O ALMOÇO
Fora jurado amor à primeira
vista.
Ninguém duvidava, ao ouvir
Malaquias “Gordo” contar, com paixão, a estória do seu matrimónio, que engorda
há quinze anos.
Conhecera
a então futura esposa num dos programas matinais de culinária, que a T.V.I.
(televisão de Inkuna) quinzenalmente apresentava naqueles anos idos. A fama de
bom garfo, aliada ao facto de ser dono do mais famoso restaurante de luxo de
Katola, levara a que o convidassem a presidir ao júri do concurso. Aos
concorrentes era atribuído um valioso prémio, com base na receita mais original, no prato melhor
confeccionado perante as inquiridoras câmaras televisivas, e nas parcas
chamadas telefónicas recebidas no programa, sobretudo de aborrecidas donas de
casa querendo dar palpites gastronómicos.
Embasbacado, mesmerizado no jeitos e trejeitos culinários das mãos da
fada Serafina Coquillage (assim se
inscrevera), entrou em acelerada órbita amorosa quando ela, sem o querer,
acariciou castamente o corpo engordurado do coelho.
Ao
esquartejá-lo, cada golpe de retalho, era uma insinuante frechada de Cupido no
já esfrangalhado coração de Malaquias que, boquiaberto, inalava os suados
respirares da amada.
Quando
Serafina começou a temperar o bicho com
sal, pimenta, vinho branco (um copo),
alhos e louro (uma folha), Malaquias
havia tomado a decisão mais intempestiva e séria de sua vida. Se a senhora
fosse solteira, ou desimpedida, nada, mas absolutamente nada, se interporia no
caminho de sua felicidade. Chamaria a si a grata tarefa de desencalhar aquela
frágil nave das rochas do desamor e da solidão para, incólumes, navegarem os
mares doces da vida compartilhada entre caçarolas, almoços, amores e jantares.
O
continuado carinho demonstrado por Serafina, ao segurar o tacho que levou a
lume com o azeite (cinco ou seis colheres
de sopa), a cebola picada, o ramo de salsa e um pouquinho de água, para
refogar o inditoso lapin, confirmou a justeza das suas pretensões.
Mulher
assim não era para andar à solta, a desperdiçar tempo e talento em programas de
televisão, ainda por
cima para gente
que nem apreciava
ou entendia a
arte e o amor envolvidos. Era um atirar de pérolas
aos porcos...
Sentia que Serafina Coquillage, o
pseudónimo que escolhera revelava
toda uma alma preparada a servir
repastos dignos das
ilandas, dar-se-ia por realizada
não só a gerir
a vasta cozinha do seu
famoso restaurante na
Ilha de Katola,
como a de
sua casa, na qualidade de esposa
amantíssima.
Serafina
teria uns trinta anos, com uma cor negra a fugir para o castanho que reluzia ás
luzes dos projectores do estúdio, corpo bem roliço (85 quilos) e mais para o
baixo de que para o médio, e uns serenos abaulados olhos.
Viúva há
quatro anos, o anafado marido morrera de
enfarte cardíaco, irresistente aos bons
tratos do garfo. Sua razão de vida encontrava-se nas panelas, tachos,
frigideiras, esfregões e afins. Não por
ser mulher, mas sim por chamada divina, um sacerdócio.
Imbuída
desse espírito, ganhara concursos por tudo quanto era canto, apresentando
agora seus melhores pratos no programa
televisivo das dez da manhã. Levar a palavra do bem comer aos ímpios, convertê-los,
era um gesto da mais alta subliminalidade.
Extravasando transcendência, metia
agora no tacho, onde deixara o roedor a alourar, a polpa de tomate (2 colheres de sopa) e o resto dos
ingredientes (uns quatrocentos gramas de
nozes picadas, pimenta preta ralada, cravinho e o decilitro de natas).
Com a
coração a estoirar, mesmo antes de terminada a confecção do prato, Malquias
decidiu que daria nota dez àquela fada gastronófila.
“Que
maravilha, que destreza! Merece o máximo!...”, ia cochichando, suficientemente
alto para os outros dois membros do júri, um, empregado seu, o ouvirem.
Quando
Serafina Coquillage colocou o aromático coelho já preparado e enfeitado de
salsa picada, sobre rodelas largas de pão
torrado, não conseguiu esconder a enorme alegria. Tão cedo o programa
terminou, dirigiu-se a ela e apresentou-se.
“A
senhora foi deliciosamente maravilhosa”, disse, enfatizando a palavra
deliciosa. “Poderíamos sentarmo-nos ali a um canto do estúdio e provar a peça
de arte que confeccionou? Dei-lhe nota dez, nem que fosse só pelo seu nome
artístico...”, continuou, estendendo-lhe uma mão adiposa, mas firme.
“Quão
gostoso é ouvi-lo”, respondeu, sabendo que encontrara, por fim, a alma gémea.
Depois de
terem comido o coelho que Serafina (Valente era o verdadeiro nome) confeiçoara,
Malaquias levou-a a casa para se preparar e irem, dali a uma hora, almoçar no
“Pantagruel”, seu famoso restaurante.
Decidira
que seria depois da sobremesa. Sabia de antemão que o cérebro e o coração
funcionam muito melhor quando o estômago está satisfeito. Seria logo após a
sobremesa que lhe formularia o pedido de casamento. Caso negasse, poderia
sempre tentar conquistá-la propondo-lhe a gerência do restaurante. Nunca fora
aventureiro, todavia iria arriscar num jogo de tudo ou nada. Onça que não caça
é onça velha, morre de faminta vida.
Ás doze e
meia, como combinado, tocou à campainha da casa de Serafina, que não se fez
esperar. Exsudava antecipação e seus
vastos seios não
o escondiam, ofegava.
Malquias, cavalheiro, abriu-lhe a porta do carro, esperou que se
sentasse e fechou-a com cuidado.
Serafina
adorou, confirmava um pouco a ideia que fizera dele, atencioso, bom garfo e o
suficientemente gordo para a tornar feliz. Aceitaria qualquer investida do
adiposo garanhão, dentro das medidas da decência e do socialmente aceitável.
“Depois
da sobremesa, tenho uma proposta muito importante para lhe fazer...” atirou,
para sondar.
“Sobremesa? Não me fale de sobremesa, que é parte mais importante de
qualquer
refeição para mim”, disse, meiga e enternecida
Malaquias
tremelicou de emoção, o Mercedes guinando de vontade própria, ligeiramente para
a esquerda.
“Espero
que tenha parfait de laranja...”, continuou Serafina, emocionada.
“Parfait
de laranja?... Creio que não temos, mas doravante se não o encontrar na carta
das sobremesas, paro de comer por uma semana. Juro-lhe!... Aliás, vaaiii
ensinar o nosso maitre doceiro como o confeccionar da maneira que gosta”,
emendou rápido, não se perdoando por não ter o referido parfait.
“Quanta
doçura de sua parte! Até é bem fácil de preparar, leva poucos ingredientes. O
estimado Malaquias mistura bem o leite condensado (uma lata), o iogurte natural (um
casco), o sumo natural de laranja (um
copo), e as cascas raladas das mesmas (pouco
menos de uma colher de sopa)”, disse Serafina, ciente que lhe fazia uma declaração de amor.
“Por favor
Serafina, não continue, comove-me... e estou a conduzir...”, disse Malaquias
com sinceridade, o Mercedes fugindo novamente para a esquerda.
“Ó meu
querido amigo, não seja modesto”, riu com pudor.
“Olhe,
depois continue a misturar, numa panelinha, a gelatina (sem sabor, e em pó), e a água (meia
chávena) até a dissolver. Quando tiver ganho consistência mínima, coloque
em taças, intercalando camadas de creme, com camadas da mistura obtida com a
castanha de caju picada (cerca de meia
chávena), e o chocolate branco ralado (igualmente
meia chávena)”, estimulava, a meiga Serafina, mais uma vez Coquillage.
“Tempera
suas palavras com tal carinho e saber, que me deixa extasiado!... Disse
alternar camadas de creme de laranja, com a mistura da castanha de caju e
chocolate branco? Será que ouvi bem?”.
“Ouviste
Malaquias!”, disse-lhe, sem notar que o tratara por tu.
“Oh
Serafina, como me enche a alma com esse parfait!...”, retorquiu, segurando-lhe
a mão sem aperceber. “Continue, continue meu bombom, e depois?”.
“Oh
Malaquias, como me derretes com tuas palavras, sinto-as como se fossem a mais
doce tarte de framboesas... mas deixa-me acabar! Depois enfeitas com rodelas de
laranja e pedaços da castanha que sobrou, e pões na geleira até estar
pronto!...”
Foi ao
verem, apavorados, o outro carro contra o qual iam inevitavelmente chocar por
estarem fora de mão, que Malaquias notou, atordoado pela ousadia, que segurava
a mão de Serafina, e esta, espantada, que já há algum tempo o tratava por tu,
contra todas as regras da boa educação, tendo-lhe incluso confessado a sua
maior fraqueza, a tarte de framboesas.
Durante
as duas semanas do internamento de ambos, na mais chique clínica privada de
Katola, a cozinha do restaurante “Pantagruel” esmerou-se no envio dos melhores
pratos para o patrão e sua futura esposa. É que Serafina Valente, logo após o
desastre, perante a surpresa dos médicos que lhes colocavam o gesso nas pernas,
aceitara novamente a proposta de Malaquias “Gordo”, feita ainda quando nos
bancos do carro acidentado.
Quanto ao
magnífico BMW do outro condutor, desprestigiadamente atirado para a berma do
passeio e destruído quase por completo, o problema era da seguradora, o que
estava feito estava feito.
Katola, capital de
Inkuna, no ano de graça de 1996