domingo, 1 de agosto de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


A VERDADE

Uma vez ouvi um homem famoso afirmar na televisão, que entre Deus e a Verdade, ele escolheria Deus.
Fosse qual fosse a verdade que tivesse que se tornar mentira, deduzi.
Sem desejar revelar ironia ou pessimismo, acho ser essa a regra do jogo, sendo os maiores mentirosos aqueles que se escudam atrás de Deus ou atrás da Pátria. Cedo aprenderam que, emocionalmente, ambos estão sempre lá para os proteger. Escolhendo Deus sobre a Verdade, tornam-se mais fácil os desígnios pessoais ou colectivos, queima-se, para exemplo e sem qualquer compunção, uma Kimpa Vita, uma Joana d’Arc, o Mundo deixa de ser redondo e passa a ser plano, o Sol gira à volta da Terra e por aí fora, sempre com a certeza de que as nossas consciências estarão limpas, não obstante os nossos actos. Deus vira uma abstracção, um conceito relativado segundo a conveniência, e a Verdade vira a palavra maleável, a plasticina com a qual moldamos as nossas intenções últimas e às vezes macabras, como nos provam todos os Hitleres, os Bokassis, os Pinochet os Pol Pots da História da humanidade, sem falar na Santa Inquisição.
É verdade que o Homem, monoteísta ou não, invariavelmente escolheu deuses que se parecessem consigo e com a sua interacção com a Natureza, englobado tudo o que ela tem de telúrico. Deuses ferozes, vingativos e sem contemplação, que se manifestavam através do trovão, da espada justiceira e, portanto, revestidos, pela mão do Homem, de uma moralidade imperdoável, para apaziguamento de uma ira divina que nada poderia justificar.
O Deus do Antigo Testamento pede a Abraão que lhe sacrifique o filho.
Muito recentemente, na horrenda desgraça que foi o Tsunami, as mesquitas ficaram de pé, talvez pela sua arquitectura em que predominam as aberturas, os claustros, dando assim vazão à água e, por esse facto, também aqui, para os islâmicos, Allah, sobrepôs-se à Verdade, à miséria humana, à pobreza, à falta de meios técnicos de detecção, e por esse facto, desapareceram da face da terra cerca de 300.00 pessoas, sem falar dos seres do chamado reino irracional.
Na verdade, ou melhor dizendo, na verificação das leis da física que regem o(s) Universo(s), este mesmo Universo não se compadece ou contempla a moralidade, a felicidade humana, ele move-se como uma máquina de engrenagens bem oleadas e em funcionamento ininterrupto de acordo com essas mesmas leis.
De modo algum estou a pôr em causa a crença, a existência de Deus, mas sim a reflectir sobre os caminhos que o Homem inventa a fim de que possa dizer, sem reservas, que acima de tudo está aquilo que ele pensa ser a sua consciência, ou a tranquilidade da sua consciência. Só assim o Homem consegue colocar Deus acima da Verdade, como uma fatalidade, porque, ultimamente, Ele será o responsável de todos os gestos, de todas as acções humanas, como o queimar das matas, o poluir dos oceanos e da atmosfera, as guerras de todos os tipos e, finalmente, da sua própria destruição.

13/03/05

SUMAÚMA - POESIA


SUBDESENVOLVIMENTO

Saboreando
o filete mignon
do subdesenvolvimento

no prato porcelana de lata
agarramos com dedos de prata
osso velho de boi em fermento
na água ajindugada do momento


A HORA

A hora aconteceu
da morte abandonada
sob carcassas ao sol

três
quatro
quem sabe
mesmo seis ou sete
margaridas
verdejam
dos fundos vaginais
onde olhares milenares
de dúvidas
perscrutam
o nascer
ou morrer

ANTOLOGIA DO CONTO ANGOLANO


TRAIÇÃO



Felisberto Matias, oficial das forças armadas, olhos colados no ecrã de televisão, admirava as famosas pílulas azuis, reputadas de moderna tesão do fim do século e milénio. Se o mundo acabar no ano 2000 como predizem certos imbecis, pensava ele, iremos todos de pau em pé.
Consigo encontrava-se Osmar Martins, piloto aviador, amigo de infância, com quem havia conferido medidas, calibres e planos de voo nos idos anos da ingenuidade, em mútuas e arrojadas descobertas eróticas.
“Afinal”, dizia ele ao amigo, “essa pílula para a bazuca não é senão o pau de Cabinda.
É necessário referir que o termo bazuca, utilizado por Felisberto em assuntos de sexo, refere-se ao órgão sexual, por muitos também chamado de extrovenga, aquilo, verga, pila, bacamarte ou, simplesmente de Alberto, Joaquim, Muntu, conforme o gosto, o momento ou a situação. Felisberto assim o denomina por ter sido bazuqueiro em duas das guerras angolanas.
“Como sabes?”, perguntou Osmar Martins com um sorriso.
“Não é preciso ser muito inteligente para o ver. Olha o mbrututu por exemplo, vai a qualquer farmácia de Lisboa e lá o encontrarás.”
“Eu nunca vi!”
“Porque nunca perguntaste. Esse mesmo pau de Cabinda vende-se numa embalagem toda bonita, eu já o comprei.”
Da cozinha do pequeno apartamento, a voz de Benilde Matias, esposa de Felizberto, fez-se ouvir.
“Já querem jantar, ou vai mais um uisquezito?”
Felisberto olhou inquiridor para Osmar e ao aceno afirmativo, retorquiu.
“Aguenta mais um pouco, nós ainda vamos tomar outro. Também queres?...”
“Não, obrigada, veio a resposta da cozinha.
Osmar olhou firmemente para Felisberto, que desviou os olhos, como que envergonhado. Cada vez que Osmar o olhava assim, sentia-se desprotegido. O pior de tudo é que esse sentimento agradava-lhe, havia ali uma declaração que ele apenas intuía e lhe era positiva.
“Quando é que voas outra vez?”, perguntou Benilde que entrava na sala com uma travessa de comida na mão, poisando-a na mesa.
“Talvez daqui a uns quinze dias, tenho horas a mais e vou reclamá-las, preciso de um descanso.”
“Vais a Portugal?”
“Para onde querias que ele fosse?”, indagou Felisberto. “Só voamos para lá e Joanesburgo.”
“Isso é falso”, retorquiu Osmar. “Também vou ao Brasil e outros sítios.”
“Meninos, se ficam aí na conversa o jantar vai esfriar”, informou Benilde, fazendo um sinal para se virem sentar à mesa.
Os três para lá se dirigiram. Benilde abriu as tigelas fumegantes, para revelar um apetitoso repasto.
“Que cheiro maravilhoso!...” disse Felisberto, enquanto passava a garrafa de vinho ao amigo, para a abrir.
“Não admira que o Felisberto não te deixe, boa na cozinha, boa na caminha, lá diz o velho ditado.”
“Nunca ouvi esse ditado”, respondeu Benilde.
Sentiu-se entristecida e tentou esconder. O marido há mais de cinco meses que se mantinha alheio às obrigações conjugais. Chegado o momento, a bazuca, como ele em tempos idos tão apropriadamente chamava ao apêndice, não mais disparava porque amorfo. A mulher bem tentava todas as tácticas que nos anos da recruta nupcial ele lhe ensinara, incluindo o “avanço por fileiras”, mas sem resultado. Felisberto, o famoso bazuqueiro, não conseguia lançar um simples petardo carnavalesco. Ele próprio não se explicava. Abatido, ficava a olhar o penduricalho na mão da mulher, que, desalentada, acabava por lhe dar as costas e, em grosso suspiro, adormecia.
“Não dizes nada?”, perguntou Osmar olhando intencionalmente para o amigo.
“Que queres que diga?”
“É que ficaste com uma cara de zangado, de alguém injuriado!”, disse.
Benilde, que não estava a gostar do rumo que a conversa tomara e viu o momento para o desviar, retorquiu de imediato
“Ah!, isso faz-me lembrar que gostas de bacalhau, não é?”
“Assim é, mas o que tem o bacalhau a ver...?”, respondeu Osmar.”
“Pois antes de ires vou fazer-te um prato de bacalhau que nunca comeste”, disse Benilde, fingindo que o não ouvira.
“Qual é?, perguntou Felisberto? “Já agora também estou curioso.”
A tensão desfeita, Benilde sentiu-se novamente à vontade e pediu um pouco de vinho.
“Que famoso prato de bacalhau é esse, que nunca comi?”, quis saber Osmar.
“Pois aposto que nunca o comeste; bacalhau injuriado.”
Osmar e Felisberto desataram a rir, de facto nenhum deles ouvira antes falar do dito prato.
“Estão a ver o que dá serem dos mabululus? É isso!...”
“Então explica lá porque é que o bacalhau é injuriado”, pediu-lhe o marido, servindo-se outra vez.
“Porque é cozinhado, ou melhor, adaptado à nossa moda, daí a injúria que lhe é feita.”
“E por se adaptar ao nosso gosto torna-se injúria? E qual é a injúria?”, perguntou Osmar.
“O uso do que é nosso, os kiabos e o óleo de palma por exemplo.”
Os dois ficaram a olhar para ela, sorridentes, à espera que continuasse, talvez valesse a pena experimentar o tal de bacalhau.
“Pois Osmar, no próximo sábado estás convidado para vires comer o bacalhau...”
“Alto lá, espera aí!... Primeiro tens que nos explicar como se faz, senão quem é capaz de ficar injuriado é o meu estômago...”
Acharam graça à resposta e Benilde ainda ria quando respondeu.
“Claro que tem que haver o bacalhau, depois os quiabos, o dinhungo, o tomate, a cebola e o jindungo. Há mesmo quem goste com jimboa.”
“Mas isso é funji de peixe!”..., admirou-se Osmar.
“De facto é acompanhado de funji e leva mais ou menos os mesmos ingredientes. Mas não me interrompam. Limpa-se o bacalhau e corta-se aos pedaços, que se colocam numa panela com um pouco de água. Quando estiver a ferver põem-se os outros ingredientes e juntas o óleo de palma e deixas a apurar.”
“Parece que não teremos nada a perder em tentar”, disse Osmar, dando uma cotovelada no braço de Felisberto.
“Então ficamos combinados, próximo sábado. Pena é que não tenhas mulher, seria mais agradável”, reclamou Benilde.
“Mulher? Nem a brincar, só servem para aborrecer.”
Benilde olhou para o marido, como que pedindo ajuda, solidariedade pronta e inequívoca. Este fez que não entendeu. Frouxo!, insultou-o em pensamento.
“Não digas asneiras. Claro que uma mulher é necessária.”, atirou, tentando não mostrar a raiva que sentia.
“Pois eu dispenso. E logo nos dias de hoje, uma cambada de interesseiras.”
“Não te conhecia assim tão misógino.”, insistiu Benilde, mais calma.
“Até nem o sou, preferi é viver solteiro. Olhem, no outro dia visitei a casa de um paquistanês e sabem o que estava pendurado na parede, em sítio bem visível?...”
“Não!”, respondeu o casal.
“Uma chibata! Isso mesmo ou, se quiserem, um chicote.”
“Artesanato?”
“Foi o que eu pensei, mas não. Quando perguntei para que servia, sabem o que me respondeu? Que a chibata estava ali para que a esposa visse. Fez esta afirmação à frente dela e das crianças, dois rapazotes que logo sorriram.”
“Troglodita, troglodita é o que esse homem é.”
“Calma filha, não te zangues.”, tentou apaziguar Felisberto.
“Não me zango, achas que é justo?”
“Claro que não...”
Osmar há algum tempo que farejara insegurança no casal. Havia qualquer coisa que não ia bem, Benilde andava nervosa e demasiado susceptível, Felisberto, inseguro e escorregadio.
“Mas o que vos contei ainda não é nada...” continuou.
O subconsciente desafiava-o, desejava ainda que sem o saber, provocar uma situação na qual pudesse tirar o pulso, medir a tenção.
“Não quero ouvir mais!...”
“Pois devias, porque as tuas primas andam com uns libaneses. Elas que se cuidem...”
“O problema é delas.”, retorquiu Benilde.
“Pois o fulano aconselhou-me que quando me casasse, ao chegar a casa, desse todos os dias uma bofetada à minha mulher.”
“Estás a gozar comigo, não é? Queres exasperar-me. Porque haverias de dar uma bofetada na mulher?”, perguntou Benilde.
“Fiz-lhe a mesma pergunta e disse-me que não me preocupasse com isso, se eu não soubesse porquê, ela sabê-lo-ia.”
Osmar olhou para Felisberto, na expectativa de uma reacção a favor da mulher. Este limitou-se a baixar os olhos e a virar a cara para o lado para que Benilde não reparasse no sorriso esboçado.
“Rua, todos para a rua, não vos quero cá em casa...”
“Mas ó querida, não vês que o Osmar está a brincar contigo, a provocar-te?”
“Pois acho uma brincadeira de muito mau gosto.”
Pouco depois, levantaram-se da mesa e sentaram-se na parte da sala que servia de estar. No cadeirão de dois lugares ficaram Felisberto e Osmar, no cadeirão pequeno, Benilde.
“Porque não vais fazer o café?”, perguntou ao marido.
“E aproveita para trazeres um cheirinho.”, solicitou Osmar.
Felisberto dirigiu-se à cozinha, Benilde colocou o seu CD preferido e Osmar acendeu um cigarro.
O ambiente ora descontraído, sentiam-se satisfeitos.
Na cozinha, Felisberto assobiava ao som da música, enquanto vertia a água a ferver no saco de pano. A casa foi invadida pelo aroma doce do café fresco e puro. Momentos depois, apareceu com as xícaras de café numa bandeja. Dirigiu-se a um pequeno armário e retirou uma garrafa de uísque e uma de licor para a mulher.
“Para o mês quero ir à África do Sul.”, disse Benilde, depois dos cafés servidos.
“Mas ainda há sete meses estiveste lá!...”
“Estou cansada desta vida que levamos aqui. Nunca se pode fazer nada ou ir a sítio algum. Sabes quando fomos a um cinema pela a última vez?”
“Lá isso é verdade, se não são as farras e a praia, embrutece-se nesta nossa terra.”
Osmar esticou o braço com o copo para Felisberto servir e, no gesto, manteve o joelho colado ao do amigo.
“Nem a televisão nos serve!... Não consigo sequer ver o telejornal.”
“Não sejas tão exigente!...”
“Não é isso. Quase sempre me aparece aquele parvalhão de orelhas de abano que pensa que local de palhaço é à frente de uma câmara a gesticular, depois, só se ouvem notícias de guerra.”
“Parabólica filha! PA-RA-BÓ-LI-CA!... ou então não és gente fina, afirmou Osmar.”
“Não me comeces a aborrecer outra vez!”, disse Benilde.
“Pois se quiseres ir, vai.” disse Felisberto, para logo sentir a pressão do joelho de Osmar aumentar ligeiramente.
“Penso ficar uns quinze dias. Quero ir a Sun City e ao Cabo, onde nunca fui.”
Felisberto não conseguia concentra-se na conversa. Lutava para afastar o seu joelho do do amigo, todavia sentia-se paralisado e, mais uma vez, com aquela sensação de prazer a invadi-lo por completo.
Até conseguiu uma erecção. Atordoado, deu um pulo da cadeira, o que a todos assustou.
“Santo Deus, o que se passa?”, perguntou Benilde aparvalhada.
“Um rato, um rato, gritou ele.”
“Rato? Nunca tivemos ratos!...”
“Por ali, foi por ali...”, apontou.
Osmar olhou curiosamente para Felisberto. Foi à entrada da cozinha, deu uma vista de olhos, e regressou sorrindo. Olhou para o relógio.
“Olhem, meus queridos, vou-vos deixar com os vossos ratos. Está na hora.”
Despediu-se do casal e desceu as escadas, feliz e contente consigo próprio. Percebera as emoções de Felisberto e considerou os dados lançados.
“Ratos!...” disse, já a entrar para a viatura. “Um grande rato me saíste tu!”, pensava no amigo.
Na semana seguinte, houve o esperado almoço, cujo prato principal foi o bacalhau injuriado, comido com bastante agrado pelos quatro. Osmar trouxera uma amiga antiga, Josefina, pela aparência muito mais antiga do que ele. Felisberto, feliz, talvez pelas várias garrafas de um bom vinho alentejano por eles bebido, manteve-se afastado do amigo. Benilde e Josefina, riam sobre o nome da iguaria que haviam acabado de comer.
“Estava tão bom que varremos a injúria toda.”, disse Josefina, já com um copo a mais.
“E se fossemos para a praia?”
Levaram uma sombrinha e dois luandos para se sentarem, não iriam banhar-se. Na caixa térmica enfiaram umas gasosas e mais duas garrafas de vinho, sem ninguém se preocupar quem seria o volante, todos eles acariciados pelo longo abraço de Baco.
Quando as mulheres foram banhar os pés, Osmar deitou-se ao lado de Felisberto que perscrutava o céu nebuloso. Olhou-o fixamente nos olhos e, para sua surpresa, Felisberto não desviou o olhar.
“Tenho que me lembrar da marca deste vinho!” disse Osmar a brincar, tentando esconder a reacção que o facto lhe produzira.
“O quê?!” perguntou Felisberto, apanhado de surpresa e sem compreender.
“O vinho! O vinho...”
“O que tem o vinho?!”...
“Pela primeira vez não desviaste os olhos de mim...”, sussurrou.
Felisberto estremeceu como se uma lufada de vento gélido lhe tivesse atravessado a alma. Virou a cara para o lado e tentou não mostrar o nervosismo, a ansiedade.
“Não sei porque tentas fugir das tuas emoções.”
“Fugir de quê?” quase gritou. “Estás parvo ou quê?”
“Bom, aqui não é o sítio nem o momento para conversarmos. Quando...”
“Não há nada a conversar” interrompeu Felisberto, agressivo.
Osmar olhou de soslaio para onde as mulheres estavam. Tranquilo, avançou o cavalo, preparando o final do jogo, que sentia já ter ganho.
“Quando a Benilde for à África do Sul, teremos muito tempo para nos explicarmos. Lembras-te das nossas brincadeiras de criança?”
Felisberto sentiu-se desfeiteado e os mecanismos de defesa funcionaram aceleradamente. Nunca se vira numa frente de batalha sem munição para se defender, e ainda por cima com aquela maldita e inesperada erecção da bazuca, que o obrigou repentinamente a deitar-se de bruços. Acreditou que Osmar não tivesse notado, porém este notara e fizera que não, cavalheiro e paciente.
“Éramos crianças, não digas disparates. Todas as crianças brincam de papá e mamã...”
“Todas?...”, cochichou, dando o xeque-mate.
As mulheres aproximavam-se e a conversa foi interrompida, para alívio de Felisberto.
Ao cair da noite, regressaram, jantaram, beberam o resto da garrafa do bom vinho alentejano e, ao deitarem-se, Benilde foi agradavelmente surpreendida por uma investida das forças armadas, em gloriosa carga da artilharia ligeira, incluindo o tão almejado “avanço por fileiras”, repetido várias vezes. Hora largas depois, meio adormecida e exausta, abraçada ao marido que já ressonava os alentejanos vapores etílicos, ainda se ouviu a ciciar.
“Temos que fazer mais vezes esse bendito bacalhau injuriado!...”
Duas semanas depois, partiu para a África do Sul, feliz com Felisberto, mais do que nunca seu amantíssimo esposo. Após aquela noite, o nosso bazuqueiro não mais se rendera.
Com inimigo certo a acossá-lo e uma retaguarda a proteger, combatia heroicamente, não obstante a maior parte das vezes assustado.
Benilde nunca se sentira tão lambuzada de tanto e viril amor.
Não imaginam pois a surpresa dos amigos, ao lerem em jornal da urbe que uma mulher, citada como Benilde, havia baleado o seu esposo, Felisberto, oficial das forças armadas, quando ao regressar da viagem à África do Sul, o flagrara em altos voos nos braços de um piloto, Osmar, numa engajada batalha amorosa na cama do casal.
Tresloucada, agarrara na pistola do marido que estava na mesa-de-cabeceira e ferira os dois a tiro, já estando ambos fora de perigo.
A esposa foi conduzida ao hospital Militar, enquanto balbuciava incessantemente, sobre o efeito dos sedativos:
“Bacalhau injuriado, ai é?!... Bacalhau injuriado, ai é?!...”

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


>FILIPE CORREIA DE SÁ

Jornalista, nascido a 27 de Maio de 1953, no Balombo, Angola, residiu em Cabo Verde desde 1985 tneo voltado a Angla em 2009. Neste seu primeiro livro, cujo título busca o nome numa famosa cordilheira de Angola, o autor fala-nos de um reino antigo de vastas planícies e montanhas, no sul do mundo, e narra uma história sob as chamas da fogueira dos Passados, guardada por Todo o Mundo, o renascido. Dele tiramos os excertos aqui contidos.

ESTAMOS JUNTOS NO REINO ANTIGO

Um reino antigo ocupa vastas planícies e montanhas no sul do mundo. As águas brilham entre as matas e os canaviais, tombam, por vezes em cachoeiras prateadas, sobre corpos serenos que se banham nos rios.

Estamos Juntos, de pé, de braços abertos a inspirar da manhã, a cheirar a guano, os aromas na sua temperatura, de palha húmida e estrumada, as lufadas ácidas das gajajeiras a chamar os mercadores do pólen. A casa dele no cimo de um morro debruça-se sobre o rio que passa em baixo onde peixes abundam. O marulhar da água a correr extingue-se no fundo de uma garganta de pedras a cachoeirar numa ravina. O rio continua para longe, recuperando, mais à frente, os braços que estendera para trás dos morros ou nas depressões do caminho.

Era frequentepassarem caravanas ali perto, sítio ideal para reconfortar homens e alimárias, num movimento cíclico, regular.

Ao longo do tempo, sementes viajantes no lombo das manadas transumantes, de gnus e palancas, germinavam árvores de vário porte, muitas já então na época de fazer pender dos galhos encurvados frutos sumarentos de apetecer. Manga, fruta-pão, gajaja, pitanga, banana, goiaba, maboque e outros tantos.

A pouca distância da casa de Estamos Juntos, passava uma das rotas das caravanas dos mercadores, rede infindável que circulava por todo reino. O movimento aumentava de dia para dia, naqueles últimos tempos. Alguma coisa se estaria a passar, pensava, embora estivesse longe de saber o que seria e não mostrasse sinais particulares de inquietação pelo que concluía.

Raras pessoas apareciam na sua morada. Não era visível de baixo, protegida por uma camuflagem de árvores, pedras cinzentas enormes e uma série de outros cumes com melhor acesso. Às vezes aproximava-se gente, mas só mesmo quem precisava de alguma coisa. Apenas o acidental reflexo de um utensílio ao Sol, a bruma dos fumos, o som de um animal, o rodopiar das pombas fazia saber da presença de alguém ali a morar. Se carecia de um produto, punha-se a caminho, descia para o acampamento mais próximo. Sabia das notícias desta maneira, enquanto procurava o que pretendia, entre os mercadores. Se não havia num, procurava noutro, assim ia ouvindo. Conversar, conversava pouco, não se demorava muito nas falas, porque não entendia a maior parte das conversas.

Estamos Juntos tinha sido criado ali, naquele cume de morro, pelo avô, que um dia disse: “vou-me embora, tu ficas aqui. Ensinei-te tudo o que um homem precisava para viver, mesmo na solidão. No momento propício, saberás do resto, aquilo que desconheces ou o que esqueceste e esquecerás. Preparei-te para enfrentares a solidão. Agora vais ficar sozinho, eu não volto mais”.

Estamos Juntos perguntou então para onde é que ele ia e por que não voltaria mais. No peito, um aperto subia devagar, um nó na garganta.

O avô disse que tinha chegado a hora dele, de abandonar os terrenos deste mundo. Chegara até ali durante o tempo de o criar. Agora já era gente que podia tratar de si mesmo, que nunca se vira ninguém crescer sozinho, nem os bichos das goiabas; quem os põe lá é mesmo a mãe deles, com tudo preparado. E que não voltaria era uma maneira de dizer, sabe-se lá, lá talvez voltasse, mas não com aquela cara e aquele corpo, seria doutra maneira. E não disse mais porque estava muito cansado e ainda teriam de andar até ao sitio onde se separariam.

Chegaram ao pé da montanha. O avô sentou-se numa entrada muito escura entre duas pedras e disse:

- Ouve então o que te digo. Aquilo que foi até agora e vai acontecendo, já não existe mais, só mesmo no pensamento mais no fundo que a gente guarda sem mexer muito. Como aquela água da cacimba ou da lagoa, onde por vezes te levava, para ficarmos a olhar as coisas a passar à nossa frente e dentro das nossas cabeças. Uma coisa vou repetir: deves sempre guardar bem, tudo quanto te deixei, principalmente o Passado que não podes perder. Se não vais sofrer grandes tragédias. Nele não podes inclinar demais o teu coração, como também não o podes afastar demais.

Fica só com o teu e deixa o dos outros que a eles pertence, só assim pode existir um que seja de toda gente. Como esta pedra que se apoia apenas com um bocadinho do seu corpo nesta outra, sem cair nem para um lado para o outro. Agora vem, vou entregar-te o teu Passado.

Entraram. Lá dentro estava frio e o eco dos seus passos liquefazia-se contra as paredes rochosas sobre as águas transparentes de uma lagoa; a luz do sol enfeixava-se, com muitas cores, através de umas aberturas, por onde o vento silvava.

O avô desembrulhou dos panos um objecto que Estamos Juntos via por vezes lá em casa, parecia um cajado. Feito de argila branca e de madeira de munhango, gravada a fogo, tinha o tamanho de uma perna, do joelho para baixo. Das zonas mais escuras e recuadas da gruta emanava uma luminosidade que dava vontade de acariciar com a mão. O avô tirou um outro, idêntico, mas menos luzente. O rosto dele vencia a escuridão.

- Este aqui, mais brilhante, é o meu Passado, este outro é o teu, que passarás a guardar, é a tua própria vida. Se o perderes, grandes males poderão acontecer, assim como a outras pessoas.

Ao fundo da gruta, na concavidade de uma pedra, ardia um fogo vivo. O avô passou por ele o Passado de Estamos Juntos rolou-o depois em areia branca e em areia negra e também na terra. De seguida, sempre a falar em voz baixa, e a soprar, o mais velho dirigiu-se para os feixes de Sol com vento e girou o Passado entre palmas das mãos, durante alguns momentos. Mergulhou o Passado dele na água. Quando o retirou passou-lhe com a mão várias vezes. Manipulou o outro Passado, até ficar completamente humedecido e submergiu-o, por sua vez, na água da lagoa. Repetiu a operação do Fogo, depois da qual o Passado de Estamos Juntos, já com outro brilho lhe foi entregue.

- Agora podes ir. Trata bem do Passado, muito te ensinará. Trata-o mal também muito te ensinará. Aquele que o perde, aquele que o rouba, aquele o empresta, aquele que não o limpa, aquele que não respeita, muitas dores virá a sofrer.

Estamos Juntos perguntou:

- Avô, quando chegar a minha hora, eu também tenho de entrar aqui?

- Meu filho - disse o mais velho - quando chegar a tua hora vais saber o que fazer . Tudo se fará conforme o que deve ser feito aqui ou noutro lugar, desta ou doutra maneira. Fica bem.

O avô entrou na gruta e Estamos Juntos foi-se embora. Regressou ao cimo do morro e passou a morar sozinho. O tempo foi andando. Nos dias e nas noites servia-se dos ensinamentos depois mais velho.

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MBOA, LELA E PENSAL NO SONHO DO REI

Por essa altura, os negócios do reino não estavam em bom estado. O rei procurava saídas para dar conforto ao povo. De todos os lados, surgiam notícias que não lhe agradavam. Gente procurava-o diariamente para se colocar sob sua protecção. De acordo com um costume antigo que obriga o soberano a dar guarida a quem o procura. Acrescentou às suas ocupações habituais aquelas que sem ele não frutificavam.

Os cofres do reino estavam na penúria, o dinheiro desaparecia e o que circulava tinha pouco valor. No mercado, só se comprava a troco de mercadoria. Quase todos se recusavam a aceitar dinheiro. Um pano valia um boi. Os mercadores viam-se e desejavam-se para transportar o produto das suas vendas.

Os campos não produziam por causa da seca. Ir para a guerra não era uma solução, pensava o rei com a maioria dos seus conselheiros. A situação nos reinos vizinhos não era muito melhor. Os mais distantes eram demasiado poderosos para que se atrevessem a ir até lá. A guerrear. A longa caminhada bastaria para dizimar metade dos seus soldados, sem contar as guerras que teriam de travar ao longo dos reinos que fossem atravessando; o estado enfraquecido dos domínios do rei poderia atrair a cobiça de algum vizinho mais ambicioso e aventureiro. Tudo isto preocupava o soberano. Já havia notícias de pilhagens: aldeias subitamente assaltadas e arrasadas por misteriosos bandos; gente e povoados inteiros que desapareciam, sem deixar rasto.

Os adivinhos não conseguiam dar respostas capazes de conduzir o rei a tomar uma decisão acertada, embora lhe dizimassem as capoeiras nas consultas. Era uma ou mais galinhas de cada vez, conforme os casos. Por vezes cabritos e até mesmo bois. O rei meditava nas soluções a adoptar.

Uma noite, das raras noites em que adormeceu, teve um sonho. Vinham três mulheres pela estrada: uma trazia um cajado, a outra um pote de mel e a terceira uma criança de colo que amamentava. A criança crescia e ficava do tamanho da mãe sem sair do colo dela e depois voltava a ser de novo pequenina e até quase desaparecia, voltava acrescer toda num só olho, límpido como só as crianças são capazes, e onde, sonhando, o rei mergulhou seu espírito inquieto. As três mulheres caminhavam à frente dos olhos dele a olhar para lá de si sem saírem de lá. Ao mesmo tempo que via o que elas viam de dentro dos seus olhos, olhava-as de frente, na paisagem. Uma delas parou, as outras duas imitaram-na e ela disse:

- Agora aqui sozinhas podemos soltar as nossas mágoas.

- Como dizer aos nossos homens que nos roubaram? Que vai ser deste menino?

E as três cantaram em coro:

- Nada lhe poderá saciar sua fome?

Fome que não tem mel, nem pau que lhe afugenta.

Roubaram o ventre de sua mãe de onde sai o leite e a vida.

Ai se algum rei nos visse.

Poderia ficar a saber

A dor que nos revela o

momento que nos espera

nas matas do futuro.

Haverá fogo para aquecer nossas esteiras

Nas noites mais frias que hão-de vir?

Mais três mulheres apareceram e depois mais três e mais três. Abriu-se um imenso campo, vasta xana inundada pelo canto delas, três a três. Cada uma com o seu cajado, o seu pote de mel e a sua criança.

Começaram a dançar, a rodar, e numa volta de roda os panos abriram. Dentro deles não tinham nada, era só um vazio. As crianças choravam, as caras delas aproximaram-se e fundiram-se numa só e enorme cara a ocupar o sonho todo, uma grande aparição: de dentro da cara, explodindo em cor e espaço sem som, espalhando-se, saiu um rapaz com cara de sonho. Ajoelhou-se na terra, mergulhou o braço no chão, logo a abrir-se parecia água, e tirou de lá de dentro o rei.

Acordou confundido com a visão mas apesar de toda a preocupação sentia-se bem disposto. Alguma coisa começava a acontecer. Foi espreitar a noite que era de Lua Cheia. Resistiu ao impulso de acordar a rainha Mboa, para lhe contar o sonho que tivera. Ouvia o som dos animais nocturnos num uníssono de prestações solitárias, de mabecos a cigarras e onças; uma jibóia arrastava-se junto aos currais, julgou ele perceber pelos sons que lhe chegavam através da cinza da noite fria. Mas não desvendou o significado do sonho.

De manhã cedo, no dia seguinte, mandou convocar os adivinhos e conselheiros. Nenhuma das interpretações satisfez o rei.

Depois de muitas horas de elucubrações infrutíferas, um conselheiro pediu a palavra ao rei com uma vénia breve. Deu uma dobra no pano, num gesto quase inconsciente:

-Rei, duvido que os teus adivinhos consigam resolver este enigma tão depressa, assim como nós os teus conselheiros e sábios, que achaste por bem convocar. Tens de reunir todas as aptidões capazes de trazerem a este recinto a resposta necessária, a única verdadeira. Qualquer um de nós se apercebe que o teu sonho se refere aos grandes problemas do reino. Mas para chegarmos às resposta, todos têm de participar-

-- Mas então – disse o rei – estão aqui os adivinhos mais célebres deste reino, todos os meus conselheiros, quem mais falta?

O mais velho prosseguiu:

- Faltam as tuas mulheres que não convocaste. Devo recordar-te que já há alguns dias elas pediram para as receberes, o que te comuniquei em devido tempo, pois tive o privilégio de ser solicitado pela voz da primeira, a nossa rainha Mboa. Ora, se te lembras, não as quiseste receber.

O rei lembrava-se. O conselheiro tinha-lhe transmitido o pedido das mulheres mas no meio das preocupações não encontrou oportunidade para se encontrar com elas e mandou-as esperar.

- Sim, lembro-me. Mas o que é que as mulheres têm a ver com o meu sonho?

- Talvez elas te possam dizer se as escutares.

Ficou a pensar naquilo. Teriam sido as mulheres que lhe mandaram aquele sonho? Tudo era possível, reconheceu para ele próprio. A rainha Mboa era muito bem capaz de organizar uma operação daquelas. Mandou que as mulheres fossem falar com ele. Ordenou a suspensão do Conselho enquanto as aguardavam.

Pensativo, contemplava alheado os conselheiros a conversar. Os seus olhos saltavam indiferentemente pelas diversas figuras espalhadas pelo salão. Há muito tempo que não visitava as suas mulheres. Tinha lá vontade de se meter nos braços da rainha Mboa ou das suas duas outras concubinas jovens e fogosas, que lhe faziam esquecer as tristezas e outras penas, quando o reino estava num estado que caía aos pedaços sobre as suas cabeças? Aliás, ainda bem que há muito tempo tinha decidido dispensar as outras quarenta e sete mulheres do seu harém, precisamente na altura em que as finanças entraram em declínio. Era demais para o orçamento e para a sua resistência. Mas nos seus braços poderia, pensou também naquele momento, encontrar o aconchego para chegar a uma boa ideia.

As mulheres chegaram. À frente, imponente, esbelta, a sacudir as pulseiras e as missangas do seu cabelo com o seu porte de felino cruzado com gazela, a rainha Mboa abria o caminho para as outras duas rainhas, não menos vistosas. Passavam entre o silêncio dos olhos e as vénias dos homens. Em tempo, os reis contentavam-se a descobrir brilhos de incêndio nos olhares dos dignitários, enquanto as mulheres passavam, as favoritas, como a rainha Mboa primeira entre as primeiras, principalmente Muitos chegaram ao ponto de perder literalmente a cabeça, no cepo. Este rei, porém, estava absorto e quase lhe escapava a luz dos olhos amendoados das amantes.

A rainha Mboa saudou-o, todos o saudaram, e disse:

- Temos procurado falar contigo, mas os teus conselheiros disseram que andas muito ocupado e tu mesmo mandaste dizer que esperássemos. Ora, o mesmo que te preocupa, o estado em que estão os assuntos do reino, obriga-nos a falar-te. Por isso te mandamos o sonho que tiveste esta noite.

- Afinal sempre foram vocês. Bem me parecia. Mas esquecem-se que infringiram uma lei que proíbe que se mandem sonhos ao rei, a não ser devidamente autorizadas?

- Sabemos perfeitamente. Quanto a essa lei, espero que não te esqueças que eu, a primeira rainha, tenho o direito de te fazer sonhar, se for essa a única forma de entrar em contacto contigo. Antes de tomar essa decisão consultei os conselheiros, podes confirmar.

O direito era dado à rainha de fazer sonhar o rei, já por várias ocasiões, nos tempos mais remotos, tinha salvo o reino de situações perigosas em tempo de guerra, quando os mensageiros estavam impedidos de furar as linhas inimigas. Através do sonho, as rainhas podiam enviar as mais diversas mensagens.

- Bom, então falem, eu escuto – ordenou o rei.

- A razão da nossa vida – começou a rainha Mboa – é a força da nossa gente. Mas mitos estão a perder essa força. Está a acontecer uma coisa muito grave: há Passados a desaparecer antes do tempo deles s esgotar. E como tu bem sabes quem não em Passado fica sem força.

- Mas como é que os Passados estão a desaparecer?

- Não sabemos senhor. Tanto pode ser algum fenómeno estranho, como pode ser puro roubo!

- Roubo? Mas quem é que se atreveria a roubar os passados? É um crime impensável Ai de quem se atreva…! Estaria a desafiar as leis mais severas que eu guardo!

- Não sabemos quem, mas mandamos investigar e somos levadas a acreditar que se trata de roubo. Aqueles que foram interrogados sobre o desaparecimento dos seus Passados pouco sabem. E muitos não se atrevem a dizer nada, porque o assunto é demasiado grave para as suas vidas. Como disseste, quem perder o Passado está sujeito a grandes e duras provas!

- Isso é verdade! – Disse o rei.

- Nós pensamos numa forma de tentar resolver o assunto, convocando a coragem da nossa gente, pela ambição que todos têm em ti, principalmente quem é mais jovem

A rainha Mboa sentou-se ao lado do rei e virou-se para a assembleia de nobres. As outras duas rainhas, Lela e Pensala, fizeram o mesmo.

O rei redobrou a atenção:

- Chegou o momento de autorizares o casamento da tua filha, a princesa Makemaka. Manda avisar por todos os cantos do reino que quem se considerar com o direito à sua mão poderá candidatar-se. Aquele que casar com ela será feito príncipe e contigo aprenderá a governar os interesses do povo. Porém, há uma condição que se não for cumprida eliminará automaticamente o candidato: é necessário apresentar o respectivo Passado!

- E que vantagens obterei, uma vez que até aqui só eu tenho dado? Primeiro a minha filha e depois o meu reino? Que receberei em troca?

- Não vês, ó rei, que com isso levarás os homens a recuperar os Passados perdidos? Com este desafio dar-lhe-ás um incentivo e nascerá neles a vontade de lutar à luz do dia para devolver ao reino a força que perdeu. Por outro lado, poderás arranjar para a tua filha um marido digno de mais tarde dirigir com ela os destinos deste reino.

O rei prometeu pensar no assunto. Quando as rainhas Mboa, Lela e pensala se retiraram, ficou algum tempo sentado. Os conselheiros foram-se também embora. As primeiras penumbras invadiram o salão. O Sol já descia e virava para a outra banda do hemisfério. Como era possível que o não tivessem avisado sobre o desaparecimento dos Passados? Era um direito sagrado cada um ter o seu. Desde sempre os seus ancestrais, através de leis sábias e justas, tinham procurado proteger cada um no seu direito de o possuir e guardá-lo, prevenindo-os dos perigos resultantes de um tratamento inadequado.

Cantadores e oradores, difundiram pelo reino, desde os tempos mais antigos, as palavras que guardavam histórias e lições para proveito de todos.

A via sugerida pelas mulheres tinha a vantagem de evitar perigos a que o reino poderia estar sujeito, no estado em que se encontrava. Vir lá de fora, de algum reino vizinho, um príncipe, um rei ou um nobre, junto de um monte riquezas, uma aliança a estabelecer pelo casamento, um passo curto para uma vassalagem a curto ou a médio prazo, ou até a anexação pura e simples. Nem precisava de consultar os conselheiros. Mandou imediatamente proceder às escrituras necessárias para pôr em marcha as suas vontades.

Por decreto real, a todos quantos reunissem as condições exigidas assistia-lhes o direito de se apresentarem como candidatos à mão da princesa Makemaka. Na embala do rei realizar-se-iam as mais diversas provas, para avaliar as qualidades, a coragem, a dignidade, o valor dos candidatos. Um júri seria constituído pelos sábios do reino escolhidos entre os makota e presidido pelo rei e pelas rainha Mboa, Lela e Pensala. À princesa Makemaka caberia a última palavra. O soberano deu ordem para que, três a três, os arautos percorressem as estradas, picadas e caminhos, para levarem a notícia a todos os súbditos. Sem excepção. Quem não fosse portador do seu Passado seria excluído das provas.

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ESTAMOS JUNTOS COM OS TRÊS ARAUTOS

Estamos Juntos tinha acabado de recolher água na cacimba, quando viu três homens a subir o carreiro para a casa dele.

Vestiam os trajos dos viajantes e pelo seu aspecto caminhavam há muitos dias. Depois dos cumprimentos, Estamos Juntos convidou-os a lavarem-se e ofereceu-lhes hospitalidade. Disseram que não podiam aceitar nada antes de cumprirem o mandado do rei. Sentaram-se então debaixo de uma mangueira. Convidativas, pendiam frutas dos ramos. Nem sequer olharam.

Um deles deu-lhe a notícia real, que a princesa ia casar e tudo o resto. Um outro perguntou:

- Achas-te com direito à mão da princesa?

- Sim – respondeu Estamos Juntos, sem perceber completamente o que estava a acontecer. As palavras do arauto ainda não tinham chegado lá bem dentro da sua cabeça.

Então, o terceiro arauto perguntou-lhe se ele tinha Passado.

Estamos Juntos ficou um bocado surpreendido com a pergunta mas logo se lembrou de que há muito tempo não lhe punha a vista em cima. Desde que o avô se tinha ido embora

Concebido pelos maiores ceramistas do reino e depois de submetido a rigorosos rituais purificados e consagrados, era entregue pelos sábios e kimbandas a cada chefe de família

Quando um dos membros da comunidade conquistava a sua independência, recebia um, depois de sagrado pela Terra, pela Água, pelo Fogo e pelo Ar.

Estamos Juntos disse que sim, que tinha o Passado lá dentro.

Os arautos olharam para ele em silêncio durante alguns momentos. O primeiro a falar perguntou-lhe como se chamava. Ele disse ‘’Estamos Juntos ”.

- Com quem vives?

Com Ninguém respondeu.

Ninguém era um papagaio que o avô lhe tinha dado, poucos dias antes de ir embora para nunca mais voltar. Foi ele mesmo quem lho deu com esse nome ao dizer “agora ficais sozinho e ninguém te vai ajudar. Por isso mesmo, este papagaio vai-se chamar Ninguém, depois verás”. O avô remeteu-se ao silêncio sobre aquele assunto, sem deixar de falar de outros, depois de dar duas chupadas no cachimbo, sacudindo a brasa, que devolveu á fogueira fazendo-o rolar na palma da mão.

Então os arautos disseram a Estamos Juntos “queremos ver o teu Passado” Estamos Juntos levantou-se, entrou em casa.

Ninguém estava no poleiro ao lado da porta, a coçar o bico com uma pata. Estamos Juntos procurou, procurou, procurou, nada. O Passado não aparecia. Quando saiu vinha de mãos a abanar.

Os arautos perguntaram-lhe:

-Não te lembras onde guardaste o Passado?

-Lembro-me, mas não está lá. Desapareceu.

- Procuraste bem?

- Procurei

Estamos Juntos voltou a procurar. Nada. Os arautos disseram que ficaram ali o tempo que fosse necessário, que não tinham pressa, podiam esperar. Ao fim de muitas buscas inúteis, desistiram Disseram os arautos:

- Estás com um problema. Tens um prazo até ao casamento da princesa para descobrir o que aconteceu ao teu Passado.

E prosseguiram viagem. Se chegaram preocupados, mais preocupados partiram. A situação estava a torna-se muito grave. Alongo da sua missão tinha encontrado muitos casos parecidos dos com o de Estamos Juntos. Não sabiam ainda a que atribuir as verdadeiras causas do desaparecimento dos Passados. Havia a hipótese que apontava para o roubo puro e simples. Mas outras cintilavam suspeitas, nas cabeças em procura. Não era de excluir serem as próprias vítimas as causadoras do desaparecimento dos Passado que, em certas épocas de crise, aumentavam, em muito, o seu valor. Muita gente tentava adquirir vários, para capturar algum ou mais poder, e sempre aparecia quem não se importava de vender o seu. Poder efémeros porque não se pode, indefinidamente, dominar o que é dos outros…

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O CAOS NOS QUIMBOS

Muitos dias se passaram desde que o rei mandou os arautos espalharem a notícia de que tinha chegado a hora de casar Makemaka. De todos os cantos do reino recebia informações que anunciavam a partida de inúmeras caravanas rumo à imbala real. Os mensageiros vinham dar testemunho do grande entusiasmo por todo o reino em relação ao casamento da princesa: uns, porque queriam competir na obtenção das suas boas graças, outros, na mira dos festejos que se adivinhavam faustosos.

Porém, algo estranho, muito estranho mesmo, estava a acontecer. Os dias passavam, as pessoas não chegavam. Às que já lá estavam, mercadores de ocasião, peregrinos, viajantes, gente que esperava que se fizesse justiça para os casos que apresentavam, ou doentes que procuravam a cura junto dos melhores quimbandas do reino, pouca gente se juntava, que tivesse directamente a ver com o casamento real.

O rei estava muito preocupado. Tudo apontava para a existência de um mistério: os viajantes desapareciam no percurso para os terreiros do rei. O soberano, depois de ouvir os conselheiros, meditava na solução a adoptar. Precisava de arranjar uma forma de acabar com aquilo.

Estava ele contemplativo, sentado numa rocha sobranceira ao Grande Rio que corria junto aos muros de pedra da embala, quando se aproximou a rainha Mboa, com o seu passo silencioso:

-Meu senhor, grandes preocupações te sobrecarregam o olhar, a cor fugiu da tua testa. Posso ser-te útil de alguma maneira?

- Ah minha rainha, o plano que sugeriste revela-se ainda mais problemático do que a nossa situação.

- Eu sei, e já previa que isso acontecesse. Se alguém anda a roubar os Passados, não podia deixar de aproveitar esta oportunidade para deitar a mão a mais alguns. Esta pode ser a altura de nos aproveitarmos de algum erro que cometa, para acabarmos com os seus crimes.

- Minha rainha, não fosse a tua insistência, a convicção que transmites, não mais pensaria nesta história dos Passados, mas vejo-me obrigado a concordar contigo. Coisas extraordinárias se estão a passar! – Disse o rei contemplando o Grande rio na sua marcha líquida. Depois de uma pausa em que mergulhou profundamente no olhar sereno da mulher, reflectiu, quase que para ele:

-- Mas de que forma agir perante alguém que não se mostra., se nem sequer sabemos o que realmente se passa?

- Meu rei, pode ser que alguém saiba de alguma coisa e não o queira dizer por medo. Talvez um pequeno incentivo da tua parte levem as pessoas a vencerem os receios e a contarem alguém que ajude a desvendar o mistério…

- Muito bem, o que sugeres?

- Sugiro-te que ofereças uma recompensa a quem trouxer informações sobre o que está a acontecer. Dá-lhes qualquer coisa, fuba, mandioca, quissângua, panos, peles, etc. Se for de comer, de beber e de vestir, muita gente virá tentar…

-Não me custa fazê-lo, embora as finanças não estejam nas melhores condições.

- Majestade, as tuas reservas são inacabáveis.

- Não acho, senhora, não acho, mas que mais posso fazer senão tactear no escuro?

O rei mandou proclamar que ofereceria uma recompensa a todo aquele que reunisse informações capazes de ajudar a descobrir o que estava a acontecer no reino e, principalmente, tudo quanto estivesse relacionado com o desaparecimento dos Passados.

Oferecer recompensas em tempo de crise, para as pessoas revelarem coisas que ajudem a saber o que não se sabe, pode despertar, em todo o mundo, uma verdadeira paixão pelas alvíssaras, mais que pela verdade mesma das coisas. O rei sabia disso, mas pensou que talvez valesse a pena correr alguns riscos. Não se admirou, quando as pessoas começaram a aparecer em peso na Casa Real, para trocar informações por fuba, feijões, mandioca, batata doce, peixe, carne, massango, milho, massambala, que apesar de comida de passarinho, jeito também fazia, para quem apreciava, e outros víveres. Afinal, tratava-se de uma boa saída para a situação crítica de muitos, que começavam a desesperar. Sem trabalho, ou porque a seca devastara os campos e secara as represas ou porque as ameaças dos inimigos e os seus ataques não permitiam o desempenho das tarefas produtivas, havia quem se munisse de algumas informações, um saco e pronto, dava para tapar os pequenos buracos da vida. Gerou-se rapidamente um verdadeiro caos. O Grande Quimbo transformou-se num gigantesco mercado onde a troco de duas ou três denúncias se poderia adquiri peixe, fuba, milho, feijão. Era possível obter uma casa e seu recheio, denunciando uma família inteira de vizinhos que entretanto ficavam presos para averiguações, ou tinham de arrumar as embambas noutro sítio. Ou desapareciam da circulação.

Casos havia também de moradores de casas cobiçadas que eram subitamente desalojados por via de uma denúncia entregue a um colaborador do rei, podia até ser o guarda do portão, que de imediato colocava o denunciante lá morado, graças a uma combina engendrada num ápice, e se possível apoiada por competente ameaça. Não havia tempo a perder.

Era comum os negociadores cruzarem-se em diálogos curtos e eficientes:

- Já trataste da nossa combina?

- Estou a dar o expediente. Mais uns dias e resolve-se.

- Vê se te avias.

O rei mantinha-se na ignorância, o que sempre acontece até um dia.

À custa do rei, muita gente comia e vivia assim, denunciantes e denunciados (classificação com a propriedade associativa, porque não raro era acontecer os denunciantes virarem denunciados, como uma vela de dongo vira de repente para o outro lado graças a uma mudança de vento). O soberano andava verdadeiramente preocupado com o estado de espírito que aqueles seus súbditos revelavam, em que já não havia respeito por ninguém, a começar por cada um por si mesmo. Como uma moléstia que o vento transporta no bojo dos seus transmissores, estendia-se pelo reino o ambiente próprio de uma sociedade desavinda, onde todo o mundo só era bom para todo o mundo,, porque era bom para si, o que seria bastante razoável, não fosse o caso de, na maior parte das vezes, a bondade para si não ser senão a máscara da mais implacável perversidade.

Amantes em discórdia aproveitavam a oportunidade para descarregarem os seus odiados sentimentos reciprocamente. As mulheres fartas dos maridos, idem, estes vice-versa. Havia filhos que denunciavam os pais enquanto estendiam as mãos para os sacos de farinha ou para uma boa cabeça de pungo à espera do respectivo caldo a condizer. Todavia, a falta de amor filial, fraternal e outros, era apenas mais um esquema engendrado mentas mentes imaginosas dos que logo transformavam o assunto do rei em negócio mais rentável e constante. Porque, na realidade, muito amor filial, fraternal e outros que havia é que determinava a elaboração esquemática. Que mais fazer? Na maioria das vezes, rapidamente os acusados eram postos em liberdade por não se lhes reconhecer culpabilidade. À saída dos calabouços recebiam um cesto com as mais diversas vitualhas, uma forma de os compensar dos incómodos causados pela máquina da justiça. Aí, era a vez dos acusadores irem para o calabouço e assim sucessivamente. Formaram-se até associações deste tipo, que iam do tio ao sobrinho, passando por avós e netos. Os conselhos de administração destas empresas tinham sede segura na própria casa do rei, por enquanto alheio a tudo isto. Em suma: o estômago mandava mais do que o coração e este mais do que a cabeça. As famílias desmembravam-se, desta maneira, frente aos olhos impotentes do rei, a confirmar de momento a momento que a maior parte das informações que lhe traziam eram pura inutilidades e invenções. Sementes da discórdia.

O rei, quando abriu os olhos e deu conta do descalabro, tentou acabar com aquilo de uma maneira simples: mandou deter sem direito a recompensa, fosse em que circunstância fosse, todos aqueles que acusassem outros, sem fundamento. Os detidos eram então obrigados a apanhar sacos de sumaúma em dias de ventania.

In “Tala Mugongo”, Spleen Edições, 1995