ISAQUIEL CORY
O ÚLTIMO FEITICEIRO
Quem for a Catete, via Luanda,
há-de encontrar, nos arredores de Mazozo, bem junto à dita estrada nova, em
contraposição à outra, velha, inteiramente abandonada ao capim e aos passos
infatigáveis dos camponeses locais, um embondeiro outrora majestoso, caído,
derrotado pelas forças humanas da destruição. Foi a partir daí, dessa paragem
que o povo chama do “Embondeiro Caído”, que fui vencendo o longo percurso
ravinado até à sanzala que viu os meus pais nascerem.
Ao longo do caminho seco e
pedregoso, inadvertidamente, fui espantando os animaiszinhos que se banhavam de
sol.
Com as costas húmidas e encurvadas
de cansaço e os olhos semicerrados parei, finalmente, diante de Mazozo. As
primeiras casas, de pau a pique, estavam espalhadas, separadas umas das outras
por largas extensos de terreno coberto de capim. Galinhas e respetivas crias
andarilhavam de um lado para o outro, à cata de alimentos. As únicas criaturas
humanas visíveis eram algumas crianças de tronco nu, descalças, que se moviam
com extrema lentidão.
Se em Luanda já notara uma certa
lentidão no jeito como a vida se desenrolava, comparativamente a Londres, agora
em Mazozo esse “não ter pressa” de nada, essa maneira rotineira e lenta de
viver, dava-me a impressão de estar diante de um écran gigante com as imagens a
passarem em câmara lenta. Interroguei-me se um écran desses, colocado em
Mazozo, causaria o mesmo efeito que numa cidade. Captaria, os telespectadores
locais o tempo e o ritmo diferente das imagens? Se as suas vidas já eram lentas
não lhes ficaria melhor as imagens em câmara lenta?
Por breves momentos as crianças olharam-me
com muita curiosidade mas depois retornaram às suas lentas brincadeiras. Chamei
uma delas, que se aproximou devagar.
- Tudo bem? Onde é que mora o velho
Chico Maria?
- O feiticeiro? – A criança, dos
seus nove anos, falava num tom próprio dos naturais de Catete e denotava no seu
português um forte sotaque kimbundo.
- Sim – respondi.
Olhou-me com muita atenção da
cabeça aos pés e apontou, relutantemente, para uma casa isolada das outras, ao
lado de um embondeiro velho.
Chegara, enfim, ao meu destino.
Algures aqui fora enterrado o cordão umbilical do meu pai e da minha mãe. Ainda
não sabia como proceder mas estava pronto para a vingança. Jamais ficaria
satisfeito enquanto o sangue dos meus pais não fosse derramado sobre a cabeça
do assassino.
Desabotoei a camisa, por esta
altura completamente ensopada de suor, e fui caminhando muito lentamente para o
sítio que me fora indicado. Nenhum adulto na rua. A essa hora estavam todos nas
lavras, teriam ficado apenas os doentes e outros incapazes já de caminhar e de
trabalhar a terra. As casas eram de aspecto modesto, algumas quase a caírem de
velhas. A pobreza e também o conformismo da população estavam patentes em toda
a sanzala. Não se notava qualquer indício de alguma tentativa de melhorarem as
condições materiais em
que viviam. Longas décadas de vivência a poucos quilómetros
da grande cidade e entretanto a ambição dos conterrâneos dos meus pais
limitava-se a conseguir o suficiente para comer. Foi então que compreendi o
fenómeno que era a emigração dos mazozenses para a capital: era a única saída
para singrarem na vida. Os que permaneciam na terra natal talvez fossem os mais
conformados, os de mentalidade mais conservadora, impregnada dos valores
ancestrais.
A casa do feiticeiro tinha as
paredes inclinadas para dentro, mal aguentando o peso do tecto de capim. As
janelas eram pequenos buracos assimétricos e a porta estava coberta por uma
velha chapa de tamborão de combustível. Um cão todo ossos assustou-se com a
minha presença e refugiou-se, caminhando aos círculos, para os lados de um
anexo que me pareceu ser a cozinha, denunciando assim a localização do seu
dono.
O tio feiticeiro, sentado na kibaka (banco feito de tronco de madeira) , de olhos avermelhados, com um
casaco cheio de furos a cobri-lo inteiramente, ao jeito de um cobertor, apesar do
forte calor que fazia, tremia de frio.
Sentiu o barulho dos meus passos e
levantou a cabeça. O seu olhar incidiu sobre mim como as luzes de um carro numa
noite escura, cegando-me momentaneamente. Ligeiramente atordoado aproximei-me
mais e com as mãos agarradas à cintura lancei-lhe, do alto, um olhar de
desprezo e ódio. Ele desfez-se do sujo e roto casaco e abriu a boca, sorrindo
de modo triunfante, ao mesmo tempo que exibia a sua boca desdentada. Não
consegui conter-me.
- Tu, assassino dos meus pais,
jamais descansarei enquanto não vir o teu sangue a jorrar como água de uma
torneira avariada! – Gritei, metendo nas palavras toda a minha raiva, toda a
minha frustração. O velho continuava a sorrir. Impulsionei-me rapidamente para
a frente, desferi-lhe um pontapé na boca do estômago e preparava-me para o
esmagar no solo quando reparei que mesmo assim ele continuava a sorrir.
- Um momento, meu filho, um
momento. Escuta-me – suplicou, em voz baixa, acusando, de qualquer modo, o
impacto do pontapé recebido. – Eu sei que me queres matar e não vou fazer nada
para evitar isso. Sabias que desde há muitos anos não tenho desejado outra
coisa senão deixar de respirar e juntar-me aos mortos? Achas que é de bom grado
que retiro a vida às pessoas, algumas das quais até me saio muito queridas? Meu
filho, tu não sabes nada. Podes matar-me, se assim quiseres.
- Não tentes enganar-me. Diz-me, o
que é que aproveitaste com a morte dos meus pais, seu miserável?
- Meu filho, eu tenho uma história.
Já tentei contá-la a muita gente, mas nunca alguém prestou-me atenção. Muita
coisa está a passar-se aqui na nossa terra de Mazozo e ninguém está a ver. Há
uma corrente de vida que nos liga aos antepassados mas que agora está a
quebrar-se. Todos estão a ir-se embora para Luanda e estão a esquecer-se das
maneiras do nosso viver, do viver que nos foi ensinado por os nossos país, e
pelos pais dos nossos pais. Tenho ligação com todos os nossos chefes antigos,
com todos os nossos grandes mortos. Foram eles que ordenaram e me deram o poder
de matar os teus pais, e não só. Sem esse poder eu não seria nada.
Essas palavras encheram-me o peito
e a cabeça. A minha ânsia de vingança não se abrandou mas senti uma vontade
irresistível de o ouvir, de o interpelar.
- E em relação aos meus país o que
foi que esses antepassados disseram? – Perguntei, mostrando a minha curiosidade
sem o desejar.
- Os teus pais e outras pessoas que
na sua juventude partiram daqui e instalarem-se em Luanda são traidores.
Renunciaram e traíram a sua origem. Bastou viver em Luanda para logo a seguir
acharem-nos atrasados. Vinham para aqui e sentiam pena de nós. Esqueciam-se que
o nosso viver é mesmo assim e que satisfazemo-nos com o pouco que temos. Os
teus pais, porque conseguiram ganhar muito dinheiro, queriam mudar a terra dos
nossos antepassados. Queriam trazer para aqui máquinas, tratores, motobombas.
Criam matar-nos. Eu não tenho dinheiro, nem quero ter, basta-me o poder sobre a
vida e a morte das pessoas.
- Digas o que disseres serás sempre
um assassino, nada justifica a morte dos meus pais – gritei, pois era já
incapaz de falar sem ser aos gritos. – Agora eu tenho o poder sobre a tua vida
e vais morrer nas minhas mãos!
- Há, há, há! – Riu o maldito
feiticeiro, despejando o seu bafo repugnante sobre o meu rosto – criança, isso
é o que és! Tu só matas-me se eu quiser. Vou dar-te uma amostra do meu poder.
Veja!
Não sei concretamente o que ele
fez. Só sei que vi o meu pai e a minha mãe a virem a pé, carregando uma enxada
e um kubutu (trouxa) nas costas, no caminho que rasgava o capim seco em direcção
às lavras. Corri precipitadamente, chamando-os aos berros:
- Pai! Mãe!
Eles viram-me e pararam.
Apressei-me a abraçá-los mas em vez de agarrar a massa dos seus corpos, abracei
apenas o vento. Eles também abriram os seus braços generosos, tentando corresponder
ao meu gesto, todavia eles também não me sentiam. Em vão insistimos, até que
por fim ficámos a olharmo-nos uns aos outros, tristes, como se estivéssemos
separados pela janela envidraçada de uma cela. Sim, de facto estávamos
separados. Eles estavam mortos e eu estava vivo. Ou seria o contrário? Ou eles
é que estariam vivos? Não interessava saber já, era uma questão de somenos
importância. As lágrimas misturaram-se com o suor no meu rosto e verifiquei que
os meus pais, lá do outro lado, do lado do não sei o que, também choravam.
Prisioneiros de um poder que desconhecíamos, estávamos incapazes de
comunicarmo-nos e isso era uma tortura. Estávamos condenados a olharmo-nos e a
suscitarmos em nós a saudade dos tempos em que de facto estávamos juntos, em que
podíamos tocar-nos, apalpar-nos, beijar-nos. Sem conseguir aguentar mais o peso
de tanta saudade dei as costas aos meus pais e vi o meu tio, o meu maldito tio,
a olhar para mim com os seus olhos avermelhados e agora rigorosamente
inexpressivos. Girei rapidamente sobre mim mesmo e já não vi sinais da presença
dos meus pais.
.- Viste, meu filho! Foi uma
pequena amostra do meu poder. E como já não consigo suportar a tua presença,
vou levar-te a Luanda. Conforma-te com a morte dos teus pais, deixa as coisas tal
como estão. Venha.
Eu parecia um drogado. Tudo
acontecia á minha volta mas eu estava alheado de tudo. Vim-me arrastado para o
fundo do quintal e o feiticeiro enfiou-me numa velha canoa. No estado em que me
encontrava não me perguntei sequer o que estaria a fazer aí uma canoa, tão
longe do mar ou de um rio. O velho também subiu na canoa, segurou em dois remos
e foi remando. Não tardou e ganhámos altura. Afinal a canoa era uma espécie de
avião. Era através dela que ele ía às localidades distantes para cumprir o seu
destino. O seu destino de feiticeiro, de suposto guardião da ordem preconizada
pelos ancestrais. As nuvens estavam lá em baixo, o ar escasseava e
involuntariamente eu respirava fundo. Passados alguns minutos divisei, ao
longe, os altos edifícios da cidade. A canoa foi voando cada vez mais baixo e
passávamos mesmo à beira das janelas de alguns escritórios, com um ou outro
funcionário a olhar para nós com olhares perfeitamente normais, o que me deixou
espantado: a visão de uma canoa voadora, de tão incomum, seria motivo
suficiente para despertar curiosidade geral em qualquer parte do mundo. Só
então dei-me conta da possibilidade de estarmos invisíveis.
A canoa pousou suavemente no
quintal da minha casa e o que se seguiu já não me vem à memória. Sei apenas que
despertei no meu quarto, na minha cama, vestido e calçado.
Dei um último safanão ao sono e fui
a correr para a sala. A Marisa estava a ver um filme e assustou-se com a minha
súbita presença.
- Oh, mano, que susto! Ontem
esperei-te todo o dia e quase toda a noite. Como foi o encontro com o Chico
Maria?
Tinha de descontrair-me, de mostrar
normalidade: tinha o dever de não transformar também a vida da minha irmã num
pesadelo, mais do que já o era, pondo-a ao corrente das coisas que eu próprio
não compreendia inteiramente o sentido.
- Resolvi o problema, mana. O Chico
Maria já não vai meter-se na nossa vida. Olhemos para a frente e organizemo-nos
para gerir o pouco que ainda temos. Não há outra solução.
Sentei-me, fatigado, no cadeirão.
Apesar de todas as evidências em contrário, queria pensar que tudo que acabara
de acontecer não passara de um sonho, de um pesadelo. Apesar de todo o meu
esforço eu tinha certeza que a imagem do meu tio haveria de visitar-me sempre e
que de agora em diante eu não saberia mais o que é a vida e o que é a morte.
De outra coisa. Com uma veemência
inquestionável, e incomodativa, eu ganhei a certeza: o tio Chico Maria
pertencia a uma raça de feiticeiros em extinção, ele era, só podia ser, o
último representante de uma casta de feiticeiros que bebiam do mais puro sopro
da madrugada, alimentavam-se da emanações telúricas e conheciam o lugar exacto
onde principiam as coisas.
In O Último Feiticeiro, Editor Chá de Caxinde, 2003