terça-feira, 1 de novembro de 2011

SUMAÚMA - Poesia





SILÊNCIO



A chuva espraia-se

no veludo

das águias nocturnas

aninhadas

na sinuosidade

da mafumeira

sob a qual

o feiticeiro

fala

do verde

no silêncio

do capim

MEMÓRIAS DA ILHA - Crónicas


CONSELHOS E CONSELHEIROS

A sabedoria popular é abundante tanto quanto a conselhos quanto a conselheiros, já que sem uns e nem os outros se viveria.

Pessoalmente, sou muito dado a aconselhar, talvez por ter atingido aquela idade em que um homem torna-se membro do nobre grupo de sekulus que envolve a sabedoria, aquele grupo de gente de idade que se alegra em fornecer alvitres porque já não consegue ou pode dar maus exemplos.

Em geral o conselho vem do coração, quando não da alma, a não ser o conselho que visa o mal, a malandrice, o lixanço do próximo, embora os cínicos afirmem que os melhores conselhos vêm dos piores homens.

Sobre os conselhos, há os pedidos e há os oferecidos e sobre isso, gostaria de vos contar uma pequena história, creio que das “Mil e Uma Noites” aquela peça maravilhosa e imorredoura da literatura universal que muitos de nós tiveram a felicidade de ouvir lida ou de ter lido.

Havia um camponês que era dono de um burro e de um boi, que ele muito acarinhava. Todavia o burro, que repousava muito mais da lavoura do campo, engordara, enquanto o boi, pela razão inversa, começava a ter um ar abatido, sofredor. Preocupado, como qualquer um de nós o faria, o bovino foi buscar conselho junto ao amigo:

“Diz-me lá ó irmão, o que devo fazer para me livrar um pouco deste trabalho pesado?”

Desejando ser solícito, também vaidoso pela consulta que o colocava um pouco acima, o burro não se fez rogado e aconselhou:

“Olha, finge que estás doente e não comas a comida toda, logo verás que o amo te deixará em paz.”

Efectivamente assim aconteceu. O lavrador vendo o boi doente deixou-o no curral e levou o burro para puxar o arado de madeira, o dia todo, durante dias sem fim. O burro conselheiro, percebendo-se um conselheiro burro, lamentou o tempo todo o conselho que oferecera.

O boi, regalado na nova situação, um dia não resistiu indagar ao burro:

“Então irmão, diga-me lá, como te vai a vida?”

O burro, que há muito esperava pela pergunta, fez um semblante de preocupado, chegou-se ao boi em confidência, e sussurrou-lhe:

“Na verdade não me queixo, mas ando muito preocupado contigo. No outro dia ouvi o nosso dono dizer, que se tu continuasses doente, iria abater-te para não se perder a carne toda. Acho que deves comer a tua ração por completo, e voltares ao trabalho a fim de que a vida te seja poupada.”

Não será necessário contar o resto da história, estou ciente, resta-nos perceber ou constatar que, na verdade, e quase como regra, quando alguém nos pede conselho, está apenas a procurar que se concorde com ele naquilo que já pensou ser o caminho a tomar.

E, muito mais do que isso, também nos ensina que devemos, ou quando achamos que devemos solicitar conselho, o façamos não só a quem nos pareça pleno de sabedoria, mas sobretudo a quem nos ame muito.

07|08|05

MOMENTO DE ILUSÃO - Contos


CARTAS


M
inha Genoveva,

Senta-te para que não caias de surpresa, já que é a primeira vez que nos falamos e poder-te-á ser, ou não, agradável o que vou contar.

Quando o meu bisavô foi para as Áfricas, já lá vão precisamente 98 anos, certamente ninguém pensou na sua aldeia que voltasse, mas foi o que fez, como talvez saibas. Deixou aí filhos com uma lavadeira negra, um deles o teu avô, de nome Miguel Gomes, só isso é que sei. Parece que vivia em Benguela e o teu pai ou a tua mãe, cujos nomes não conheço, se ainda forem vivos, por certo saberão confirmar o que digo. Sou, pois, tua prima afastada, sendo o nosso bisavô o mesmo, já que ele aqui tornou a fazer filhos, tendo-se casado com a minha bisavó, D. Engrácia Gomes.

Fique muito feliz quando recebi do consulado português em Luanda a indagação se por acaso um tal José Armando Gomes seria aquele que estivera em Angola de 1900 a 1930 e cujo assento de baptismo de um filho, Miguel Gomes, constava na paróquia do Carmo em Luanda. Acho que terás sido tu a inquirir, pois foi esse o endereço que me foi fornecido.

O resto, é este primeiro contacto. Manda-nos fotografias tuas e da família, explicando tudo muito bem, quem são e como estão.

O retracto que anexo, é do Augusto, meu marido, eu e o nosso filho Tobias, tirado no jardim zoológico o ano passado, quando fomos a Lisboa de férias. Por acaso tirada ao lado dos elefantes, quando ainda não sabíamos que tínhamos parentes em África, vê lá.

Tua prima que te adorará conhecer um dia.

Ana Rita

P.S. Que cor és?...

Mário Maldonado ao chegar a casa, encontrou a carta aberta em cima da mesa na sala de jantar. Certamente que a mulher aí a tinha deixado para que ele a lesse. Momentos depois, quando esta saiu do quarto, jocoso, perguntou, à guisa de cumprimento:

“Então foste descobrir uns pulas teus parentes na meloi?”

De facto assim fora. Genoveva descobrira uns documentos guardados em um embrulho de papel castanho meio comido pelas traças, numa mala com coisas que tinham pertencido a sua mãe, que davam a entender que talvez pudessem ser de seus familiares. Sem dizer nada ao marido consultara os registos da igreja e contactara o consulado português em Luanda, que se prontificou a averiguar.

“Que mal há, são parentes e devemos conhecer as nossas origens.”

“Vem mesmo a calhar, para o ano vamos lá passar férias.”

“Achas que vão querer ter na terrinha, uns pretos como parentes?”

“Será por isso que perguntam qual a tua cor?”

“Penso que não, deverá só ser curiosidade. Conhecem que o bisavô fez filhos com a lavadeira minha bisavó, portanto pensam que no mínimo mulatos devem existir.”

“Lá isso é verdade.”

“Envia-lhe umas fotografias e logo verás... “

“Se a minha mãe estivesse viva, iria ficar bem contente. Ela sempre nos disse que tínhamos sangue de branco”

“Por acaso recordo-me da tua mãe, era negra mas notavam-se-lhe os traços europeus. Mas o que vamos fazer?”, perguntou-lhe.

Genoveva Maldonado parou para pensar. O lógico seria responder e dar tempo ao tempo. Aguardar que uma amizade se formasse, ou que a curiosidade soçobrasse no mar de esquecimento que a distância produz.

Ardia por saber mais daqueles primos distantes, em lonjura e parentesco. Ter tido conhecimento que tinha família para além da conhecida, e em outras partes do mundo, fora uma agradável experiência. Eram raízes dum tronco comum que se revelavam abruptamente, um passado que emergia e a incorporava.

“Creio que vou-lhes responder e aguardar, nada mais posso fazer. E um dia, quem sabe, talvez me convidem a visitá-los.”

“Nos convidem!...”, emendou o marido.

Com a felicidade da primeira carta, na manhã seguinte respondeu à prima.

Querida Ana Rita

Fiquei muito feliz em receber a tua carta, não só porque foi uma surpresa como igualmente revelou familiares que nunca sonhei ter, não obstante minha mãe me falar de um avô mulato, seu pai, portanto. Meu avô chamou-se em vida Abílio José Gomes e casou-se com uma senhora negra, Celestina. Geraram vários filhos, entre eles a minha mãe, Francisca Gomes, que por sua vez se casou com um outro senhor negro, António Nóbrega da Silva, que me fizeram a mim, esta tua prima Genovena Silva Maldonado, (o último nome por casamento) e mais dois irmãos, todos vivos.

Ficas, assim, a saber do ramo africano da família gerada por nosso bisavô, pelo menos no meu lado.

Estou um pouco atrapalhada por não te conhecer e, portanto, não saber o que te dizer. Quanto ao nosso país, certamente sabes de tudo, ou quase. Há anos que nos guerreamos e destruímos, sobretudo por causa de um lunático que teve que nascer nesta nossa terra maravilhosa, para mal de todos nós.

Quando desejares vir até Angola, tens aqui casa. Por ora é tudo. Oh!, quase me esquecia, a fotografia é minha, com o meu marido. Não é muito recente mas ainda estamos assim, talvez um pouco mais magros. Tua prima. Escreve!

Genoveva

Dois meses passaram e Genoveva nada mais ouviu de Ana Rita, facto aproveitado pelo marido para a espicaçar.

“Eu bem te dizia, logo que souberam que havia negros na família...”

“Pode ser, mas duvido. Sabiam que os havia, pelo menos a bisavó.”

“Certo, mas a confirmação de uma hipótese mudou tudo. Olha, o teu avô poderia ter casado com uma branca ou mulata.”

“O que interessa tudo isso?”

Ana Rita dirigiu-se à varanda para estender a roupa lavada da véspera. À noite houvera luz, as sagradas oito horas distribuídas ao bairro. Esta manhã tê-la-iam até ao meio dia e, depois, tornaria a voltar a partir da meia-noite. A campainha da porta soou e Mário abriu. Era o carteiro a entregar a correspondência, entre a qual, uma carta de Portugal.

“Véva”, gritou ele para a varanda. “Tens aqui uma carta da tua prima portuguesa!”

Genoveva veio a correr e não conseguiu conter a excitação. Quase arrancou a carta da mão do marido e, nervosa abriu o envelope. Sentou-se na cadeira e leu alto.

Genoveva minha querida,

Recebi a tua carta que muito me alegrou, foi uma sensação cá em casa. O Augusto, que sempre foi do PCP e nunca esteve em África, ficou radiante. Claro que isso serviu para mais um sermão sobre o passado do colonial-fascismo e o apoio dos capitalistas do PSD às tendências neocoloniais em Angola, etc, etc. Eu também sou do PCP, mas às vezes o Augusto chateia-me com as conversas dele. Se não é o partido, então é o Benfica.

Já todo o bairro sabe que temos família em África, angolanos genuínos, como ele repete por tudo quanto é canto. Foi muito gentil de vossa parte porem a casa à nossa disposição, quem sabe se um dia não teremos essa alegria de aí ir, embora duvide muito. Não temos posses e a viagem custa bastante.

Segundo consta aqui em Portugal, vocês é que são um país muito rico e há por aí um monte de carros novos, dizem que todos têm um e que os angolanos viajam muito. Alguém contou-nos que em vez de dentes de ouro, vocês usam dentes de diamantes e que o petróleo até escorre nos bairros de Luanda. Se isso for verdade, então certamente será muito mais fácil vocês virem cá. A nossa casa é pequena mas sempre se arranja um espaço.

O Augusto pede-me para te perguntar que regime político têm agora? Sabíamos que eram comunistas, porque o Dr. Agostinho Neto foi retirado da cadeia pelo nosso Partido.

Mas desde a nova situação mundial, diz-se por aqui que são cristão democratas. Ele jura a pés juntos que isso é mentira, nunca fariam uma coisa dessas, sim senhor que poderiam ter mudado mas não tanto assim, já que fizeram uma luta de libertação nacional contra um sistema que oprimia as massas. E aí há o Benfica? Também para o que está a jogar, se não houver não faz falta nenhuma! Desculpa lá, mas nas minhas cartas irás sempre encontrar um pouco de política e futebol.

Talvez tenhas orgulho em saber que esse nosso bisavô foi um garanhão, pois com a minha bisavó, fez ainda cinco filhos. Por hoje é tudo. Cumprimentos ao Mário.

Tua Ana Rita

“Com que então angolanos genuínos, heim?”, riu Mário Maldonado.

“Mal sabem eles o que isso aqui quer dizer!...”, riu Genoveva igualmente.

“Agora que descobriste parentes brancos lá se foi a tua genuinidade, passas a ser extra angolana.” provocou-a.

“Muito me preocupa! Olha para o Hitler e os seus genuínos. Isso são teses de atrasados mentais, mentecaptos.”

“Eh lá!... o problema não é teu, não vale a pena exaltares-te.”

“Já sabes que me aborreces quando me provocas com esse tipo de argumento.”

“Tá bom, tá bom, não vale a pena guerrearmo-nos por causa disso.

“E que tal essa de sermos cristãos-democratas?”..., riu Mário.

“Eu cá disso não quero saber, já me bastaram os anos do PT, embora, em abono da verdade, estivéssemos muito melhor do que agora.”, respondeu a esposa.

“Cinco filhos, é?!... faço ideia a cambada de primos que por lá deves ter, alguns até talvez aqui sem ninguém saber.”

“E se lhe mandássemos um PTA para ela vir?”

Dias após, escreveu à prima.

Querida Ana Rita,

Sou novamente a agradecer-te a carta recebida há tempos. É sempre uma alegria ter notícias tuas e dos teus. Nós bem graças a Deus.

Então vocês são comunas? Eu e o meu marido não somos nada, na época do partido único tínhamos que ser do MPLA, até votamos nele e no presidente, mas hoje, se queres que te seja franca, não somos nada, incluso duvido muito que nos próximos vinte anos tenhamos eleições. Tudo aqui vai de mal a pior, cada vez mais pobreza, não é nada aquela riqueza que por aí se fala, isso é para muito poucos. Dentes de diamantes?!... A miséria aumenta a olhos vistos e, por consequência, a criminalidade, a prostituição infantil, os deslocados, os mutilados, enfim um horror de nunca mais acaba, para além desse criminoso que não pára de fazer a guerra porque sonhou ser presidente a todo o custo. Puxa, e não há quem acabe com essa peste!

Quanto ao sermos cristãos democratas, olha, estou fora da política, só sei que houve mudanças quando a União Soviética faleceu, mas os que lá estavam antes continuam a ser quase todos os mesmos. Julga por ti própria, não me quero aborrecer com essas coisas, até porque tenho um projecto que está quase a arrancar, à custa de muitos anos de sacrifícios e negócios.

Podes falar de política e futebol à vontade, ambos são jogados muito com os pés e pouco com a cabeça.

Eu e o Mário vamos abrir um pequeno restaurante na Ilha. A Ilha de Cabo é uma extensa língua de areia ligada ao continente por uma ponte, e um ponto de turismo e recreação luandense. Será um restaurante especializado em pratos típicos angolanos e, talvez mais tarde, em de outros países africanos.

Estamos seriamente a pensar em convidar-te a vires passar uma temporada connosco, infelizmente não temos kitadi (dinheiro) para vos convidar aos dois, mas talvez só lá para o fim do ano. Depois confirmamos, mas vai-te preparando psicologicamente, isto aqui é muito quente, com mosquitos e moscas mil..

Quanto ao Benfica, em Angola não existe mas muita gente continua a ser dele, por incrível que te possa parecer. Até o meu marido!

Tua Genoveva.

Quando Mário Maldonado regressou a casa para o almoço, encontrou a mulher em prantos e rodeada por umas tantas vizinhas. Ao vê-lo, desatou aos gritos.

“Meu Deus, quem morreu?”, inquiriu apavorado.

“Calma vizinho, ninguém morreu.”, tranquilizou-o uma das mulheres presentes.

Mais aliviado, suspirou fundo e recompôs-se, já com Genoveva agarrada a ele aos soluços.

“Assaltaram-me e roubaram-me o carro.”

“Acalma-te filha. O carro recupera-se, o principal é que não te aconteceu nada.”

“Dois homens, um com uma pistola. Nunca tive tanto medo na minha vida.”

“Já deste participação à polícia?”

“Deves estar a brincar, felizmente que o Antunes passou e deu-me uma boleia para casa.”

“Então compõe-te para lá irmos.”

Foram à polícia e deram participação do roubo, sem grandes esperanças na recuperação da viatura.

Três semanas após este incidente, Genoveva recebeu nova carta da prima.

Querida Genovena,

Espero que não estejas a brincar quando dizes que me convidam a ir a Angola. Quase que morri de emoção porque, salvo uma muito breve ida a Espanha, numa excursão do Partido, não conheço mais país nenhum. Esse acontecimento, a ter lugar, certamente que será o maior da minha vida e relembrado para sempre.

Olha, o idiota do Augusto agora só diz kitadi em vez de dinheiro. Fartaram-se de rir, chamando-o de parvo, porque esse kitadi não vale nada. É verdade? Disseram-lhe que vocês são todos milionários, porque nada se compra com uma nota de um milhão. Claro que não acreditei, como se isso fosse possível! Qual é o país que tem notas de um milhão?

Ficámos muito felizes por saber que vão abrir um restaurante de pratos típicos do vosso país. Nós nunca comemos nada de Angola. Será que dá para mandares uma receita de um prato que se possa fazer com facilidade? Nada dos muito complicados, tá?

Então deixaram de ser comunista e dizes que não sabes o que são? E que continuam os mesmos que já lá estavam? Francamente, não entendo nada!

No nosso PCP a única coisa que mudou foi o camarada Álvaro Cunhal por ter que se reformar, temos agora o camarada Carlos Carvalhas, mas o Partido continua a ser o mesmo, a nossa bandeira contínua a ter a foice e o martelo e a ser vermelha, os nossos estatutos e objectivos os de sempre. Mas enfim, o mundo muda e esse assunto é vosso.

Hoje estou fraca de notícias, por isso fico por aqui.

Tua, como sempre, Ana Rita.

O tempo passou e Genoveva foi-se habituando ao facto de não mais ter viatura. Descria que alguma vez a recuperasse, ou se tal acontecesse, certamente que metade das peças teriam sido roubadas. O marido prometera que em breve comprariam outra, em segunda mão. Quanto mais velha, menos probabilidades de ser roubada.

O fosso da distância que separava as primas foi encurtado com a troca consistente de correspondência, iam-se conhecendo aos poucos. Na última, Ana Rita solicitava mais uma vez que Genoveva lhe enviasse uma receita de um prato angolano.

Esta nunca lhe falara do roubo do carro, não desejara projectar essa imagem do país, onde se roubam carros à mão armada como quem troca de camisa.

Querida prima,

Há algum tempo que não te escrevo, são preocupações da nossa vida que o impediram, mas nada de sério. Estou em falta para contigo, de facto já deveria ter-te enviado a receita de um prato nosso, se queres que te diga, nem sei de quê. Como aí é fácil adquirir carapau, vou-te ensinar um prato típico luandense. É o mufete, que às vezes comemos com feijão de óleo de palma, outras com pirão.

Arranja uns carapaus, segundo o número de pessoas, e farinha de mandioca torrada. Aí talvez encontres a brasileira, mais fina e de menor qualidade que a nossa. A essa farinha, nós chamamos farinha musseque, sendo o musseque a terra batida e encarnada africana. Foi nessas terras, portanto não asfaltadas, que a colonização criou os bairros periféricos dos negros, e daí esses bairros passaram a chamar-se, por extensão, musseques (este parênteses é para o Augusto)

Também precisarás de cebola, tomate, azeite doce, vinagre, jindungo (piri-piri), sal e água.

Lava o peixe e coloca-o a secar, sem ser escamado ou retiradas as vísceras (faço ideia da cara que deves estar a fazer, mas acredita que dá melhor gosto). Deves assá-lo em poucas brasas, para ser lento e sem ser queimado. Vais voltando os lados a fim de que fique assado homogeneamente. Quando estiver pronto retira das brasas e serve quente, colocando só então o sal. Faz acompanhar com pirão, bastante fácil de preparar.

Enquanto o peixe é assado, pica a cebola e coloca-a numa tigela com os outros ingredientes, salvo a farinha musseque, que é adicionada aos poucos e com cuidado para que não fique molhada, mas sim leve e solta. Bom apetite.

Espero que te saia bem a experiência, se não gostares, não desanimes.

Para tua informação, já que aí em casa se deve ter passado a mesma coisa, o meu marido teve um ataque de nervos quando o Benfica perdeu com o Farense, o lanterna vermelha do vosso campeonato. Essa noite não dormi e acredita que isso eu não entendo. Primeiro, porque não ligo nenhuma ao futebol, segundo, porque não entendo como é que alguém pode sofrer por um clube que nem é da terra dele, mas como se diz, cada maluco com sua mania. Eu que aguente.

Tua prima que muito te preza.

Genoveva

O dia amanhecera solarento mas abafado e a ameaçar chuva. Genoveva encontrava-se em casa quando o carteiro trouxe a correspondência, uma única carta, com o carimbo de Luanda. Sentou-se à mesa, sorveu o chá que tomava e, com a faca, abriu o subscrito. Retirou a carta e leu, no fim largando uma enorme gargalha. Partiu a correr para o telefone.

“És tu, Maldonado? Não acreditarás no que te vou contar!...”

“O que foi?”

“Vou ler-te uma carta que recebemos esta manhã.”

“Outra carta da Ana Rita?”

“Não, dá bem atenção.”

“Diz lá...”

“Vou ler!... Meus caros, sou muito vosso amigo e por gostar muito de vocês é que vos tirei o carro, porque se vos pedisse, não nos dariam.

“Estás a brincar!...”, cortou o marido.

“Deixa-me acabar. Arranjei a avaria no disco da embraiagem e meti novos faróis . O carro encontra-se neste momento à frente da escola Nzinga Mbandi”

“Certamente que é brincadeira, já lá foste?”

“Claro que não.”

“Estou a caminho, prepara-te.”

“Aguenta aí, isso não é tudo. Diz ainda: quero desculpar-me de todos os problemas e do susto que vos preguei, por isso, no dia 23 convido-vos a vir jantar comigo, às 20.30, no Ponto Final, onde desejo redimir-me do pecado, contando com o vosso sentido de humor.”

Feliz ficou o casal ao chegar à escola Nzinga Mbandi e ver estacionado o seu carro. Genoveva, que o conduzia no regresso, verificou que de facto a embraiagem estava reparada, para além dos novos faróis. Nessa noite caprichou no jantar, até velas colocou na mesa e um arranjo floral.

“Quem será o engraçado, ou os engraçados?”, perguntou Maldonado.

“Passei o dia inteiro a pensar nisso... nossos amigos ou conhecidos, terão que ser.”, disse Genoveva.

“De qualquer dos modos mesmo com as reparações, é uma partida de mau gosto...”

“Hoje são dezoito, não é? No dia 23 logo saberemos quem são, e então veremos o que faremos.”

“E vamos mesmo ao tal jantar?”, quis saber Maldonado.

“E porque não?”, respondeu Genoveva.

E ao jantar foram. Chegaram quinze minutos mais tarde para não parecer mal e esperavam há meia hora, quando mandaram chamar o gerente. Apareceu o dono do restaurante e confirmou que sim, um senhor havia reservado por telefone aquela mesa para eles, eram o casal Maldonado, não eram?, e que caso se atrasasse lhes oferecesse uma garrafa de champanhe pelo incómodo da espera, mas que vinha certamente.

Às dez horas quando decidiram ir-se embora, com um problema dos diabos, pois o restaurante queria saber quem iria cobrir a garrafa de champanhe bebida. Por fim chegaram a um acordo, em que Maldonado prontificou-se a pagar meia garrafa, pois, segundo o dono, quem sabe se aquilo não era uma tramóia para lhe mamarem uma garrafa de champanhe, sendo cúmplices de quem telefonara?

Ao longo do caminho, mal falaram e todas as dúvidas que tinham sobre o brincalhão se esvaneceram. Se o apanhassem, fariam dele carne picada.

Subiram em silêncio e quando Genoveva abriu a porta do apartamento e olhou para dentro, caiu desmaiada.

Nem uma carpete restara!

O apartamento tinha sido esvaziado de tudo que continha, excepto a papelada que jazia amontoada no chão.

Maldonado olhou à volta, descrente, e deixou os olhos pousar no amontoado de papeis, no cimo do qual jazia uma carta aberta.

“Querida Genovena.

Espero que não estejas a brincar quando dizes que me convidam a ir a Angola.”, começou, distraído, a ler.

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



MANUEL RUI

Manuel Rui nasceu em 1941 no Huambo. Estudou direito em Portugal, onde exerceu advocacia. Escritor, professor de literatura, jurista, cronista de imprensa, colaborador de rádio e de cinema, é uma dos mais valorizados escritores angolanos, com vasta obra publicada, tanto em prosa quanto em poesia e traduzida em várias línguas quer nacionais, quer estrangeiras. É o autor da letra do Hin Nacional de Angola.



ALICE NO PAÍS DELA!

Alice tinha regressado do país das maravilhas.

Regressara num avião boeing. Chegara à sua terra “senhores passageiros”.

E contava à família tudo de maravilhoso que ela vivera no país das maravilhas. E Alice era, agora, a pessoa mais importante da família. Todos a rodeavam para lhe ouvir as maravilhosas estórias que ela vivera no país das maravilhas.

Os mais velhos, então esses, pasmavam de olhar na Alice e seu pai e a sua mãe era só orgulho mimado a desbaratar-se de rosto babado. Que filha exemplar!

Que deixou o país das maravilhas nesse voltar o coração para ao pé dos seus. Pobres. Quase sem rumo. Sempre na espera de qualquer coisa nova. E Alice era uma novidade.

E, por isso, quando se começou a fazer da terra de Alice um país e se arranjou um rei, insígnias e bandeira, logo alguém pensou que aquele país estava dotado para ser das maravilhas. Porque era muito rico, falavam. E as pessoas tinham muita esperança.

Daí que o rei convidasse logo Alice para ocupar a pasta da economia, o que Alice aceitou e tomou posse.

Mas Alice não se deu com essa pasta e, em menos de três meses, quase arruinou o ministério.

O rei, que era muito discreto, decidiu afastar Alice por conveniência de serviço, quer dizer, Alice convinha a outro serviço, quer dizer, Alice convinha a outro serviço diferente, era por ele solicitada.

E o rei falou:

“Alice. Você foi fadada para fazer carreira. É esse o seu destino e temos pouca gente com experiência do país das maravilhas. Por isso vou colocá-la no ministério da agricultura.”

“Rei. Desculpa tratar-te por tu. Mas tu sabes, pá, que eu só aceitei porque desejo fazer carreira, pá. Estou ou não estou nomenclaturizada?”

“Claro que estás! As carreiras são para nomenclaturizados.

Só. Amanhã tomas posse. Vem de fato e gravata”

E Alice foi e tomou posse. De fato e gravata.

Nesse ano a agricultura foi um desastre tal que só faltou importar fome.

Mas o povo via posters e cartazes! Alice! Alice! A do país das maravilhas! E como ninguém sabia bem o que eram maravilhas, toda a gente tinha esperança em Alice porque havia estado no país das maravilhas.

E o rei conhecia-a e também havia conhecido o país das maravilhas.

E Alice foi para o ministério das finanças.

Só um mês. O rei resolveu mandá-la para o ministério das pescas. “Acho bem – falou Alice para o rei – se a minha vida é fazer carreira, é preciso, é necessário prosseguir a carreira! Obrigado, rei”

Um ano nas pescas. Só carapau e no matanço.

E o rei retirou Alice das pescas. Alice vinha farta de maravilhas, por isso deliciava-se com asneiras e detestava maravilhas. Isso o povo não sabia.

E o rei, já cansado de ver Alice fracassar e quase desmentir

as maravilhas do país das maravilhas, foi colocando Alice em todos os mistérios que faltava ela ocupar, um por um e ela sempre a falhar.

Andou pelo ministério da qualidade de vida e as pessoas começaram a ficar parece pankadas, a andar nuas ou com as partes todas à mostra, de propósito e em protesto, recusando a comida dos grandes supermercados, amburgers-macdonaldes e tudo, também de propósito, em greve de fastio e só comendo das lixeiras até que picharam numa parede, a letras garrafais, “andamos com os tomates à mostra porque estamos fodidos! não estamos malucos!”. E depois da qualidade de vida o pior ainda foi o ministério da saúde porque só num mês o país esgotou a reserva de caixões que estava guardado para o dia da família. “Coitada da Alice – dizia o povo – a Alice do país das maravilhas! E se ela nos kibiona assim – dizia uma quitata já cota e a rir – deve ser por amor, por gostar tanto de nós! A Alice do país das maravilhas! Estou do lado dela até ás últimas consequências.”

E bis! Gritaram no cabaret e o disc–jockey botou lambada.

Viva a Alice!

“E agora para onde é que hei-de mandar a Alice?”– cogitava o rei. Um homem que não gostava de fazer mal a ninguém.

Como era um país de gente muito mal educada – na rua os homens mijavam em repuxo e as mulheres abriam as pernas a olhar para o mar – finalmente o rei lembrou-se a de colocar Alice no único ministério onde ela ainda não estivera. O da educação.

O certo é que Alice aguentou por lá quase nove anos. Coitada!

O cabelo a branquear. Fechou escolas. Os alunos ficaram contentes e foram para as praias. Mandou comprar tijolos para substituir carteiras que não havia e os alunos preferiram as latas. Teve os votos dos vendedores do mercado onde livros e cadernos se passaram a matar nas pessoas. Fechou uma faculdade por falta de espaço e, envolvida em aplausos delirantes das massas, num comício para saudar o início das férias de uma escola que estava fechada havia nove meses, disse em voz alta – punho erguido “a escola é do povo!”

Alice foi condecorada. Que linda medalha! E tirou uma fotografia com a medalha. Que linda fotografia!

Aí. O rei mandou-a chamar “Alice que estória é essa? Qual é a escola que é do povo? Alice, não tenho mais nenhum ministério para te dar. Já partiste todos. Nem pareces a Alice do país das maravilhas.

Tens de sair da nomenclatura!”

“Ai isso é que não saio! Vim para aqui a teu pedido e para fazer carreira. De contrário ficava no país das maravilhas. Um rei tem que ter palavra. Senão não é rei nem nada, porra!”

“Alice, por favor, não digas asneiras” – falou o rei sempre calmo. Alice de mini-saia.

Oito dias depois, por conveniência de serviço e usando da faculdade que lhe era conferida, o rei criou o Ministério da Alice.


In Da palma da mão, Edições Cotovia, Lda. 1998