quinta-feira, 3 de março de 2011

MEUS AMORES DE OURO PRETO


Em Ouro Preto deixei dois saudosos amores

Que numa janela me esperavam todas as manhãs;

Mwana a fantasiadora e a sempre risonha Dolores.

Dois sorrisos, dois doces perfumes de romãs.


Por estes dois e grandes amores,

Em apertados nós ficou amarrado meu coração,

Sofrendo, sofrendo, oh! sofrendo horrores

Numa desnorteada batucada de comoção.


Jamais retornarei a desditoso Ouro Preto!

Sofrer tão grandes amores não é destino.

Em cada uma, um sorriso negro secreto,

Uma armadilha, uma ilusão, um eterno desatino.

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


LOANDA

Há dias, um velho amigo mostrou-me um boletim antigo, propriedade da Liga Nacional Africana, o “ANGOLA” nº80/82, de Junho/Agosto de 1943. Ao lê-lo, um artigo reteve a minha atenção, um pouco pela sua actualidade.

Nele, era-nos dado a conhecer que, no semanário “O APOSTOLADO”, o emérito homem do saber que foi Lourenço Mendes da Conceição, demonstrava por a+b porque se escrevia Luanda com “u”.

Cinquenta e dois anos mais tarde, andamos nós ainda e igualmente com a preocupação de escrever, ou não, Cacuaco-Kakuaku, Luena-Lwena, Caxito-Kaxitu, Negaje-Ngaji, Angola-Ngola, e tudo isto com um alfabeto romano que inclui o “k” anglo-saxónico, o “y” grego, etc.

Informa-nos o “ANGOLA” que, em Outubro de 1942, tinha sido posto à venda um opúsculo intitulado “O VOCÁBULO LOANDA”, do senhor Júlio de Castro Lopo, que investia contra a adopção do termo “Luanda”, baseando seus argumentos, entre outros factos, no de não haver, a prior, uma disposição legal contrária, ou seja, o “Diário do Governo” continuava a utilizar a grafia “Loanda”, grafia essa que, igualmente, representava uma tradição de quase quatro séculos.

Não fossem os argumentos da lei e da tradição determinantes, o senhor Júlio Castro Lopo, segundo o “ANGOLA”, avançava ainda com a necessidade de se manter a pureza da língua, e não aquimbundar um termo que sempre se escreveu “à boa maneira portuguesa”.

Caso não se estivesse ainda vencido ou convencido, o bom Júlio Castro Lopo arrasava-nos com a argúcia que, sendo o Kimbundu uma língua inculta, não havia um caso de linguística a resolver pela etimologia da palavra, ipso facto.

Esta tese foi avançada, não obstante o jornal “A PROVÍNCIA DE ANGOLA” de 8 de Janeiro de 1927, ter inserido um artigo, considerado célebre à altura, do padre Ruela Pombo, no qual esse investigador deixava claro e de maneira irrefutável, que era erro utilizar a grafia “Loanda”, dado a palavra ser Kimbundu e não portuguesa.

Seguindo nesta senda, o ilustre Lourenço Mendes da Conceição usa o “APOSTOLADO” para, numa série de artigos, mais tarde reunidos em volume em edição do semanário, destruir por completo a teoria de Júlio Castro Lopo. Neles rebatia: a) não ser a grafia “Luanda” nem uma arbitrariedade nem uma ilegalidade; b) não ser o facto de se ter escrito durante quase quatro séculos “Loanda” o suficiente; c) não poderia existir um império da etimologia sobre as chamadas línguas incultas; d) os diferentes significados do vocábulo “Luanda”; e) como se pronunciou e pronuncia o mesmo.

Esta separata, aparecida no “APOSTOLADO”, foi dedicada a Luanda com extensa nota bibliográfica, segundo o “ANGOLA”, demonstrativa de aturado estudo e valioso depoimento de António de Assis Júnior, à altura, o mais competente cultor do kimbundu.

Após a leitura deste artigo, que nos guarde Deus de alguém se querer envolver em polémica de fonologia, se os nossos locutores (Quosque tandem, TPA, abutere patientia nostra?) devem pronunciar “estrélas, cométas e planétas”, ou dar-lhes aquela tonalidade que certos pensam que seja a própria.

14/01/95

quarta-feira, 2 de março de 2011

PROVÉRBIOS ANGOLANOS








Este livro foi editado pelo Instituto Internacional de Língua Portuguesa sob organização e coordenação da Drª Amélia Arlete Mingas, em 2010. Esta obra, entre outras mais com a mesma orientação, não teria sido possível sem o alto patrocínio da Presidência da República de Angola e as parcerias do Instituto Internacional de Macau e a Embaixada de Porugal em Angola

A SONHAR SE FEZ VERDADE




O CACIMBO

Cedinho pela manhã, quase como sempre, enveredei pelo carreiro molhado que me conduzia à figueira brava. O frio apressava-me os passos e obrigava a que encolhesse os ombros, esticando os braços ao longo do corpo.

Tinha eu então nove anos e vivia a idade mágica do mato na qual, o caçador terrível que me suponha, fisga pendendo do bolso traseiro das calções remendados, kalubungu amarrado à cintura num cinto improvisado, partia para a matança magnífica das rolas matinais.

O capim, húmido das lágrimas nocturnas dos ndoki vadios, bordejava o estreito carreiro que aportava à lavra junto à qual se impunha a árvore sonhadora que me prendava quase todas as manhãs com uma sinfonia estrondosa de cru-crus, tchuin-tchuins, tfris-tfius, miriades infindáveis de cantos de aves.

Ao aperceber-me do bando de rolas encoleiradas do preto da dor, tive a deleitosa certeza de que, mais uma vez, sairia vitorioso da batalha que almejava. Por desejo meu, nem filho delas sobraria para cru-cruar seus óbitos tristes à floresta acolhedora. A pedra partiria, do cabedal entesado da fisga, certeira, tiro sibilante após tiro, o chão povoado de cadáver castanho emplumado, um após o outro.

Tinha eu então nove anos de feitiços e artes que hoje miseravelmente não possuo.

Tal era a minha insaciabilidade e a minha coragem, já que cedinho, de madrugada, os ndoki transformados em cobras e onças, ainda não tinham fugido para as moitas, à espera do incauto. As rolas tudo me faziam esquecer, uma única que matasse, pesava nos meus sonhos tanto quanto quarenta nduas arco-irizadas e outros tantos khende-khende enforcados nos laços invisíveis quando vinham debicar o barro preparado com sal, mais às perdizes laçadas nas sebes que protegiam a lavra.

Assim, apressava o passo, as rolas não esperam o preguiçoso, ou será o correr pela mata fora, nunca as alcançando, em seus voos de pau em pau. Esforçava a não intrusão de pensamentos maléficos à mente, os latidos dos cães na senzala cada vez mais distantes, quando o Cacimbo, tata Bangala, vindo não sei de onde, desceu sobre mim inesperadamente em abraço envolvente. O silêncio nasceu da árvore, da pedra e das penas de sumaúma que pendiam ao compasso do grito do cucu. Falou-me e tremi de medo, pensando que morreria e em breve estaria nos braços da sereia, bem entre as pedras e areis do fundo do riacho. Meus pés não ousaram dar mais um passo que fosse, invadido que me sentia dum canto doce, duma melodia de fascínios, em rendição total àquele que se me revelara não inopinadamente.

- Não temas, criança da esperança, sou a origem do rio, a consciência mandada dos antepassados, aquele que te ensinará os rumos do porvir-

E pasmado que fiquei!

Nunca antes ouvira tal voz, conhecera tal amigo, ainda que tudo em mim fosse animado e irrequieto. Naturalmente estendi os braços e acaricei mos meus dedos de criança o novo companheiro. Escorria-me entre as mãos e seu bafo meigo penetrava em todo o meu ser. Abri a boca no mais largo dos sorrisos de gratificação que, perdendo-se nos ares, foi o beijo albergador de toda a selva, o ósculo risonho das aves, o trovejar surdo dos punhos cerrados dos gorilas desflorando a virilidade de seus peitos cabeludos, o cacarejar agudo das galinhas do mato, os guinchos ensurdecedores dos macacos, os saltos acrobáticos e silvantes dos veados e das seixas. Agarrei tudo isso na minha felicidade e alegria e encarcerei-o para sempre no pensamento e na mente, prisioneiro do meu egotismo, escravo da minha razão de ser que, quando na viração do café no terreiro, olhava com inveja para a bicicleta amarela de ferro na qual o menino roceiro passava rolando em zigue-zagues da vaidade. Rolando, horas sem fim.

E nas noites de calor e luar, lá estava eu:

- Meu pai, porque não posso ter uma bicicleta assim?

E meu pai coçava um pé no outro, cuspia por entre os dentes nas mãos, como que arrefecendo qualquer pensamento.

- Ai filho meu, sempre a mesma pergunta! Será que ainda não compreendeste que nunca te poderei comprara uma bicicleta assim?

- Como não podes, meu pai?

Eu sabia, sem querer saber. Compreendia, sem desejar compreender. Digam-me, como poderia aceitar tal argumento quando já o observara fazer e executar outras coisas bem mais difíceis e inimagináveis? Uma vez vi meu pai, na sua cólera contra o roceiro, levantar o camião abarrotado de sacos de café e, tal uma pluma de viuvinha, projectá-lo contra o casarão da roça, tudo ruindo estraçalhado. O roceiro, ignóbil escaravelho, esperneava de fúria no chão lamacento e as andorinhas azuis desciam em voos razantes, arrancando-lhe os cabelos um a um. O milhafre enterrava as garras no ventre adunco e saia voando com as tripas purpúreas para alimentar as crias.

Se meu pai podia maravilhar-me com gestos assim, porque não poderia comprar-me a bicicleta?

- Como?- perguntava ele.

Para lhe mostrar que o que bastava era só desejar, me eis logo com a mais linda das bicicletas, não amarela, mas sim vermelho vivo, a cor da liberdade.

Quantas noites, à luz ensolarada da lua cheia, não os maravilhei em atravessando o terreiro do café, em enveredando por picadas anónimas que me conduziam aos mais recônditos dos desejos e lugares, tacteando a vertigem da velocidade? Fugava veloz na trilha dos meus desejos, das minhas revelações, montado na bicicleta avermelhada, o filho do roceiro desfazendo-se na inveja que o consumia. Sabia-me invencível, o dono da terra que pisava, atraía-me a força dos avós infindáveis. Porém, nos intervalos das escapas aos sonhos, cansei de pedir, cansei de chorar pela almejada e inacessível prenda.

Compreendem agora porquê esse meu riso a tata Bangala, no amplexo ao novo e fascinante amigo, albergou toda a selva?

- Não temas criança da esperança- ressoou de novo nos meus ouvidos- sou a consciências dos antepassados agora renascida, dá-me a tua mão e vem descobrir o que trás já ficou e o que para a frente falta. Vem comigo ao berço da luz.

Não duvidei por um momento. Como ousaria? Estendi a mão e fui elevado aos píncaros de uma mafumeira, que de alta nunca imaginara poder existir. Talvez estivesse tão cerca das estrelas, que se esticasse o braço colhê-las-ia, tal minha mãe colhia as laranjas raquíticas e solitárias da laranjeira, ao fundo do quintal do casarão do branco.

Por momentos pareceu-me estar a duvidar do que me acontecia e, assim, indaguei ao novo amigo como poderia alguém ser tão alto quanto ele, que ali me elevara pela mão?

- Quando se é toda a História de um povo, como tu o és, quando um ser representa todo o sofrimento e humilhação de um continente e os deseja revelar, como eu o sou, tem que ser o que sou.

Ai coitado de mim!

Por fim, adormeci nos seus braços, num ninho de enorme de mbemba, nos últimos ramos da mafumeira. Vi a ngana Lua acariciar-me e beijar-me o rosto. Quando pressentiu que eu estava a adormecer, num sopro apagou as estrelas, pirilampos eternos dos céus, espíritos dos que partiram morrendo em terras alheias, vagabundos do destino à procura do lugar que lhe pertencera em vida. A meio da noite despertei esfomeado e, ao simples constatar, o Pensamento trouxe-me um balaio cheio de iguarias onde, a rir de prazer, meti as mãos e retirei-as cheias de mandioca assada.

Que alegria!...

E seguidamente, de jinguba, oh tanta e tanta, milho torrado amarelento, banana pão aquecida de castanho ao rubro. Que pena que todas as crianças do mundo não pudessem saciar sua fome da maneira que eu o fazia. E tão repleto fiquei que, ao encostar a cabeça no rebordo do ninho e ao colo da Lua, mal me apercebi do Sono, Tata Kilu, a convidar-me para me deslocar ao seu kimbo, desejava que sua vasta família me conhecesse Disse-me que havia que partíssemos ao pestanejar do momento. E fomos, mais céleres ainda, sentados no lombo do javali-mor, cinza mel de cor, na boca do qual flamejavam oito dentes pontiagudos em forma de garfo. Galopamos sobre o pântano de lama até entrarmos numa mata frondosa de árvores gigantes que albergava, num labirinto de música e cor, o seu kimbo.

É verdade, como me lembro tão docemente que mal o javali-mor parara, milhares de crianças, umas alegres e sorridentes, outras tristes e carrancudas, par nós correram em jamais vista algazarra. Tata Kilu ergueu o báculo e todos, como que por magia, logo silenciaram.

- Trago-vos hoje um visitante a fim de que com alguns de vós participe de vossas viagens aos reinos do bem e do mal, da fantasia e do pesadelo. Tratem-no bem.

As crianças, que afinal vim a saber serem os Sonhos Bons e os Sonhos Maus, filhos do Sono, em batuque de arrepiar, levaram-me para o banho da purificação que me renderia gasoso e veloz tal o pensamento pensado. Antevia, pois, com incontida emoção, a viagem através das transparências dos desejos e segredos dos outros. Que viria a descobrir, que veria eu?

Logo após o banho, trouxeram-me de comer –outra vez, pensei admirado?- pitéu farto dos deuses, manjares de águas cristalinas. Folhas de mandioca rutilantes, gafanhotos diáfanos fritos, jinguna de asas opalinas que ainda esvoaçavam sôfregas para a vontade de liberdade. Maboques amarelos, gajajas perfumadíssimas e, para culminar, duas cabaças repletas de leite azedo e mel de mil abelhas enfeitiçadas, tão doce e espesso era.

- Agora está pronto para a viagem, para a jornada- disse Tata Kilu- já estendi o meu manto sobre metade do Mundo e os meus filhos partirão agora para o reino das

trevas, há muito que fazer. Por onde desejas começar, dou-te esse privilégio?

Como nunca antes crera ser possível entrar em qualquer sonho que não fosse o meu, constrangi-me momentaneamente.

- Desejo ver o meu pai, o meu avô e a nossa casa.

Não acabara de falar a última palavra e já irrompíamos vertiginosos o espaço, à garupa de um raio trovejante. Não contive o espanto e a alegria. Meu pai, sentado num banco, com o meu avô ao lado, seu pai. Entre eles, uma cabaça de marufu e um cestinho com jinguba torrada. O velho ancião, o avô, fumava um cachimbo tão gasto quanto ele, a minúscula brasa ardendo em cima. Sua cabeça era branca como a fuba kindele e suas barbas eram pernas longas da ágil aranha, entrançadas a perder nas agruras dos anos escravos, jingongo, malamba.

Por fora da casa, e encostada à parede de barro seco, uma bicicleta encarnada nova e reluzente. Não queria acreditar no que via! Seria que, sentado ali no ninho de mbemba, sonhava eu que meu pai me comprara a bicicleta, ou era ele que sonhava que a tinha comprado para mim? Em que sonho estava eu? Em pânico procurei pelo companheiro que me trouxera, mas já lá não estava. Seria então o sonho do meu pai, certamente.

O velho avô acenou para mim e da sua alva carapinha saltitaram estilhaços de fogo azul, pensamentos metaforizados no espaço, o seu amor pelo neto.

- Para quem acenas, senhor meu pai?- perguntou meu pai, alegre e curioso.

- Para o meu neto que ali vejo vir- respondeu o velho avô- . Descubro a felicidade em seu rosto, por certo que descobriu a bicicleta, reconheceu-a.

Deixei-me cair, leve tal um sorriso de sumaúma, ao lado da bicicleta. Entrei a pressa na casa, saudei o meu avô e ajoelhei-me aos pés do meu progenitor, pousando ele suas mãos em minha cabeça, em sinal de benção. Afagou-me, e suas palavras forma mais doces que mamão.

- Vai, meu filho, vai andar na tua bicicleta.

Oh ventos, oh aves, era só ver-me! Ufano, o mestre rei das bicicletas! Saí voando, transpondo montanhas, competindo nas savanas e nas florestas com o ngulunu e com o leopardo. Nos rios de toda a África, os bagres e os sapos pasmaram das minhas proezas, enquanto os caranguejos volteavam as pedras opalinas em suas correrias, para melhor me perceberem no ápice do relampejo.

Meu pai, agora já na sua esteira, contemplava embevecido o prodígio que gerara. O velho avô abanava, desacreditando, a alva cabeça sobre a qual uma leva de borboletas dançava seu batuque em ritmo alucinado.

Inseguro, outra vez na garupa do relâmpago, maldisse o momento que tudo esvanecera. Meu avô, meu pai, a bicicleta. Olhei para o companheiro e estarreci. A cara alegre e jovial do Sonho Bom, fora substituída pela carranca de seu irmão Sonho Mau, o esgar do pesadelo, que escorrega pelas noites contorcidas de todos.

E quem era então aquele velho que ora descortinava, curvado sob o peso de um latão de água, mal podendo caminhar? Insisti na olhada só para nela reconhecer meu pai, castigado pelos árduos anos da vida, tão velho e gasto, ainda labutando. Assustei-me, cerrei os olhos, socorri-me em vão na angústia, mesmo se o que tivesse que ver já assim o fora determinado. Recusei e recusei, procurei pelo Sonho Bom, olvidando que era no Mau que me encontrava.

E assim, vi meu velho pai deitado na tarimba de sua cubata de tamanhos tímidos. Era madrugada na roça. Apenas o alvor celestial se esboçara, já o galo rompia as brumas teimosas, atirando para as senzalas vizinhas o estridente grito despertador, em sua voz de falsete. Meu pai, ainda me admirava de o ver velho, tossia em voz rouca e remexia-se, sabendo que, logo de seguida, teria que abandonar o prazer do repouso e do cobertor esfarrapado, para badalar o sino, um troço de linha férrea pendurado ao fundo do secador de café. Badaladas agudas que obrigavam os cães a latir e uivar desmedidamente.

A rapsódia da vida diurna iniciava. As senzalas acendendo ao quotidiano, os acampamentos gemendo dos gritos e palavras alegres dos contratados afiando suas catanas, no desenrolar de um destino inconsciente.

Estranhava sentir todas estas emoções, como que se já as tivesse vivido, apalpado. Hoje, sentado na escrivaninha e compondo este conto, ao relembrar os acontecimentos, tenho a noção nítida de que as emoções que experimento se devem à imaginação pura da infância e ao poder de criar e escapar do peso angustiante que a natureza, a floresta, empurrou sobre a mente infantil. Relembro a magia cristalina da inocência, que lhes dava sopro e calor, feita deusa criando novas vidas. Só mais tarde, no desvirginar da poesia, no crescer, no apagar do sopro escorregadio do vento farfalhante nas folhas das palmeiras, percebi a angústia daquilo que já não mais volta, badaladas num ferro pendurado, que desfalecem uma após uma, cada uma levando, então, o anúncio de vida a centenas largas de pessoas adormecidas.

Nessa altura, era então o trajar da selva com todos seus sons, em vaidade não controlada e irremediável, da qual me enamorei louco perdido., derretendo-me feito água em seus braços verdes libidinosos, a minha amada, o meu ar respirado.

Meu pai dirigia-se após, para o quintal do casarão, reacendia o fogo adormecido e no qual ferveria a água para consumo da família do roceiro. Atados a uma palmeira, dois enormes macacos saudavam-no colericamente em guinchos horripilantes, o ódio ensinado e atiçado diariamente para que não houvesse negros no quintal. Assim era a vida, ou talvez assim fosse a morte, onde até aos animais se incutiam as diferenças de castas, as disparidades epidérmicas, os desníveis sociais, enfim, todos os declives que conscientemente o ser humano escolhe para separar-se um do outro, irmão contra irmão. Como se a terra não nos devorasse por igual, como se a fogueira dantesca não nos carbonizasse sem parcimónia, no derradeiro adeus mundano. Quem não responde ao chamamento dos antepassados? Quem?

Novamente senti um profundo calafrio, consumido em cataratas de incertezas no meu desamparo, e desejei regressar ao meu ninho de mbemba, envolto no bafo de nga Lua e da paz benigna, nos braços aconchegantes de tata Ngna Kixibu.

Num último e tímido relance de olhos, o futuro esculpiu-me em segredo de desconfiança, um cadáver banhado em poça de sangue rubro, desenhou-me a pinceladas grotescas a brusquidão das mulheres rebolando na cinza amontoada, fundiu-me nas crateras inimagináveis do ódio milhares de panos multicoloridos e cabelos arrancados em uivos de desespero, óbito inaceitável.

Estonteado, fugindo ao pesadelo que sabia ser verdadeiro, compus uma sinfonia de urros e guinchos dos macacões, e ordenei ao charco de sangue que se erguesse para que lhe desse forma humana, forma do Homem, montanha de sofrimento, no qual talhei a cutiladas trágicas o rosto do meu velho pai., lata de água na cabeça, escultura perene e inolvidável, tombado entre os macacos de dentes afiados, pingando sangue quente, o aroma do sacrifício para um quintal livre de pretos indesejáveis.

E no ápice do renascer, no momento da tomada de consciência, eis-me o raio decepador, o paladar da justiça no porvir.

Nas palmeiras do quintal os pássaros saltitam em dança frenética e cúmplice. Nos céus ameaçadores as nuvens escondem a pressas o sol para que não veja o tiro partir da pistola do roceiro e a bala a penetrar-me profunda na coxa, enquanto a longa jornada do velho começara inopinadamente, o caminho verdejante para o fundo da lagoa era extenso, os macacos afiavam ainda os dentes em seu corpo inerte.

E eu? Caído no quintal, a olhar para a ferida sangrenta na coxa, com a catana ainda segurada na mão, sabia que também deveria partir para outra viagem.

- Ekué, Ekuá!... muana’etu wa fuidi- (1) choravam olhando para mim as duas lavadeiras.

O vento soprou exausto, senti sua ligeira carícia no ombro. Olhei e dei de caras com Tata Kilu, em seu kimbo.

- O dia ameaça levantar-se, vais regressar ao teu ninho e a peneira das estrelas do esquecimento passará sobre teus olhos e vendá-los-á até ao momento do acontecimento, como deve ser.

Já o sol brilhava quando despertei, fresco e excitado.

(1) Ai!... Ai!... O nosso filho morreu

A PRECE DOS MAL AMADOS


CAPÍTULO TRÊS

OS QUE VIERAM PELO MAR AFORA

São como os búzios que levam presa,

no seu labirinto de nácar, a música do mar.

(Mário Vargas Llosa)

Nataniel perscrutou atentamente o soldado cubano, e sorriu perante a fala estranha. Entendera que havia estrangeiros a lutar em Angola, quando o povo aterrado que fugia de outras zonas falou de sul-africanos e mercenários brancos, todavia nunca os vira. Deslumbrado, olhava para a vastidão de fardas verdes, com bonés da mesma cor, gente fortemente armada, parte dela engajada em amena conversa com a população, que se deslocara da aldeia para onde estavam acampados. Não muito longe, uma gama infinda de tanques e outros carros blindados, assim como camiões que lhe pareciam gigantes, com rodas mais altas do que ele. Movimentavam-se por todo lado, entre eles, muitos negros e mestiços e há dias que observava com interesse um que, pela ligeira diferenciação de tratamento revelava que talvez fosse o chefe, um negro alto e de voz rouca com um riso contagiante. Foi-se chegando, pouco a pouco, fingindo despretensão e quedou-se, parado, a olhar para ele como se de algum bicho estranho se tratasse. O cubano achou graça, nunca se vira esquadrinhado de tal modo. Deu um ligeiro passo em frente

- Como te llamas? – perguntou-lhe e, perante a cara de espanto do garoto, ajuntou – Nombre, tu nombre?

Nataniel não soube o que responder.

Nombre?

Soou-lhe meio familiar a palavra e, por intuição respondeu, arriscando.

- Meu nome? Estás a perguntar pelo meu nome?

- Si, tu nome, como te llamas?

- Sou o Nataniel.

- Nataniel!...Me gusta. Quantos años tienes? – insistiu, passando-lhe uma pequena barra de chocolate.

Riu outra vez, o desconforto ainda o dominava. O idioma parecia-lhe o português, mas não era.

Anhos, anhos, quantos anhos tienes?

Só poderia ser quantos anos tens. Decidiu confirmar.

- Anos? Tenho treze.

- Tresse años? Mui bien, y quien son tus padres?

Surpreso, enxergou à volta a ver por onde teriam chegado ao que sabia nunca os vira interessados pelas coisas militares ou assuntos da tropa, todavia com toda aquela confusão, poderia ser que tivessem vindo observar os novos estranhos, a curiosidade era para todos. Mas que ele soubesse, a aldeia só tinha um padre e que se encontrava ausente. Seriam outros? Tornou a olhar e não viu nenhum.

- Padres, mas que padres, não vejo qualquer padre.

O oficial cubano percebeu a perplexidade da criança e notando que a palavra seria certamente outra, sorriu. Estava a gostar do exercício, da descoberta das palavras e das ciladas que criavam quando fora do contexto.

- Tu papá, tu maman.

- Pai, meu pai e minha mãe! – E igualmente rindo, corrigiu - Não é padre, padre é quem reza a missa, o missionário.

- Hombre! Pués padre es missionário en português? Entonces madre será missionária, no és asi?

- Padre é missionário e madre é a mesma coisa.

- Assi pae y mae son papá y mamá, non?

- Sim, é isso. Mas de que terra vieste?

- Mira, soy cubano – disse com orgulho- Estamos aquí para ayudar el gobierno contra las fuerzas imperialistas yanquis, los fantoches zairenses y los racistas sudafricanos. Nuestro presidente es Fidel de Castro, muy grande amigo de Agostino Neto. Tu tanbien bas a ser mi amigo, no?

- Teu amigo? Claro que sim.

- Mui bien, pero quien son tu papá y tu mamá?

- Sou filho do camarada Epalanga e da camarada Zeferina. O meu avô é o soba grande, o camarada Juba de Leão.

- Soba?!...

- Soba é o chefe. O meu avô Juba de Leão é o chefe de toda esta região, ele é quem manda no povo.

O cubano olhou para ele com cara de espanto. Ainda havia reis, chefes grandes em Angola, era a pergunta que a mesma reflectia?

Djuba de Leon? Que nombre más estraño!

- Mira que cosa, no es verdad!... Tu abuelo es un gran jefe tribal?

- Sim o meu avô é o chefe.

- Eso en Cuba ya acabó hace mucho. Y Djuba de Leon por qué, mató a un leon?

- Sim, o meu avô quando era jovem viu-se cercado por leões e matou dois com as suas mãos, sozinho! – exagerou, para ver a reacção do oficial cubano.

Dos leones? Solamente com sus manos?... Sera?...

- Pués tu abuelo és un hombre mui valiente, lo deseo conocer un dia. – respondeu, meio acreditando no relato

- Vais conhecê-lo.

- Pero dime, y los hetchiceros y los curas, aun que los hay todavía?

- Curas? Que curas, precisas de ir na enfermaria?

- Enfermeria? Non, muchacho... curas... misionarios!...

- Se quiseres falar com o padre, só quando ele voltar. Queres confessar-te?

- Confesarme? De que hablas, niño?

- Não pediste para ver o missionário, o padre?

O oficial cubano pensou duas vezes em continuar a conversa, mas tanto o dever internacionalista quanto a simpatia que sentiu por Nataniel, forçaram-no ao diálogo.

- Assi un dia tu tanbien poderás ser jefe grande? – perguntou, para mudar de assunto.

- Não sei, o meu avô é quem sabe. Ele e os mais velhos.

- Los mas viejos? Son el y los mas belhos, quien decide todo? – indagou, curioso.

- Sim, eles é que decidem.

- Y como mandan los más belhos?

- Tem o meu avô, depois vem o kapitango, o mwene kapitango e os outros.

- Muene kapitango, que hace lo muene kapitango?

- É o irmão do meu avô. O camarada Nehone, é ele quem ajuda sempre, faz tudo que o meu avô lhe manda e mais coisas.

- Entonces como un gran ministro, no?

- Não sei o que é isso, mas ele vem logo a seguir ao meu avô...mas como é que te chamas?- perguntou Nataniel, para fugir aos assuntos dos mais velhos.

- Tchamas?

- Chamas...como é o teu nome?

- Ah, mi nombre! Me llamo Pablo. Eo me tchamo Pablo. – respondeu, desejoso de mostrar esforço. - Pero me cuentas que tu abô es jefe, entonces tu padre será el sucesor, o tu tio abuelo, el camarada Nehone? – perguntou, curioso e tentando descortinar as regras de sucessão.

Nataniel, que pensara ter deixado a questão para trás, afastou-se um pouco e respondeu meio seco.

- Não, o meu pai é filho de uma das mulheres do meu avô, há mais gente, mas isso não é importante.

- Una de las mujeres? Pero tu avô tiene más que una mujer?

Foi a vez de Nataniel surpreender-se, não percebeu a pergunta, queria o cubano dizer com isso que lá na terra dele um homem não podia ter mais do que uma mulher? Coçou o cabelo, acenou para os dois companheiros de brincadeiras que escutavam um pouco arredados, cutucou-os nos braços quando chegaram e, entre risos cúmplices, respondeu enfático.

- Sim, tem cinco mulheres. Cinco!...

- Puta vida, como estan vosotros atrasados! Cinco mujeres?...

Nataniel não conseguiu relacionar o número de mulheres com o atraso, antes pelo contrário, quanto mais mulheres um homem tivesse mais desenvolvido estaria o seu poder, a todos os níveis. Achou que o cubano estava a brincar com ele.

- Atrasados? – perguntou, jocoso, olhando para os outros dois.

- Y que hace el com cinco mujeres, cierto que pasa la noche a roncar en dos ó trés dellas, non? En Cuba eso no es permitido, tenemos una y ya nos basta.

- Uma? E a terra, quem trabalha a terra então?

- La tierra? Que pasa com la tierra?

- Sim, quem trabalha a terra?

- Todos, nosotros claro. Porque, en Angola son las mujeres quien trabajan la tierra? – indagou Pablo admirado.

- Sim, elas trabalham a terra, a minha mãe sempre o fez.

- Hombre, Agostino Neto está mal!... – escapou-lhe, sem o querer.

- O quê?... – demandou, Nataniel.

- Nada, niño, nada. Asi que tu abô tiene cinco mujeres!...

- E o pai do meu avô tinha nove!... – afirmou, para o gozar.

- Coño, hay mucho trabajo político a hacer en Angola.– disse, mais para consigo.

Pablo quedou-se pensativo por algum tempo, enquanto as crianças esperavam, atenciosas, buscando referências no seu rosto. Via-se que matutava em alguma coisa.

- Oime, te gustaria de ir estudiar en Cuba? – atirou, por fim.

- Estudar em Cuba?

- Si, estudar en Cuba.

A sua primeira reacção foi de excitação, logo seguida de medo. Pensou umas duas ou três coisas e não soube o que responder. O cubano, observando a hesitação, chegou-se mais. Os outros dois, olhavam para Nataniel, rindo.

- Si, te puedo ayudar si quieres. Hablaré con tu abô y lo areglaré después en Luanda.

- E onde fica Cuba, é em África?

Foi a vez de Pablo rir, mas logo sentiu que o miúdo não poderia ter ouvido falar de Cuba vez alguma na sua vida, nem ele antes ouvira falar de Angola, a não ser que era um país que tinha um movimento de libertação progressista e que lutava há anos contra o colonialismo português. Pouco mais, só em tempos recentes aprendera que Ché Guevara tinha-se encontrado com Agostinho Neto.

- Non, Cuba se queda en las Americas es una grande isla.

- Sequeda?...O que é sequeda?

- Cuba está en las Américas. – corrigiu.

- Na América, a terra do imperialismo?

- No, compañero, en la América Latina – disse, procurando por um mapa nos bolsos, e mostrando – Mira aqui la tienes. África deste lado del mar y nustra Cuba aqui, en el mar del Caribe.

- Então é muito longe.

- Si, muy londge, eô vino de barco y se nos llevó quinze dias, de Cuba para Angola.

- Quinze dias? Não me vão deixar ir. Aqui nunca ninguém viu o mar.

- Si, eô bou a hablar com tu padre y tu abô y les voy a explicar que será necessário

que su hijo y nieto se transforme en un grande revolucionario científico.

O oficial cubano comandava o grupo que se encontrava acampado não muito distante da aldeia, chegado há pouco a Angola e a cordialidade, a afabilidade, bem como a facilidade de comunicação verbal engraçara-os junto aos populares, que para ali se deslocavam todos os dias para amena cavaqueira e sempre receber uns chocolates, uns maços de cigarros e giletes para barbear, sobretudo os mais velhos. A coluna deveria avançar em futuro mais ou menos breve e por agora, para ele, a sede de conhecer Angola e os angolanos era a sua maior ocupação enquanto as ordens de arranque não chegassem. Luanda tinha sido uma surpresa, julgara vir encontrar uma cidade de choças, povoada de animais domésticos e rodeada de feras. O local onde se encontrava, que tinha não muito longe uma aglomeração comercial abandonada que pertencera aos comerciantes portugueses, fazia renascer de novo essa imagem do continente. Descobria chefes tribais com inúmeras esposas, sistemas de governação tradicional, só lamentava não ter visto ainda um leão ou qualquer outra fera que justificasse as florestas por que passara, só observara macacos, macacos de pelo negro, macacos cinzentos, macacos esverdeados, macacos e mais macacos e uma ou outra rara corça, vista de longe, a fugir.

- Tu conoces Luanda? – indagou a Nataniel.

- Luanda? Não, nunca saí daqui. – respondeu.

- Es una ciudad muy grande y bonita.

- Talvez um dia eu consiga lá chegar.

- Y por aqui hay muchos animales? – quis saber Pablo

- Animais? ... Andam fugidos na mata.

Desejava ardentemente poder escrever para Cuba que estivera face a face a um búfalo, que lutara com uma píton gigante que por certo o teria estrangulado, não fosse o seu treino castrense e ter sacado, lesto, o sabre com o qual decepou, em talho preciso, a cabeça do monstro inclemente e longilíneo. Afirmar com caligrafia viril na carta à namorada, à amante, à esposa ou à mãe, talvez nem tivesse nenhuma delas, que atravessara um rio em braçadas másculas fugindo a um jacaré que quase o apanhara, felizmente agarrara-se a tempo a um cipó que pendia de uma frondosa árvore à berma do rio. Ansiava pelas aventuras que lera nas bandas desenhadas, muito mais que a verdura encantada que testemunhava por todo o lado, muito mais que a miríade de aves de cores, tamanhos e vozes diversas nas árvores, dos montes de térmites e do exército de formigas gigantes de mandíbulas vermelhas que viu atravessar a estrada à sua frente e cujo nome esquecera.

Que hormigas mas grandes, me comerian todo!

Nada disso lhe acontecera, e assim, virara sua atenção mais imediata para a premente aventura da revolução internacional e da edificação do homem novo, socialista, igualitário e despido da exploração humana.

Longe do realismo cubano, em cuja vivência lhe fora talhada a marteladas, desde o jardim de infância, a visão idílica socialista, Pablo abria-se finalmente à descoberta do reaccionarismo intrínseco da humanidade. Descoberta que, à medida que o tempo decorresse, embrenhado nas matas e nas batalhas africanas, o levaria de recuo em recuo emocional às grutas profundas e escuras, onde os primeiros hominídeos deixaram gravado nas paredes os seus sentires e afazeres, suas vidas de caça e colecta. Aqui, nas contradições do novo aprendizado do inter-relacionamento humano, Pablo iria percorrer as vastas planícies e lonjura do tempo e da história, e ver a Humanidade a abandonar a existência comunista primitiva. Espantado, verificaria que sobrevivera como espécie por ter mantido ao rubro a aptidão animalesca para matar para comer, e matar por qualquer outra motivo que justificasse a sobrevivência. Teria que testemunhar, sem compunção, o percurso do primeiro embrião que, abortado naturalmente, escorreu involuntário pelas pernas da mulher-fêmea quando, horrorizada, se agachou em convulsão ao tomar consciência do estrépito da faísca que lhe lascara a caverna húmida e escura, até aos novéis embriões dos clones humanos que a ciência previa em futuro breve.

Face a esta nova realidade, lutava pleno de culpas inexplicáveis, face ao conhecimento e à constatação, face à recolha dos múltiplos pormenores para si inexistente. A simples e maravilhosa descoberta que o dentífrico Kolinos, memória remota da sua infância, ainda existia, despertou paixões e recordações de cheiro, de sabor e de cor, entra muitas mais. Sentia-se, sem saber como e por que motivo, negado de um pedaço, de uma fatia do bolo da vida que lhe pertenceria, num outro momento, numa outra situação, mas certamente neste mundo. Julgava ser uma dúvida normal, provocada pelo novo ambiente, com o afastamento da pária e da família, ou talvez não. Não se atrevia a questionar, a negar o que lhe parecia tão evidente. A tanto não chegara, por nunca lhe ter sido facilitado o dever e o direito de questionar, na escolas, na família, nas academias militares que frequentara tanto na União Soviética quanto em sua terra natal. Nos bares, nas ruas e nas praias. Sem essa possibilidade, num mundo pequeno e protegido, o lógico fora ser parte do rebanho e balir o desenvolvimento natural do místico e do religioso convertidos e revestidos do purpúreo manto missionário da criação do Homem novo, para tanto tornado cruzado e apóstolo do socialismo internacional, com a mesma crença e fé dos que o precederam pelos caminhos ínvios da então África tenebrosa e selvagem, necessitada de conversão e purificação através da cruz e da palavra. Não havia diferença de conteúdo e nem de forma, unicamente os fundamentos para o fim pretendido.

Tudo faria para possibilitar a ida de Nataniel. Para ele, altruisticamente, almejava a possibilidade de o jovem poder estudar e regressar, não só com um curso, mas sobretudo imbuído de valores, para ele revolucionários, que permitiriam combater os hábitos que, espantado, descobria e sabia serem contra o desenvolvimento de qualquer país. Dirigentes que crêem em feitiços e protecções, por muitos cursos universitários que possuam, não os podem colocar ao serviço do avanço do país e da harmonia espiritual.

- Que te gustaria de ser? Que quieres estudiar?

- Eu? Queria ser médico, gosto quando vou na enfermaria e vejo o enfermeiro a curar os doentes.

- Muy bien. Cuba es una potencia americana en medicina, tenemos muchos medicos y muchas especialidades. Mañana me gustaria de falar con tu abô, puede?

- Pode, mas também tens que falar com o camarada comissário comunal.

Ficou mais tranquilizado ao ouvir a resposta de Nataniel, afinal a revolução estava presente em toda Angola pelo que lhe era assim dado a entender, o poder tribal estava submetido ao poder político local. Iria observar de perto esse relacionamento, não poderia fazer erros de julgamento que o colocassem em possíveis situações de dificuldade ou constrangimento, quer com as populações, quer camponesas ou não, quer com os agentes da acção política e militar locais. A primeira experiência com África não se emoldurava em nada nos conceitos que trazia, sobretudo os culturais, ficando agradavelmente surpreso com os boleros, rumbas, cha-cha-chas, salsa, tango e outra música latino americana que amiúde escutava nas rádios. Esta constatação conferiu-lhe a impressão inicial de se sentir mais num país do seu Caribe, que em África onde, em sítio algum ouvira ainda o rufar reverberante dos batuques, mesmo ali onde agora se encontrava, porque às noites estava decretado o silêncio absoluto.

- Entonces mañana hablaré com el camarada comissário de la comuna y despues com tu abô. Vale?

- Estás a falar verdade?

- Claro, compañero. Vas a ser medico y un buen medico, te lo prometo.

Passados alguns dias, Pablo falou com as autoridades locais, mostrou-lhes que muito em breve Angola teria que começar a enviar a sua juventude para formação socialista se a revolução tivesse que sobreviver, o país era muito vasto e a população muito esparsa e a longa noite colonial deixara um número exagerado de analfabetismo. Explicou que o dever internacionalista não era nada mais do que uma missão e uma etapa a cumprir, porque caberia aos angolanos, em última análise, desenvolver o seu país e prestar, no futuro, a mesma ajuda desinteressada a todos os outros povos e países que necessitassem e o solicitassem. Falou por longo tempo, a maior parte das palavras passando despercebidas ao camarada comissário comunal, mas dando a entender que a defesa desses ideais e conquistas caberiam às novas gerações, portanto ele desejava poder contar com o apoio da família de Nataniel para poder enviá-lo para Cuba, de onde regressaria não só um revolucionário consciente, como, e não menos importante, um médico ao serviço do povo angolano e da pátria socialista. O camarada comissário comunal, ele próprio um ex-guerrilheiro, sentiu-se bastante lisonjeado que Ualali pudesse vir a ter um filho médico e internacionalista e, em alongada intervenção no seu direito de resposta, levou o comandante cubano a passear, de maneira involuntária mas didáctica, pelos quinhentos anos da opressão colonialista até ao desembocar nas gloriosas chanas do leste, onde ele forçara o tuga a sofrer graves revezes.

- Uma vez estávamos nós preparados para emboscar o inimigo...

Foi de imediato cortado pelo cubano que conseguiu fazer-se perceber, que não tinha muito tempo. Contrariado, teve que regressar ao pedido. Informou que tudo iria fazer junto ao camarada comissário municipal para que esse desejo se tornasse realidade. Só então o camarada Pablo poderia falar com a família, até lá, teria que aguardar com paciência.

- Bueno, pero camarada comissário nosotros non iremos quedarnos aqui mucho tiempo, donde se encuentra el camarada comissário municipal? – perguntou, meio preocupado.

- Não muito longe, mas ele tem uma visita programada à nossa comuna daqui a três dias, poderemos então discutir este assunto de capital importância para todos nós. Como disse Lenine, porquê esperar?

Coño, mas cuando y donde dise Lenine tal cosa?

- Muy bien pero hay que apresarlo.

- Não se preocupe camarada, vou já mandar pôr na ordem de trabalhos a apresentar na reunião que teremos, será o primeiro ponto, logo a seguir ao das informações. Ele, depois levará este importante questão ao camarada comissário provincial, que saberá o que responder.

- Aun que va a llevar la questao al compañero comissário provincial? Hombre, el niño nunca irá a Cuba.

- Irá sim, camarada Paulo.

- Por favor me deje hablar com la familia que despues yo hago todo com mis superiores – implorou Pablo, navegador exímio dos trâmites da burocracia socialista.

- Não sei, camarada Paulo. Vamos falar primeiro com o camarada comissário municipal, que também é filho da terra, e depois logo veremos.

- Bueno, voy a esperar los tres dias, pero no más.

Mal sonhava o oficial cubano que os três dias pero no más, dados como ultimato ao comissário comunal, se transformariam em quase um ano de muita azáfama, idas a Luanda, contactos de todas as formas e feitios e, finalmente, a concessão de uma bolsa de estudo a Nataniel para prosseguir os seus estudos em Cuba, numa academia militar, para onde partiria com uma vasta leva de jovens provenientes de todas as províncias, a revolução socialista não podia ser elitista. O slogan não é de quem quer mas de quem merece, só se tornaria palavra de ordem um pouco mais tarde.

Chegado o dia e a hora, no aeroporto, ao despedirem-se, Pablo deu-lhe as últimas recomendações e o endereço da família para, quando tivesse uma oportunidade, os fosse visitar e levar notícias dele.

- Hodje é um grande dia para ti, Nataniel – disse, orgulhoso.

- É verdade padrinho, estou muito excitado.

- Não te olvides de lo que eô prometi a tu abô e família, trata de estudiar siempre, te quiero ver médico, médico, me escuchas? Non te olvides que somos família – disse Pablo, empavonado.

- É verdade, estou feliz por ver que o padrinho cumpriu com o que jurou.

- Callate, coño, de eso no se fala más – disse, olhando preocupado à volta.

Sem o desejar, veio-lhe à mente o dia em que, ciente de que não lhe restava outra alternativa, fora falar com a família de Nataniel. Fizera-se acompanhar pelo comissário comunal e três guardas cubanos, a quem ordenou que ficassem a controlar a periferia, modo de os manter longe das conversas que percebia poderem ser difíceis. Receberam-no com honrarias, incluindo o repasto de um porco, morto na véspera, pois já toda a gente conhecia o que o bicho representava para os cubanos como prato da sua culinária. Mais tarde, para seu deleite, fizeram-se ouvir as batucadas e as danças que muito apreciava, e que finalmente ouvira em outras paragens mais ao sul. A maior parte da população manteve-se próxima, dificilmente sairia antes que o assunto fosse tratado. O prestígio do soba estava em jogo, a aldeia não poderia falhar de vir a ter a sua primeira personalidade ilustre, o continuador da força e destreza do avô, numa Angola independente onde os filhos da terra eram donos de si mesmos.

Solicitou que fosse levado aos colegas um pouco do porco e daquela bebida leitosa, meio doce meio ácida, que já degustara em vários sítios, e cujo nome ele tinha dificuldade em aprender, umas vezes ouvia chamar kimbombo, outras kissangua.

Sentados debaixo de uma velha mulembeira, o velho Juba de Leão bastante encharcado de bebida, pediu silêncio com o olhar e, meio trôpego, ergueu-se ajudado pelo irmão Nehone e por Pablo, solícito. Limpou a voz, cuspiu para o lado e ergueu solenemente a bengala.

- Hoje é um grande dia para todos nós, com a ajuda do camarada Paulo, o nosso filho Nataniel vai partir para Cuba para ir estudar, ser um médico e um oficial nas Fapla.

- Viva o camarada Paulo! – ouviu-se a voz, também já pastosa, do comissário comunal.

- Viiiiiivvvvaaaaaa! – gritaram contentes os parentes, o que atraiu a gente para mais junto à mulembeira.

- Viva Cuba! Viva Fidel!... – respondeu bem alto, Pablo, para que, de onde estavam os seus companheiros, o ouvissem.

Por contágio, os vivas sucederam-se até que o soba grande mandou rufar os batuques para impor o silêncio devido. Po um longo instante, o que levou muitos a pensar que esquecera a razão do encontro, olhou para o chão, cabeça descaída. Finalmente endireitou o corpo, apoiou-se na bengala e sentou-se na cadeira do poder. Fez um gesto para que Pablo o imitasse. Mais uma vez limpou a voz, cuspiu para o chão e continuou, endereçando-se directamente ao oficial cubano.

- Mas se o nosso filho vai, lá na terra onde vai, não encontrará família, não vai ter tias nem tios, nem pai nem mãe, estará sozinho e seu coração haverá de ficar triste muito cedo, vai querer voltar, é verdade ou não é, camarada Paulo?

Pablo olhou à volta, conferiu que os seus companheiros estavam a distância suficiente para não ouvirem as conversas, unicamente as palavras de ordem, gritadas em pleno pulmões. Colocou-se de modo a que o seu dorso estivesse voltado para eles.

- Bueno, camarada Djuba de Leon, en Cuba la família somos todos nosotros. Nataniel bai a tener muchos tios e tias – respondeu, circunspecto.

O soba grande riu, colocou as duas mãos sobre o topo da bengala e falou mansamente, só os mais cerca o ouvindo.

- São todos irmãos e irmãs do camarada Paulo?

Pablo foi acometido por uma estranha sensação, sentiu no ventre contracções inexplicáveis e teve vontade de rir.

Coño que question mas ideota, como seran todos mis hermanos y hermanas?

- Irmaos e irmanas de sangre non, pero somos todos una grande família revolucionária, Nataniel non ba a estar sossinho.

- Muito bem, camarada Paulo, mas se leva o nosso filho, ele entra na sua família, qualquer coisa que aconteça sabe que tem o tio, ou se não quer ser tio, o padrinho.

Os familiares menearam a cabeça em aprovação, viram aonde é que o soba queria chegar. Vários muxoxos de aprovação estalaram pela assembleia.

- Padrino? – perguntou perplexo Pablo, confirmando, de soslaio, que a distância a que deixara os guardas era efectivamente suficiente para não permitir ouvir o que se falava. - Oiga camarada Djuba de Leon, no me traiga mala suerte.

O soba grande olhou para ele, teria entendido bem?

- Má sorte, está a falar que lhe vamos trazer azar?

- Si, por favor no me traiga má suerte, assar, como dice lo camarada.

- Olhe camarada Paulo, nós não temos esse costume, trazer azar nos nossos amigos, o azar é uma coisa para ninguém chamar, sabe o que acontece quando a gente chama o azar?

- No, no lo sei – respondeu o oficial cubano com um olhar de preocupação.

- Então vou-lhe contar o que aconteceu quando o azar foi chamado.

Porque hablé? Con este pueblo non se puede hablar, hay que mantener-se calado. Me van a hacer perder más tiempo!

- No, no es necessário, no vai a precissar – respondeu lesto, com um ar de arrependimento por ter falado em má sorte.

- Vou falar sim, para o camarada Pablo nunca mais falar de azar.

As pessoas á volta menearam a cabeça em aprovação e um ou outro bateu palmas, sublinhando assim as palavras do chefe como sábias e oportunas.

- Preste bem atenção. Um dia a irmã cobra mais os seus primos e o irmão lagarto mais os seus primos...

- Irmana cobra? – perguntou Pablo, incrédulo.

- Camarada Pablo, escute só e não faça perguntas, então antigamente os bichos não eram nossos irmãos? Até na Bíblia diz que todos viviam de igual no paraíso e que Adão falava com eles, até foi ele quem lhes deu o nome.

- Ta bien, ta bien. Me perdona camarada Djuba de Leon – disse, conciliatório e chegando à conclusão que quanto mais calado se mantivesse, mais rápido dali sairia.

Juba de Leão apreciou a autocrítica do oficial cubano, desculpando-o por ser estranho aos costumes da terra, pigarreou e continuou.

- Como eu dizia, a irmã cobra e os seus primos, que são muitos, e o irmão lagarto e os seus primos, que não são menos, foram ter com Deus, Kalunga, e disseram-lhe que não conheciam o que era o azar, pediram assim para Ele lhes mostrar o que era o azar porque tinham ouvido falar, mas só isso, saber não sabiam. Kalunga ficou muito surpreso com o pedido, ainda os desaconselhou, mas a insistência foi tanta que, aborrecido, pediu-lhes para regressarem no dia seguinte de manhã, far-lhes-ia a vontade. Como combinado, no dia seguinte eles apareceram todos e Kalunga mandou-os que se dirigissem a um local deserto e que se deitassem todos de barriga para o ar.

- Só isso? – perguntaram eles, espantados.

- Sim só isso, respondeu-lhes Deus. Façam isso e logo descobrirão o que é esse azar que estão à procura. Então os bichos foram todos para um lugar deserto e deitaram-se de barriga para o ar, como lhes havia sido mandado.

Pero esto son cuentos para niños, no eh venido aquí para escuchar cuentos para niños, que locura!

Pablo olhou para o relógio involuntariamente, o que fez o soba sorrir.

Vieste em África, queres levar o nosso filho, e não queres aprender a nossa tradição? Vais escutar tudo, há tempo...

Pablo deu conta do sorriso do soba e baixou a cabeça, envergonhado.

- Depois, Kalunga dizendo para consigo mesmo que já que não estavam bem como estavam e queriam conhecer coisas más, ele proporcionar-lhes-ia o almejado desejo. Mandou chamar os milhafres, os falcões, os gaviões e as águias, enfim, todas as aves rapaces e contou-lhes o sucedido, tendo-lhes ordenado que voassem para o local deserto onde os répteis se tinham ido deitar de barriga para o ar e que os devorassem a todos.

- Muy bien, muy bien – disse o cubano, para se redimir.

- Olhe camarada Paulo, estavam todos deitados de barriga para o ar quando uma nuvem grande dessas aves apareceu e começou a comê-los a todos, só escapando um casal que, dando conta de que afinal o azar era aquilo, logo correu para debaixo de uma pedra, salvando assim a vida, porque bem escondidos. Quando as aves se foram embora, esse casal foi ter com Kalunga e disse que já sabia o que era o azar e que não era coisa boa, que não se deve pretender ter ou conhecer o azar. E foi, também, a partir desse dia que esses pássaros e os lagartos e cobras ficaram inimigos. - concluiu Juba de Leão, limpando a boca com as costas da mão- Agora o camarada Paulo ainda acha que lhe queremos trazer azar porque desejamos proteger o nosso filho pedindo-lhe para ser padrinho?

- No, claro que nao, me perdone, nuestra cultura es otra, está muy londge de esas cosas

- Está perdoado, agora o camarada Paulo entende que um filho tem sempre que estar protegido, não vamos mandá-lo assim de qualquer modo para Cuba, tem que ter um padrinho pelo menos.

Os parentes romperam em grande ovação, logo seguidos dos outros à distância O soba fez um sinal com a mão e a tranquilidade foi mais uma vez reposta.

O camarada comissário comunal, estava a sentir a sua autoridade minimizada, ninguém lhe perguntara a opinião.

Estes sobas têm a mania que mandam já vai ver, isso era antigamente.

Aproveitou a deixa e largou em altos vivas a Cuba, vivas a Fidel, pátria ou muerte venceremos, sem esquecer os naturais vivas ao camarada presidente Agostinho Neto, vivas ao internacionalismo proletário, um vibrante de Kabinda ao Kunene um só povo uma só nação e, já sem fôlego, uma atabalhoada a luta continua e a vitória é certa, repetida três vezes em crescendo molto allegro. O oficial cubano suspirou aliviado, os outros companheiros certamente pensariam que estava a dissecar com as populações nativas a questão da presença cubana solicitada por Agostinho Neto, a escalpelizar o dever internacionalista de Cuba e de Fidel para com a libertação total dos povos irmãos para pôr a nu o pensar dessa grande pátria e desse grande vencedor da Sierra Maestra.

- Bueno, lo que é necessário para eô ser padrino? – perguntou, quase sussurrando e desejoso de sair dali tão rápido quanto possível.

- Tem que o baptizar – disse Juba de Leão.

Pablo quase que deu um pulo do banco onde se sentava, uma investida norte-americana à sua terra não o teria colhido de tal modo.

- Bautissar? Como, bautissar?...

- Baptizar, na missão – respondeu o soba a rir devido à cara do cubano, que retirara do bolso das calças um lenço verde oliva e limpara o suor que escorria da testa luzidia.

- Non soy religiosso, non puedo entrar en la missao.

Juba de Leão pensou por um bocado, achou estranho o cubano não ser religioso, todos têm uma religião, mesmo os que professam que não têm sempre têm, nem que seja a religião do medo ao desconhecido, a religião do respeito aos seus mortos e antepassados, a religião ao dinheiro, a religião ao poder, todos têm uma, todavia considerou a questão de ele poder ou não entrar numa igreja de secundária, não era por aí que se furtaria às suas responsabilidades agora já familiares.

- Está bem, não precisa ir na missão, vamos fazer o baptismo no nosso regime.

- Vuestro regime, de que hablais?

- Os seus antepassados não saíram da África? Não conhece os seus antepassados, o

seu caminho? – insistiu, Juba de Leão.

- Si, saliram pero ya hace sieculos y non sé nada de bautismos sea en que regime.

- Camaradas, temos que ter cuidado – alertou de baixa voz o comissário comunal, ciente da importância política do seu posto e da longa vida que desejava conferir-lhe.

Os horizontes da nova era política não vislumbravam o exercício aberto de práticas obscurantistas, o homem novo em construção, e este não era feito de barro, material de frágil consistência e necessitado de cozeduras a altas temperaturas, tinha que combater sem tréguas as taras herdadas do colonialismo, entre elas a fragilidade das religiões, castradoras da mente e perniciosas ao desenvolvimento científico da juventude. Conhecedor desses novos rumos, apanhado no redemoinho das novas bem aventuranças da fé política, cristão novo da administração local, o comissário comunal tinha mais do que razões para estar preocupado. Os feiticeiros e os curandeiros haviam fugido para o cerrado das matas, de lá recebiam os que os procuravam no silêncio da noite. Os padres remeteram-se às missões, aos claustros dos conventos e suas escolas foram confiscadas, obrigados a manterem a boca calada. Não seria ele a ser acusado, fosse por que motivo, por algum aldeão, de ter promovido práticas ancestrais agora proscritas em nome dessa nova espécie de homo sapiens, cujas diferenças ele ainda não vislumbrava, a não ser da boca para fora nas frases, nas intenções e nas palavras de ordem.

- Não podemos fazer nada assim abertamente que envolva os técnicos – disse o comissário comunal, em tom brando.

- Coño, de que estan hablando, técnicos, que técnicos? Para ser padrino es necessário técnicos? – indagou Pablo, cada vez menos à vontade e talvez intuindo a voz de algum antepassado africano a cutucar-lhe a ancestralidade.

-No se preocupe, nós vamos fazer a cerimónia tradicional depois da sua saída.

Se ese es el caso, que bautizen el jovene como quieren, que hagan quantas cerimónias de quantos regimes conocem.

Sentiu-se mais à vontade e desejou que toda essa conversa acabasse logo.

Más que tierra y que gente esta!

- Está bien, puedem fasser la cerimonia mas eô não puedo estar pressente.

- O camarada Paulo fique à vontade, vamos dar-lhe a lista, logo-logo já vai encontrar o Nataniel como seu afilhado, e fica tudo entre nós.

- Lista de quê? Para se bautissar es assi tan complicado?- sentiu-se outra vez em angústia.

- Não, não é nada complicado, só tem que trazer umas coisas que vamos escrever, é para o mestre poder fazer o serviço, a cerimónia.

A contragosto e desconfiado, Pablo disse que sim, ele próprio traria tudo o que colocassem no papel desde que fosse normal, mas, sentencioso, rogou silêncio absoluto sobre a questão, não desejava ouvir mais falar-se deste assunto. Sem saber que iniciara o tortuoso caminho da descoberta de suas remotas origens, foi abraçado efusivamente pelo soba, pelos velhos e pelo comissário comunal que, com a sua presença política, tranquilizara um pouco os espíritos do oficial cubano.

Sorrindo à evocação, voltou a si, e virou-se para Nataniel, colocando-lhe um braço sobre os ombros.

- Es como te digo afilhado, hodje é um grande dia para nosotros, el primero passo de tu vida como revolucionário e médico.

Nataniel olhou para ele feliz. O que ficara para trás, para trás ficara, agora só tinha o caminho, em linha recta, para diante, e estava decidido a aproveitá-lo, estudaria, desejava ser médico e tinha uma oportunidade à sua frente, para além de ir conhecer novas terras e novos mundos. As cerimónias de despedida em Ualali tinham sido um momento difícil, por vezes mais pareceram um óbito pelos choros e gritos das mulheres. Aspergiram-no com uma água buscada da cacimba e levada à floresta para o mestre adivinho abençoar e nela colocar os melhores votos dos antepassados. O corte do cordão com a aldeia amedrontara-o sobremaneira, não obstante o ofego e alegria que a ida para Cuba lhe produziam. Sabia que iria encontrar-se sozinho em alienígenas terras que nem a sua fértil imaginação conseguia visualizar, a descrição daquele mar infindo que levava um barco grande a consumir quinze dias para o atravessar, quiçá prenhe de monstros que nem os saberia descrever ou imaginar, gente com fala estranha que teria que aprender para poder estudar, tudo isto e muito mais, o manteve contrito. Os festejos de despedida duraram uma semana, Nataniel para alem do futuro brilhante que lhe fora predito, era neto do soba, tendo, portanto, toda a aldeia contribuído para que a sua ida fosse a mais pressagiada possível. Nunca o jango principal conhecera tanta gente em festa. No primeiro dia, em que os mais velhos da aldeia pediram em comunhão saúde e protecção para o jovem, cabritos e galinhas foram oferecidos. No terceiro, ao fim da tarde, o avô, como o mais velho da família, convocou todos os parentes para a frente da sua casa, situada no centro da aldeia. No meio da alegria e da expectativa que se vivia, só os parentes ausentes não foram contados. Com os familiares acocorados em frente à casa, Juba de Leão agarrou num pedaço de fuba de milho entre os dois primeiros dedos da mão direita e fê-la cair sobre a terra, em quatro orações voltando-se para o norte, sul, oeste e este, numa invocação dos antepassados clânicos que sua memória conseguiu recordar. Quando terminado, todos os do parentesco presentes agarraram em pedaços de fuba de milho e repetiram o ritual, desenhando, após, com a farinha que lhes sobrara um risco vertical na testa.

O cubano foi igualmente lembrado e, numa cerimónia à parte e à qual compareceram unicamente Juba de Leão, Nehone, Epalanga, o pai de Nataniel, Nataniel, que já fora circuncidado, e o mestre adivinho. Foi então morto um cabrito preto cujos testículos, mais tarde secos no fumo, foram entregues a Nataniel na hora da partida com o fito de os confiar a Pablo para guarda, até ao dia em que regressasse a Angola, formado. No último dia, Nataniel foi instruído da forma como se deveria comportar em terra alheia, como recordar em todos os momentos a família e os idos e não defraudar a aldeia do sacrifício que faziam a fim de que tivessem um filho ilustre e importante.

Ficou grato pelo braço de Pablo no seu ombro, não defraudaria ninguém, estudaria com afinco, formar-se-ia e seria oficial médico das gloriosas Fapla, como ele dizia. Sentiu o padrinho indicar-lhe o caminho para o avião, a hora avizinhava-se.

Chegou a hora, não é? – disse receoso e com um apertado nó na garganta.

Pablo fingiu que não se apercebera e conduziu-o ao interior do Illyushin que o levaria a Cuba, recomendando-o ao piloto e às hospedeiras. Os outros entrariam depois, não tinham um padrinho oficial cubano que os levasse à cabina. Conduziu-o ao assento e avisou que a viagem iria ser muito longa e maçuda

- Quanto tempo, padrinho?

- Mucho, mucho tempo, unas catorsse horas.

- Catorze horas? Todo esse tempo aqui dentro no avião?

- Nao, vao à parar em Cabo Verde, unas islas onde também se fala português.

Nataniel achou que chegara o momento de entregar a Pablo o que lhe fora recomendado. Olhou à sua volta, chegou-se um pouco mais a disse.

- Padrinho, tenho uma coisa a dar-te, é da família, e tens que guardar até eu regressar de Cuba.

Abriu a mochila e retirou um pequeno embrulho amarrado com uma corda tosca. Verificando que ninguém observava, estendeu-o a Pablo que, desconfiado do gesto, o guardou de imediato no bolso, antes que fosse notado. Chegou-se ao afilhado, debruçou-se sobre ele e sussurrou:

- O que és esto?

- É a minha protecção familiar, tem a benção dos antepassados, como vou pelas tuas mãos isso tem que ficar guardado contigo.

Pablo sentiu um fogo interior a consumi-lo, fosse de tez pálida, estaria da cor de um pimento vermelho. Considerou a possibilidade de ser algum feitiço ou talismã, e o peso da responsabilidade tombou sobre ele como se tivesse sido fulminado por um raio. Sentou-se na cadeira vazia ao lado e, tirando o lenço verde oliva do bolso, limpou o suor que gotejava de testa. África cada vez mais o agarrava, mesmo contra a sua vontade, há algum tempo que se dera conta que começara a ser supersticioso, levava uma fita vermelha amarrada no tornozelo, por dentro da meia, e que conseguira, até à altura, manter em segredo dos outros. Que justificação teria se, por descuido, lhe fosse perguntada a razão do gesto? Talvez deve-se substitui-la por uma verde oliva, as desculpas seriam mais verosímeis, poderia ser morto sem que se soubesse e o fardamento roubado pelo inimigo que também às vezes o usava para assaltar aldeias indefesas, assim aquela fita verde-olivo, que certamente passaria despercebida, seria o testemunho imorredouro que aquele corpo era de um cubano valoroso, morto por Cuba e pela revolução internacional. Quem duvidaria das suas intenções, nada mais se falaria sobre a fita, mas agora, vermelha, como explicar?

- Proteccion? Coño, niño que pasa, no necesitas de ninguna proteccion? – ciciou, assustado.

- Necessito sim, guarda bem contigo, não podes perder isso, senão muitos males vão acontecer a ti, a mim, à nossa aldeia.

- Males, que males? No vai a acontecer nada, vas a venir formado e oficial graduado de las Faplas, no vai a acontecer nada.

- Vai sim, padrinho. Agora não te posso explicar, os mais velhos também não me disseram muito, pediram só que guardes isso contigo até eu regressar. É nosso regime e tu és agora o meu responsável, já esqueceu?

Quisera yo olvidar!...

Ao cubano, ainda amedrontado, veio-lhe à mente que em sua querida Cuba havia um ditado que alertava para não se acreditar em bruxedos, mas estar-se sempre ciente da existência das bruxas.

Certamente uma coisa seria guardar o pacote, outra seria não saber o que continha e não desejar violá-lo, vá lá saber-se que forças poderia desencadear, cada vez mais testemunhara coisas que, se lhe fossem contadas, riria de bom grado pela ignorância do relator e não pela verosimilhança do relato.

- Está bien, vou a guardar esto até tu regresso, pero tienes que me disser o que está dentro del pacotito este.

- São os testículos secos de um cabrito preto.

Pablo deu um pulo do assento e foi até à porta de entrada do avião, onde pediu um copo de água à hospedeira. Nataniel viu-o sorver a água sem respirar e estender o copo para ser servido outra vez. Bebeu três, pediu desculpa , agradeceu à aeromoça e veio-se sentar junto a Nataniel, sempre limpando o suor. Olhando à volta, murmurou a novo à orelha do afilhado.

- Testículos secos de uno cabrito?

- Sim.

- Y para qué, que vou a hacer com testículos secos de un cabrito?

- Não interessa, guarda só e guarda bem, quando eu voltar dás de volta porque tenho que levar nos velhos, no meu avô.

Mais tranquilizado, afinal nada mais do que guardar o embrulho lhe era pedido, desde que o fizesse nada teria a recear, no fundo era assunto da aldeia e de gente supersticiosa, não o afectava directamente, levantou-se e mudou de assunto, já começava a tornar-se suspeito aos olhos do comissário de bordo aquele cochichar constante. Puxou Nataniel para fora do assento e, emocionado, abraçou-o, dando-lhe um pequeno soco no ombro.

- Estudia, estudia bien y regresa pronto, un hombre para servir Angola y la revolution. Buen viaje – disse, saindo rápido para que a fraqueza dos sentimentos não fosse entendida, alguém já vira um oficial superior cubano a lacrimejar por ter cumprido com o dever sagrado da revolução internacional?