volta de uma fogueira meio apagada, escuta um velho narrar uma história em voz baixa. Num canto mais afastado, um ferreiro fuma em silêncio um cachimbo).

FERREIRO
(falando ao público)

Foi uma noite como a de hoje. A aldeia estava sossegada e já quase todos se tinham recolhido. Só um pequeno grupo à volta da fogueira meio apagada escutava ainda as histórias do velho Nambonde, aquele que nasceu no ano da praga de gafanhotos.

(entram os monstros)

Foi então, quando menos esperávamos, que os monstros saíram do escuro e caíram sobre nós...
O mais terrível é que eles matavam sem fazer ruído, como um sonho...

(Quando o ferreiro se cala, ouve-se um zumbido leve que começa a aumentar de intensidade, acompanhado por um ruído surdo, semelhante a pás de helicóptero. Inicia-se o ataque dos monstros. A roda dispersa-se. Todos são mortos, com excepção de uma mulher grávida que consegue esconder-se. Os monstros percorrem o espaço em várias direcções, passeando entre os cadáveres. Pressentem a presença da sobrevivente, mas não a localizam)

Toda a aldeia foi arrasada. Eu ainda pensei em ajudar, mas... foi tudo tão rápido, e além disso não sabia como enfrentá-los. Acabei por fugir, tomado de pânico. Durante horas corri sem destino pela noite dentro. Bem protegida do frio e do vento levava comigo uma brasa acesa da minha forja. Tinha pelo menos de salvar o fogo, impedir que ele se viesse a apagar.

(Pouco a pouco, muito lentamente, os cadáveres espalhados pelo chão vão erguer-se, ao som de uma música adequada, formando o “coro dos antepassados”. Eles vão poder deslocar-se entre os monstros, como se fossem invisíveis).

2. Nandyala (nascimento e primeira infância)

(A mulher, aflita, sente os monstros continuarem as buscas. Ouvem-se de vez em quando os seus soluços abafados)

CORO DOS ANTEPASSADOS
(à medida que se põem de pé)

- Nós vimos e ouvimos aqueles que nos arrancaram a vida...
- Voltaremos quando morrerem aqueles que nos mataram...
(Os antepassados dirigem-se a seguir para o local onde se esconde a mulher, fazendo uma barreira à sua volta. Isso faz com que os monstros se desorientem ainda mais nas suas buscas).
FERREIRO

Durante anos vivi sozinho, caçando e comendo frutas e raízes. Nunca mais ousei voltar em direcção da minha aldeia. Julgava que todos tinham morrido. Nessa altura não sabia ainda que uma mulher, grávida de várias luas, tinha conseguido escapar à fúria dos monstros. Ajudada pelos espíritos dos antepassados e pela experiência d várias gerações, conseguira sobreviver na toca de um papa-formigas. Foi aí que gerou e deu à luz Nandyala, o que nasceu em tempos de fome...

(Enquanto o ferreiro fala, os antepassados transportam para primeiro plano e fazem girar a estrutura em que a mulher está escondida, indicando assim a passagem do tempo. A mulher parou entretanto de chorar. Os antepassados rodeiam-na, protegendo-a. Entoam um canto suave que vai servir de fundo à conversa da mãe com o filho que traz no ventre).

MÃE

Meu filho que vais nascer. Não tenhas medo de nada. A tua mãe cumpriu todas as regras. Depois que fiquei grávida, só o teu pai se deitou comigo na mesma esteira. Logo que tu mexeste, tomei a farinha de sorgo sentada no chão, levei para casa a cabaça com as raízes de “otyvatu”, ainda tenho amarrado ao ventre um pedaço de raiz “tyihola”. (Começam as dores de parto) Senti muita fome, mas não comi a carne das tartarugas, para não ficares para sempre dentro de mim. Não tenhas medo, meu filho que vais nascer. Aqui já ninguém te vai fazer mal. A tua mãe quer que tu vivas. A tua mãe quer viver!...

(Chega o momento do parto, feito à maneira nyaneka. Mãe de joelhos, sentada sobre os calcanhares, é ajudada pelas mulheres do “coro dos antepassados”. Os homens entretanto retiram-se discretamente para trás da estrutura. As dores são fortes, mas as mulheres não deixam a mãe mover-se).

MULHERES

- Não te mexas, queres que chamemos os homens para te ajudar? Tu sabes como eles têm uma faca bem afiada. Ou queres matar o filho que vai nascer, a vida de todos nós?...
- Talvez o arco do marido morto tenha ficado armado dentro de casa. Agora já não há remédio...

(O parto continua difícil e as mulheres dão massagens no ventre da mãe).

- Tanto tempo fechada, se calhar o crescimento parou...
- Ou então ela não encontra a saída...
- Calem-se e ajudem!...

HOMENS
(Comentando entre si)

- Esta criança no seio da mãe, que não tem por onde respirar e que vive, que mama, que não chora e que tem razões para chorar, como respira e como mama?...
- Vocês não a vêm, mas sentem quando ela mexe. Como é isto possível
- Mistérios e mais mistérios...
- Ela está como num saco e não sufoca. Se vivêssemos assim fechados não morreríamos?...
- Mistérios mais mistérios...

(A criança cai finalmente por terra. As mulheres dão gritos de alegria).

MULHERES
Alililili! Alililili! Alililili!

(Pegam na criança ao colo e admiram-na. Mostram-na eventualmente aos homens)

MÃE
(aliviada)

Subi a uma árvore e não caí. Os ramos não se partiram...

OS HOMENS
(em coro)

Mistérios e mais mistérios...

(uma das mulheres ergue a criança e diz, enquanto a estende em direcção ao Oriente...)

MULHER

A todos os teus pais!...

(... e em direcção ao Ocidente)

... A todas as tuas mães!...

HOMENS
(em coro)

As folhas das árvores não esperam umas pelas outras, mas dão lugar, cada uma de sua vez, aos novos rebentos...

(os antepassados, homens e mulheres, avançam para a frente da estrutura da mãe e preparam a cerimónia da imposição do nome. Discutem o nome a dar).

ANTEPASSADOS

- Como nasceu em plena mata, devíamos chamá-lo “Fiko”...
- O parto foi difícil, a mãe tomou muitos remédios. O melhor é chamá-lo “Vihemba”...
- Ele nasceu depois da morte dos seus mais velhos. Tem de se chamar “Nampheta”...
- Eu proponho “Tchipukukulwo”. Sei lá se ele vai viver muito tempo...

MÃE

Não! Só eu sei o que tivemos que sofrer todo este tempo em que os meses se apresentavam com os seus nomes. Ele vai mesmo chamar-se é Nandyala, o que nasceu em tempo de fome.

ANTEPASSADO

- Sim, a tua mãe tem razão. Tu és Nandyala, o que nasceu em tempo de fome!

(Um homem levanta-se e mostra a criança aos outros).

HOMEM

Eis aqui Nandyala, mais um homem que nós recebemos da Providência. Ele há-de completar o que nós não sabemos. (erguendo-o) Que este nome seja sempre respeitado e honrado!

(todos gritam e batem palmas com alegria)

(Sombras diversas, projectadas pelos monstros, começam a obscurecer o local da imposição do nome. A mãe, receosa, levanta-se e puxa o filho para junto de si. O coro divide-se. Os homens afastam-se em direcção aos monstros. Só as mulheres se precipitam para junto da mãe, dando-lhe rápidos conselhos.

MULHERES

- Do pássaro que voa
Mãe
protege o teu filho
- Do pássaro sem rabo
que oscila e treme
sem mexer as asas
Mãe
Protege o teu filho
- Não deixes, Mãe
a sombra do pássaro
cair sobre o teu filho
- Do pássaro que voa
Mãe
protege o teu filho

(A criança é erguida pelas mulheres à entrada do esconderijo. Movimento de vaivém na horizontal. Depois sentam-na no chão e tocam-lhe na cabeça e nos ombros. A mãe espreme do peito algumas gotas de leite).