domingo, 4 de março de 2012

BATUQUE MUKONGO (A ser lançado no dia 9 de Março na UEA)


3

Acreditava que o Sol

não nasceria para além do horizonte

por onde deslizavam

as vozes choradas dos contratados

em seus cantares saudosos

da terra deixada para trás

na ilusão de uma melhor vida

mais sal mais sabão

oração que mal não faz

dinheiro para a escola

panos para a mulher

e a bicicleta de ferro

com farolim brilhante

para alumiar o que não se via

que rugisse soberana

nos carreiros e picadas

que tracejavam o planalto

formigueiro de caminhos

que a todos os sítios do anseio iam

sem levar a lugar algum

a não ser às roças do Norte

às roças muitas vezes da morte

4

Uíge na Uízi

terra onde nasci

catrapim pim pim

que te afastas de mim

Uíge na Uízi

onde nasci

às cinco da tarde

explodi do ventre da mãe

ao canto do pírulas

mãe materna

mãe terra

mãe sorte

mãe água do rio

rio de outras águas maternas

chovidas ou não

chuva rugido de leão

chuva marca leve das pegadas da gazela

nascido para o mundo

às cinco da tarde

no Uíge na Uízi

quase apagada memória

da longa e única rua

de casas de adobe

de pau a pique

em pique de pau

novo e logo envelhecido

no tragar do salalé

que não sabia de arquitecturas

na linearidade da rua

onde o pau a pique

por fora e por dentro

salpicado de barro vermelho

florido de várias camadas de cal

apaziguou os gritos do parto

às cinco da tarde

de um Novembro sofrido

no ventre de uma bela mulher

Alice com Maria mãe de Deus

dores gemidas na culpa bíblica

porém Maria sempre Alice

a embalar em seus braços exaustos

o novo mundo

ainda envolto

nos líquidos maternos

mas logo a chamar

pela boca da avó materna

os antepassados

da linhagem

para o batuque

tuque norte

tuque sul

tuque este

tuque oeste

em cada ermo do mundo

cada tuque batido

uma bênção solta

no balido do cabrito esgoelado

na pele do boi malhado

preto e branco

preto mukongo

branco beirão

batuque mukongo dos reis antigos

fado do branco vindo dos mares

5

Assim nasci

às cinco da tarde

no Uíge na Uízi

terra onde nasci

catrapim pim pim

que te afastas de mim

In Batuque Mukongo

União dos Escritores Angolanos 2011

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


FRANCOFONIA

Cada vez que vejo o meu amigo Pierre, francês há muito radicado em Angola, invariavelmente me solicita que republique uma antiga crónica, acima intitulada. Sem saber como recusar, desta vez acedi.

Antes da nossa independência, o francês era uma língua que se aprendia obrigatoriamente no liceu e, não obstante ser-lhe dada maior proeminência que o inglês, também obrigatório, pouco se expandia.

Nós, os estudantes, lá íamos dizendo duas ou três bojardas em franciú, seguidas dum camone, que também pensávamos ser francês e achávamo-nos uns sabidões de carreira.

Com os acontecimentos no Congo Belga, dado que me encontrava na rota das caravanas que passavam a caminho de Luanda, aprendi mais umas palavrinhas: mercibócu, bonjure, combian e bai-bai. Foram essas as minhas primeiras e verdadeiras, porque empíricas, aulas de francês.

“Luanda? Iésse, iésse, por lá!”, e apontava o caminho, todo orgulhoso, já que os filmes que o Sousa e o Pratas traziam por lá, eram quase todos na língua do camone.

Só muito mais tarde vim a saber que o meu iésse, iésse não era do Fernandel mas sim do Roy Rogers, o cauboi preferido em todo o Zavula e arredores. A fama dele estendia-se ao Queta, ao Lucala, à Tombinga e outros pontos, lá onde a carrinha de cinema ambulante chegava.

Nos anos que seguiram, já em Luanda e no liceu, mantive-me fiel à francofonia, mesmo não falando muito mais do que falava no mato. Aprendi é que o iésse iésse do Roy Rogers se traduzia por uí-uí, ainda que não entendendo porque é que me obrigavam a dizer uí quando eu lia ôui.

Nos anos do início da luta armada, parti. Já no final da década dos sessenta, vivi dois anos em França e, aí sim, deixei para trás o franciú e o Fernandel e aprendi seriamente o idioma, até porque o De Gaulle poderia correr comigo de lá caso o não fizesse, sobretudo por me encontrar ilegal.

O francês, em Angola, conheceu um notável impulso com a abertura das fronteiras norte e com o consequente regresso dos compatriotas que viviam nos vizinhos Congos. A partir de 1979, começa a francofonização gradual do país, sobretudo de Luanda. De repente começámos a notar gente que carregava estranhamento nos erres, a Aliança Francesa viu o furo e instalou-se à grande e à francesa.

Todavia ainda há os resistentes. Há gente que não quer nada com a língua da Gálea. O compromisso máximo é lerem as aventuras do Asterix e Obelix em português. Qualquer palavrinha em francês soa-lhes como o maior dos impropérios, por maior esforço que façam.

A este respeito, havia uma senhora muito importante, esposa de comissário político igualmente importante, para quem o francês era sinónimo de tortura da idade média. Todavia, como vivia numa província do norte, o marido aconselhava-a que tentasse aprender, um pouco que fosse, e ela fez-lhe a vontade. Matriculou-se, e com o melhor do seu vasto guarda-roupa ia metodicamente ao instituto fingir que aprendia o tal idioma. Como era simpática, conversadora e comunicável, nunca ninguém deu pelo facto que não dizia, nas aulas, uma única palavra. Cá fora, sim. O verbo fluí-lhe com ligeireza e incontinência, só que em português. Nunca lhe terá passado pela cabeça que um dia teria que apresentar contas, não ao comissário político senhor seu esposo, mas sim ao professor. Quando teve plena consciência que esse fatídico dia estava próximo, a senhora não perdeu a compostura, certamente que uma solução encontraria. Em último caso, rezaria, rezaria com tanta força e convicção, claro que às escondidas pois a esposa de um comissário político nunca poderia rezar, muito mais em público, ou lá se iria a reputação revolucionária do mesmo, incapaz de educar politicamente a sua cara metade.

A solução foi copiar o texto da amiga de peito, a Joana, ao lado. Só que copiar coisa que não se entende, não é fácil não. Mas deu para transferir uma ou outra frase, enquanto mentalmente insultava o marido, não lhe bastava ter uma mulher bela e exuberante, para que raios o francês? Como nota, teve quatro, sobre vinte, frise-se.

Como o instituo andava necessitado de verbas, o bom do camarada “direitor” transformou o quatro em nove, o que permitiu a senhora ir à oral.

Se vivera a ligeira angústia da prova escrita, sentiu-se forte para a oral. Quando chamada, levantou-se, compôs o visual e produziu o seu melhor sorriso para o professor, ainda descontente por ter visto o seu quatro metamorfoseado em nove. Chegara a hora da vingança, esposa de comissário político ou não, iria pagá-las.

“Comment vous appelez vous?”

Fingiu que pensava, esperando pelo apoio da Joana, na carteira de trás.

“Diz-lhe o teu nome”, cochichou-lhe.

“Fulana de Tal”, respondeu (a estima obriga-me a manter o anonimato da senhora).

“Racontés moi quelque chose”

“Diz-lhe qualquer coisa”, sussurrou novamente a Joana, “Diz-lhe bonjour monsieur”

“Bozé méssié!”, respondeu lesta.

“O quê?!...”.disse o professor perplexo.

“Bozé méssié!”, repetiu com o seu melhor sorriso.

“Bozé méssié? Que raios é isso?”, retrucou o examinador, enervado. “Quem te ensinou isso?”

“Foi a Joana” , disse, sem maldade.

“A Joana é que te ensinou a dizer bozé méssié? Pois a Joana vai ter a tua nota na oral e tu vais passar com onze”, disse o mestre, colérico, mas suficientemente lúcido para indagar à Joana o que queria aquele disparate dizer.

“Bonjour monsieur”, saiu em jeito de silvo mole a voz da Joana, a ver-se já reprovada.

19/06/05

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



LUÍS FERNANDO

Nasceu em Tomessa, no Uíge, em Outubro de 1961. Dono de já considerável obra, este jornalista licenciado pela Universidade de Havana, desenvolveu uma carreira profícua no jornalismo angolano, sendo actualmente o director geral de um importante semanário local.
Fomos buscar ao seu excelente livro A Saúde do Morto, o excerto que aqui inserimos e que bem patenteia o exercício do humor e da ironia que corre pelos seus diversos escritos, da crónica ao romance.


A SAÚDE DO MORTO

Tinha o joelho esfolado quando, de repente, surgiu e de onde menos esperava a ajuda que preferia nunca ter recebido. Era a sua terceira queda esta manhã, as duas primeiras sem consequências de maior a não ser pequenos rasgões naquelas calças que vinham já dos tempos de moço do velho Mulengo, seu pai. Desce bem cedo na madrugada que Soares Mulengo caminhava por entre a espessa vegetação, evitando as picadas e os carreiros que conhecia bem, para não ser visto. Esperava que a essa altura do dia ninguém deambulasse pelo mato e, menos ainda, com visão suficiente para descobri-lo, ele que, caprichando nas cautelas, tinha até escolhido calça, camisa e sandálias da mesma cor da noite.
Caído, pensou que perderia a consciência num desmaio totalmente inoportuno. Escorria-lhe sangue em borbotões que não podia ver pelo rigor da escuridão, mas o tacto conseguia o que era impossível aos olhos. Soares Mulengo sabia que era tudo uma questão de tempo, que desmaiaria sem dúvidas e, pior, não poderia esperar por ajuda nesse momento e nesse lugar, madrugada escura de um domingo num bosque cerrado onde até as hienas dormiam. Imaginou, em rápidos instantes, o sol a bater-lhe na cara manhã cedo, a devolver-lhe alguma força, bastante se calhar para repor a energia de que necessitam as pernas para voltarem a caminhar depois de muito tempo de desmaio mas, de certeza, nunca suficiente para apagar a ideia de sujeito incompetente que começava a ganhar forma na sua perturbada cabeça.
Como era possível, caramba, que a sorte resolvesse sair-lhe madrasta
logo na missão em que mais precisava dela? – Merda, e ainda dizem
que o feitiço não existe – barafustou.

… Soares Mulengo despertou não quando os raios do sol castigaram o seu rosto rude como imaginara antes do possível desmaio, mas porque um homem que nunca vira antes lhe tocava
no ombro, amigavelmente, pronto para ajudar no que fosse necessário. Falou-lhe numa língua que logo identificou como diferente da sua, mais áspera e furtiva, mas mesmo assim intuiu que o forasteiro tinha o desejo de auxiliar um desconhecido em apuros. Tocou-lhe no joelho ferido que logo se recompôs e fez um sinal imperceptível com as mãos, afastando-se a passos largos. Perdeu-se por entre o arvoredo mas Soares Mulengo foi a tempo de notar três curiosos pormenores que o marcariam para o resto da vida: o seu salvador estava nu, tinha uma enorme cauda e a orelha esquerda era incomparavelmente maior que a do lado direito. – Um demónio. Sou um homem morto. Ai Deus, Nzambi-a-Mpungo!
Foi fulminante o desmaio e enquanto durou, talvez muito tempo, talvez breves instantes, Soares Mulengo sonhou que voava, deixando atrás aldeias desertas, manadas de veados e cadáveres abandonados ao lado de cemitérios em ruínas. Abriu os olhos e notou, pela paisagem desconhecida, que tinha voado e a ideia do sonho era, com toda a certeza, delírio de quem perdera tanto sangue. – Ainda bem, vou poder cumprir a minha missão – disse, alto, para ter a certeza de que não tinha perdido a voz no contacto com aquele estranho ser.
Ganharam um brilho metálico os olhos de Soares Mulengo, sinal claro que o corpo e a alma estavam trespassados por uma alegria especial. Continuava a ter o controlo sobre um embrulho feito com uma surrada lona cor de cinza, transportado para o matagal com a devoção de um monge e a determinação de um guarda romano. Se estava fora de casa desafiando os mistérios da madrugada, se tinha lesionado o gravemente o joelho e se resistia ao azar de ter cruzado com um demónio, era pelo embrulho, a essência e o fim último de uma missão ultra-secreta que estava destinada a mudar-lhe, para sempre, o rumo da vida.
***
João Kyomba era o mais ousado desordeiro que se conhecia por aquelas terras. O roubo de galinhas e a teimosa mania de deambular pelas ruas sem roupa para que todos admirassem como a natureza tinha sido generosa com ele, forma os seus primeiros desmandos, catalogados de início como simples desvios de conduta, numa terra sem experiência em violações dos costumes comunitários. Sem polícia para reprimir infracções e sem cárceres para isolar os maus, cedo se sentiu encorajada para elevar o nível e a brutalidade dos seus actos, passando a roubar não as duas habituais galinhas semanais mas trinta, incluindo os seus ovos e crias. Decidiu também dar melhor uso ao bem dotado membro que o acompanhava a todo o laDo, convencido de que tanta generosidade divina não poderia ser apenas para exibições públicas sem qualquer ganho. Fez uma, duas, três e até cinco vítimas, todas adolescentes que não tinham aprendido ainda a arte contra o estupro, situação lógica numa terra onde ninguém necessitava de observar cautelas de espécie alguma porque o sexo estava ao alcance de todos, era uma espécie de bem público e os jovens tinham apenas de comunicar a intenção ao pai da criatura eleita, que nunca recusava o pedido, para não tornar a vida difícil numa comunidade estruturada sobre o princípio sagrado da simplicidade.
Depois descobriu que podia também aventurar-se na arte da conspiração política, convicção que lhe veio da interpretação errónea de um sonho em que multidões empolgadas o aclamavam como o novo imperador. Acreditou que o sonho tinha sido uma espécie de missão confiada do além e que o seu papel de líder era para ser exercido de imediato, ainda quando por aqulea terra o conceito de autoridade pública não fazia qualquer sentido porque, de tão puros e nobres os comportamentos dos habitantes, se tinha imposto por si mesma a sábia opção de ninguém mandar em ninguém. Se não havia, em princípio, nada a regular nem conflitos a resolver, menos ainda ameaças de invasões externas, estava claro que um governante, fosse ele investido na pele de regedor, comissário ou ministro, seria uma peça sem encaixe naquele lugar. Não foi assim como João Kyomba viu daí em diante a velha tradição de a vida colectiva ser gerida na santa paz do Senhor sem outro poder palpável que não fossem os bons costumes.
Perdeu toda a consideração e respeito pelas muitas gerações que por ali se foram revezando ao longo de séculos, abominando a sua falta de tino político. – Cambada de miseráveis, so comer, dormir e vadiar – repetia, no início em voz baixa e algum tempo depois de maneira
ostensivamente ruidosa.
– Como puderam andar por aí tantos anos sem um comício, sem uma chicotada do poder, um homem enforcado em praça pública para impor respeito» Moles!! – interrogava-se João Kyomba nos dias de maior assanhamento? É óbvio que custou muto aos demais entender o discurso iluminado de João Kyomba, desconhecedores de queram em absoluto de todas as práticas políticas, incluindo as mais rudimentares. Tomaram-no por doente e recearam que mais pessoas viesse a contrair o mal, se calhar uma daquelas doenças que passam de pessoa para pessoa e que em poucos dias dizimam milhares.
Como ali era de bom tom encontrar soluções sem exercitar muito a mente, não se perdeu tempo para se chegar à conclusão de que o melhor para todos era encerrar por algum tempo João Kyomba num recinto qualquer e deixá-lo entregue a uma dieta de água alternada com sumo de limão, água para ver se o cérebro era convenientemente lavado e limão para ser o primeiro a testar a teoria de que a vida tem sempre um lado azedo. – Em quinze dias a loucura passa-te – disse o possante voluntário que acabava de encerrar João Kyomba num cubículo onde, noutras circunstâncias e noutro local, teria necessitado certamente um especialista em mudanças para ajudar-lhe a acomodar o corpo gigante. O detido atirou janela fora á água e o sumo de limão para demonstrar, sem equívocos, que era homem capaz de valer-se por si e que, com ajuda da inteligência prodigiosa que acreditava possuir, resolveria em dois tempos o problema do encarceramento absurdo. Activou o cérebro, que à semelhança de todos os demais por ali permanecia incrivelmente subaproveitado e inexplorado, e levou-o quase até ao limite do seu potencial. A solução que um cérebro tipo zero quilómetros encontraria só podia ser genuína e radical: deixar-se morrer para ressuscitar livre!
No dia seguinte de manhã, Joaão Kyomba estava transformado num montículo de massa decomposta, misturada com ossos de rara coloração esverdeada e sangue escorrendo em círculos. Num canto, a caveira em pose desafiante, sem parar de fervilhar nos orifícios da boca, dos olhos e do nariz, uma estranha pasta de cor cinza, a prova de que aquela não era uma morte sem mistério. O estranho embrulho feito com lona cor cinza carregada que errava pelo matagal em plena madrugada era nada mais e nada menos que João Kyomba a caminho da sua sepultura, uma diligência que Soares Mulengo se dispunha a cumprir fossem quais fossem os obstáculos e as contrariedades.
Se tinha demonstrado coragem e engenho na tarefa de pôr na ordem João Kyomba convertendo-o de ameaça pública em primeiro preso cívico do lugar e arredores, era justo que, tendo o detido optado por apodrecer na cadeia, Soares Mulengo se adaptasse às novas circunstâncias. Pensou primeiro desfazer-se do grotesco espólio de João Kyomba ali mesmo, pegando-lhe fogo, mas receou que a fumaça pudesse precipitar alguma catástrofe. Resolveu aguardar, sem pressas, que o manto da noite caísse para dar início a uma operação que calculou simples e rápida. Era juntar ossos, caveira e músculos decompostos, fazer um embrulho, mergulhar no matagal e entregar à terra gélida os destroços de um corpo que as adolescentes recordariam pelos vistos com secreta saudade. Não entro em pânico quando descobriu que para fazer a cova só dispunha das próprias mãos. – Não há problema. É de maneira que fico com a fama de ser o primeiro a fazer um funeral aquático – disse, sem disfarçar um sorriso de coveiro vencedor. A alternativa, de facto, era o rio com as suas águas mansas e de um branco níveo, transparentes ao ponto de se saber que não tinha peixes, caranguejos ou qualquer outra forma de vida. Um tapete de areia limpa, sem o menor vestígio de lodo, cobria o fundo que qualquer mão atingia. Não era, portanto, fundo o rio que se aprestava a receber os restos mortais de João Kyomba. Faltava algum tempo antes do sol vencer as trevas, portanto madrugada escura ainda, quando Soares Mulengo poisou os pés na areia e tomou a decisão repentina de fazer o funeral rodeado de um ritual confuso, ele que até ali tinha pensado apnas em se livrar do corpo desfeito do prisioneiro. Sabia que perder tempo não era brilhante ideia mas pior ainda pareceu-lhe estrear uma técnica com futuro, a dos funerais aquáticos, sem deixar uma marca para ser recordada no tempo. Não estava a mais, por isso, o ritual, que poderia começar de qualquer modo, por mais desastrado que fosse. Optou por uma canção de embalar, perdeu-se nos primeiros instantes e ali mesmo ficou, mas valeu-lhe a alegria imensa de ter escutado a repetição do seu desafinado arrojo musical. O eco, dezoito anos depois, era o mesmo encanto arrebatador para aquelas gentes! Disse algumas frases desconexas em voz alta apenas para poder admirar a magia do eco e lamentou não poder investir nisso mais tempo porque a prioridade era o primeiro funeral de água doce. – Vem cá, chegou a tua hora – ordenou Soares Mulengo, como quem se dispões a conduzir ao patíbulo um condenado à forca. Mergulhou ossos, músculos desfeitos e caveira, nessa ordem, com cuidado de não deixar que a correnteza, na realidade mínima, arrastasse os inertes bocados.
Julgou oportuno dizer qualquer coisa mas reprimiu o súbito desejo de falar, temendo que o seu discurso acabasse no mesmo desastre que tinha sido a tentativa de cantar. Saltou para a margem e à falta de melhor ideia para terminar aquele lutuoso acto, decidiu de tomar o caminho de volta a casa. Atrasou-se apenas alguns instantes, para atirar rio abaixo a ensanguentada lona depois desta ter cumprido com competência o seu papel na transportação dos restos mortais de João Kyomba. E foi nesta fracção minúscula de tempo que Soares Mulengo viu emergir da água a figura recomposta do primeiro homem a ter não em terra firme, bem disposto, pele rejuvenescida e cabelo a lembrar tratamento cuidado com óleo de boa natureza, mais crescido também – Bom dia Soares. Tu por aqui? – atirou secamente o ressurgido João Kyomba, que não admitia dúvidas nos seus elementos essenciais de identificação, a saber: a voz rude, o olhar.