domingo, 7 de outubro de 2012

INKUNA MINHA TERRA




O ALMOÇO


     Fora jurado amor à primeira vista.
     Ninguém  duvidava, ao ouvir Malaquias “Gordo” contar, com paixão, a estória do seu matrimónio, que engorda há  quinze anos. 
     Conhecera a então futura esposa num dos programas matinais de culinária, que a T.V.I. (televisão de Inkuna) quinzenalmente apresentava naqueles anos idos. A fama de bom garfo, aliada ao facto de ser dono do mais famoso restaurante de luxo de Katola, levara a que o convidassem a presidir ao júri do concurso. Aos concorrentes era atribuído um valioso prémio, com base na   receita mais original, no prato melhor confeccionado perante as inquiridoras câmaras televisivas, e nas parcas chamadas telefónicas recebidas no programa, sobretudo de aborrecidas donas de casa querendo dar palpites gastronómicos.
     Embasbacado, mesmerizado no jeitos e trejeitos culinários das mãos da fada  Serafina Coquillage (assim se inscrevera), entrou em acelerada órbita amorosa quando ela, sem o querer, acariciou castamente o corpo engordurado do coelho.
     Ao esquartejá-lo, cada golpe de retalho, era uma insinuante frechada de Cupido no já esfrangalhado coração de Malaquias que, boquiaberto, inalava os suados respirares da amada.
     Quando Serafina começou  a temperar o bicho com sal, pimenta, vinho branco (um copo), alhos e louro (uma folha), Malaquias havia tomado a decisão mais intempestiva e séria de sua vida. Se a senhora fosse solteira, ou desimpedida, nada, mas absolutamente nada, se interporia no caminho de sua felicidade. Chamaria a si a grata tarefa de desencalhar aquela frágil nave das rochas do desamor e da solidão para, incólumes, navegarem os mares doces da vida compartilhada entre caçarolas, almoços, amores e jantares.
     O continuado carinho demonstrado por Serafina, ao segurar o tacho que levou a lume com o azeite (cinco ou seis colheres de sopa), a cebola picada, o ramo de salsa e um pouquinho de água, para refogar o inditoso lapin, confirmou a justeza das suas pretensões.
     Mulher assim não era para andar à solta, a desperdiçar tempo e talento em programas de televisão,  ainda  por  cima  para  gente  que  nem  apreciava  ou  entendia  a  arte  e  o amor envolvidos. Era um atirar de pérolas aos porcos...
      Sentia que Serafina  Coquillage, o  pseudónimo que  escolhera  revelava  toda  uma  alma preparada a  servir  repastos  dignos  das  ilandas, dar-se-ia  por  realizada  não    a gerir  a vasta cozinha  do  seu  famoso  restaurante  na  Ilha  de  Katola,  como  a  de  sua  casa, na qualidade de esposa amantíssima.
     Serafina teria uns trinta anos, com uma cor negra a fugir para o castanho que reluzia ás luzes dos projectores do estúdio, corpo bem roliço (85 quilos) e mais para o baixo de que para o médio, e uns serenos abaulados olhos.
     Viúva há quatro anos, o  anafado marido morrera de enfarte  cardíaco, irresistente aos bons tratos do garfo. Sua razão de vida encontrava-se nas panelas, tachos, frigideiras, esfregões e afins. Não  por ser mulher, mas sim por chamada divina, um sacerdócio. 
     Imbuída desse espírito, ganhara concursos por tudo quanto era canto, apresentando agora  seus melhores pratos no programa televisivo das dez da manhã. Levar a palavra do bem comer aos ímpios, convertê-los, era um gesto da mais alta subliminalidade. 
     Extravasando transcendência, metia  agora no tacho, onde deixara o roedor a alourar, a polpa de tomate (2 colheres de sopa) e o resto dos ingredientes (uns quatrocentos gramas de nozes picadas, pimenta preta ralada, cravinho e o decilitro de natas).
     Com a coração a estoirar, mesmo antes de terminada a confecção do prato, Malquias decidiu que daria nota dez àquela fada gastronófila.
     “Que maravilha, que destreza! Merece o máximo!...”, ia cochichando, suficientemente alto para os outros dois membros do júri, um, empregado seu, o ouvirem.    
      Quando Serafina Coquillage colocou o aromático coelho já preparado e enfeitado de salsa picada, sobre rodelas largas de pão  torrado, não conseguiu esconder a enorme alegria. Tão cedo o programa terminou, dirigiu-se a ela e apresentou-se.
     “A senhora foi deliciosamente maravilhosa”, disse, enfatizando a palavra deliciosa. “Poderíamos sentarmo-nos ali a um canto do estúdio e provar a peça de arte que confeccionou? Dei-lhe nota dez, nem que fosse só pelo seu nome artístico...”, continuou, estendendo-lhe uma mão adiposa, mas firme.
      “Quão gostoso é ouvi-lo”, respondeu, sabendo que encontrara, por fim, a alma gémea.
   Depois de terem comido o coelho que Serafina (Valente era o verdadeiro nome) confeiçoara, Malaquias levou-a a casa para se preparar e irem, dali a uma hora, almoçar no “Pantagruel”,  seu famoso restaurante.
     Decidira que seria depois da sobremesa. Sabia de antemão que o cérebro e o coração funcionam muito melhor quando o estômago está satisfeito. Seria logo após a sobremesa que lhe formularia o pedido de casamento. Caso negasse, poderia sempre tentar conquistá-la propondo-lhe a gerência do restaurante. Nunca fora aventureiro, todavia iria arriscar num jogo de tudo ou nada. Onça que não caça é onça velha, morre de faminta vida.
     Ás doze e meia, como combinado, tocou à campainha da casa de Serafina, que não se fez esperar.  Exsudava antecipação e seus vastos  seios  não  o  escondiam,  ofegava.  Malquias, cavalheiro, abriu-lhe a porta do carro, esperou que se sentasse e fechou-a com cuidado.
     Serafina adorou, confirmava um pouco a ideia que fizera dele, atencioso, bom garfo e o suficientemente gordo para a tornar feliz. Aceitaria qualquer investida do adiposo garanhão, dentro das medidas da decência e do socialmente aceitável.
     “Depois da sobremesa, tenho uma proposta muito importante para lhe fazer...” atirou,
para sondar.
     “Sobremesa? Não me fale de sobremesa, que é parte mais importante de qualquer
refeição para mim”, disse, meiga e enternecida
     Malaquias tremelicou de emoção, o Mercedes guinando de vontade própria, ligeiramente para a esquerda.
     “Espero que tenha parfait de laranja...”, continuou Serafina, emocionada.
     “Parfait de laranja?... Creio que não temos, mas doravante se não o encontrar na carta das sobremesas, paro de comer por uma semana. Juro-lhe!... Aliás, vaaiii ensinar o nosso maitre doceiro como o confeccionar da maneira que gosta”, emendou rápido, não se perdoando por não ter o referido parfait.
     “Quanta doçura de sua parte! Até é bem fácil de preparar, leva poucos ingredientes. O estimado Malaquias mistura bem o leite condensado (uma lata), o iogurte natural (um casco), o sumo natural de laranja (um copo), e as cascas raladas das mesmas (pouco menos de uma colher de sopa)”, disse Serafina, ciente  que lhe fazia uma declaração de amor.
    “Por favor Serafina, não continue, comove-me... e estou a conduzir...”, disse Malaquias com sinceridade, o Mercedes fugindo novamente para a esquerda.
     “Ó meu querido amigo, não seja modesto”, riu com pudor. 
     “Olhe, depois continue a misturar, numa panelinha, a gelatina (sem sabor, e em pó), e a água (meia chávena) até a dissolver. Quando tiver ganho consistência mínima, coloque em taças, intercalando camadas de creme, com camadas da mistura obtida com a castanha de caju picada (cerca de meia chávena), e o chocolate branco ralado (igualmente meia chávena)”, estimulava, a meiga Serafina, mais uma vez Coquillage.
    “Tempera suas palavras com tal carinho e saber, que me deixa extasiado!... Disse alternar camadas de creme de laranja, com a mistura da castanha de caju e chocolate branco? Será que ouvi bem?”.
     “Ouviste Malaquias!”, disse-lhe, sem notar que o tratara por tu.
     “Oh Serafina, como me enche a alma com esse parfait!...”, retorquiu, segurando-lhe a mão sem aperceber. “Continue, continue meu bombom, e depois?”.
     “Oh Malaquias, como me derretes com tuas palavras, sinto-as como se fossem a mais doce tarte de framboesas... mas deixa-me acabar! Depois enfeitas com rodelas de laranja e pedaços da castanha que sobrou, e pões na geleira até estar pronto!...”
     Foi ao verem, apavorados, o outro carro contra o qual iam inevitavelmente chocar por estarem fora de mão, que Malaquias notou, atordoado pela ousadia, que segurava a mão de Serafina, e esta, espantada, que já há algum tempo o tratava por tu, contra todas as regras da boa educação, tendo-lhe incluso confessado a sua maior fraqueza, a tarte de framboesas.
     Durante as duas semanas do internamento de ambos, na mais chique clínica privada de Katola, a cozinha do restaurante “Pantagruel” esmerou-se no envio dos melhores pratos para o patrão e sua futura esposa. É que Serafina Valente, logo após o desastre, perante a surpresa dos médicos que lhes colocavam o gesso nas pernas, aceitara novamente a proposta de Malaquias “Gordo”, feita ainda quando nos bancos do carro acidentado.
     Quanto ao magnífico BMW do outro condutor, desprestigiadamente atirado para a berma do passeio e destruído quase por completo, o problema era da seguradora, o que estava feito estava feito.






Katola, capital de Inkuna, no ano de graça de 1996

PROVÉRBIOS E ADIVINHAS




  

PROVÉRBIOS E ADIVINHAS EM UMBUNDU
(Padre José Francisco Valente-1964)


PROVÉRBIOS

K’ochyali vayoka kavateleka. K’ochyali kukuli onjimbili.
O que é dado assa-se, não se cozinha. O gratuito não se recusa
(A cavalo dado não se olha o dente)

Ochyaly o mange.
O favor é fêmea.
Não há favor que não se pagúe ou mais cedo ou mais tarde
(A fêmea não reproduz sem macho)


ADIVINHAS

Propostas à noite, ao serão, sobretudo entre raparigas, nunca de dia:

Okuta olupolo utanka (l’utanha), Makulu atunda olombinga p’olhapya
(Propor charadas de dia faz nascer cornitos nos sovacos da avozinha)

OLW-EYO – Chyawala etongola
                      Veste o pano à cintura – A vassoura

OKU-FYA – Apa patundila, apa pavola (apa pafila)
                     Onde nasce, aí morre – O traque (O pum)

BATUQUE MUKONGO





15
Subi ao morro mais alto da memória
a afagar as primeiras
calças compridas
de ganga azul
os homens louros com crianças de olhos azuis
imbambas empilhadas em carrinhas camiões
turismos
em filas exaustas e assustadas
provenientes do Kongo
agora despido dos belgas
flamengos
portugueses
franceses
observava os rostos contritos
mágoas mal enganadas
gargantas ressequidas pela poeira
a soltarem a informação amarga
que não entendia
no meu francês inexistente
onde brilhava uma palavra
repetida vezes sem fim
Lumumba
Lumumba
Lumumba
repetida em sussurro na voz do meu pai
Lumumba
repetida em interrogação
na voz assustada de minha mãe
Lumumba
um eco por África toda
que fustigou os impérios coloniais
Lumumba
na boca dos belgas
Lumumba
na boca dos portugueses
dos franceses
dos ingleses
Lumumba na boca do mundo
ora santo ora diabo
amaldiçoado nos gabinetes metropolitanos
onde temiam todos os feiticeiros
anunciadores da nova hora
fazedores de ventos que virariam tempestade
que soprariam gélidos para uns
fervilhantes para outros
esculpidos nos rios magestosos
nos lagos e lagoas das planícies
nas azagaias e porretes bosquímanes
nas pedras monumentais do Zimbabué
ventos novos a serpentear
pelas densas florestas equatoriais do Uganda
soprados nos desertos do Namibe Kalahari
na costa dourada do Gana
nas brisas de Abomé
na ilha distante Madasgáscar
nos caminhos antigos de Shaka
o zulu rei dos reis

16
Na minha varanda da casa comboio
pouca terra pouca terra pouca terra
ameaças pragas e vómitos
anunciando cataclismos
o fim do mundo sem belgas
alastrando pelas plantações abandonadas
pelas minas nunca fechadas
corroendo como cancro o país inteiro
África morrerá
sem nós asfixiará
África soçobrará
sem nós se afogará
cientes de que Lumumba viveria
respandiria pelo continente
tranformado em pirilampo dos desejos e aspirações
que tanto acendem tanto apagam
nos corações das gentes
resplandesceria nos bagres
de todos as águas continentais
no saltar ágil de galho em galho
do macaco
no andar silencioso da onça
no voo soberbo da águia
no plainar gracioso das andorinhas
na força do pau takula
no brilho do ébano preto
na minha varanda da casa comboio
naquele momento de espanto
não sabia como perguntar
quem era aquele homem
que tanto terror produzia
e acendia fogos nas almas
labaredas ímpias nos corações
quem é esse Lumumba pai
não fales esse nome
somos portugueses
não belgas acagaçados

Lumumba é só uma visão