quarta-feira, 7 de abril de 2010

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS


SANTA BÁRBARA E OS NOMES

Há dias, vi na Televisão Pública de Angola (TPA) uma senhora lamentar-se que não haviam permitido que a sua filha fosse registada com o nome por ela escolhido, o de Giovânia Bárbara. A desgostosa mãe, reclamava que lhe tinha sido vetado o uso de Bárbara, tendo que registar a filha com o nome de Giovânia X (não me recordo do nome que substituiu o Bárbara).
Fiquei pasmado, se não escandalizado, em como uma pessoa, de seu livre arbítrio, decide que nome leva ou não leva o filho ou filha alheios, isto, na maior parte das vezes, a começar com os padrinhos, embora o caso seja diferente. Daí, tantas e tantas vezes, vermos o Miguelito, ser mais conhecido por Ricardo, o verdadeiro nome que os pais lhe queriam colocar, a Minguota, ser mais conhecida pela Isabel, e por aí fora.
A senhora do registo civil que impediu a referida mãe de registar a filha com o nome de Bárbara, e fez vista grossa ao Giovânia (muito em voga nas novelas brasileiras que por aqui vão mudando os nossos costumes, infelizmente), uma corruptela de Giovanna, nome italiano, certamente não sabe que a denominação Bárbara é bem comum no mundo de fala latina, pertencendo, incluso, a uma Santa muito famosa, a quem ela reza cada vez que há trovoada e relâmpagos.
Para se redimir do seu pecado, aqui lhe passo de seguida a oração de Santa Bárbara, nascida em Nicomedia, na Ásia Menor, que morreu decepada por ter consagrado a sua virgindade a Cristo e cujo culto acabou por passar para o Ocidente, sobretudo a partir do século VII.
Tornou-se a protectora e padroeira dos artilheiros, dos arquitectos, dos construtores, dos carpinteiros, dos bombeiros, dos electricistas, dos matemáticos, geólogos e mineiros. É ainda invocada para protecção contra as tempestades, contra os raios, contra os fogos e contra as mortes súbitas.
Sem qualquer pretensão de proselitismo, aqui vai a oração, para todos os oficiais do registo: “Santa Bárbara, que sois mais forte do que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura. Ficai sempre ao meu lado para que possa enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas da minha vida, para que, vencedor de todas as lutas, com a consciência do dever cumprido, possa agradecer a vós, minha protectora, e render graças a Deus, criador do céu, da terra e da natureza, este Deus que tem poder de dominar o furor das tempestades e abrandar a crueldade das guerras. Santa Bárbara, rogai por nós”.
De facto há que haver cuidado com a questão da colocação de nomes, há muita gente que coloca nomes que, embora tendo uma raiz na nossa cultura africana, como esqueleto, quisto, pobreza, etc., pelo desenvolvimento da sociedade, colocam os seus utentes em situações de agravo futuro e aí, a cautela para com quem assim deseje nomear os seus filhos. Todavia, quantos Edilsons, Elidirias, Assuntas, Jocileis, Glaucos, Zobaidas e outros tantos nomes importados via Globo, não há por aí devidamente registados? Só nos falta conhecer o António Um Dois Três de Oliveira Quatro, o paisagista Pinto Ramos de Oliveira, ou o gay Jacinto Leite Capelo Rego.
E por falar nisso, tive um amigo que passou metade da sua vida aborrecido com o nome que lhe houvera sido colocado, e só ficou em paz quando um dia o foi mudar, após muita paciência e papelada.
“Como se chama, então?” Perguntou-lhe o oficial do registo.
“José Dibinga”, respondeu ele. (José Cocó)
“E quer mudar o seu nome?”
“Sim, efectivamente, já estou farto dele”.
“Muito bem, e por que nome deseja então ser conhecido?” Indagou, solícito, o oficial.
“Por João Dibinga.” Respondeu, sem hesitar, o meu amigo.
Para quem não saiba kimbundo, que pergunte e aprenda, já é mais do que tempo.

21/09/05

SUMAÚMA


HORIZONTE

Olhei
para o horizonte
perscrutando
destinos

olhei
cogitando a palavra
mágica

o cheiro das chuvas

olhei
para o horizonte
supersticiosamente
dos homens

terça-feira, 6 de abril de 2010

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO (NO PRELO)


ARNALDO SANTOS

A LIBERTAÇÃO DOS HOMENS-JINZÉU

Os anos foram passando desde a chegada das naus de alto bordo, e o Kinaxixi de Quinda viu crescer ao longe a cidade de São Paulo de Assumpção de Loanda-
Porém, a cidade de São Paulo era muito estranha. Nessa Loanda estavam insistir conviver, lado a lado, duas cidades distintas. A Loanda Cidade Alta, e a Loanda Cidade Baixa.
No entanto, só uma delas, a Cidade Alta que corria desde o pequeno morro junto à ilha onde se erguia a fortaleza de São Miguel, eriçada de pesados canhões de boca larga, até na Ermida de São José (que virou depois Hospital Maria Pia), ousava enfrentar o Kinaxixi de Quianda.
- Essa Cidade Alta. É que mandava em tudo… - explicou assim, devargamente, Kuxixima.
Mais do que alta, ela era altiva e sobranceira percorria todo o cimo da crista do morro guarnecido das cruzes da Igreja dos Jesuítas, e da Igreja de Nossa senhora da Conceição, e também das bandeiras e estandartes dos aquartelamentos militares. Dessa maneira a Cidade Alta seguia altíssona e festiva até nas encostas da manhanga do Rey, onde os escravos dos moradores iam buscar água. Dominando o casario, ficavam também nesse plano alto, os palácoos dos Governadores, do Bispo, e a Santa Casa de Miserictórdia com seu hospital.
A outra cidade, era, aparentemente, mais modesta. Nela a vida fervilhava entre tabernas, armazéns de escravos, sobrados com sanzala e as cubatas que se confundiam com as areias das barrocas.
Não raramente a Loanda Alta baixava nessa Loanda da praia, e nela se esponjava, se embriagava.
Assim, naquele arco da baía que se desenhava do sopé do morro da fortaleza de São Miguel até na Ermida da Nazareth, essa azáfama não passava despercebida na arriba do mmorro do Kinaxixi. Aqueles seres minúsculos que davam pelo nome de homens, indo e vindo pela praia, desavindos, causavam muita estranheza. As terras deviam andar muito abrasadas porque esses homens, que eram barncos e pretos, pareciam reduzidos a salalé-formigas brancas e jinzéu-formigões pretos, e não tinham parança ao sol, sempre em busca cega.
No entanto, embora assim todos minúsculos pequeninos, havia uns que eram diferentes. WEram os homens-jinzéu.
No Kinaxixi lhes chamavam assim de homens-jinzéu porque talqualmente os quissondes seguiam agarrados uns nos outros, quais colares de missangas pretas. No entanto, diferentemente dos quissondes, não marchavam. Andavam se arrastando presos entre si, e não sabiam para onde ir. Nas lhe unia a sua livre vontade de seguirem uns atrás dos outros. Estavam-lhes a ligar correntes de ferro, muitas vezes presas nos pés ou nos pescoços. Os lubambos.
- E foi então que no Kinaxixi todos esses casos começaram a levantar sérios cuidados… - disse Kuxixima. – Este foi o princípio de todas as estórias…
Naquela região do Kinanxixi só tinha uma verdade. A vida inteirinha naliberdade da natureza. Não havia outra; não conheciam.
Esses casos dos homens-jinzéu presos acorrentados não podiam acontecer no Kinaxixi. E na hora de beber água na lagoa, doía pensar no sofrimento daquela gente.
Dias a seguir aos dias, eles viamos homens-jinzéu passar dos quintais do major gabriel, grande negociante de escravos no sítio da Sanzala-ia.Mabangela, atrás da Igreja da Nazareth, até na Sanzala do Kixima-ia-Mbakanhá para beberem água. Essa água tinha o sabor de bacalhau, foi assim então que lhe deram esse nome no poço. Mas os homens-jinzéu eram escarvos, tinham sido comprados, não podiam refilar o gosto da água. Bebiam.
Os soldados da linha da Sanzala Bua Mbonge, que ficava mesmo ao lado, estavam-lhes a vigiar comespingardas e bacamartes, até que eles regressassem novamente no quintal do braga, ourives, no quintal do major Gabriel, ou nos outros quintais dos donos de escravos.
Nesses tempos, estavam a vir em Loanda navios e navios para carregar produtos e peças. E eram peças os dentes de marfim, as bolas de cera, os rolos de algodão e também as pessoas.
Todas essas peças os comerciantes carregavam nos porões dos brigues, escunas e pataxos. E amarrados uns nos outros com os lubambos estavam também os homens-jinzéu. Era muito triste.
As Quitutas do Kinaxixi que brincavam muito em todos os pequenos charcos, viam-lhes todos os dias assim amarrados, se arrastando olentam,ente e comentavam:
-Que crime é esse que esses homens cometeram para lhes fazerem sofrer dessa maneira?
Mesmo Quianda, espírito pai-mãe da lagoa, quando elas lhe contaram, não soube o que havia de lhes dizer.
Adiou:
- Essas são makas dos homens da cidade. Não se metam… - avisou.
Poré,, todo esse sofrimento as Quitutas filçhas d’água do Kinaxixi, iam vendo, e se comoviam até que os homens-jinzéu eram embarcados como peças, sufocados nos porões. E então, um dia, não puderam mais se conter e se zangaram.
- Vamos no Bungo… lhes buscar…? propuseram.
Esse era um dia do ano de 1730, em que durante quarenta dias a chuva grande d’água gorda nunca deixou de cair.
As tranças d’água estavam a ligar as núvens com o Kinaxixi. Chovia, chovia e de todos os lados vinham as águas para a lagoa. Mesmo do sítio da Santa Maria Magdalena, ali pertinho do Kinaxixi as correntes nãp paravam. Foi então que as filhas d’água repetiram na Quinada da lagoa:
- É hoje. Vamos no Bungo… lhes buscar. – afirmaram, resolutas.
Quainad sabia que elas queriam libertar os homens-jinzéu, mas se preocupou com os excessos que podiam ocorrer desse garnde entusiasmo.Por isso lhes recomendou com voz de Mãe:
- Cuidado… desçam devagar fele-fele nas barrocas… não corram…
O espírito d’água da lagoa queria-lhes explicar a razão daqueles conselhos mas elas não chegaram a ouvir mais nada. Mal ouviram a autorização não escutaram as outras recomendações. Saltaram pelas margens e cavalgaram nz zuna barroca abaixo, quela berrida estivessem a levar, na direcção do Bungo. Pareciam, eram só candengues felizes de se lievrarem da vigilãncia dos mais-velhos.
Então nessas corridasem modos, brutucu-brutucu salta aqui, brutucu-brutucu salta ali, atropela, varreram tudo na frente, areias, paus, troncos, e cavaram um caminho fundo para o Bungo, que maistarde lhe chamaram o Njila-ia-Kinaxixi.
As quitandeiras da Quitanda do Bungo foram as primeiras que lhes viram chegar com paus e pedras em confusão, e recearam. Mas adivinhando que as águas estavam zangadas, fugiram com medo, tat’ê!, mam’ê!, , os balaios e quindas na cabeça. Umas foram nos jimbungo, o lugar dos bambus, mas foram apanhadas, e outras foram na Caponta.
Mesmo os soldados da linha do Bua-Mbonge, no fortim deles, não resistiram. Vendo que os espingardões e os bacamartes não faziam farinha contra essas águas furiosas, que já tinham dado berrida nas quitandeiras e enterrado o Poço do Bacalhau, ala… Não esperaram mais as ordens dos chefes e abandonaram o fortim, fugindo cada uma para seu lado, se escapulindo qual os pucos.
Estava enfim livre o caminho para as Quitutas. Então as filhas d’água do Kinaxixi, em ondas e ondas de alegria, uma a uma invadiram as cubatas e sobrados e puseram em fuga os moradores, até que, por fim chegaram nos quintais onde estavam presos os homens-jinzéu ligados uns nos outros pelos seus lubambos.
Mesmo quando o Major Gabriel da sanzala Mabanguela, o Braga, ourives, da sanzala Bua-Mbonge e os outros donos de escravos, que tinham ocorrido nas pressas com os seus criados armados de pás e picaretas para tentar travar as filhas d’água do kinaxixi, já nada conseguiram. Era tarde.
As Quitutas do Kinaxixi já tinham abraçado os homens-jinzéu e lhes recebido nas sua vidas que levaram com elas, contentes por lhes poder entregar no mar.
Mais tarde, muito mais tarde, quando as pessoas passavam no Njila-ia-Kinaxixi, esses casos elas recordavam, ainda espantadas.
E tentavam adivinhar como depois os homens-jinzéu foram aparecer vivos nas suas sanzalas.
No entanto, o exemplo das corridas das Quitutas do Kinaxixi, a cavalgarem na zuna pelas barrocas abaixo para libertar os homens-jinzéu, outros filhos-pequenos do Quinaxixe muitos anos depois, iam-lhes seguir também.
Mas estas são outras estórias. As do Quinaxixe.

In “As estórias de Kuxixima”, INIC, 2003

INKUNA MINHA TERRA


RUMOS (Revisto)


Victória Pimenta tem actualmente oitenta anos, vinte e cinco dos quais vividos em maravilhadas batucadas de amor. Amor puro e refinado de electricista engenhosa dos prazeres do corpo e dos alívios da alma.
Nas últimas três décadas, auto-reformada, vendera os negócios e remetera-se à reminiscência, à contemplação, não do invivido, mas da curteza da obra a que se dedicara com empenho parceiroso de formiga.
Excepção era feita no seu aniversário, por uma elite de pais e filhos penhorados em ocasional manifestação de carinho, com farra de arromba celebrada até altas horas da madrugada. Esse testemunho advinha do gesto reformador e altruísta de Victória, que só não teve continuidade na geração dos netos, por a madrasta natureza ser exigente, indecorosa e cobradora.
Tudo começara no ano de 1939, numa cidade do litoral angolano, Benguela. Cidade em que raro era a casa, da alta ou pequena burguesia negra, branca ou mestiça, que não tivera seus gaiatos iniciados no prazer dos prazeres, ás mãos da carinhosa Dona Victória, senhora digna e tratada com todo o respeito, não meretriz alguma que dispensasse serviços a troco de moeda ou favores outros desrespeitosos.
Por vicissitudes e incongruências da vida, especializara-se em tirar os tampos a mancebos cujos extremosos pais lhos levavam pelas mãos, a africanizada parisience cegonha já não escorregava pelas cada vez mais afuniladas chaminés dos conhecimentos carnais dos púberes, adquiridos em nocturnas escapadelas com donzelas duvidadas. Também, por religiosamente acreditarem que, sem prescrita alternativa, a masturbação constante, remeteria os danados rebentos para o remidor fogo eterno, ou , pior ainda, os tornaria inapelavelmente tísicos e manetas.
Em 1936, com vinte risonhas primaveras, Victória Pimenta conheceu Arnaldo Lima, galante e bem falado guarda-livros duma próspera firma de muitos secos e mais molhados. Arnaldo, ou melhor, Arnaldinho, português que chegara a Angola uns cinco anos antes, fugindo ás inquiridoras navalhas de três maridos cujas testas ornamentadas pesavam sobremaneira, na lusa metrópole. Como tinha parentes nesta pequena cidade das Áfricas, para lá se dirigiu.
Conheceu Victória, namoraram ás escondidas durante dois anos, aos dezanove convenceu-a que a hora de comprovar o seu amor chegara. Casaram-se finalmente aos vinte, quando a jovem anunciou que se o não fizessem, apregoaria aos quatro ventos que tinha sido indevidamente abusada na sua inocência e escaldante boa fé. Arnaldinho, dando conta da vida a andar caranguejadamente, concluiu que lhe seria muito mais fácil e proveitoso esposar-se.
O pai dela era próspero comerciante, folgado. O futuro emprego estava automaticamente garantido, talvez mesmo uma sociedade de interesses futuros, sem falar na casa para viverem.
Para os momentos da boémia inveterada e enquistada, as aborrecedoras brancas dos afamados bairros da capital portuguesa, substituí-las-ia pelas lustrosas negras da região e isto sem preocupação de ornamentar a testa de ninguém.
Há muito que aprendera que uma multa resolvia os aparentemente insolúveis problemas sociais dos bons nativos. Por tradição, cornos e corneados era uma coisa que não existia em África. Isso era invenção dos capados dos padres e desses franco-mações que não entendiam nada do relacionamento entre raças e dos valores próprios da terra, afirmava de bom tom.
Quando lhe saiu, voluntariamente, das mãos o primeiro cabrito e uns tostões como compensação da desfeita ao desfeiteado, teve a plena certeza que África era sua terra natal e seus habitantes seus irmãos. Gente pacífica e compreensiva, nada de navalhas e correrias loucas com fitos de o deixar exangue!
Victória não soubera resistir à lábia do português. Gradualmente foi achando o homem engraçado, deixou-se seduzir pelos galanteios baratos mas viscosos, e aos dezoito anos rendeu-se, porém ainda casta, à paixão. Seus encontros eram fugidios e curtos, o tempo suficiente para troca de duas palavras babosas, um olhar saturado de labaredas de intenções pecaminosas, e logo o coração a disparar em furiosa cavalgada deserto afora já que os olhares do malandro carregavam toda a experiência dos bairros afamados de todas as colinas da terra onde nascera.
Como poderia uma mestiça donzela, de pequena cidade provinciana, resistir incólume a tal provação? Já incorria em transgressão grave e faltosa ao encontrar-se com Arnaldinho no armazém da loja do pai, por trás dos sacos de milho. Mas como se sabe, o coração tem razões que só dele são, e assim, ao fim de quase um ano de muitos beijos sôfregos, esfreganços rebolados, apalpões propositadamente impenitentes e promessas avassaladoras, Victória entregou-se sôfrega ao madraço. Em cima de três sacos de farelo, perante a vigia de varias ratazanas que, das vigas do armazém, curiosamente os observavam.
Semanas depois, começou a preocupar-se como chegar ao anúncio familiar. Aliás o burgo mexericava sobre os desaparecimentos ocasionais e repentinos do guarda-livros, que tinha fama de putanheiro, malandro, estouvado, rabo se saia, enfim, adjectivos não faltavam para qualificar a vida que levava no burgo.
Mas quem escuta um coração apaixonado, sobretudo se de mulher?
O drama seria os pais, certamente por um lado a desejariam ver casada com um branco. Mestiços que eram, almejariam melhorar a raça, como se dizia então, todavia, por outro, o que se cochichava de Arnaldinho deixava muito a desejar para se lhe entregar pacificamente a filha.
Os meses foram passando e Victória pressentiu que Arnaldinho se tornava obviamente escuso. Após a desfloração, aparecera uma só vez, sem aqueles olhares abrasadores e invocando receio de serem descobertos. Ela, sedenta da memória anterior, bem o puxou para os sacos de milho, porém em vão, o saciado biltre resistiu e solicitou pudor e compostura. Safando-se das garras ardentes da jovem, pulou porta fora dizendo que depois combinariam o próximo encontro.
Escusado será dizer que as olheiras de Victória aumentaram e o seu estado macambúzio levou a mãe, D. Firmina, a falar com a filha. Com poucos meses para completar vinte, em torrentes de vergonha que produziram cataratas de lágrimas, abriu seu coração à progenitora e relatou a odisseia tim-tim por tim-tim. Só não falou das ratazanas porque as não vira.
D. Firmina, que há muito desconfiava das manias e desmodos ocasionais da filha, todavia nunca relacionado com Arnaldinho, manteve-se calma e aconselhou-a a convocar o patife para um encontro.
Depois que o encostasse à parede.
Mesmo não estando, afirmar, em copioso choro, que estava grávida de quatro meses e que ele ou declarava suas intenções mais honestas ao senhor seu pai, e casar-se-iam de véu, grinalda e flor de laranjeira, ou denunciá-lo-ia publicamente que a desvirginara com falsas promessas e pretensões, e que a abandonara abusada da sua honra e castidade O caminho para a igreja seria, deste modo, percorrido sob a mira duma caçadeira, senão várias, pela fama do marmanjo.
Perante argumento tão convincente, Arnaldinho, homem fraco de oposições, mas visionário, anuiu. Voltar para Portugal é que ele não podia... num cair cinzento de tarde, declarou seu amor por Victória, face a um estupefacto e despreparado pai e uma mãe concordante. Informou o senhor Abelardo que não ousara antes insinuar seus sentimentos para com o anjo que lhe iluminara a vida de pecador, porque esperava primeiro formar fortuna. Trabalhava para o comerciante Antunes com fito de amealhar uns tostões que permitissem abrir seu próprio negócio. Já estabelecera contactos com as caravanas que se deslocavam para o interior, a fim de entrar no comércio da borracha, da cera e do mel, talvez mesmo do marfim. Não era homem que se contentava com pouco, ou desejar viver ás custas de outro, e para levar Victória da casa paterna, seria para lhe dar melhor vida, nunca antes. Mas agora, ah!, as torrentes liberadas pelo amor pio que dedicava a Victória, eram tais que soçobrara e seus intentos originais de riqueza não eram mais do que mera ilusão a desnavegar em mares perdidos e vastos.
Quem não ficou muito impressionado foi o futuro sogro que, após a oratória republicana do quase genro, e ouvir a filha babada e a mulher apressada, consentiu. Mas ante a má fama do finório, impunha incondicional condição que este abandonasse o comércio do Antunes e ficasse a trabalhar e viver com eles. Sem alternativas, testemunhado pelos olhares felizes das mulheres, apertou a mão do sogro e abraçou-o efusivamente. Estampou dois sonoros beijos nas faces de D. Firmina, a quem chamou mãe, e saiu apressado, sendo conduzido à porta por Victória, braço no braço do sedutor enganado.
Claro está que quando foi revelado o noivado, as línguas viperinas da cidade logo juntaram dois e dois e adivinharam qual teria sido o passatempo de Arnaldinho naquelas desaparições metódicas e repentinas, sobretudo por que o casamento fora proclamado para breve.
Cinco meses depois, a aliança consumou-se, Arnaldinho sentindo-se tinhoso, mas sempre na desportiva. Conhecia bem as regras do jogo e nunca reclamara da desaparecida barriga da noiva. A população da pequena praça compareceu em peso, Abelardo Pimenta era um comerciante antigo e respeitado. Victória, toda de branco em vestido imponente de cauda de três metros arrepanhada pelas afilhadas Betinha e Finura, ambas de doze anos, trajadas cor-de-rosa, foi o sucesso e a inveja das solteironas encalhadas. Arnaldinho, cabelos rebocados de brilhantina, igualmente trajado de branco e de sapatos a duas cores, castanho e branco, ostentava um enorme cravo encarnado na lapela, talvez monumento tauromáquico em memória dos muitos enchifrados que deixou na sua querida e distante Lisboa. Como concessão, raspara as suíças marca registada de sempre, o velho Abelardo impusera o peso e respeito de futuro pai e sócio maioritário.
A cerimónia religiosa foi longa, o padre, que já antes bebera à saúde dos noivos e familiares, que não eram poucos, em voz semi-pastosa, elaborou eloquente discurso nupcial, no qual, por entremeio, fez descer todas as bênçãos do mundo sobre a cabeça dos nubentes. Da pequena igreja, a comitiva partiu para a casa de Abelardo e Firmina, por volta das doze da manhã, e a festança começou. Para acabar dois dias mais tarde, já com Victória oficialmente nos braços de Arnaldinho, rumo a Luanda, para um mês de lua-de-mel, oferta parental e da recentemente inaugurada casa Abelardo e Arnaldo Limitada.
Durante um ano Victória foi verdadeiramente feliz. Com uma estreita vigilância, apoiada e dirigida pela mãe, reduziu o campo de possível acção extraconjugal de Arnaldinho a zero. O homem parecia reformado e contente com a situação.
De facto, contente estava, reformado não.
O bem torneado corpo de Victória, os seus vinte e um roliços anos bem como a flamejante consumidora inocência provinciana em questões de alcova, iam mantendo o malandrim com o moral elevado, feito garanhão em permanente cio. Os pais, envergonhados pelos suspiros e gemidos da filha noite afora, mandaram edificar uns anexos amplos nos fundos do quintalejo e para lá transferiram o arrulhante casal de pombos.
Mal sabiam que, ao alforriá-lo da casa grande, reabririam os portões do arrojo ao genro.
Sem ninguém dar por ela, Betinha e Finura iam a caminho dos catorze, meias mulheres, sobretudo Finura, traseiro farto e arredondado revelando as noites profundas de África, busto montanhoso por onde escorriam volúpias de chovidas promessas, mais parecia ter dezasseis. Igualmente sem ninguém dar por ela, o fadista começou a olhar para a garota de maneira mais acintosa e a fazer contas de cabeça. que tiveram como resultado, oito meses mais tarde, a prova real e dos três fora, em rendição incondicional ao tratante, numa tarde em que Victória fôra a casa da modista.
O caso durou quatro viscosos meses até os dois serem apanhados, na cama do casal, pela própria Victória, que havia esquecido o tecido de um outro vestido em confecção. A coitada, olhos esbugalhados e engasgada ao rubro na patifaria do velhaco, não ousou crer, e desmaiou num surdo “Ai minha mãe”.
Finura, acreditando a madrinha morta, aos gritos, abalou porta fora toda nua, indo-se afogar no rio. O magarefe, foi corrido da cidade a tiros de caçadeira, com o Intendente e um grupo de cipaios atrás do velho Abelardo, para que este não desgraçasse, mais, a vida da família. Conseguiram desarmar e acalmá-lo, prometendo que Arnaldinho seria trazido a justiça, levasse o tempo que levasse.
Efectivamente, meses mais tarde, é devolvido à pequena cidade pela polícia de Luanda, e julgado, tendo sido condenado a três anos de cadeia.
Victória, que durante o julgamento jurara vingança, via-se que estava alterada, não era a mesma pessoa. Perante todos, anunciou que a partir da data do seu vigésimo segundo aniversário, para mais ou menos breve, iria ser a fada benfazeja dos jovens virgens do burgo. Deixai vir a mim os pequeninos, anunciava risonha. Que quando assim o desejassem, os papás que lhe levassem lá os catraios, que ela se encarregaria de os devolver ministrados nos becos e caminhos do amor. Tivera bom mestre.
Foi uma comoção pela cidade, o velho Abelardo e D. Firmina julgaram a filha louca, levaram-na a Luanda para consultas médicas, que incluíram ainda, pelo sim e pelo não, famosos adivinhos quer de Luanda quer lá de Benguela, mais tarde.
Todavia nada demoveu Victória, vozes internas desarrumavam sua cabeça, quarto por quarto, vassourando que amor com igual amor se consome. O homem fizera, chegara a vez da mulher, é na cegueira dos subterrâneos que a toupeira caminha sua vida e a minhoca enrola suas comidas na terra para a fertilizar.
De regresso abandonou o lar paterno e arranjou casa modesta na periferia.
É evidente que ninguém acreditou no que Victória dissera, sabiam que o seu desgosto era profundo e que, com o tempo, o coração sararia e tudo voltaria ao normal. Não houve, pois, pai que ousasse levar a oferta a sério. Mas quando, ao fim de um ano o velho Abelardo Pimenta morreu de desgosto, logo seguido de D. Firmina, a dádiva tornou-se uma tentação para os jovens adolescentes que, à revelia do consentimento paterno, puseram à prova a oferta da fada do amor, no que foram bem sucedidos.
Victória, como filha única, herdou o comércio dos pais, regressou a casa, colocou gerente à frente dos negócios e, nos amplos anexos, agora reformados para não lembrarem mais a imagem do maldito, deu aso ao que o seu coração de mulher lhe ditava. Pelos vinte e cinco anos seguintes, em altruísmo digno de registo, recebeu os jovens burgueses da cidade, muitos vindos pelas mãos dos pais, para a iniciação carnal.
A cidade cresceu, é hoje urbe importante de província igualmente importante e para muitos e muitos, Victória não só é mitologia. É a pátria agradecida.
Continua viva, sem remorsos de nada e querida de todos. Mesmo dos que não a conhecem, porque sabem que o que fez foi por despeito a um grande amor, entregue e dedicado a um finório, e ainda que o biltre não o mereça, o que está feito está feito.

A PRECE DOS MAL AMADOS CAPÍTULO ONZE (FINAL)



QUANDO O RIO DESAGUA SOB A TERRA

Pequena dúvida, pequeno espinho
Tão de leve cravado na minha carne:
Qual o caminho? Qual o caminho?
Qual a estrada do meu Destino?

(António Cardoso)



Nazamba acabara de ter o filho, um belo rapaz achocolatado e, tanto ela quanto o marido, não cabiam em si de felicidade. O quarto da clínica tornara-se pequeno para a primeira visita, tantos os amigos e colegas, para além da avó toda babada que insistia em querer manter a criança nos seus braços.
- Que nome lhe vais dar, Bicesse? – perguntou uma colega de Nazamba, a brincar
- Olha, por causa dessa afirmação já não vais ser a madrinha... – respondeu, jocosa.
- Alto lá, os padrinhos somos nós!... – cortou Tadeu.
- E quem é que não sabe disso? – retrucou Nataniel. - É verdade, os padrinhos só podem mesmo ser vocês. – confirmou Nazamba.
- E que nome é que lhe vão dar? – perguntou Lucinda. - Já tínhamos combinado que se fosse um rapaz, chamar-se-ia Marcelo, o nome do meu falecido pai. – respondeu Nazamba.
- É um bonito nome e que merece ser recordado – sentenciou Balanta, entregando o bebé à mãe.
Por volta das seis da tarde tinham partido as visitas, restando a mãe e o marido.- Daqui a uma hora deixamo-te descansar. Volto logo pela manhã para te ver, antes de ir para o hospital. – disse Nataniel, afagando-lhe a cabeça.
- É muito bonito o nosso filho, tem parecenças tuas – respondeu Nazamba.
- É verdade, sai ao pai. – confirmou Balanta.
- Não precisas de ficar todo babado... coloca-o no berço, por favor.
Às sete, Nataniel e Balanta despediram-se de Nazamba e regressaram a casa, numa noite de muito calor.
- Coitado, vai sofrer todo este calor, para al´mm dos mosquitos . – disse Nataniel.
- Estou muito feliz, meu filho. Nunca sonhara poder ver este dia, já chorava porque nunca seria avó, quando me aparecem os dois filhos, se Marcelo conseguisse ver, estaria também muito feliz.
- A mãe quer ir comigo amanhã de manhã? – perguntou, para não deixar resvalar a conversa para o passado.
- Deixam entrar?... Não é hora de visita!...-
- De facto. É melhor ir à tarde, de manhã nós os médicos não gostamos de ver ninguém a não ser as enfermeiras e os técnicos, todo o resto só atrapalha.
- Está bem, vamos à tarde, mas de manhã passa por lá para saber se precisa de qualquer coisa.
- Farei isso, mãe.
Na clínica, mais repousada por se encontrar só, Nazamba olhou para o filho no berço e sentiu-se invadida de uma nostalgia inexplicável, um vazio de angústia tomou posse do seu coração e as lágrimas brotaram silenciosas. Desconcertada, não soube que chorava a culpa e o feto abortado há muitos anos, em Portugal. A enfermeira entrou e vendo-a chorar dirigiu-se à cama.
- Está a sentir-se mal?
- Não, não sei o que me deu.
- É natural, após o primeiro parto muitas mães choram sem saber porque, a maioria de alegria.
- Certamente que é isso - disse, recomposta, e com um sorriso.
- Tem uma criança muito bonita.
- Obrigada, acho que vou tentar dormir um pouco... como mais logo.
- Se precisar alguma coisa é só carregar no botão. Descanse bem.
- Coloque-me mais umas duas almofadas, quero ficar reclinada, já me dói o corpo de estar deitada.
A enfermeira agarrou em duas almofadas largas, colocou-as à cabeceira, por trás das costas de Nazamba, e ajudou-a a sentar-se, reclinando-a. Pôs-lhe mais uma almofada por trás da cabeça e sorriu satisfeita, esperando a sua aprovação.
- Muito obrigado, que alívio. – disse Nazamba, exalando um longo suspiro.
Anichou-se na macieza das almofadas. A conversa levara para longe a angústia passageira. Olhou novamente para o filho e sentiu-se realizada.
Serás o orgulho dos teus avós, velarei para que tal aconteça.
Este pensamento, levou-a em voo raso sobre o capim e os arbustos espinhosos a Ualali, à conversa mantida duas semanas antes do regresso a Luanda. Nehone mandara recado e comparecera não só com Tuluka, mas com mais dois anciãos.
- O teu avô Juba de Leão convocou o conselho para daqui a três dias para se decidir quem lhe vai suceder. – informou.
- Quase todos vão te apoiar, serás a nossa próxima rainha, a soba grande. – disse Tuluka, com um sorriso nos lábios.
- Mas eu... mas eu não sei nada!... - balbuciou
- Haverá tempo para te formarmos, agora é só a decisão, até porque estás grávida e ainda não te amarraram o chifre do antílope no pescoço para te proteger, e à criança... O mestre Tuluka se encarregará. Depois vais para Luanda ter o filho, seria bom que o tivesses aqui mas sei que nem tu nem o teu marido aceitariam. Quando voltares, trás a corda do umbigo contigo, pede na tua mãe para a secar e que te a amarre logo no pulso ou no pé. Quando regressares, haverá as cerimónias da apresentação do teu filho, e depois começará a tua preparação para se poder dar-te posse mais tarde.
- E posso saber como é que isso é feito? – perguntou Nazamba.
- Podes, não tem segredo. O mestre Tuluka vai-te explicar. – assentiu Nehone.
Mestre Tuluka, que se encontrava sentado à volta da mesa, assim como todos os outros, com excepção de Nataniel e Balanta que se mantinham junto à porta de entrada, levantou-se, pigarreou e colocou-se por trás de Nehone.
- Primeiro vão ter que se escolher os mais velhos que te irão assistir, serão o teu governo, e marcamos o empossamento. Na véspera, eu, Tuluka, o mestre curandeiro e adivinho, com uma cerimónia própria, devo levar a paz e a sorte ao nosso povo, à nossa aldeia. Ninguém pode morrer, ninguém deve desaparecer, ninguém deve estar doente.
- E se acontecer alguma coisa dessas? – perguntou Nazamba?
- Não vai acontecer, tudo estará bem. – respondeu Tuluka, seguro de si mesmo.
- Assim seja. – disse Nazamba.
- Depois, quando chegar a hora, o teu avô já saiu da aldeia e você tem que ser levada nos ombros, junto àquele que ficou a tomar conta, acompanhada do povo.
- Ser levada nos ombros?
- Sim, tu e o teu marido. Vais ter que aprender as danças que terás que dançar, assim como a matar um cabrito ou um porco, um boi será muito grande para ti.
Nazamba enrubesceu e o marido levou a mão à boca para esconder o riso. Tossiu para disfarçar e, se estava a entediar-se com o espectáculo, ganhou alento e interesse. Aguardou pela reacção da esposa.
- Nunca matei bicho nenhum, nem uma galinha! – respondeu, alarmada.
Foi a vez dos velhos rirem abertamente, nunca esperaram que ela tivesse morto cabrito ou porco algum, mas uma galinha, que mulher nunca matou uma galinha? Num olhar de censura, Nehone calou-os.
- Não interessa se mataste ou não, minha neta. Vais ter que aprender, não custa nada, vão segurar o cabrito e tu só tens que lhe cortar a garganta, o resto é com o mestre Tuluka. Tudo o mais, terás que aprender, as danças, a usar a tua cadeira, os teus símbolos.
- Se é assim, assim será. Aprenderei a matar um cabrito e tudo o mais. – disse com ênfase.
Nataniel admirou a força e tenacidade da mulher, mesmo não querendo, pela circunstância sentiu-se orgulhoso dela, tantas foram as vicissitudes que conhecera e atravessara, tantas as batalhas contra as correntezas da vida que teriam volteado a canoa de qualquer outro. A tudo fizera face e tudo derrotara. Pela primeira vez teve a certeza que nunca a conseguiria demover desta obstinação, estava obcecada, fixada pela ideia, considerou. Não era uma manifestação objectiva de rectificar uma acção maléfica, para tanto, para além do intuito, teria que possuir o sentido da oportunidade. Tudo isso lhe faltava, ou estava subjugado por ela. Jamais pensara, ou intuíra, na possibilidade de ver a esposa a lacerar a garganta de um caprino, sobretudo ligado a práticas purificadoras ou de religiosidade ancestral. O gesto do avô comum, Juba de Leão, marcara-a para a toda a vida e acreditou, não obstante o orgulho pela mulher, que só um tratamento psico-analítico a levaria eventualmente a visualizar e a entender o que estava escondido e latejando e, possivelmente, a encontrar a plenitude interna de que carecia.
- Muito bem. Depois, haverá a necessidade do novo fogo, e para tal, teremos que organizar uma caçada, que mestre Tuluka dirá quando. Nesse novo fogo que acenderás, será assada a carne dos animais mortos, com muita festa.
A criança chorou umas duas vezes, certamente um sonho ainda precoce. Nazamba olhou para o relógio e viu que faltava hora e meia para a nova mamada. Tranquilizou-se e adormeceu, pensando que tinha tempo até às eleições gerais.
O pleito tinha sido anunciado para Setembro de 1992, precedido do registo eleitoral. Pela primeira vez era concedida aos cidadãos o pleno exercício da cidadania, o direito ao voto, e embora a paz não estivesse por completo consolidada, vivia-se uma tranquilidade relativa com a vida mais ou menos desafogada, com circulação de pessoas e bens um pouco por toda a parte. O país fervilhava com o aparecimento das novas forças políticas, a maioria sem grande expressão ou possibilidade de representar uma fatia importante do eleitorado. Os seus discursos pendiam, em apadrinhamento, para uma ou para a outra das duas principais correntes condutoras do conflito familiar.
Foi nesta clima que Marcelo nasceu e a notícia foi logo mandada para Ualali. Balanta não sossegou enquanto uma carta não foi levada, por mão pessoal, para a capital da província, a fim de ser entregue ao comissário municipal que, por sua vez a faria chegar ao destino. Estava certa que a festa ia ser grande e as cerimónias propiciatórias conduzidas com grande gala, ainda que diluídas em certa nostalgia porque os ritos relativos à parturiente, mesmo contando com a presença de Balanta, não seriam conduzidos com todas as prescrições tradicionais, se é que com alguma.
Dois dias depois, Nazamba regressou a casa onde, para além dos futuros padrinhos, vários amigos do casal a aguardavam, devidamente notificados por Nataniel. Ao entrar, as garrafas de champanhe estouraram, as rolhas subindo em explosão contra o teto, feitas foguetes alvissareiros de boas novas. Com entusiasmo, Nataniel verteu o conteúdo da que mantinha em sua mão, da entrada da casa até ao portão da rua, aspergindo em ambas as direcções.
- Parem com isso, olhem que me assustam a criança!... – disse, alegria estampada no rosto. - Nataniel, estás a sujar-me a sala toda!...
- É o nosso primeiro filho, dêmos-lhe as boas vindas como deve ser. – respondeu, colocando a garrafa vazia em cima da mesa.
- Vou deitar a criança no berço e já volto. Lucinda, vens comigo? – disse Nazamba, voltando-se para a comadre.
Entraram no espaçoso quarto de dormir e, não muito longe do largo leito, um berço forrado a azul, sob o qual, em cascata, pendia um mosquiteiro de igual cor. Nazamba deitou a criança, tapou-a e sorriu com toda a sua felicidade. Depois, agarrou Lucinda pela mão e sentaram-se no outro lado onde estava a sala da suite com um sofá de dois lugares, um cadeirão e uma pequena mesa de centro, uma pequena estante para o televisor e aparelhagem, bem como um frigobar.
- Minha amiga, tenho um segredo a contar-te, que só agora posso fazê-lo. – disse, de maneira intrigante.
- Credo, Nazamba!... tão misteriosa!...
- Não é nada para mais, mas já que és praticamente minha comadre, a madrinha do meu filho, quero que saibas uma coisa que para mim é muito importante.
- Desembucha, menina, que me assustas deveras. – repetiu Lucinda.
- Sabes que tanto eu quanto Nataniel somos netos do soba grande Juba de Leão, um ancião que terá os seus oitenta e tais anos, noventas, nem sei ao certo...
- Sim, tenho conhecimento...
- Pelas regras que me foram explicadas, a sucessão é matrilinear e cabe-me suceder ao meu avô.
Lucinda pôs-se de pé, colocou a mão em descrédito sobre a boca, e não soube o que dizer ou fazer. Nazamba largou uma gargalhada e puxou-a para que se sentasse novamente a seu lado.
- Estás a falar a sério?... – perguntou Lucinda.
- Claro que estou, não há nada de interessante nesta situação, acredita.
- Meu Deus, e o que vão fazer?
- O que vamos fazer, como assim? – perguntou Nazamba.
- Tu e o Nataniel.
- O Nataniel, nada!... Eu, aceitei e dentro de uns seis ou sete meses devo regressar para ser iniciada e instruída nos meus deveres.
- Iniciada? – desatou a ir Lucinda. – Desculpa-me o riso, mas não posso fazer outra coisa. Estás mesmo bem da cabeça?
- Estou, amiga. Nunca estive tão bem, já passei por tudo isso lá em Ualali, primeiro com a minha mãe, depois com o meu marido, e até certo ponto, com o meu avô.
Não sei se devo rir ou chorar, meu Deus!
- Vais abandonar o teu trabalho, a cidade, o teu marido? – perguntou, para conciliar.
- Claro que não. Não sei muito bem ainda como gerir a situação, mas estou optimista.
- Optimista? Nazamba, colocaste devidamente os pesos na balança? O que será exigido de ti e que reflexos tudo isto terá sobre a vossa vida?
- Já avaliei tudo isso e mesmo assim, sinto uma chamada, alguém ou alguma coisa me empurra para lá...
Agora virou mística!...
- Chamada?...
- Sim, chamada, acredita. E não num sentido messiânico. Às vezes pergunto-me se não é o meu pai que, desejando vingança, me empurra de lá onde está...
Lucinda olhou para ela, preocupada. Nada indicara, até ao presente, no relacionamento com ela, qualquer indício de esquizofrenia ou insânia.
O que se terá passado verdadeiramente em Ualali?...
- Mas para que é o teu pai chamado aqui, ele que já morreu há tanto tempo e está enterrado em Portugal?
- Não sei, mas tenho que regressar à aldeia do meu avô e por isso tive que te contar tudo isto.
- Diz-me Nazamba, o que tenho a ver com esta situação?
- És a madrinha do Marcelo e enquanto eu lá estiver, já que a minha mãe talvez tenha que ir comigo, queria que ele ficasse com vocês.
- Daqui até lá ainda correrá muita água por debaixo da ponte. É muito cedo para falar disso, não achas?
- De facto, mas tinha que te contar a fim de que soubesses desde já e não fosses apanhada de surpresa.
- E quem é que foi o dono da brilhante ideia? – perguntou, com ironia, Lucinda.
- Não brinques com coisas sérias, eu também não acreditei até que vi com os meus próprios olhos, assim como Nataniel.
Viu, mas viu o quê, Santo Deus?
- E o que viste, Nazamba? – perguntou, com a mesma preocupação, achando que a amiga estava certamente doente.
- Um dia fui chamada para uma sessão com o mestre curandeiro...
- Ó meu Deus, andaste metida com feiticeiros?... – quase gritou Lucinda.
- Olha que ainda acordas a criança. Feiticeiros? Claro que não! O curandeiro ou adivinho, tanto é uma coisa como a outra, ele acumula, por assim dizer, não anda metido com feitiços. Ele adivinha as coisas e cura as pessoas.
Mas esta mulher enlouqueceu! Quem diria, sai daqui criança, passa a vida em Portugal, forma-se e agora volta ao país para se meter em feitiçarias e adivinhos e desejar ser soba. Que loucura!...
- E foi ele que adivinhou que tu terias que suceder ao teu avô? – perguntou, perplexa, Lucinda.
- Foi, mas não é assim como tu pensas. Por três vezes o cesto de adivinhação falou a mesma coisa.
- O cesto de adivinhação?!... Falou?!... – balbuciou Lucinda, levantando-se para sair, amedrontada.
- Não Lucinda, não saias. Entendo que tudo te pode parecer muito estranho, até porque não fui diplomática, apresentei-te o problema assim de chofre, ouve o resto. Depois poderás falar com o Nataniel ou com a minha mãe.
Estão todos malucos, está tudo doido varrido e agora querem meter-me nessas coisas. Vade rectro satanás!...
Lucinda sentou-se, um pouco mais afastada da amiga, a evitar contacto físico, não fosse a loucura, já que africanamente tradicional, ser de natureza contagiosa.
- Conta lá o resto então, está a ficar tarde e lá em baixo vão perguntar porque estamos a demorar tanto? – disse, voz meio apagada.
- Não estou louca, Lucinda. O adivinho, o mestre Tuluka, tem um cesto, um balaio com vários amuletos lá dentro, entre eles duas figuras de elefante, uma fêmea e outra macho e vários dentes de leão. Como sabes, meu é avô é conhecido por Juba de Leão, desde que ele matou sozinho e por suas mãos um leão, segundo reza a história local, e o meu nome quer dizer elefante mulher ao que parece.
Ai meu Deus, o Nataniel nunca a deveria ter levado ao mato. Meteu-se com esses velhos bruxos, e agora vem de cérebro lavado, enfeitiçada. Vou ter que falar ao Tadeu e levarmo-la à Senhora da Muxima, para começar, espero que não seja tarde demais.
- Não, não sabia, mas continua.
- Pois ele lançou os amuletos sobre uma esteira, por três vezes, e três vezes seguidas o elefante fêmea apareceu sobre o dente de leão...
- Coincidência, Nazamba! – disse, com ênfase, Lucinda.
- Três vezes seguidas?!...
Esteve tentada a contar à amiga e comadre futura, que desmaiara e entrara em transe, mas retraiu-se, ocorreu-lhe ser aconselhável ir fornecendo os detalhes em doses homeopáticas, não fosse Lucinda considerá-la enlouquecida e sair a correr aos gritos, o que não estava assim tão longe de poder vir a acontecer.
- Já que insistes nessa estória, sou-te franca, não sei o que te dizer, mas que estou preocupada, estou.
- Muito mais preocupada fiquei eu, e devias ver a minha mãe, quase bateu no tio dela e no curandeiro, só mais tarde é que se rendeu aos factos.
- Factos? – perguntou, estupefacta, Lucinda.
- Vejo que ainda duvidas de mim. Olha, o Nataniel levou semanas a chamar ao acontecido trapaça, até que se rendeu, pergunta-lhe.
- Então, assim, queres e vais substituir o teu avô!... – disse Lucinda, para ver se se livrava daquele enredo o mais rápido possível.
- Vou e quanto ao resto logo se verá.
- Mas parece-me que desejas isso assim tão ardentemente. Porquê?
- Desejo. Esperei toda a minha vida Lucinda, toda a minha vida vivi com uma cobra dentro de mim, esperando para saltar para fora e procurar a ninhada.
Tenho que sair daqui, tenho que sair daqui, já não aguento mais, está a delirar, a falar coisas sem nexo...
- Cobra, como assim?
- Nunca te contei como fui parar a Portugal, com o meu pai, pois não?
- Não, Nazamba, mas isso não pode ficar para amanhã?
- Não, amiga, tem que ser já, senão podes pensar que estou louca, o que não estou. Muita coisa aconteceu na minha vida que me poderia ter deixado louca, mas graças a Deus sempre aguentei e dei a volta por cima, como o irei fazer agora com esta situação.
- Nunca pensei que estivesses louca, mas esta conversa está a deixar-me bastante preocupada e nervosa, talvez porque efectivamente faltem muitos pedaços que unam tudo o que me contaste até agora.
- Pois ouve. Quando chegou a independência, antes mesmo, o meu avô, o grande soba Juba de Leão, mandou anunciar por todo o lado que os mulatos tinham que ir com os pais por serem filhos da cobra, ali não ficaria nenhum e que, se as mães desejassem, que fossem também com o branco.
- Meu Deus, ele fez isso?
- Achas que estou a mentir-te? Fez. E como éramos os únicos mulatos na povoação, o meu pai agarrou em mim e no meu irmão e abalou para Luanda, só que postos lá, o meu irmão Tomás fugiu, ainda criança, e juntou-se à guerrilha, onde está até hoje. Foram muitos anos para eu entender o medo do meu pai, para entender o seu amor profundo pelo país que viu os filhos nascer e, sobretudo, Lucinda, para aceitar as razões da sua fraqueza para fazer face à vida e que o levaram a um suicídio lento através do alcoolismo. Essa é a cobra que vive dentro de mim e que tem que saltar cá para fora, entendes agora? Todo este drama foi causado por um velho insano que é, infelizmente, o meu avô. O meu irmão, na sua raiva, por três vezes atacou a aldeia, destruiu-a em duas alturas e quase que matou o avô. Só agora, ao encontrar-me, conseguiu dominar a sua cólera e fazer as pazes com o velho– disse, a soluçar.
- Ai meu Deus, desculpa-me Nazamba. Desculpa-me... – implorou, abraçando-a.
Assim ficaram, por um longo momento, ambas soluçando nos braços uma da outra. Nazamba afastou suavemente Lucinda, levantou-se, foi a uma caixa de lenços de papel, retirou uns tantos e partilhou-os com a amiga. Por fim recompostas, as duas olharam-se e sorriram aliviadas, fortalecidas pela nova cumplicidade.
- Nunca te esqueças que o nosso pequeno Marcelo foi testemunha desta conversa. – disse Nazamba, dirigindo-se ao quarto de banho da suíte para se recompor, levando Lucinda pela mão.
Pobre do Marcelo filho, a ter o subconsciente embebido na tragédia argamassada pelo bisavô Juba de Leão, poder-se-ia pressupor, dias após o seu nascimento. Caso mestre Tuluka tivesse observado o frágil corpo da criança a ser sacudido por uma violenta tremura que a revirou, e que nenhuma delas notou, escancaria a boca de espanto e temor. Rapidamente recomendaria a cerimónia adequada de apaziguamento e a imolação de um boi.
- Há tanto tempo que nos conhecemos e só agora é que te abres... – reprovou, Lucinda.
- Foi o facto de ter encontrado a minha mãe e o meu irmão. Não me importei de pôr a ferida a sangrar, senti-me encorajada. – disse Nazamba, enquanto regressavam ao quarto e verificava o sono da criança.
Mas eu tinha-o deitado de barriga!... Ou não?...
- Porque não ficas com o teu filho, digo que estás fatigada. Posso chamar a Isabelita para ficar aqui, ela não se importará, estou certa.
- Nada disso, temos que beber uma taça de champanhe, o Marcelo acabou de mamar e adormecer, está tranquilo. Vamo-nos sentar só mais um pouquinho.
- Mesmo assim não me sinto nada tranquila, és uma mulher da cidade, às vezes até mais portuguesa do que angolana na tua estrutura de pensamento, o que não é de estranhar, uma vez que foi lá que cresceste. Reflectiste mesmo bem, Nazamba? – perguntou Lucinda, sentando-se ao lado da amiga.
- Sim, pensei e penso em tudo isso, mas quando te digo que acho que tenho uma missão, é no sentido de denunciar o que acontece nesta nossa sociedade em que se proclama não haver racismo. É uma farsa, há sim racismo, racismo branco, racismo negro, racismo económico e por aí fora.
- Mas serás tu a salvadora do mundo? Olha o que aconteceu àquele que tentou sê-lo há dois mil anos.
- Não pretendo salvar mundo nenhum, pretendo participar na construção de uma nação mais honesta para os meus filhos Lucinda. Isso de raças, é biológica e cientificamente inexistente, a raça a existir só poderá ser a humana.
- Concordo, mas quem te entenderá lá no mato? – perguntou Lucinda.
- E quem tem que me entender no mato? O racismo foi das cidades para o mato, é um problema urbano e não tem raiz cultural.
- Mas o gesto do teu avô, como o qualificas então?
- Foi um gesto emotivo para equilibrar emoções sofridas ao longo de sua vida, mesmo que tenha tido conotações rácicas na sua manifestação. E para muito além disso, o meu gesto não se dirige aos do mato, daí ser-me-á muito mais fácil levar avante o meu objectivo, e acredita-me que o farei. – respondeu Nazamba, com decisão.
- Como assim?
- Como assim o quê?
- Será que terás todos os apoios necessários, não te tornarás transparente e até vejam o teu jogo?
Sentiu-se desalentada com a amiga. Não entendia efectivamente, ou fingia, não se querendo comprometer? Teria que se envolver, desejasse ou não, como madrinha tinha essa obrigação e dever, e seria melhor que entendesse tão cedo quanto possível que não havia ardil algum.
- Nunca encarei a minha decisão como um jogo, ela emana de um profundo sentimento de justiça, não se rectifica um mal com um outro mal.
- És uma idealista, é o que tu és. Mas também uma egoísta porque não levas em conta o teu marido, e agora o teu filho.
- Claro que levo, achas que desejo mais alguma vez na minha vida ouvir dizerem-me que tenho de me ir embora, nem saberia para aonde, por ser mulata? Ou que possam vir a dizer isso aos meus filhos? Nunca, Lucinda.
- Acho que estás a dramatizar um pouco, já levamos muitos anos de independência e a maioria dos jovens nem sabe concretamente o que foi o colonialismo. O teu avô sofreu-o durante pelo menos umas oito ou nove décadas, tu própria acabaste de o justificar...
- E não poderão haver, de futuro, outras razões que não sejam o colonialismo? Só dependerá da insanidade de quem tiver o poder para decretar, como o teve o meu avô. O colono alguma vez roubou como se rouba hoje?
- Tudo isso é verdade, mas o que te quero fazer sentir é que não vejo, na prática, como irás proceder. E sabes o que mais, antevejo consequências que poderão ser bastante nefastas. – disse Lucinda, com um tom de tristeza na voz.
- Se não me der bem, sempre posso aposentar-me e deixar que seja nomeado um sucessor, tenho todas as desculpas, estou em Luanda, o meu marido também está na capital e sei lá mais o quê!...
- Não esqueças que ser soba é quase como ser padre, ser psicólogo, saber das coisas dos vivos e dos mortos, conhecer os hábitos e costumes...
- E achas que para saber tudo isso tenho que estar no mato? Os antropólogos não vivem nas cidades, nas universidades, e às vezes, se não sempre, não conhecem mais profundamente as questões, exactamente porque as dismitificaram, as esvaziaram da lenda? Terei toda uma gama de ajudantes. – retorquiu Nazamba, indo até ao berço novamente.
Seria capaz de jurar que o tinha deitado de barriga...
De pé, permaneceu meditativa junto ao berço, não gostava de não se lembrar do que tinha feito. Suspirou fundo e voltou-se para Lucinda, indo-se juntar a ela.
- Ajudantes? Quem?
- Segundo o meu tio-avô, que é uma espécie de primeiro ministro, e o mestre Tuluka, que é o adivinho e curandeiro, o concelho dos anciãos elege os meus coadjuvantes. Ele, o meu tio-avô, é o meu conselheiro principal e meu substituto quando houver impedimentos. Depois tenho um outro que é o meu porta voz por assim dizer, eu não falarei muito, ele é que levará as mensagens, assim como um que será o meu damo-de- corte. – disse Nazamba a rir.
- Damo-de-corte? – perguntou Lucinda, surpresa.
- Espécie de dama-de-corte. É aquele que me segue, é a minha sombra. Será ele, também, o que me colocará, no dia da minha posse, os resguardos sobre os quais será colocada a cadeira real. – continuou a explicar Nazamba, enquanto Lucinda mal escondia o riso.
- Desculpa amiga, não estou a rir do que me estás a contar, não consigo é visualizar-te nesse filme.
- É uma mera questão de hábito, ainda que se diga que o mesmo não faz o monge, embora eu acredite que sempre acaba por fazer. Terei também um provador da comida, homem que fará o cerimonial e protocolo. Ah!, e ainda um outro que carregará a cadeira onde me devo sentar. São mais, mas agora não me lembro, estes foram os que consegui fixar quando me explicaram.
- E o facto de seres mulher?
- Por acaso serei a primeira? Não houve e não há rainhas em Angola?
- Tens razão, embora nenhuma delas tenha vindo da cidade e, perdoa-ma a ironia, fosse pré-lavada.
Ambas desataram à gargalhada e levantaram-se.
- Pré-lavada? Já tinha sido chamada muitas coisas, mas pré-lavada é a primeira vez!...
- Lá em baixo já devem estar preocupados com a nossa demora, não será melhor irmos beber o champanhe? – perguntou Lucinda para acabar com a diálogo, para ela difícil de apreender.
- Sim, vamos descer. Sei que contarás ao Tadeu a nossa conversa, mas tenta mantê-la só para vocês. – pediu Nazamba.
- Assim o farei, espero que ele não pense levar-te para o hospício.
- Gozas comigo, não me levas a sério, mas o tempo chegará...
Lucinda achou por bem não responder à amiga e encetou o caminho de volta para a sala de visitas, onde os outros se encontravam em animada cavaqueira. Nazamba ajeitou o mosquiteiro, regulou o ar condicionado mais para desumidificar o espaço e fechou a porta suavemente ao sair, ainda com a dúvida sobre o modo em que deitara o filho. No topo da escadaria, Lucinda aguardava-a.
- Pensei que nunca mais desceriam. – disse Nataniel ao vê-las.
- Esperámos que o Marcelo adormecesse... - mentiu Nazamba.
- Pois venham saborear o vosso néctar. – disse Nataniel, enquanto Tadeu, que retirara a garrafa do balde com gelo, lhes estendia dois copos longos, que prontamente serviu.
- Cuidado com as bolhas, são elas que sobem à cabeça. – disse um colega da Nataniel.
- Alguém tem fome? Vou preparar uns petiscos, uns canapés. – disse Nazamba, carregando num botão.
Pronto apareceu a empregada, fardada da azul e branco, que se dirigiu a Nazamba e recebeu as devidas instruções. Os convivas, uns sentados, outros de pé, iam-se servindo das bebidas. A conversa, a princípio, dada a época que se vivia, girava à volta da política, da paz ser ou não ser real e efectiva, do aparecimento de um vasto leque de partidos políticos e quase todos com bases no norte do país, muitos deles dirigidos por gente que só falava lingala e francês, duas línguas extra-Angola, dos vatícinios das eleições, caso ocorressem já que muitos duvidavam das propaladas intenções de paz do chefe rebelde e de como é que se iria proceder ao registo eleitoral nas condições em que o país se encontrava. Depois, já fartos dos prognósticos políticos, voltaram-se para a tese do princípio do universo, sem saberem como e porquê. Alguém teria feito referência ao início da vida, certamente a ver com a vinda ao mundo, de Marcelo.
Nazamba ergue-se do sofá, bateu com o anel no copo de champanhe, o que levou as pessoas a voltarem-se para ela e a calarem-se. Nataniel, pressentindo discurso, veio colocar-se a seu lado.
- Meus amigos, não vou discursar, estejam tranquilos. Peço unicamente que ergam as vossa taças, e quem as não tem faça o favor de as ir buscar e encher, para saudarmos o nascimento do Marcelo e desejarmo-lhe todas as felicidades do mundo. Ele nasce num momento muito especial para mim, por vários motivos, um deles sendo esta perspectiva de reencontro da família angolana. Ao Marcelo e ao seu futuro brilhante e próspero. – brindou.
- Ao Marcelo! – responderam todos em uníssono, e erguendo igualmente as taças e copos.
- E o pai, não bota palavra? – ouviu-se uma voz.
- O pai que fale, fala!... fala!... – responderam outras tantas, em cadência.
Marcelo olhou-os, sentiu-se inexplicavelmente acanhado e pigarreou.
- Depois do chefe, ninguém mais deve falar... - disse, fazendo humor.
Lucinda virou rapidamente os olhos para Nazamba, observando a reacção às palavras proferidas por poderem estar imbuídas de ironia, mas pela serenidade do seu rosto, notou que as entendera como gracejo, não teria havido qualquer insinuação que reportasse à visita a Ualali.
- Fala!... fala!... fala!...
- Faço das palavras da Nazamba as minhas e desejo uma longa vida ao nosso filho, o Marcelo. Que as fadas da sorte e da prosperidade o acompanhem pela vida fora. - disse, erguendo a taça, meio acanhado
Por fim sentaram-se, o cerimonial desenvolvera-se conforme as exigências da urbanidade. A criança poder-se-ia considerar bafejada pelos fados universais que, se vierem a revelar a confiabilidade neles augurada, teria um futuro brilhante e próspero regado a Laurent Périer desde sempre, conquanto não haja uma qualquer empata fada, escondida atrás da enorme estante bar da sala.
As mulheres encaminharam-se, com naturalidade, para um canto e os homens para o outro, que isso de rituais modernos de emancipação e de igualdade do género diluem-se na informalidade, onde os ajustes se desajustam por conformada ordem, segundo os ditames da selecção das espécies expressos desde a caverna primordial, ou do paradisíaco Éden, conforme a crença de cada.
Os homens logo reverteram para a tertúlia antes iniciada, pretendendo justificar os diplomas e conhecimento geral adquiridos nas universidades socialistas por onde haviam passado.
- Meu caro Kuvona, indagavas ironicamente há pouco se o início do universo é um pouco como o ovo e a galinha, qual o primeiro? - perguntou Matondo, um médico colega de Nataniel.
- Eu?... Absurdo! Sou homem de ciência, nunca observaria a questão sob esse ângulo. – retorquiu.
- E como observas então a questão? – perguntou Nataniel.
- Como diria Sherlock Holmes, elementar my dear Watson. Elementar! – respondeu Kuvona.
- Mas quão elementar? – perguntou Sebastião, colega de Nazamba, engenheiro químico.
- Se fores à tradição judaico-cristã, mesmo à muçulmana, em qualquer desses livros, o Tora, a Bíblia ou o Alcorão, encontrarás a definição de universo como uma coisa finita, com um começo muito próximo, há mais ou menos cinco ou seis mil anos, mas o engraçado é que essas religiões reclamam que o Criador terá precedido a Criação, ou seja, que sempre existiu e existirá. Onde ficamos então? – afirmou Matondo.
- Queres dizer que antes da Criação já existia o tempo, e Ela apareceu relativamente ontem? Nesse caso, a questão será a de saber onde se encontrava o Criador antes da referida criação, não será? – insistiu Sebastião.
- Não entendo. – disse Lobitolas, o poeta deputado.
- Não entendes porque a tua percepção do mundo é a poesia, aliás que exerces com bastante denodo na Assembleia do Povo, já que é a única coisa que de lá se vê sair. – gracejou o amigo, espicaçando-o.
- O Universo é finito, está em expansão e um dia entrará em retracção, aliás confirmado por Hubble quando observou que as galáxias movimentam-se, afastam-se umas das outras cada vez mais. – disse Kuvona
- É evidente que tem que haver um início e um fim, se nascemos e morremos, a lei é a mesma para tudo e para todo o Universo. – afirmou, entusiasmado com o rumo da conversa, Nataniel.
- Concordo plenamente, Deus criou o mundo e há-de destruí-lo, aliás leiam o Apocalipse. – cortou Matondo.
- Alfa e Ómega, certo, mas não pela teologia, pela física. Sabe-se hoje que o Universo está em expansão, a antítese sendo que anteriormente estava contraído, talvez há uns vinte ou trinta mil milhões de anos. – disse Kuvona
- Portanto negas a existência de Deus! Logo se vê que é um absurdo! Não sou católico praticante, nunca o fui, mas, francamente!, as flores, as abelhas, os colibris, a própria poesia nunca poderão ser criações ou invenções da física e da matemática. – disse o poeta deputado, largando uma estrondosa gargalhada e enchendo novamente o seu copo de uisqui.
- A tua poesia, a música, a fala, não são reguladas pela matemática, como todo o resto, aliás? – atirou uma acha para a fogueira, Nataniel.
- Não se vê que a teoria cristã da criação do mundo, coloca-nos a possibilidade de Deus o ter criado a qualquer altura no tempo? Ora esse acontecimento só marca uma linha divisória a que a teologia chama de Criação, e os físicos de Big Bang, ou seja, o início da descompressão, a entrada em expansão de um universo extremamente ínfimo e imensamente denso. A própria igreja moderna não está contra a teoria do Big Bang, desde que esse momento seja considerado como um gesto concreto de Deus, o momento da Criação.
- Teorias!... Abstracções!... Nunca se chegará a uma conclusão... Quem fala hoje de Charles Darwin?... Acreditem, só a fé nos salva, porque certamente para criar tudo isto só um Ser Superior...e se me permitirem a heresia, um Poeta. – disse Lobitolas, feliz pela sua intervenção.
E igualmente feliz por se continuar sem resposta à tal formulação existencialista, se primeiro chegara o ovo ou a galinha, problema de simples resolução crendo-se numa Força Superior criadora do ovo e da galinha, independentemente da primazia. A pacovice humana é que era a dona dessas arrumações, cósmicas ou não. A fé, que escondera durante muitos anos, bastava-lhe para as leis na Assembleia do Povo, para os versos e, falando-se de ovos e aves, para as omeletas e os churrascos bastante ajindugados, de preferência regados generosamente a vinho do Alentejo.
- Para ser sincero, sou levado a concordar contigo Lobitolas. Aprendi durante a guerra que a nossa vida passa, em ambos os sentidos, por uma porta simbólica que, dependendo do lado em que nos encontrarmos, é chamada de entrada ou saída, todavia sem respostas quanto aos pormenores que a precedem ou procedem. Restará pois a fé como fiel de balança, embora me considere agnóstico, se é que verdadeiramente existe religiosidade dentro de mim. – concedeu Nataniel.
- Quem vai ao Musulo este fim de semana? – perguntou, farto da conversa, Lobitolas.
- Musulo? Já lá não ponho os pés há anos! Cada vez mais invadido pela pequena burguesia urbana, segundo ouvi contar. – respondeu Kuvona.
- Andam a construir sem regras, e um dia a kianda vingar-se-á. – afirmou Nataniel.
- Kianda?... vingar-se-á?... Anche tu Brutus? – riu, Sebastião.
- Fingem que não acreditam nessa coisas, mas frequentam os adivinhos, estamos fartos de saber... – brincou, Matondo.
- Eu? Frequentar adivinhos? – perguntou Sebastião, levantando-se pare encher o copo esvaziado.
- E porque não? Se os outros têm as suas mitologias, porque não nós? Que mal há crer em kiandas, em adivinhação, quando se vê isso até nas televisões dos países que nos condenam?
- Mas é que os adivinhos dos ocidentais são uma coisa, os nossos outra. Os deles são santos, anjos, cartomantes, terapeutas e por aí fora, os nossos são pura e simplesmente feiticeiros, não é? – perguntou Kuvona.
- Estás certíssimo, meu caro. Se adorares uma árvore que para ti é sagrada, és pagão, mas se adorares uma imagem feita dessa mesma árvore, que represente, por exemplo, um santo qualquer, já não és um idólatra, mas sim um bom católico. – afirmou Nataniel.
- Vocês são é todos uns pseudo ateus. Fingem não acreditar em nada, mas tremem ao mínimo estrondo do trovão. – disse Lobitolas.
Tadeu, que atravessara toda esta conversa silencioso, ora observando um ora outro, acabou o uisqui que bebia e, com um ligeiro limpar de garganta atraiu a atenção da esposa. Piscou-lhe o olho, senha há muito estabelecida para quando qualquer um deles desejasse fazer saber que a hora da partida estava à mão. A mulher sorriu-lhe e levantou-se, encaminhando-se para onde estavam os homens.
- Tadeu, acho que devemos libertar os nossos compadres, afinal é o primeiro dia de Nazamba em casa...
- Concordo, e aliás já se está a fazer tarde para a Isabel, tem as aulas...
- Por nossa causa não se preocupem, quando a Nazamba tiver que subir, ela fa-lo-á. Estejam à vontade. – retorquiu Nataniel, com cortesia.
- Nada disso, também já vou retirar-me. – disse Matando, erguendo-se, logo seguido por Kuvona e Sebastião, notando que as respectivas esposas já se encontravam de pé.
Lobitolas, pachorrento e ainda sentado, olhou com certa tristeza para o copo que acabara de encher com o sabor da velha Escócia, e suspirou fundo.
Vão-me obrigar a embuchar este quinze anos de um só trago!...
- A nossa filha? – indagou Tadeu.
- Está lá em cima com o Marcelo, vou chamá-la. – respondeu Lucinda.
- Não, deixa que eu faço, aproveito para ver a criança - disse Nataniel.
Sentaram-se novamente. Lobitolas sorriu e levou o copo aos lábios, sorvendo suavemente o sabor escocês velho.
Quem disse que Deus não existe?
Os novéis acontecimentos nacionais foram-se desenrolando, Luanda e o resto do país conheceram a convocação de eleições gerais, a abertura do registo eleitoral e, finalmente as próprias eleições, num clima de euforia, de expectativa e igualmente de receios.
Marcelo celebrara o sétimo mês, quando Nazamba trouxe novamente a lume a ida a Ualali, assunto reaberto com a chegada a Luanda de um enviado, portador da mensagem dos anciãos, solicitando-a. Nataniel, que começara a dar o caso por encerrado porque a esposa nunca mais mencionara a descabida intenção, decidiu que se imporia com o que fosse necessário. Começou por colocar o enviado fora de casa, num acesso de fúria que surpreendeu a mulher que nunca o vira desse jeito, violento nunca fora.
- Não vamos recomeçar toda esta história. Temos um filho de sete meses e não te vais aventurar para Ualali às portas das eleições, e com uma situação que poderá vir a dar para o mau.
Por uns instantes olhou-o sem saber como reagir, todavia, recompondo-se, chamou o enviado de volta e mandou-o esperar na cozinha. Gritou pela mãe, que se encontrava no primeiro andar com o neto, e quando Balanta desceu, recebeu-lhe o filho e informou-a que havia um enviado de Ualali na cozinha, pedindo que lhe desse de comer e beber. O rosto de Balanta alargou-se num vasto sorriso e apressou os passo
- O que poderá acontecer depois das eleições? Um dos partidos haverá de ganhá-las, só lhe restará consolidar a paz. – Respondeu, por fim, ao marido.
- Tens consciência do que estás a afirmar?... – retorquiu, surpreso e zangado.
- É claro que tenho! Vou logo após ter votado e volto de imediato, uns trinta dias
depois. – respondeu, com firmeza.
Mas isto será inconsciência, ou quê?
- E a criança? A criança fica sozinha? – Insistiu Nataniel, incrédulo.
- Evidentemente não fica, estão aí a avó e tu próprio, para alem da ama.
- Eu?!...
- Sim, e porque não, por acaso não és o pai? A criança já não mama desde os três meses. Serão só trinta dias, quem sabe até menos...
- Não posso permitir isso, não vais e pronto! – retorquiu Nataniel.
Nazamba riu, o que mais enfureceu o marido. Sorridente, chegou-se a ele, abraçou-o e falou-lhe suavemente ao ouvido.
- Amor, não te preocupes, não faças uma tempestade num copo de água, ninguém vai recomeçar esta estúpida guerra, nem esse maluco paranóico.
- Maluco? Esse homem é um assassino, um déspota que quer ser presidente a todo o custo e não te admires que recomece a guerra se não ganhar as eleições. Não vais, não vou permitir. – retorquiu Nataniel, afastando-a de modo a que pudesse olhá-la nos olhos.
- Pronto, meu querido, não te quero ver assim. Se achas que não devo ir, não vou, mas tenho que escrever uma carta para ele levar, explicando que irei mais tarde.
- Escreve e explica o que quiseres, mas daqui não sais. – disse Nataniel, já mais reconfortado.
- Não se fala mais nisso. Vou dizer ao guarda para arranjar um canto para o homem lá nos anexos e amanhã falo com ele. – disse Nazamba.
- Não imaginas o quanto me deixas aliviado.
- Sei, mas continuo a dizer que estás a fazer uma tempestade num copo de água, mas pronto, o assunto está encerrado.
Nataniel olhou para a esposa por um longo tempo. Estranhava a mudança tão abrupta, o tom tão conciliatório, e a prontidão com que rejeitara uma ideia que ele considerara de fixação. Mas deu-se por satisfeito, finalmente a esposa retirara, ao menos pelo momento, a ideia de ir a Ualali, e caso a guerra recomeçasse o problema estaria resolvido, mantinha-se em Luanda. Efectivamente o país ainda cheirava a morte, o medo fétido pairava sobre os desejos e expectativas de todos, cada vez mais goradas à medida dos pronunciamentos musculados dos deuses rebeldes da guerra. A paz esfumava-se pelas as manhãs mornas anunciadoras de faraónica borrasca, esvaía-se atrofiada no martelar do ferreiro ao aguçar o engenho do ferro mortífero.
Tempestade num copo de água? Será que esta minha esposa não vê o que está à vista?
No dia seguinte Nazamba chamou o homem e, na frente da mãe, perguntou-lhe pelo nome, como chegara e quantos dias levara.
- Samukombo, o meu nome é Samukombo, senhora, e vim com o senhor padre que me deixou aqui. Ele veio ver a família. Fica um mês...
- E nas estradas, encontraram muita confusão? – perguntou Balanta.
- Não senhora, só os controlos da guerrilha e da polícia, mas de resto toda a gente está a andar, muitos carros com carga estão a ir e vir.
- Então pode-se ir e vir bem? – questionou Nazamba.
- Sim pode-se, por isso os mais velhos a mandaram chamar.
- E vais voltar com o senhor padre? – insistiu, Nazamba.
- Assim ficou combinado. Vem apanhar-me no dia 2, para regressarmos. – disse o homem.
- Muito bem, mas antes de ires passa cá porque tenho uma carta para levares para o meu avô Nehone, entendido?
- Sim, senhora, mas vou ficar aonde? – perguntou ele, espantado.
- Está bem, ficas aqui, mas não quero muitas conversas com o meu marido, ouviste? Quando ele chegar a casa, tu sais e vais passear.
Sair para ir passear, quando o marido chegar?
Samukombo olhou para ela estranhando o pedido, mas sabendo que as gentes da cidade eram diferentes, deu azo às palavras de Nazamba.
- Sim, senhora. Posso passear aqui mesmo no bairro.
- Mas não vás muito longe, ainda te perdes. – recomendou Balanta. - Mas se o senhor padre não for nesse dia? – perguntou Nazamba.
- Deixou um papel com o número para telefonar. – disse Samukombo, esquecido.
- Tens aí contigo?
- Não, senhora, está lá no saco.
- Vais buscar, vai já. – ordenou Balanta.
Uma vez com o papel na mão, Nazamba guardou-o com cuidado e tentou relembrar-se qual dos dois padres que encontrara na missão, seria.
Daqui a uns dias telefono-lhe para saber como estão as coisas por lá, nunca se sabe o que este aqui me conta, os velhos é que o enviaram.
Uma semana antes das eleições ligou para o número e respondeu-lhe uma voz feminina.
- Centro Católico de Acolhimento, bom dia!...
- Bom dia, poderia por favor falar com o senhor padre que veio de Ualali?
- Está a falar do padre Celestino?
Celestino, havia lá algum padre Celestino? Oh meu Deus!...
- Acho que sim, há aí mais padres que chegaram há uns quinze dias de Ualali?
- Não, só ele, vou chamá-lo, só um momento por favor, quem devo anunciar?
- Diga-lhe que é a neta do soba grande.
- Neta do soba grande?!...
- Sim, minha senhora. O que há de estranho nisso?
- Nada, queira-me desculpar... vou chamá-lo!
Desatou a rir, porque estranharia a recepcionista a existência de um soba grande? Certamente urbana, nunca ouvira tal termo, ou surpreendera-se que a neta de um soba falasse o português citadino.
Vai-te habituando, porque ainda ouvirás falar da soba grande!
Ouviu o telefone a ser levantado e uma voz a agradecer à recepcionista.
- Está sim, Dona Nazamba?
- Sim, senhor padre Celestino. Bom dia, como está?
- Muito bem, graças a Deus. O seu avô pediu-me que vos saudasse e que me informasse sobre quando é que se pode deslocar a Ualali?
- Era sobre isso que lhe queria falar. Quando é que posso ir visitá-lo aí no Centro?
- Não será grande incómodo?
- Certamente que não, até me é mais fácil, e estaremos mais à vontade. Quando posso ir aí ter consigo?
- Quando a senhora quiser, hoje são 21 ou 22, porque não depois de amanhã às 10 horas?
- Muito bem, assim farei. Mas por favor diga-me uma coisa, o senhor padre parte quando para Ualali?
- Espero que seja por volta do dia 4 ou 5 de Outubro, logo a seguir às eleições. Confirmo-lhe quando nos virmos. E o senhor doutor Nataniel, como está? – perguntou o padre.
- Está óptimo, trabalha muito, mas a vida de médico é assim. E o meu avô está bem?
- Está, mas muito acabado, está muito velho...
- Mas ele é rijo. E o meu irmão, voltou para ver o nosso avô?
- Não, nunca mais ninguém ouviu falar dele. E a sua mãe?
- Sou muito indelicada, padre Celestino. Devia tê-lo logo informado que temos um filho, está com sete meses, e como poderá imaginar, a minha mãe não quer mais nada, está a mimá-lo de uma maneira terrível.
- Sabia que já eram pais, a informação chegou prontamente. Os meus parabéns.
- Muito obrigado, não lhe vou tomar mais tempo. Depois de amanhã, às dez, estarei ai com muito prazer. Até lá, padre Celestino.
- Estavas a falar como o padre Celestino de Ualali? – perguntou Balanta, que entretanto entrara, com o neto nos braços.
- Estava, até já nem me lembrava quem era. Está bem e vou vê-lo depois de amanhã, a mãe quer vir?
- Não filha, obrigada. Fico aqui com o Marcelo, mas dá-lhe os meus cumprimentos.
No dia combinado, Nazamba encontrou o padre Celestino no Centro de Acolhimento, uma mansão residencial para os religiosos que arribassem a Luanda e não tivessem onde ficar. O salão de visitas era vasto e decorado com parcimónia. Numa das paredes, um crucifixo de madeira trabalhada e numa outra, um póster do Papa. Sobre as várias mesas de centro, umas três, um vaso de flores plásticas de cores berrantes. As cortinas eram antiquadas e emprestavam um ar pesado à sala, não obstante os raios solares que atravessavam as janelas de vidro translúcido, fechadas para manter o fresco. O padre Celestino indicou-lhe um cadeirão, à volta da mesa mais afastada da porta e Nazamba verificou, satisfeita, que na sala não se encontrava mais ninguém.
- Quer um refresco, um copo de água? – perguntou o clérigo.
- Não muito obrigado, padre. Vejo que está de boa saúde.
- Graças a Deus. A vida do interior traz-nos menos problemas, é muito mais saudável. Luanda é um inferno, não sei como aguentam viver nesta cidade repleta de tanta gente e tão suja. É de admirar que não haja epidemias.
- Lá diz o ditado que o hábito faz o monge, habituamo-nos. – disse Nazamba, rindo com a graça.
- Creio que é ao contrário, minha filha. – respondeu, sorridente.
- Como assim, padre?
- Parece que o ditado é o hábito não faz o monge.
Os dois desataram a rir, o que acabou por quebrar o gelo. Acomodaram-se, mais à vontade, nos respectivos cadeirões. Nazamba considerou que deveria ir directa ao assunto.
- Padre, o que lhe disse exactamente o meu avô?
- O seu avô Juba de Leão, manifestou simplesmente o desejo de a ver. Pareceu-me que implícito estava a vontade de conhecer o bisneto. Como disse ao telefone, está bastante desgastado, nestes últimos momentos tem definhado bastante.
- Nada mais, padre?
- Não, nada mais. Pediu que o Nataniel também viesse. Acho que quer despedir-se de vocês.
Oh meu Deus, o velho deve estar a morrer!
- Despedir-se? – indagou Nazamba.
- Sim, deve estar a pressentir o fim, fiquei com essa impressão.
Vou mesmo ter que ir, senão as coisas podem-se complicar.
- E o meu tio-avô Nehone?
- Esse foi mais preciso. Pediu-me para a informar que o tempo está à mão, não elaborou, disse que a senhora iria entender e que a esperavam ver em breve.
Será que sabe? Certamente que sim, sabem sempre tudo.
- E o que é que o senhor padre pensa que seja?
- Olhe, minha filha, se quer que lhe diga não penso nada. Não sei o que vocês terão conversado ou acordado, não obstante ter ouvido uns zunzuns de um dos velhos quando bebeu um pouco mais.
- Que zunzuns, padre Celestino? – perguntou, ansiosa, Nazamba.
- Prefiro nada dizer, não me diz respeito e não me quero ver, de modo nenhum, envolvido nessas questões. Espero que compreenda.
Nazamba quedou-se muda, pensativa, a olhar para o chão, certamente indagando-se o que é que o padre sabia, o que teria ouvido?
Talvez até nem tenha nada a ver com a questão. O melhor é ficar calada.
- Claro que compreendo senhor padre. Aliás nunca desejaria colocá-lo numa situação de intriga. Mas quis encontrar-me consigo para saber quando é que regressa, pois desejo ir convosco, no meu próprio carro, claro. – disse.
- E o senhor seu marido também vem?
- Não padre, ele não pode, sabe, o hospital. Vou sozinha com o motorista e os guardas. Preciso de ir a Ualali por uns quinze dias, a minha mãe fica com a criança.
- Não sei se a aconselharia a tal. A situação ainda é delicada, têm-se ouvido uns pronunciamentos muito belicosos.
- Mas senhor padre, não sou assim tão pessimista. Veja, antes dos resultados eleitorais serem declarados, já estarei a caminho de volta, a viagem deve ser uns três ou quatro dias, não é?
- Sim, mas é muito arriscado. A senhora tem um assunto assim tão importante a tratar, nem leva o filho para apresentar ao bisavô?
Mais uma vez Nazamba quedou-se muda, a pensar. Seria que o padre afinal não sabia de nada, ou estava a lançar-lhe uma casca de banana sob os pés?
O que faço, meu Deus! Calma, conta-lhe uma estória!
- Posso revelar-lhe um segredo, senhor padre?
- Fale, minha filha, sabe que não podemos dizer nada sobre o que nos é confessado em segredo.
- Não me recordo se o senhor padre Celestino estava em Ualali, da última vez que o meu irmão por lá passou, e fez as pazes com o nosso avô?
- Não, não estava, mas tive conhecimento.
- Pois bem padre, jurámos ao nosso tio-avô Nehone que logo após as eleições nos encontraríamos com ele, para tudo fazer a fim de que o avô Juba de Leão venha viver comigo e o Nataniel em Luanda. O Nataniel também viria, mas os impedimentos a que faz face não permitem.
- Não sei, não sei... mas claro que não a posso impedir. No dia em que partirmos, irão umas quatro viaturas, com a sua serão pelo menos cinco. Mas continuo a achar que deve repensar tudo muito bem. Não desejo ter esse peso na consciência.
- Que peso padre? Como bem disse, não me poderá impedir e é melhor que eu vá com vocês, vou bem protegida.
- Lá isso é verdade.
- Então no dia 2 de Outubro venho vê-lo novamente, para combinarmos os últimos detalhes.
- De acordo, mas pense bem, minha filha. Pense muito bem, o seu avô está muito velho, não vai querer sair do local onde passou a vida, sobretudo para morrer.
- Não se preocupe com isso, padre Celestino. Logo se verá, assim pelo menos despedimo-nos dele, morrerá em paz. De todos os netos, somos aqueles que mais lhe dizem, por várias razões, como o senhor padre sabe.
Nazamba contou à mãe que iria a Ualali por uns quinze dias, ela sabia porquê, e que pronto voltaria. Pediu-lhe segredo porque nada iria relatar a Nataniel. Partiria pela manhã, com o motorista, dois dos guardas e com Samukombo. Não levaria mala nem provimentos para não alertar ninguém de casa. Um saco de viagem bastar-lhe-ia, a comida os padres a forneceriam, ou comprariam no caminho o que aparecesse. Para o regresso, iria à capital da província e apanharia um avião, o motorista e os guardas voltariam com a viatura.
- Você é uma mulher de muita coragem, minha filha. – disse Balanta.
- Como tu, minha mãe, por isso ainda aqui estás.
- Mas tenho muito medo, minha filha. Será que é mesmo seguro?
Nazamba cria que tudo era uma questão de relatividade, o fundamental era não se preocupar com um fim desconhecido e permitir que sua vida fosse regulada pelo medo, pela descrença pessoal ou alheia. Quem não anda ou arrisca, nunca faz caminho, e se o fizer, será curto e insosso.
- É seguro, não te preocupes, quem vai fazer mal a uma mulher com os padres e as madres?
Balanta não sabia como reagir. Seu coração ordenava-lhe que encorajasse a filha, ela presenciara Tuluka a lançar a adivinhação e entendera logo o significado da mensagem, não a poderia deixar prescrever, mas, por outro lado, conhecia bem as formas e os contornos da vida e do poder. A filha, pressentia, para qualquer dos lados que voltasse sua vida, seria sempre vulnerável.
- Vai e volta logo, não te deixes iludir por aqueles velhos. – respondeu Balanta.
Não, não seria iludida, os desejos eram seus, as certezas, ainda que abstractas, confiavam-lhe a força para jogar a roda do destino, se é que o destino não fosse talhado pelas suas mãos, na escultura almejada, amaciado e adornado em roda de olaria, cozido o barro da determinação. Não haveria ilusão.
- No dia em que for, quando o Nataniel vier almoçar, diz-lhe que não sabes de mim, que me viste sair de manhã para ir arranjar o cabelo. Ficará tranquilo, pois quando vou ao cabeleireiro levo muitas horas. Se à tarde ele telefonar, diz-lhe que não voltei. Só lhe contas à noite.
A velha quedou-se, muda, a olhar para a filha, como que indagando onde fora ela buscar os caminhos que a empurravam para a cegueira. Que lar ia edificar com a mentira, com o embuste? Mas pronto se intrometeu a recordação do dia em que seu pai, Juba de Leão, determinara, sem o saber, as vias que a conduziriam até ali.
- Isso é pecado, minha filha.
- Pecado, minha mãe? Não viste com os teus próprios olhos em Ualali? Queres depois que os meus filhos sejam mortos, comidos?
- Mas foste aprender isso, aonde? – perguntou-lhe Balanta, assustada.
- Não interessa, mãe. Não é assim?...
A velha baixou a cabeça, surpresa e angustiada ao mesmo tempo. Nazamba sabia muito mais do que aparentava, e só poderiam ter sido Nehone e Tuluka.
Esses homens vão-me fazer perder a filha!...
- É, minha filha, os amuletos e os antepassados falaram. Temos que cumprir ou Marcelo vai morrer, vêem buscá-lo. – disse, resignada.
- Então fica em paz minha mãe, nada me vai acontecer, logo volto, verás.
No dia 3 de Outubro, em que os oficiais generais rebeldes se retiraram do exército único que havia sido criado, Nazamba partiu para Ualali com os padres e as madres. Quiçá protegida por Deus que, omnisciente, saberia do iminente reinicio da guerra fratricida, mais mortífera que nunca.

FIM