quinta-feira, 8 de setembro de 2011

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS



A BRIGA

Casados há pouco mais de um ano, tiveram a primeira briga há dias.

Não foi amuo, não. Foi mesmo briga e da séria, que só não deu reunião de família porque ela, a Rosa, a tinha toda no Kunene. E família grande, diga-se. O mais baixo dos irmãos kwanyama tinha um metro e noventa de altura e quase outros tantos de largura.

Ainda bem para o Celestino, agora banido para o sofá da sala de visitas por duas semanas.

Duas semanas?...

É que a Rosa tinha o espírito de Mandume, forte e guerreiro, e não pactuava com ninguém que ofendesse a sua fé e religiosidade.

Por questões da fé é que o marido foi banido para o sofá da sala de visitas?

Sim! E se olharmos para a questão sob o ponto de vista da Rosa, teremos que conceder que ela teve carradas de razão. Sobretudo quando se entender que o Celestino, mais ou menos ateu, se vira forçado a casar em cerimónia religiosa pela Igreja Católica quando a barriga da Rosa começou a crescer. A questão do crescimento da barriga não foi assim tão problemática, que necessitasse de negociações aturadas, estavam de facto apaixonados um pelo outro e queriam vive juntos, todavia a Rosa procedia de uma família antiga de gente muito religiosa, que já produzira três padres e dois cónegos ao longos dos anos. Casaram-se, pois, pela Igreja, com todo o cerimonial que uma ilustra família podia almejar para a primeira filha casadoira.

O Celestino, mesmo o nome favorecendo, teve dificuldades enormes para mastigar o pouco do catecismo que teve que aprender para o efeito, tendo passado ainda pela comunhão e pelo crisma. Jurou que um dia haveria de se vingar, não fosse ele também filho de Deus.

Enquanto viveram no Sul, frequentou assiduamente a Igreja, ia todos os domingos com a esposa e a família à missa. Mas não conseguiram que comungasse. Após várias tentativas, quando um bom domingo o viram mastigar a hóstia com tanto rancor que até fazia caretas, com metade dos comungantes a olharem estupefactos, foi imediatamente dispensado e liberado pela família, envergonhada.

Vitória que festejou secretamente, embora sol de pouca dura, pois teve que continuar a os acompanhar aos domingos e feriados religiosos.

Reagindo, aprendeu a dissimular dentro do hinário os livros de bolso detectivescos que tanto gostava, a Rosa fingindo que não via, porem não desarmava. A cada momento, lá o cutucava para se levantar, sentar ou ajoelhar. Haveria de transformar aquele coração fechado para a fé.

Quando vieram viver para Luanda, foi o grito da libertação do cativeiro. Com a família distante, foi a Rosa que teve que começar a aquiescer e assim, aos poucos, o lá foi perdendo como companheiro de missas e afins. Não pensem que o amor e relacionamento deles estiolara, nada disso, continuaram solidamente juntos, só que as missas dominicais foram substituídas pelo televisor ou saídas para um curto passeio, após o qual apanhava a esposa na igreja.

Mas como foi então parar exilado para o sofá da sala de visitas?

É que não soube medir a fé e, sobretudo a religiosidade da mulher, talvez por falta de um religiómetro ou por ter-se distraído com a liberdade adquirida.

E ainda por cima, foi a um domingo.

Já deitados, o Celestino deu para contar uma anedota à mulher, sem medir as consequências.

- Ó Rosa, queres ouvir esta?

- O que é, amor?

- Ontem morreram três velhinhas, sabes?

- Três velhinhas, todas no mesmo dia? Onde?

- É verdade. E foram as três para o céu porque tinham sido muito beatas.

- Mas o que é isso?!...

O Celestino, se estivesse atento, teria logo notado a inflexão vocal da esposa e ficado por aí. Mas não, aventurou-se um pouco mais ainda. Só um pouco mais, com aquele espírito dos aventureiros ou dos audazes.

- É como te digo... A primeira, chegada lá, pediu a São Pedro que lhe permitisse ser outra pessoa.

- Celestino, sabes muito bem querido que não gosto que se brinque com assuntos sérios.

- ?!...

- Ouviste, querido?...

- Ouvi, meu amor. Mas deixa que acabe. Ser outra pessoa, perguntou S. Pedro? Sim, disse ela. E que pessoa deseja ser? A Madona.

Neste ponto a Rosa saltou da cama e olhou para ele em sobressalto, estaria doente, paludismo cerebral?

- O quêêêê?!....

- Pois é como te digo, filha. A Madona, e foi-lhe concedida a graça. A segunda pediu para ser a Patrícia Faria.

- A Patrícia Faria? Mas tu estás bem?

Antevendo o golpe de misericórdia, pois por esta altura já estamos todos a ver que o Celestino escolhera a ocasião para se vingar conforme se prometera há anos, rematou, bem humorado:

- A terceira disse que queria ser a Pipalina do Saara.

Apanhada de surpresa, nunca ouvira falar de tal celebridade, a Rosa conseguiu reganhar alguma compostura para indagar:

- A Pipalina du Saara?...

- Olha filha, foi o mesmo que o S. Pedro lhe perguntou. Assim, a velhinha mostrou-lhe um jornal que trazia debaixo do braço, cuja parangona dizia “Pipeline do Saara é montado em quinze dias, por trezentos homens”.

Para terminar este assunto, baixemos uma pudica cortina sobre a cena que se seguiu logo após, e ofereçamos a nossa simpatia àquele incompreendido que ronca feliz no sofá da sua sala de visitas. Ainda lhe faltam mais onze dias. Talvez!...

22/08/04

SUMAÚMA - POESIA



Tempos Sonhados

Ceifa a tristeza

os tempos sonhados

das palavras viçosas

ao apontar o rumo

Receosos

sentimos a obscuridade

perante a agressão marcial

embrenhada no ventre da chuva

que não tombou

Uniu-nos o sonho

ao vislumbrar

nos rasgos azuis do céu

o filtro da dor

da lembrança

do amor

da esperança

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


JOSÉ MENA ABRANTES

Nasceu em 11 de Janeiro de 1945 em Malanje. Licenciado em Filologia Germânica em Lisboa (1969), viveu exilado na Alemanha Federal de 1970 a 1974, ano em que regressou definitivamente a Angola. Publicou inúmeras obras de teatro, ficção em prosa, poesia e estudos sobre o teatro e o cinema angolanos. Ganhou por três vezes o “Prémio Sonangol de Literatura”, durante décadas o máximo galardão da literatura angolana.


O PIÃO

Na ínfima fracção de tempo que decorreu entre o clarão imenso do raio que lhe rachou o crânio e o estrondo que ainda hoje perdura nos ouvidos de muitas testemunhas, M.L. lembrou-se finalmente onde escondera o pião novo de madeira, comprado com o dinheiro que durante semanas fora roubado discretamente da gaveta da cómoda da irmã de sua mãe.

Apesar de já terem passado mais de quarenta anos, M.L surpreendeu-se menos com a recordação do que o facto de se ter podido esquecer durante tanto tempo.

Que memória a minha, comentou para si próprio, dirigindo-se calmamente para a direcção certa.

No dia em que o vi com um pião novo, depois de me ter andado a pedir dias e dias seguidos para lhe comprar um – disse a mãe em pranto, sem saber por que carga de água isso lhe vinha

à cabeça precisamente naquele momento – tive um pressentimento que lhe ia acontecer algo de muito mau na via. Meu pobre filho!... E fungava, inconsolável.

O pião ainda estava efectivamente no mesmo local. Sem o brilho e a lisura de antigamente, prometia, no entanto, girar bojudo e leve na palma da mão aberta. O bico de ferro enferrujara, naturalmente, mas isso não tinha assim muita importância.

Altas horas da noite, enquanto cochichavam risos em surdina à volta do caixão tapado, de onde volta e meia saía um ligeiro odor a carne queimada, todos os amigos foram unânimes em recordar a sua tremenda habilidade para atirar o pião nos tempos de escola primária.

Lembraram-se mesmo do dia em que ganhara uma aposta, sozinho contra a escola quase inteira, pondo o pião a girar durante um tempo inacreditável em cima de uma moeda de cinco tostões.

M.L, não tinha moeda, mas o filho da professora, sempre disposto a humilhar os colegas, atirara displicente a moeda para o chão, atraindo de súbito a atenção de todos.

Pondo-se bruscamente de pé, alguém recordou com ar excessivamente sério que, no momento em que o pião se eternizava sobre a moeda, um raio riscou de repente o céu, trazendo no seu apagar um ribombar de pedras rolando.

Exactamente como o que se seguiu à sua morte, quando, de olhos fechados e rosto erguido para as nuvens, recebia satisfeito os primeiros salpicos de uma chuva que nesse ano tardara muitos meses em chegar.

Todos se entreolharam, incomodados. Uma brisa fria girou discreta pela sala.

O pião, finalmente! Quando todos começaram a desconfiar, principalmente a mãe, começou por dizer que o encontrara, mais tarde que lhe haviam oferecido e, finalmente, que lhe tinham emprestado e já o devolvera. Esse o momento em que o escondera, tão bem

e com tanta pena e culpa que, quando dias volvidos o quis recuperar, já não se lembrava onde o tinha metido.

Talvez tenha sido a luz a acender-lhe a memória, porque agora, segurando o pião inexplicavelmente gasto na mão, lembrou-se com nitidez que um clarão imenso lhe fizera levantar os olhos para o céu no momento exacto em que o escondia.

Foi esta a terceira vez que um raio caiu perto dele, disse em voz alta e sem emoção aquela que durante anos fora sua companheira.

De uma vez um arbusto ficara carbonizado a alguns metros da paragem onde esperava um autocarro. De outra, num dia em que chovia torrencialmente, uma árvore rachara no momento em que ele passava de carro a seu lado. Pelo menos foi o que ele me contou,

acrescentou como que a desculpar-se.

Um soluço mais fundo da mãe fê-la calar-se.

Parem lá com essa conversa de raios e piões – disse uma voz. – Até parece que a vida do homem foi só andar a atirar piões em dias de trovoada.

A mãe parou de chorar e levantou a cabeça admirada.

Como é que sabias? Perguntou. E sem esperar resposta contou como em dias de muita trovoada, quando ela corria a tapar o espelho grande do quarto de dormir com a colcha da cama e a pôr calços de borracha de pneu debaixo das camas de ferro dos filhos, sempre o via correr para o quadrado de cimento da parte coberta do quintal das traseiras, atirando muito concentradamente e vezes sem conta o pião.

Ela bem lhe gritava para voltar para dentro, mas acabava por ir meter-se na cama e tapar a cabeça com o lençol, para agora se poder lembrar do que se passava a seguir.

Que raio de sítio em que o escondi, pensou M.L, rindo-se sozinho, enquanto fixava o barbante na ponta e começava a enrolar firmemente a barriga do pião.

Na sala, todos haviam ficado um bocado constrangidos com as recordações desfiadas.

Um mal-estar superior ao da própria presença do cadáver entranhava-se nos ombros, criando uma estranha necessidade de espreguiçar e pele de galinha nos braços. Sem se darem conta, todos fixavam o caixão atentamente, à espera do inevitável.

A chuva começou a cair. Alguns clarões à distância de há muito anunciavam a sua aproximação. Os pingos faziam a sua música de sempre no telhado de zinco. A mãe andava na azáfama do costume, a tapar espelhos e a esconder tesouras e talhares, com medo

da trovoada.

M.L, saíu para o quintal e, um involuntário estremecimento de certeza, orgulho e expectativa, lançou o pião que acabara de enrolar.

O lançamento foi perfeito. O pião imobilizou-se, vertiginoso de rotação, no ponto exacto em que caiu, acendendo finalmente o raio que lhe fendeu literalmente a cabeça em duas metades.

O estrondo foi menor que o terror que levou todos os seus amigos e a mãe a fugirem precipitadamente da sala do velório.

Erguendo do chão o pião ainda em movimento, M.L, apenas se surpreendeu ligeiramente que só tivessem dado pela sua morte tantas dezenas de anos depois.

In O Gravador de Ilusões, Editorial Nzila, 2000