sexta-feira, 10 de julho de 2009

MANANA DE UANHENGA XITU


MANANA

Agostinho André Mendes de Carvalho, o escritor Uanhenga Xitu, nasceu em Calomboloca, Icolo Bengo, aos 29 de agosto de 1924.

Foi na cadeia, para onde foi desterrado pelo regime colonial português, e onde passou longos anos, que começou a idealizar e escrever os seus contos, certamente como forma de manter a alma alerta, naquele processo da tomada de consciência e da necessidade da sobrevivência intelectual, o que veio a transformá-lo numa das mais reconhecidas vozes da literatura angolana. Certamente numa das principais vozes inovadoras.

“Soube mais tarde” , relata Felito, o artífice da mentira como forma de sobrevivência, “que o nome dessa Manana, não é de origem portuguesa. É do quimbundo. Significa ninfa, ou larva de abelha. Disseram-me que a primeira comida que o avô mandou dar à neta, como haku da geração, foi um bocado de favo de manana. E daqui tomou o nome”.

Uanhenga Xitu, ao edificar Manana com um herói falhado, Felito, e com uma Manana, menina da cidade confrontada com o costume, mais uma vez nos revela a contradição das ligações do campo e da cidade, impregnadas nas vozes e nos gestos dos seus personagens, o drama da aculturação, o caminho da assimilação.

“Responde Manana,” exige Felito, “porque estás metida nestes panos sujos?”

“O que é que tu chamas de panos sujos?... São panos da casa de dilemba. Se eu não fizer este tratamento, quando casar dizem que não faço filhos, e se ficar grávida, ou os filhos saem como malucos ou como abortos. Passo todo o dia neste quarto. Passo a ralar aqueles paus de hula e de kisekua, e depois do pó estar pronto, vêm velhas entendidas nessas coisas e fazem a mistura, com azeite de palma e mais coisas que eu não sei.”

“Tu estás enganada e sugestionada pelos avós. Fazem de ti o que querem e vais aceitando tudo. Mas quando é que uma moça tão esperta, que comungava todas as semanas e menina de bailes, vem cair de um momento para o outro entre bruxas?”

Mas afinal quem são Manana, Felito, avô Mbengo, velha Ximinha e tantos outros? Não respondeu Uanhenga Xitu. Talvez deixando a memória perder-se lentamente na emoção da recordação, do passado imaginado e sentido nas noites escuras de Tarrafal. Mas eu sei, porque já havia respondido há muito.

“As personagens do meu mundo ficcional, a princípio apenas imaginadas, vão-se autocriando, ganham rosto próprio e, mesmo quando lhes dou mais atenção, tornam-se autónomas no interior da minha narrativa, e nem sempre o destino que lhes traçara acabará por se cumprir. Nunca soube, antecipadamente, o fim que cada um teria.”

quinta-feira, 9 de julho de 2009

TEATRO

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


HUMANIDADES


(PRIMEIRO TABLEAU)


O PARAÍSO

Na cena encontram-se três caixões fechados, mas bem ventilados. Um pintado de azul-marinho brilhante, outro de verde vivo brilhante, e o terceiro de amarelo vivo brilhante. Nas tampas, motivos coloridos pintados.

A colocação dos mesmos será, respectivamente, ao lado esquerdo traseiro do palco, ao centro frente e ao lado direito meia-cena. Entre estes dois últimos, por trás, uma árvore com uma escada que permite ao actor empoleirar-se nela (o actor nunca será visível ao público, quando na árvore).

No lado esquerdo, ou direito, frente, de modo a não encobrir o caixão branco, uma bicicleta colorida, fixa, mas que permite ser pedalada in situ.

A cena deverá apresentar-se suja, coberta de papéis, trapos, etc., todavia de modo a conseguir-se a sua remoção sem muitos problemas ou perda de tempo.

Uma luz de néon que acende e apaga, enquadra uma placa na qual se lê “PARAÍSO” , colocada em qualquer sítio da cena, mas que seja vista de todo o público.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

TARA – Ocupante do caixão verde

PIRO – Ocupante do caixão azul

KIRO – Ocupante do caixão amarelo

NIRO – Ocupante da bicicleta

CIRO – Ocupante da árvore

Corredores (3 ou 4, conforme o espaço)

Dançarinos (as)


No início da peça, o palco encontra-se numa semi-penumbra, e os reflectores que incidem sobre os caixões e a bicicleta deverão estar gelatinados com as cores dos mesmos. Existem ainda duas lâmpadas estroboscópicas (flash lamps).

TARA, que está deitada no caixão verde, veste um colante negro todo esburacado, por cima do qual coloca uma saia de ballet amarelo vivo. Nos pés, botas pretas militares de número exagerado, atacadores brancos desapertados e com pequenas campainhas ou chocalhos (que não façam muito barulho) amarrados. Na cabeça, uma vasta e comprida cabeleira, feita de corda de sisal desfiada, azul claro brilhante. Seu rosto está horrorosamente pintado.

CIRO, que está sentado no seio da árvore, usa uma muleta rudimentar feita de um tronco. Veste calções bermudas grandes e largos e encontra-se descalço, porém com os pés pintados até aos tornozelos, de cores diferentes. Tem o mesmo tipo de cabeleira de tara, todavia multicolorida. O rosto está pintado metade branco e metade preto, com os olhos pintados das mesmas cores, porém inversamente.

NIRO, está sentado adormecido na bicicleta, veste um casacão negro longo e todo remendado, um calção com uma perna visivelmente maior do que a outra e calça ténis pretos com meias encarnadas. O seu rosto não está pintado, mas usa igualmente o tipo de cabeleira já descrita, cor-de-rosa brilhante, com um chapéu que é a metade superior do invólucro plástico de um garrafão de vinho.

PIRO, que inicialmente se encontra fora de cena, veste uma enorme camisa de noite feminina, a três cores horizontais e apertada nos tornozelos, andando, pois, com passos miudinhos. Calça sapatos de cores e modelos diferentes. A cabeleira é similar ás dos outros.

KIRO, que está, como Tara, deitado no caixão tapado, traja somente cuecas e calça enormes barbatanas de nado. Quando sair do caixão, trás pendurado no braço direito um guarda-chuva, preto, clássico. Na cabeça, como os outros, uma cabeleira laranja vivo.

Os corredores de bicicleta estarão vestidos todos de fato e gravata e sempre que atravessarem a cena, fá-lo-ão com grande alarido e confusão, a não ser quando especificado. O resto das personagens, à medida que forem aparecendo, será descrito o seu trajar.

Assim que os primeiros espectadores estiverem sentados, os corredores dão a volta ao estrado de madeira, da direita para a esquerda. Alguns cinco minutos após, retornam no sentido inverso e não necessariamente na mesma ordem de colocação. Esta acção repete-se, de cinco em cinco minutos, até o público estar sentado e completo.

Ouve-se então um som electrónico agudo, com fundo de tambores (batuques) e de grunhidos de porco, com ritmo estudado. A iluminação geral sobe um pouco, todavia sempre sombria.

Entra em cena um pequeno grupo de dança tradicional. O plano sonoro, umas vezes acentua o batuque, outras o grunhido dos porcos, outras ainda, o som agudo electrónico. Dançam.

Sai o grupo de dança.

Como fundo sonoro, restam os grunhidos de porco, de maneira o mais rítmica possível.

A iluminação baixa para a penumbra anterior.
As flash lamps começam a funcionar.

Ao ritmo do grunhir de porcos, passa um casal de jovens mutilados em animada conversa muda. De vez em quando param e esgrimem ferozmente as muletas, depois dão um leve e ruidoso beijo nos lábios e continuam a conversa, até darem por completo a volta ao tablado. Por essa altura o grunhir de porcos terá sido substituído pelos tambores (batuques), cujo volume foi aumentado bastante. Quando acabarem, apagam-se todas as luzes, a sala fica na escuridão, o som dos batuques desaparecendo gradualmente até ao silêncio total. Ouve-se, depois, um burro a zurrar, três vezes.

A cena é então iluminada uniformemente, todavia ainda luz baixa.
Passam os corredores, na confusão de sempre, após o que, Tara, atira estrondosamente com a tampa do seu caixão para o lado, sentando-se. Hirta, olha vigorosamente para um lado, depois para o outro, para cima, para baixo.

TARA
(Fazendo um esgar, grita estridente) “Cucu... cucu... cucu” (Iluminação sobe)

NIRO
(Acorda sobressaltado, ergue-se e olha para Tara) “HEIM?!... OUTRA VEZ?!... (zangado consigo mesmo) Oh meu Deus, estou novamente atrasado!... (tira do bolso do casacão um relógio despertador grande dos antigos, que consulta. Após, começa a pedalar furiosamente)... Sempre a mesma droga, agora nunca mais os alcançarei!... (vira-se para Tara)...já passaram há muito?... (vai-se desanimando e paulatinamente para de pedalar)... Nunca mais os alcançarei, quem me mandou ser funcionário público... nunca os alcançarei, nunca... (resume à posição anterior, dormindo)... Nunca!”

Tara salta atabalhoadamente para fora do caixão e retira dele um espanador, com o qual procede à limpeza de si própria e, depois, do exterior do caixão.
De perfil para o público, dobra-se, sem vergar os joelhos, em ângulo recto, para limpar o interior.

Kiro abre sub-repticiamente o seu caixão, vendo-se a cabeça a aparecer milimetricamente. Silencioso, sai e dirige-se em bicos dos pés a Tara, tremendo de ansiedade. Agarra-a por trás, levanta-lhe a saia e, como se de cães se tratassem, faz-lhe ruidoso e rápido amor. Tara actua como se nada tivesse sentido ou notado, cantarolando, nas lides caseiras. Caso mude de lugar, no acto, ele vai atrás, colado. Quando termina, Kiro sacode os seus trajes, ajeita os dela, e dirige-se para Niro.

Tara continuará a limpar, incluso a árvore, a bicicleta e o ciclista, etc.

Chegado a Niro, Kiro observa-o cuidadosamente, dá uma volta completa à roda da bicicleta e, por fim, espeta-lhe uma sonora bofetada. Vendo que o mesmo não reage, volta ao caixão e deita-se nele, deixando a tampa aberta.
Entram novamente os corredores, uns por um lado, outros por outros, mas saindo todos pelo mesmo sítio.

Quando desaparecer o último, entra pelo lado esquerdo da cena Piro, empurrando um velho e decrépito carrinho de bebé com rodas todas de tamanhos e material diferentes. No carrinho, um enorme boneco chimpanzé que ele retira e deposita, com desvelo e carinho paternais, encostado à árvore. Retira igualmente uma vassoura de mateba e procede à limpeza metódica da cena, depositando todo o lixo no carro. Em seguida conduz o mesmo até ao seu caixão, abre-o e atira para lá toda a tralha. Depois deita-se nele e tapa-o.

CIRO
(No cimo da árvore, grita, chamando) “Olhem aí!... (espera)...Oh gentes, estais a ouvir-me?... Olhem aí, algum de vós por acaso sabe o tamanho do raio da circunferência de um ovo de avestruz... (pausa)...ou o tamanho exacto dos tomates do padre Inácio?”

PIRO
(De dentro do caixão) “Ovo de avestruz?!... Falaste em ovo de avestruz?...Olha, se me lembro correctamente, o último que existiu antes do mundo acabar tinha exactamente 22.6 centímetros de raio de circunferência. Recordo-me como se fosse ainda hoje, por causa da chuva ácida que caiu durante dez anos consecutivos no deserto do Namibe, a sua frágil casca era azul-escuro... Era lindo e, sabem, foi o último ovo que o último Khoi-saan comeu. Desintegraram-se ambos ao mesmo tempo.”

KIRO
(Sentado, professoral) “Vocês falam do avestruz como se realmente tivessem conhecido algum. É preciso muita lata!... O meu bisavô, ainda era eu criança vejam só, o meu bisavô contava-me, para me adormecer, que o seu avô uma vez tinha ouvido o pai dele relatar que o seu avô sabia que o avô dele tinha visto uma fotografia de um avestruz, tirada pelo trisavô do seu bisavô quando jovem... (ligeira pausa, durante a qual a árvore é sacudida e todos largam uma gargalhada)... Pois é como vos digo! Contava-me então o meu bisavô, para me adormecer, que o seu avô, que sabia pelo trisavô do bisavô dele, da fotografia de um avestruz tirada pelo jovem trisavô do avô do pai do meu avô, que a tal ave tinha um pescoço muito comprido que servia para engolir as verdades que todos falavam e que os outros não queriam que fossem ouvidas ou conhecidas. Segundo os relatos antigos dos autóctones, o coitado do meu antepassado foi por esse motivo marginalizado para o deserto, nunca tendo, porem, conseguido acabar a travessia. Mas por vingança divina, sem dificuldade alguma os seus detractores aprenderam com o avestruz a enfiarem a cabeça na areia quando não quisessem ver os males que originavam”

CIRO
(Gritando) “22.6 centímetros disseste?... (ansioso) estás absolutamente certo disso?... Olha que a medida é fundamental para os meus cálculos, tenho de ter a certeza absoluta. Não vá ser o não ser ser e o ser não ser, para que me saia tudo errado! É pois vital que eu saiba ao certo. (Passam dois avestruzes, a gargalhar estrídulamente, sendo caçadas por dois caçadores aos tiros, seguidos de um tocador de hungo, de tanga e arco com flechas).

PIRO
(Abre o caixão, todavia permanece deitado) “Nunca quiseste acreditar no que os outros te dizem, sempre com essa maldita dúvida existencial... (aborrecido) Se te digo que são exactamente 22.6 centímetros é porque o são. Não são 22.5 ou 22.7, percebes?... (enfático) Eu sei que são 22.6 centímetros porque foram medidos cientificamente. Agoraaaaa... quanto ao padre Ináciooooo!...”

CIRO
(Corta, conciliatório) “Está bem, está bem... não vale a pena zangarem-se por tão pouco. E isso significa que 22.6 centímetros vezes 6 são...”

PIRO
(Zangado interrompe) “Ora gaita, lá vão vocês começar de novo! Caramba, mil vezes caramba, uma pessoa nunca pode ter uma conversa inteligente neste local... (deita-se no caixão, e continua a falar) Digam-me lá a diferença que faz um avestruz, uma coisa que nós nem sequer sabemos o que era não fosse pelo relato do antepassado daquele energúmeno que falou há pouco (pausa). Há quantos milénios vivemos na droga deste sítio a que chamam Paraíso? Não tivessem sido as greves que fizemos ao fim dos quinhentos anos, ainda hoje estaríamos a tocar harpa sentados em nuvens. Mas do que nos serviu tudo isso? Transferiram-nos para outro departamento celestial com a conversa que íamos ter nova e melhor vida, e aqui estamos nós, a falar há milénios e sem nunca chagarmos a conclusão alguma. Avestruzes, qual avestruzes!... Agora, se me perguntarem sobre os tomates do padre Inácio, isso já é o nosso dia a dia...”

KIRO
(Galhofeiro) “Olha, olha! sua excelência quer ter conversas inteligentes!... (Ri) É pena que aquela atrasada mental da Tara esteja tão ocupada, senão ela dava-te a conversa inteligente. Que conversa inteligente vais ter se nem sequer sabes o que é a inteligência? Foste a alguma escola, tiveste aulas ou professores? Felizmente que aqui não necessitamos de essas aberrações, quem quiser conversas inteligentes que vá para o inferno. Alguma vez ouviste falar do mestre Tamoda, ouviste?..”

CIRO
(Não se contem mais) “E o que tem isso a ver com os ovos de avestruz?!...”

KIRO
“Tem muito! Aliás tem tudo, porque se não fosse o saber-se escrever, não fosse o relato apócrifo no papel, a gravura no nitrato de prata dos laboratórios, nunca hoje saberíamos do avestruz (pausa). Por acaso tens algum sobrevivente deles aqui no Paraíso? (pausa)
NÃO!... Nada, só loucos e pseudo intelectuais, que ao fundo é o mesmo. O resto está no inferno, olha lá para baixo e vê como essa cambada goza... carros, mulheres, diamantes, champanhe, viagens ao purgatório quando e como querem e nós aqui a discutirmos não seio o que, todos feitos loucos. E porquê?...Porque somos os detentores da sabedoria! Bem nos avisaram toma cuidado que a sabedoria não é aqui ainda chamada. Terão que esperar outros tantos séculos...
(Baixa as calças e aponta para uma das nádegas, com uma impressão de uma bota) Estás a ver isto aqui, esta marca? É a marca da bota do conhecimento, do pecado original, com o qual fomos ferrados para todo o sempre. (Irado) E é por nos terem pontapeado com a sabedoria no traseiro, que por lá também saem todos os pensamentos que engolimos... (pausa) Por acaso já pensaram o que tudo isso tem a ver com ovos de avestruz?”


PIRO
(Abre o caixão e senta-se) “Já sei, já sei quem foi o escritor! (Bate as palmas de contente, infantil) Foi o Silva Covas, o Silva Covas... Só poderá ter sido ele, é dele esse estilo inconfundível, aquele traçado luminoso da pena arguta e rectilínea... (Deita-se) Ah, Silva Covas, só tu mexes comigo!...

CIRO
(Desdenhoso) “Sois todos uns perfeitos idiotas, não sabeis nada de ovos de avestruz nem de escritores, isto sem falar no padre Inácio... Idiotas! Não viram logo que esse estilo é do inconfundível Uanhenga Xitu?... (com total desdém) HUMMM!!!... Silva Covas!... Toca é de dormir suas bestas ignaras, até parecem da oposição!”

A iluminação decresce lentamente, mantendo-se o projector que incide sobre o caixão de Tara, para o qual se dirige e dentro do qual se senta.
Começa a música do Dioniso Rocha “Eh pemba”, ao ritmo da qual Tara “desfolhará” o espanador. Entram novamente as bailarinas tradicionais que dançam a música.

TARA
(Depenando o espanador ao ritmo da música) “Mal me quer... bem me quer... muito... pouco... nada... (isto até ao fim. Farta-se a atira com o espanador fora. Espreguiça-se e, depois, como no início, grita) Cucu...cucu...cucu.”

A iluminação geral sobe repentinamente e a cena dos corredores, Niro, etc. repete-se, com as bailarinas ainda dançando a mesma música e saindo com eles.

Piro atira a tampa do seu caixão para o lado e senta-se de chávena de chá na mão. Muito fraco, ouve-se o uivar de um cão, logo seguido de um rap, em português. Entram um padre negro de batina branca e uma branca mumuíla, seios desnudos, a dançar a música por uns instantes. Depois saem e acaba o rap

PIRO
(Após a saída do par) “E olhem para estes, o que quererão mostrar com isso, ainda fingem não saber que a religião acabou? Paraíso é paraíso, aqui quem manda manda e quem manda é o chefe. Único e absoluto, omnipresente e omnisciente. Parece que ninguém mais se recorda quando o rei ia nu, trajado de suas sedas invisíveis... ou da forma do Mundo... (triste) ninguém mais se recorda da lua...!”

CIRO
(Do cimo da árvore) “Como poderemos recordar o que não existe? Nem nos recordamos que vivemos num meteorito perdido no espaço das nossas mentes, feitos continuadores do nada.”

KIRO
(Ofendido) “O rei ia nu?... O rei ia nu?... Se ia trajado de seda invisível como é que ia nu?”
TARA
“Sois uns ignorantes, há milénios que viajamos nesta pedra e nunca vos serviu para nada, nem que fosse para tomar consciência do facto.”

KIRO
“É bom de o dizer mas não de o fazer. Com essa tua mania de malmequer, bem-me-quer, talvez-me-quer, acabaste com todas as poucas flores que por aqui havia e nem sequer se consegue agora limpar o pó. Não sabemos quem te possa bem-ou-mal-te-querer quando isso nem sequer existe.”

PIRO
“Não existe? Claro que existe, não existe o pó?”

TARA
(Sai do caixão e dá, atabalhoadamente, uns tantos passos de dança) “De facto errou-se. Errou-se na criação (pausa). No passado longínquo, mais longínquo ainda que o do avestruz, constava que havia um ser supremo que criara, à sua imagem, o ser humano, só que por estar sozinho não sabia que a imagem estava errada.”

PIRO
(Sai do caixão e deita a correr à volta da cena, parando junto a Tara) “Muito bem, quem errou então? O ser humano errou porque foi feito errado, ou o ser supremo errou porque ele próprio estava errado, como se num espelho defeituoso?”
CIRO
(Do cimo da árvore) “Porque falais de coisas que não sabeis? Parai com essa especulação, já que não passa de mera especulação. As imagens a que fazeis referência nada mais são do que fantasmas, sombras (pausa. Muda de assunto). Em termos concretos, por acaso algum de vós sabe a medida exacta do raio de um ovo de avestruz, sabe?!... Pode-vos parecer uma questão simples e não existencial e sois incapazes de me dar uma resposta, porém divagais sobre questões que acreditais transcendentais. Que interessa quem errou ou não, que a imagem era imperfeita devido ao borrão inicial?”

KIRO
“É evidente que não interessa!... o facto de a máquina ter errado e o maquinista ter-se aventurado sem a respectiva licença de condução, nada justifica, não tem a ver com o presente.” (vai para o caixão).

TARA
(Desdenhosa, dirige-se para a árvore) “Querem observar quão frágil é a filosofia deste senhor?... Desejam conhecer o que saiu errado na criação? Querem?... A resposta está à nossa frente, aliás sempre esteve. Não fosse a nova leveza, a vossa inconstância e inconsistência, há muito que teríeis visto o que desfila sem interrupção perante vós...” (Sacode a árvore e Ciro cai dela).

CIRO
(Assustado, levanta-se, agarra na muleta e aos pulos vai refugiar-se na última fila dos espectadores, sempre aos guinchos) “Paspalhona!... paspalhões!... Vejam como se comportam, suas bestas asininas!”

TARA
(Bate as palmas de contente, salta e dança) “Viram?... viram?... Viram como é que a máquina errou o maquinista? O que vale então o ser supremo ou a sua criação?... (vai buscá-lo e leva-o, a pontapés e bofetadas até à árvore para a qual ele trepa de imediato, desaparecendo. Volta ao seu caixão).

CIRO
(Do cimo da árvore) “Raios de enxofre haverão de cair sobre as vossas cabeças!...”
PIRO
(Irradiando alegria e satisfação) “Como adoro testemunhar estas manifestações... Que coisa mais linda!... Grita-se aqui, insulta-se ali, creio que os antigos as chamavam de Assembleia Nacional... Que lindo, que alegria... bem-me-quer, malmequer, muito, pouco, nada... (Desata à gargalhada)... Muito, pouco nada!...”

(Kiro salta para fora do caixão e executa vários e complicados exercícios de ginástica. Tara, sai igualmente e vai-se sentar ao lado do boneco chimpanzé. Após uns instantes, tira para fora um dos seios, todo pintado de bolas visíveis, e dá de mamar ao mesmo).

CIRO
(Fala, enfático e enamorado, do cimo da árvore) “O que sabem eles de Assembleias Nacionais? Sempre viveram suas vidas entregues a ilusões, nem coragem conseguiram para olhar romanticamente, para além do paraíso em que julgam viver (pausa)... mas tu, oh amada, tu, conheço-te bem e profundo.
Oh! Doce flor corrosiva...
Oh! Nitroglicerina querida...
Pudera eu resistir-te! Oh Nitroglicerina, deixa-me ser o único, o único, o único... O ÚNICOOOO!... (A cada único, ouve-se a descarga de um autoclismo.)
(Com rancor) Sabes quanto odeio todos que, nos laboratórios em que vagueias, teus favores volúveis solicitam sem cessar...
Aqueles que te guiam com suas porcas mãos nos tubos de ensaio e neles te misturam a novos amantes, sim, esses a quem tu chamas de cientistas queridos, que te manipulam, que contigo mexem como ninguém, sem que dês conta que são meros inventores da morte atómica, criadores da destruição do mundo. Os iniciadores do nosso paraíso. Pensas que não sei do teu namoro com o bicarbonato de sódio?!... Nega, NEGA-ME ISSO!...
(Com escárnio) Tens a noção do que te acontecerá quando te consumarem nessa perigosa união?... Os teus cientistas certamente que nada te informaram, pois faço-o eu, vão ser um BUUUMMM!...”

Logo que Ciro diga Buummm, desligam-se as luzes e, de modo a assustar toda a gente, ouve-se uma estrondosa explosão, cuja reverberação se manterá por algum tempo. No fim, entende-se o cri-cri dum grilo e o coaxar de sapos.

Durante a explosão, no escuro, todos regressaram aos seus caixões, tapando-os. Paulatinamente as luzes sobem para uma semi penumbra, os reflectores dos caixões e da bicicleta acentuando-os.

Passam outra vez o padre e a mumuila a dançar uma kabetula.

Novamente entram os corredores. Um deles, perdido, choca violentamente contra a árvore de Ciro, que cai com espalhafato. O corredor recompõe, agarra na bicicleta, põe a mesma ao ombro e sai coxeando.

Ciro, com dignidade e aprumo, levanta-se, sacode a roupa, desconfiado olha para todos os lados, abana a cabeça com desdém e sobe para a árvore, desaparecendo).

TARA
(Abre o caixão com estardalhaço, bate as palmas de contente, freneticamente) “Bis, bis... oh que lindo, bis... que lindoooooo!... Bis, bis...”


KIRO
(Que igualmente já abrira o caixão, salta e recomeça os exercícios. Depois, bangão, dirige-se a Tara) “Gostaste?... Gostaste? Olha que sei fazer coisas mais lindas (faz o pino e duas ou três piruetas)... Viste, viste?...”

PIRO
(Que entretanto saíra do caixão, dirige-se para Kiro e observa-o com atenção. Sarcástico) “As palmas não eram para ti, meu idiota, ela festejava a dignidade de Ciro, (com orgulho aponta para a árvore) não reparaste a sua compostura perante as vicissitudes da vida? Não notaste o garbo do passo quando se dirigiu para a árvore?... (volta-lhe as costas com desprezo) galifão!”

TARA
(Dirige-se ao caixão de Niro onde executa uma rápida dança desarticulada, seguindo até Niro) Foste o único a perceber a loucura da sanidade mental, (aponta para o público) nem esses todos que estão para aí a fingir que nos entendem viram que és o rei louco do encantado mundo da percepção e do caos, (Acaricia Niro) Oh meu anjo das trevas amenas, como sofreste lúcido nas paradas da trapaça e do orgulho dos prestidigitadores da consciência, foste a gota de água a secar no oceano da presunção de estrelas grávidas de verdades em máscaras de lábios risonhos” (Recompõe a roupa e cabeleira de Niro, dirige-se à árvore e dá-lhe uma forte abanadela).

CIRO
(Cai da árvore, rola no chão, levanta-se irado) “Para que mais foi isso outra vez? Já não se consegue viver em paz neste paraíso?”

PIRO
Paz, para que a queres? A paz não serve as minorias que dela não vivem, aliás não foi assim que roubaste os ovos de avestruz, não foi assim que o padre Inácio perdeu os tomates que todos procuramos?”

CIRO
“Santíssima jinguba, por que será que só dizes asneiras? Foi então com a paz que o padre Inácio perdeu os tomates? Ou foi porque se pôs a armar em salvador da humanidade e afirmou que a bomba atómica nunca fora inventada?”

TARA
“Ai é? Ou foi porque começou a pregar publicamente que Jesus Cristo vendeu os aviões de guerra a S. Pedro, e depois os dois formaram uma companhia de fretes aéreos para transportar anjinhos daqui para ali, e nunca de ali para aqui? Já te indagaste porque passam a vida esses das bicicletas à procura da eterna rolha que julgam ser o seu bem estar?”
CIRO
“Vox populi!... vox populi, nem sempre vox Dei.”

TARA
(Arreliada) “Cala a boca que ainda acordas o Niro. (Sarcástica) Ainda não te fartaste de chocar ovos de avestruz? A vida a passar por ti a chocares ovos de avestruz!”

CIRO
(Indignado) “Ovos de avestruz? Chocar ovos de avestruz?”

TARA
(Arreliadora) “Sim, ovos de avestruz, ou pensas que não sei? Não é porque te isoles aí no cimo da árvore que me enganas. Só que não te percebo, a espécie já desapareceu há milénios e ao chocares um fóssil o que pretendes, ser um deus?”

NIRO
(Acorda bruscamente) “Quem chamou por mim? Quem chamou por mim? (olha à sua volta, não obtém resposta e adormece novamente).

CIRO
(Conciliador) “Não ligues para o que esse louco está a dizer, e olha, (aponta) vivo lá em cima não porque, como insinuas, esteja a chocar ovos de avestruz para me tornar num deus, mas sim porque de lá o mundo me parece melhor e mais fácil de engolir, mais fluido. Não há cores, não há nada que me preocupe, só um horizonte permanente...
(Zangado) E ao que parece nem isso me deixarás ter porque te empenhas em destruir o meu sossego com tuas intrigas avescas (imita três vezes um galo a cantar, sacudindo as asas. Depois, vira-lhe as costas, desdenhoso) Vou-me embora!... (dá uns três passos, pára e vira-se para Tara outra vez) desejas roubar-me o horizonte, chamas-me nomes (zangado) e acusas-me de querer ser um deus...
Pois podes crer que o inferno, o fogo eterno, não existe. Lá de cima observo-te, ou julgas que não? Sempre com essa mania de quereres iluminar o iniluminável, como os que sentem a necessidade de limpar o cu mesmo sem terem defecado...
Refugias-te no útero cósmico e pretendes assumir as loucuras do mundo, feita puta esotérica...”
TARA
(Preocupada e ansiosa) “Cala-te... cala-te, só dizes sandices (tira uma chucha para fora e mostra-lhe). Já viste alguma puta com chuchas, já?...
Não sabes que nenhuma puta tem chuchas?...
Aliás nem poderias saber, porque sou a única mulher no paraíso. Todos os outros fantasmas que por aí passam são meras ilusões do homem de barro. A tua ignorância horroriza-me, só dizes asneiras.”

CIRO
(Colérico) “Só digo asneiras? Pois fica aí com os teus deuses e cabandas porque vou-me embora para o círculo. Nunca bebi sacrifícios como tu, julgas que não te observava, masturbadora de ladrões!...” (Sai e empurra consigo, para fora de cena, a árvore).

Nesse preciso momento houve-se o gritar de um porco, quando a ser morto pela faca. Tara atira-lhe a língua de fora, vira-se e mostra-lhe o rabo. Em seguida dirige-se a Niro e torna-lhe a recompor a roupa. Daí vai para o seu caixão, deita-se e tapa-o.

Todos os outros fazem o mesmo.

A luminosidade decresce até a uma quase escuridão.

Organizados e silenciosos, todavia mimicando a algazarra de sempre, os corredores atravessam, agora descidos de suas bicicletas. O último, trás uma grande rolha entre as pernas, simbolicamente enfiada. A cena e a sala ficam na escuridão completa. Muito de longe, apercebe-se o “cucú... cucú” de Tara.



BAIXAM AS CORTINAS



FIM




(SEGUNDO TABLEAU)

A CAIXA



PERSONAGENS PRINCIPAIS

HONESTO JAMORREU – Locutor

SÓNIA SEVIRA - Locutora

APRESENTADOR

CANGALHEIRO

OUTROS


No palco, um enorme televisor, a caixa. Com dimensões mínimas de 345cm X 250cm (poderá ser alterado), sobre um estrado que representa a mesa.

A todo o comprimento do écran, num pano que enrola e desenrola sobre si mesmo (ver o mecanismo mais fácil), pintados, o logotipo da estação e, mais tarde os anúncios publicitários.

No início ver-se-á o logotipo da estação emissora:


As cores dos anúncios, bem como os trajes dos bonecos, serão sempre vivas, berrantes, exageradas e de traço nítido.

Os bonecos serão grandes e ridículos. Existirá um “público” que serão os actores excedentes do “PARAÍSO”, sentados em semi círculo.

As luzes, ao subirem, revelam a caixa, o televisor, o seu logotipo e o público sentado conforme já descrito. Ouve-se o genérico da estação emissora, após o qual entra o apresentador, um enorme porco-espinho, que se senta atrás da mesa (que poderá ser retirada quando necessário) e faz a abertura da programação.

APRESENTADOR
“Minhas senhoras e meus senhores, muito boa noite. A CAIXA DE EMBURRECIMENTO COLECTIVO, esta vossa e sempre amigável estação televisiva, tem o prazer de dar início a mais um programa descartável, referente ao dia (Dar a data). Assim, os caros telespectadores poderão ver de imediato a nossa página publicitária, na qual vos apresentamos os mais inebriantes e os mais parvos anúncios, logo seguida da página para os mais pequenos, a dos desenhos mais do que desanimados.
Depois, para os amantes incondicionais desta bela cidade à beira-mar, Sónia Sevira apresentará o programa “Raios Te Partam Luanda”, com exclusivo patrocínio da paciência dos munícipes.
Ás dezanove e trinta terão o desporto, em cuja página internacional apresentamos a aliciante partida de futebol, transmitida em diferido e realizada o mês passado, entre o ASA e o Atlético Petróleos de Luanda, exclusividade das linhas aéreas nacionais, a famosa “Nunca Falha, Chega Quando Chega e Passem Bem”.
Segue-se o bloco noticioso, onde mais uma vez vos apresentamos as notícias nacionais e internacionais de anteontem.
Ás vinte e uma, mais uma página publicitária, para os resistentes à insónia, seguida da emocionantíssima e cada vez mais ininteligível porcaria de novela local, “A Verdadeira Vida do Beto das Vinhaças”, patrocinada por tudo quanto é vinho e cerveja neste país… Hoje no seu quinquagésimo capítulo. No episódio de mais logo, será que Dedaldino Xibode concretizará seus intentos escuros e dá o golpe na garina do mega empresário malangino Beto das Vinhaças, de férias em Portugal a tratar de assuntos brilhantes, para um conhecido político?...
A NÃO PERDER!... Tenham pois uma boa noite e queiram prestar atenção ao programa que segue (sai).

Enquanto sai, o logotipo da “CEC” é enrolado, para dar lugar ao da “PUBLICIDADE”, acompanhado da música introdutória atinente (a ser cantada, em caricatura, pelos actores).

Segundos depois o pano é novamente enrolado para revelar, como fundo, uma floresta tropical, com os sons que lhe são peculiares, e um fundo de tambores.

Entra um enorme chimpanzé aos pulos, percorre toda a cena a bater os punhos no peito e emitindo gritos terríveis.
Pode implicar coma audiência, sem agravos.
Bem visível, um sexo descomunal com duas pequenas campainhas amarradas à volta, como testículos que, com os pulos, retraem-se, por uma mola.
Por fim cala-se e acalma-se, encosta-se a um canto e fica a coçar os testículos por um largo tempo, olhando para as senhoras, com ocasionais grunhidos de prazer.

Pelo lado oposto, entram as duas senhoras em conversa.
Uma delas é toda espalhafatosa e está limpa. A outra tem a roupa suja e amarrotada.
Falam e riem muito, sem darem conta do bicho e este tão pouco delas.
Quando, finalmente, se concentra nelas, põe-se outra vez aos pulos, contente. Parte em corrida para elas, antes porém dando três voltas à cena.
As senhoras demonstram reacções de horror e de prazer, fazendo um espalhafato incrível.
A senhora limpa vai refugiar-se no seio dos espectadores, agarrando-se a um deles como protecção, sentada no seu colo.
O chimpanzé dirige a sua atenção para a que ficou na cena, a suja. Executa uma dança kabetula de alegria, dá dois enormes gritos e outros tantos murros no peito e agarra a senhora, agora aterrorizada, arrastando-a para fora de cena numa guerra incrível.

Faz-se, após, um curto silêncio e durante o qual só se ouve a senhora limpa, mão no peito, a arfar. Por fim acalma-se e, de onde está, sempre espalhafatosa e exagerada, fala.

SENHORA LIMPA
(Agora sorridente) “VIRAM?!... MAS VIRAM MESMO?!...QUE HORROOOR... (Levanta-se e começa o regresso à cena) Mas viram mesmo bem? Olhem, fiquei sem pio... Quem diria!... A minha melhor amiga, a ser agarrada assim!... Que horror!...
(Já em cena, vira-se para o público) Mas o principal, minhas senhoras, para que coisas como estas não vos aconteçam, é necessário que sejais modernas (da carteira tira um pequeno serrote com o qual penteia o cabelo).
A mulher moderna, a mulher desenvolta e emancipada nunca passeia pela selva sem ter a roupa lavada com Sabão Macaco, sabão que lava até a avòzinha e o periquito…Como viram, o sabão que faz a diferença (aponta para si, atira o serrote fora e sai)).

Ouve-se então um jingle a três vozes femininas:
“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”

Faz-se silêncio. Muito ligeiramente percebem-se os sons da floresta, bem como a voz em off da senhora suja levada pelo macaco.


SENHORA SUJA
(Risadinhas) “Ai chico, seu macaco, seu malandro (novas risadinhas). Está quietoooo, seu bicho... Oh xico, NÃO FAÇAS ISSOOOOO!... (risadas e gritinhos de prazer). Já te disse que não, para com isso bolas!... (Zangada) TIRA A MÃO DAÍ, GAITA!...

Pequena pausa após a qual ouve-se outra vez o jingle referente ao sabão.

“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”

As luzes apagam-se brevemente, sendo o pano enrolado para revelar uma farmácia moderna, identificada com o nome de “FARMÁCIA ATÉ QUE ENFIM”.

A música de fundo é alegre, viva, um zuk ou algo parecido. Entra um falo, quanto maior melhor, erecto e de cabeça encarnada luminosa com duas antenas que terminam em bolinhas igualmente luminosas, e usa óculos. Os testículos, cheios de pelos.

VOZ FEMININA OFF
(Muito autoritária) “Você aí, alto lá!... (o falo vira-se, olha para todos os lados para verificar se é a ele que se endereçam).
Sim, você! Tome cuidado com o que faz, veja lá onde se mete, não seja abelhudo e ande por aí a enfiar o nariz em qualquer buraco! Nunca ouviu falar na doença do século?!... (O falo, que estava erecto, verga-se logo).
Pois é amigo, não brinque com a sorte, proteja-se contra o Sida!...
(Entram duas mãos e enfiam um preservativo pelo falo abaixo. Tenta resistir, mas por fim cede). Pois então proteja-se, o seguro morreu de velho (Enfática), e as camisas RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA são a protecção que deseja...
Utilize Resistência Democrática e faça amor como o homem mais moderno e dinâmico... pronto para qualquer partida ou ocasião, sem o sentido do déjà vu!..
Siga o nosso conselho, use Resistência Democrática e proteja-se na cabeça, não deixe que lhe lixem o juízo! Use-as e abuse-as, são elásticas e acomodáveis” (O falo sai aos pulinhos, levado pelas duas mãos).

O pano enrola novamente para revelar uma agência funerária típica. A música de fundo é a apropriada. Entra o cangalheiro todo vestido de preto e com um abutre ao ombro. Coloca-se ao lado de um dos caixões e endereça-se ao público.

CANGALHEIRO
(Voz grave, séria e pausada) Meus amigos, vós aí na paz do vosso lar tranquilo, já pensastes no vosso futuro mais além?... Exacto, no Além, na eternidade (Acaricia o abutre)... Não deixeis a resolução dos vossos problemas pessoais, mesmo a íntimos. Vinde visitar-nos (Abre os braços com amor), cuidaremos de vós...
(Aponta para o espectador mais próximo) O senhor(a) aí, deixe que lhe mostremos o nosso desvelo e carinho. Não é uma promessa, é a marca de registo da melhor agência nacional (olha para o abutre e sorri), a AGÊNCIA MORTE FELIZ, onde morrer vai para além de um simples dever ou prazer... MORRER É UMA OBRIGAÇÃO!... (muda o abutre para o outro ombro, depois de lhe dar uns beijos sonoros no bico).
O nosso lema é morra amanhã e pague hoje... Parta alegre e confiante, não espere que os herdeiros o enterrem, porque à única coisa que enterrarão será o seu dinheiro. Em bares e vida fácil!... (Por breves momentos ouve-se um tango, no qual dança com o abutre. Tira uma pequena garrafa do bolso e dá uns tantos goles. Oferece a alguém e torna a metê-la no bolso).
Minhas senhoras, cavalheiros, não se acanhem, temos todos os modelos.
(Aponta de novo para alguém), É membro do comité central do seu partido?... Temos aquele modelo ali, uma cópia fiel do Mercedes Benz 280S, e enquanto não for desta para a melhor, poderá utilizá-lo para guardar os kwanzas, porque os dódós, estou seguro que já os guardou na Suíça.
(Aponta para outra pessoa) É deputado?... temos o modelo XL, mais condigno para as vossas citroenadas, não dê ouvidos aos invejosos, aqueles que o vêm com a vidoca feita. (Aponta) É dono(a) de lanchonete?... Olhe para esta maravilha de caixão, estilo contentor amachucado a cheirar a pincho torrado.
Na agência MORTE FELIZ temos tudo a seu gosto, faça já a sua reserva!... (ouve-se um jingle alegre, durante o qual o cangalheiro agarra o abutre e, desajeitadamente, marca o compasso da música batendo com ele no chão):



Somos casa de tradição
Agência Morte Feliz
Confie em nós de coração
Agência Morte Feliz
Estamos à sua espera
A sua morte feliz

As luzes apagam-se e quando forem reacesas ver-se-á de novo o logotipo CEC, com o respectivo indicativo. À mesa, o porco, o apresentador inicial.
Assoa-se na manga da roupa, com barulho.

APRESENTADOR
“Alô, alô criançada, alô-alô... chegou a hora do vosso programa. O momento (Assoa-se com as mãos, para o lado, sacudindo depois os dedos) desculpe... o momento que tantos desejais.
Eis aí miúdada, eles aí estão os vossos desenhos desanimados (Faz o gesto indicador com a mão. Não sai)

Entram o pato e o rato por lados opostos, mocas (de espuma) nas mãos. As meia-cena encontram-se e agridem-se mutuamente, de maneira alternada, nas respectivas cabeças.
PATO

(Bate) “Toma seu rato comunista!...”

RATO

(Bate) “Aiii!...Toma seu pato revisionista!...”

PATO

(Bate) “Aiii!... Toma seu rato trotsquista!...”

Esta cena repete-se várias vezes com “maoísta, marxista, albanês leninista, estalinista maoista, esquerdista fidelista, etc.”, até caírem exaustos para o lado, um nos braços do outro. Saem rastejando, todavia sempre a baterem-se.

Imediatamente após, entra Branca de Neve perseguida pelos sete anões, em louca e alegre confusão. Ela corre por todo o lado, até pelo meio dos espectadores, aos pulinhos e risadas, o mesmo fazendo os anões, que tentam beliscá-la, agarrá-la, apalpá-la, tudo isto com uma intenção sexual nítida.

BRANCA DE NEVE
(Como descrito) “Seus malandros!... Parem. Desistam, nunca me agarrarão!... Malandrotes, seus espertalhões!....Parem” (o apresentador começa a ficar irrequieto).

UM ANÃO
(Babando-se de desejo) “Branca de Neve, se te agarro, ai se te agarro!... Vem minha cabra, vem ao teu bode mal cheiroso!... (espirra e raspa os pés no chão, como um bode) há quanto tempo sonho com isso... se te apanho!...”

BRANCA DE NEVE
(Ri, goza) “Malandro, querias não é?!...” (passa pelo apresentador e faz-lhe uma festa fugidia)

OUTRO ANÃO
(Já cansado) “Isso não vale Branca de Neve, tens pernas maiores do que as nossas, isso não vale. (Arfando) Pára, gaita!... Dá lá uma oportunidade a um gajo, porra!... (grita para o apresentador que, de seguida, logo parte atrás dela) agarra, agarra-me essa fulana!”
OUTRO ANÃO
(Quase que a agarrando) “Cerquem-na por ali, cerquem-na por ali que ela hoje não escapa... (Ri de antecipado prazer) Quando te apanharmos vai ser o teu totoloto... (puxa um espectador pelo braço) venha, venha que a gaja é boa!...”

TODOS
(Excitadíssimos) “Agarrem-na, agarrem-na, hoje não se safa!...”

Uns momentos após tudo congela por uns segundos, antes de se apagarem por completo as luzes. Se por acaso o espectador também foi tentar apanhar Branca de Neve, fica lá onde estiver, ele que volte ao lugar. Saem todos, gira o pano e quando as luzes acenderem, vê-se novamente o logotipo CEC e, à mesa; Sónia Savira, (Tara) a locutora.

SÓNIA SAVIRA
(Faz um monte de caretas e esgares ao falar) “Minhas senhoras e meus senhores, queremos pedir desculpas, todavia, por um lamentável erro técnico estávamos a apresentar no programa infantil o filme didáctico de mais logo à noite para os adultos, Branca de Neve e as Sete Tesões.
Mais uma vez as nossas mais sinceras desculpas.
Dando, pois, continuação à programação, temos o famoso programa “Raios te Partam Luanda”, hoje na sua milionésima edição e apresentado por esta vossa amiga Sónia Savira, patrocinado por todos os governos provinciais desta capital, desde 1975.
Começamos com as imagens que relatam os factos do incrível acidente ocorrido ontem à noite na cativante Ilha de Luanda, junto ao Hotel Panorama... “

(Por trás dela, decorrerão todas as situações a apresentar, sempre visíveis para todo o público.)

Entram, por lados opostos, duas viaturas que chocam frontalmente. Os condutores saem e começam logo à batatada. Um, está nitidamente embriagado. A locutora levanta-se e dirige-se a um deles).
“Temos aqui a nosso lado os causadores deste acidente que felizmente parece não ter feito vítimas mortais. (Fala com o condutor sóbrio) O senhor, por favor... O senhor, quer contar para todos nós por suas próprias palavras o que realmente aconteceu?... Como se chama?”

CONDUTOR SÓBRIO
(Recompondo a roupa, ajusta o penteado e sorri para o público) “Eu me chamo senhor Quintino, mais conhecido por Zanga Mau, e vinha por ali (aponta) nas calmas a comer os meus pinchos e a chupar as minhas geladinhas, quando este senhor (aponta)... FILHO DA PUTA, te parto os cornos! Vinha fora de mão e me bateu! (lamenta-se) Olhe só, veja o meu carro, até parece que caiu naqueles buracos do Cazenga. Agora vou ter que fazer outra viagem nas Lundas... (vira-se para o outro) seu sacana, tens sorte de estar aqui na Caixa de Emburrecimento Colectivo, com a senhora Sónia Savira, senão te arrebentava com as fuças, ias ver como eu te fo...”

SÓNIA SÁVIRA
(Corta-lhe rápido a palavra) “Calma amigo, não disparate, não diga asneiras porque já chegam as minhas!... Calma!... Não lhe chega a namorada ferida a sangrar ali no carro?... (Leva-o até lá) Olhe, olhe todo o sangue que por ali vai (o condutor olha, não reage. Sónia Savira volta-se para o público, toda sorridente). E agora vamos ouvir o outro lado da estória.
(Dirige-se ao condutor ébrio) O senhor aí!... Sim o senhor, queira por favor contar-nos o que aconteceu, mas antes diga-nos como se chama.”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Surpreendido, como que despertando) “Meu nome?... auá, como é mesmo antão meu nome?... (quase caindo) a mana quer saber como foi?... Ai tia, me jonjaram, me perseguiram.
(Com voz menos pastosa) Olha prima, ia só aqui na minha mãozinha (indica o lado esquerdo da estrada), juro mana, a garrafa do kapuca até estava vazia, quando me apareceu não sei donde esses dois carros mesmo que a prima está a ver embora aí! (Triste) Ai mãezinha, nem te conto, isso é só mesmo azar na minha vida. Veja então cunhada, dois carros me baterem ao mesmo tempo!...”

SÓNIA SÁVIRA
(Olha para o carro do condutor sóbrio) “Olhe ali o sangue da sua noiva a escorrer, meus Deus até parece um rio. (Volta-se rápida para o outro, surpresa) Dois carros que bateram contra si, disse? Eu só vejo um!...”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Aparvalhado e surpreso) “Ai mana, só está a ver um?...Deixa antão porque vucê estás com prubremas das vistas...” (saem os dois condutores).

SÓNIA SAVIRA
(Risonha) “Mais uma cena desta nossa Luanda!
Aproveitamos para chamar a atenção dos senhores motoristas... beber causa acidentes. Não beba se conduz, mesmo se esta nossa Caixa de Emburrecimento Colectivo faz-lhe ver os prazeres do vinho a toda a hora.
(Entram três jovens latagões, todos arranhados e desalinhavados. Colocam-se, em linha, de lado. Sónia Savira desajeitadamente arranja as suas chuchas ,num largo sorriso). E agora a nossa equipe de reportagens leva-nos até ao Palanca onde um grupo de terríveis meliantes conhecido pelo nome de Queen Girls, violou, guitarrou e pianou estes pobres rapazes ontem à noite (Repete o gesto de arranjo das chuchas, sorri para os rapazes e suspira profundamente).
Pois é, foram violados um a um, imaginem o terror que terão sentido. O que os nossos telespectadores talvez não saibam, é que este grupo de marginais, o notório Queen Girls, é formado por uma única jovem, lutadora de luta livre e aliás muito conhecida no bairro, e que dá pelo nome de Kiki Langalanga Ninfô. Mas ouçamos os infelizes rapazes!...”

PRIMEIRO RAPAZ
“Olhe, foi mesmo essa Kiki Langalanga Ninfô, nós já lhe conhecíamos de nome e de fama, mas nunca tivéramos acreditado. Aí no bairro passa o mambo que ela já fazia a mesma coisa lá em Kinshasa.
(Ao evocar o acontecimento começa a chorar) Nós vínhamos das nossas namoradas que estivéramos a dançar com elas, quando ali naquela zona mais escura onde paráramos para mijar, fôramos assustados com este acontecimento então! (acaba por controlar o choro).

SEGUNDO RAPAZ
(Mais jingão e entusiasta) “Olha minha, assim derepentemente nos sai na frente uma pessoa, ué, até pensámos que era um kifumbe, só depois é que vimos que era uma mulher. Não vais acreditar, minha, tinha uma pistola na mão e nos manda então tirar as calças.
(Imita) Ô tirras us carrrças u je te arrebantarr les couilles, gritou ela para mim. Com a vida tão cara, pensámos que era uma mãe desesperada, toda lixada, marido não ganha, enfim, julgávamos que era uma mãe que necessitava roupa para os seus filhos, toca então já de nos despir, pronto, paciência, ficávamos assim mas ajudávamos uma mãe em necessidade. Quem bem faz, bem recebe.

TERCEIRO RAPAZ
(Mais à vontade, apontando) “Ele foi o primeiro, ela lhe agarrou e lhe violou. Nós só ali a vermos (meneia as ancas, no gesto esclarecedor), ela só dizia -TOMA...TOMA...TOMA...- (os outros fazem o mesmo, com ritmo, a cada TOMA), depois, ainda queria mais, nos mandou embora deitarmos todos de costas (mímica o que narra) e até parecia marimba. Cada um foi violado e estamos bem zangados, por isso viemos denunciar aqui, porque nem um polícia apareceu, é sempre assim. Então com medo ficámos só calados o tempo todo e depois ela fugiu e disse um dia volta mais...”

SÓNIA SÁVIRA
“Aproveitamos este triste episódio para chamar mais uma vez a atenção da nossa polícia. Alô senhor comandante provincial da polícia, esta cidade está cada vez mais cheia de bandidos. Todos nós somos roubados, assaltados e agora, veja-se, violados!... Certamente que a si não lhe acontecerá o horror que estes jovens sofreram, rapazes inocentes a caminho de suas casas após terem visitado as suas namoradas. Hoje foram eles, amanhã poderá ser um velho. Se fosse consigo, estou certa que baixaria o cacete nessa tal de Kiki Langalanga Ninfô, mas como não é, que se lixe. Assim, cumpra com o seu dever, pois com a falta de homem que há por aí a concorrência será enorme e desleal.
(Saem os rapazes e ela suspira alto ao vê-los partir). E por hoje é tudo no “Raios te Partam Luanda”. Esta vossa amiga Sónia Savira, deseja-vos um caté mungu’ué...” (levanta-se e sai).

A sala torna-se repentinamente escura e no écran aparece projectado -Corte de Energia-. Quando a mesma for restaurada, estará à mesa da locução o locutor Honesto Jamorreu.

HONESTO JAMORREU
(Fala com grandes meneios de cabeça, parece que está a rematar uma bola com a mesma, etc.) “Caros telespectadores tivemos que interromper a nossa emissão por uns momentos devido aos habituais cortes de energia, pelo que pedimos as nossas sinceras desculpas (falha de novo a energia e tudo se repete).
Caros telespectadores, em nome da Edel, Empresa de Electricidade Liquidada, mais uma vez as nossas sinceras desculpas. Como devem ter seguido atentamente, acabamos de apresentar o conhecido programa de Sónia Savira, “Raios te Partam Luanda”, um programa de factos e acontecimentos que dignificam a nossa urbe.
Porem eu, Honesto Jamorreu, este vosso mais humilde locutor, também conhecido em certos círculos como a pérola da simpatia, a inteligência do tremoço, o nó fofo da gravata, (pausa onde, vaidoso, analisa o efeito das suas palavras) irá hoje sublimar-vos, proporcionar-vos a masturbação intelectual das vossas vidas (pausa, sorridente e meneando a cabeça várias vezes, para ver o efeito das suas palavras novamente).
Vou conceder-vos a oportunidade única... impar... de testemunhardes o acontecimento do ano, mesmo do século... nem o Bin Laden terá tido tanto sucesso (enfático) o acontecimento que jamais aparecerá nessa merda de programa “Raios te Partam Luanda” ou qualquer outro programeco, televisivo ou político.
(Como um anunciador de circo) Minhas senhooooooras, meus senhoooores, em directo para os vossos laaares, ooooo maiooooor espectáculoooooo doooooo mundoooo!... (Cresce ainda mais de voz) AQUI CONVOSCO O SENSACIONAL, O MELHOR, THE SUPER BEST, HONESTO JAMORREU E A SUA SUPERPRODUÇÃO -TUDO A PARVOÍCE LEVOU-!” (Saca uma pistola e dá um tiro na cabeça, caindo para trás. O público delira, grita, bate palmas e pede bis).

Atrapalhadíssima, todavia sempre sorridente, entra Sónia Savira que, em enorme felicidade por poder apresentar ao vivo a cena na CEC, faz um espectáculo de primeira.

SÓNIA SAVIRA
“É HORRÍVEL, É HORRÍVEL.... Minhas senhoras e meus senhores, QUE MARAVILHA, QUE SENTIDO DE PROFISSIONALISMO, QUE SHOW, SÓ MESMO O HONESTO JAMORREU!... OH, QUE HOMEM!...
(Ganha compostura. Desajeitadamente arranja as chuchas) Caros telespectadores, por razões imprevistas e alheias à nossa vontade, vemo-nos forçados a interromper esta emissão. Boa noite!” (Sai precipitadamente)

Alguns segundos depois, entram cinco pessoas em fila e dobradas uma sobre a outra completamente cobertas por um pano preto. Esta forma tem duas enormes cabeças, uma à frente a outra atrás. Dá uma volta ou duas pela cena, ocasionalmente balindo como carneiros, e sai. As luzes apagam-se e, como se de muito longe, ouve-se uma sirene da polícia.





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FIM

A PRECE DOS MAL AMADOS, capítulos 1, 2 e 3


CAPÍTULO I

O INÍCIO DO MUNDO

A imaginação foi sempre
O húmus do jardim de Clio.

(Alberto da Costa e Silva)




O céu escureceu rapidamente coberto por extensas nuvens negras e as copas das árvores vergaram-se, ondulantes, às danças macabras do vendaval. Aos pios das aves foragidas que nelas procuraram refúgio e abrigo, juntou-se o detonar seco e metálico do primeiro trovão, que ribombou transformado eco sinuoso em cavalgada desabrigada pela lonjura do infindo.
Nas ruelas da aldeia correu gente aos gritos, mães assustadas em busca dos bedelhos desgarrados. Afoitos, os homens guardaram nas choças pertences vários como puderam, enquanto os mais jovens pularam ruidosos, encantados pelo aguaceiro que sobre eles principiara a tombar, no velho ritual das cabriolas de alegria e dos gritos de prazer ao ameno flagelar da água sobre seus corpos luzidios.
Na cabana principal, sentado numa cadeira de madeira avermelhada, meio escurecida pelos fogos do braseiro, Juba de Leão, o soba grande, sorriu melancólico e cuspiu o tédio para o chão de terra batida, após as baforadas que tirou à mutopa quase apagada, em serena apreciação do fumo a invadir-lhe o peito, num calor antigo e familiar. Agarrou na cabaça da cerveja de milho, levou-a lentamente aos lábios e sorveu até se sentir satisfeito. Pela porta entreaberta percebeu as bátegas da chuva, que lhe pareceram minúsculas flechas de ferro a entranharem-se pelo solo com gritos prenhes de exultação. Anestesiado pela bebida e pelo odor penetrante da terra molhada, suas pálpebras baixaram sobre o mundo que o rodeava e tombou adormecido, a cabeça a pender sobre o peito, enrugado como casca de embondeiro carcomido pelo tempo.
Teria nascido no início do século, não sabia ao certo o ano, agora que se tornara ancião dera para falar muito de campanhas de grandes reis contra os brancos. Lembranças onde as lendas se fundiam nos factos e nos mitos, remando entre raios, trovões, cataclismos, transfigurações, metamorfoses e aparições inopinadas que levaram o branco que procedia à ocupação militar das terras, a perseguir exércitos de guerreiros invisíveis, imunizados contra o trovejar da sua artilharia. Desiludido, prisioneiro do poder da tradição, das suas leis e regras, incapaz de vencer a barreira do tempo, sentindo-se responsabilizado pelos desaires dos antepassados, das guerras perdidas, das rendições incondicionais, da subjugação abjecta à arrogância forânea, resmungava que nunca se extirparia por completo a erva daninha do bojo da boa, haveriam de medrar sempre juntas como irmãs gémeas, já vira muitas luas ir e vir, mais do que as estrelas que existiam nos céus, ele bem sabia. E quando as crianças o ouviam, abriam as bocas em espanto e descrédito.
Mais luas do que as estrelas que há nos céus? O nosso rei é poderoso!
Da cabeça pendida, a baba escoava-lhe peito abaixo. Em estupor, o corpo sacolejava ocasionalmente e a mão esquerda afastava, pelos gestos que desenhava no ar, sombras invisíveis, fantasmas e receios ancestrais que o açoitavam desde que apareceu o sonho repetitivo e desvairado, no qual uma serpente inimaginável, lançava sobre ele línguas bifurcadas que sibilavam de duas cabeças, macho e fêmea, os netos abandonados, desterrados por sua ordem, filhos de um dos que viera do mar, e com o qual havia estabelecido pactos de conveniência, solidificados pelo sangue.
É que tão cedo a hora da independência se vislumbrara, com o anúncio do fim da dominação colonial através dos acordos assinados, mandou espalhar pelas aldeias até onde o seu poder se estendia, que os mulatos teriam que ser entregues ao pai, e as mães que com eles quisessem ir que partissem.
- Quem nos trouxe essa gente aqui? – alvitrou, pelos ventos quando percebeu sobre si olhares duvidosos, interrogadores – Vieram de longe, não fomos nós que os chamamos, quem fez filho com eles pode ir.
No recôndito da noite, no catre, a Consciência ainda lhe gritou, ténue, abafada, sabendo não haver justiça, peso e medida no decreto, só despeito e rancor.
Mas não foram os filhos, foram os pais ou os avós, os filhos já são nossos!
Achou que chegara a hora de revidar o mal e humilhações sofridas através dos séculos, quem chega e desrespeita as leis que encontrou, quem rouba para além do que lhe foi dado, não merece consideração porque fez-se estranho perante os que os acolheram no regaço dos hábitos e costumes.
Rapidamente a Emoção investiu, velho ele estaria, mas ainda lúcido.
É o mesmo! O filho sempre defende o pai, não deixa que te enganem mais uma vez, saíram todos do mesmo ovo.
Em desespero de causa, agarrada a uma esperança que acreditava poder manter à tona, a Voz da Razão não se deu por vencida
Mas o ovo, quem o põe? Sai do pai ou sai da mãe?
O Coração, marcado pelo açoites da memória não se condoeu, não poderia haver espaços para filosofar.
Não interessa, não interessa.
Sorriu. Sobrevindo entre os argumentos das duas, e surpreso com os argumentos e contra argumentos, indagou-se se alguma vez e de igual modo os que lhe roubaram o poder também teriam sofrido das mesmas culpas.
Juba de Leão revestiu-se assim da capa dos justiceiros e decretou a lei a ser seguida, dente por dente olho por olho, sem sequer pensar que o seu sangue escarlate fluía igualmente vermelho nos netos mulatos, livre, ameaçador e independente como a independência que chegaria em breve para tudo levar em frente num cataclismo de formas anunciadas e imprevisíveis.
Não se sentiu ameaçado perante o desrespeito à tradição, pelo que conhecera dos brancos tinha a certeza que nunca invocariam antepassados para se vingarem do gesto de arrogância, da quebra dos valores próprios. Jamais os ouvira ou vira fazê-lo. Os brancos quando oravam ou imploravam aos do sangue era aos vivos a quem endereçavam os medos e as angústias. Mas em caso que consultassem seus mortos, sabia que os mesmos estariam afastados muito para além das montanhas e das florestas que delimitavam a sua regedoria, para além dos mares infindáveis que ouvira falar, muito longe da possibilidade de lhe nublarem a mente e a tranquilidade, seus reinos e leis sendo de outras naturezas.
- Os filhos da cobra têm que ir, as mães que os entreguem ao pai. – ditou.
E agora que os antepassados lhe anunciavam a neta esquecida, Nazamba, amedrontava-se. Incomodado, tentava ofuscar a memória de Balanta, a filha, a percorrer as vias poeirentas da aldeia, feita louca, atirando punhados de areia para o ar.
- Entregar a minha filha no pai? Não é ela dos nossos, não pagaram o meu dote, o soba grande não recebeu tudo o que pediu, não enterrei o umbigo deles na terra dos avós?
O povo, calado, evitava comentar, nem um muxoxo, embora nos olhos de muitos se visse o desaprovo e a compaixão, não era deles proceder de tal modo, mas não se sabia o que sonhara ou quem consultara Juba de Leão. Tantas coisas a acontecer e de maneira tão veloz que lhes ultrapassavam o entendimento e a aceitação, quem sabe se o branco não voltaria com mais força ainda, não seria a primeira vez, e quem lhes confirmava que efectivamente tinham partido? E se assim viesse a acontecer, para eles, que nunca tinham sido governados por um negro igual, como iria ser? Muitas eram as perguntas, as grandes fazendas iam voltar às suas mãos, as casas quem ia ficar com elas, os carros, os médicos quase todos brancos, quem os ia substituir? E os pretos que tinham feito mal aos seus iguais, o que lhes ia acontecer, agora sem patrões a controlá-los ou a dominá-los, para onde se viraria sua raiva, como se estava a virar a raiva do soba grande contra a própria família, o mesmo sangue?
Muitos se condoeram com Balanta, a filha preferida, da terceira esposa que, para aceder ao capricho e ambição dele casou com o homem vindo dos mares, recebida ainda virgem, com quinze anos.
- Levem os mulatos, levem, esses não são da terra.
Não mais recordava a partida do genro, levado para Luanda pelas autoridades coloniais e colocado num avião com destino a Lisboa, temeroso e desnorteado pelo que acontecia em Portugal e em Angola.
Como lhe apareciam agora os espíritos da culpa a não o deixarem dormir em paz, a desenterrarem memórias hereges que pincelavam num quadro que desejava não ter existido, o momento em que Marcelo, magro e bigodudo, arribara um dia à aldeia, pleno de evasivas?
O comerciante, nas suas andanças pela região observara um dia a jovem Balanta e pensou que chegara o momento de resolver a questão da solidão.
Uma preta assim é o que me faz falta!
Homem branco sozinho naqueles matos cheios de febres não era aconselhável, o último paludismo que o apanhara quase lhe levara a vida, felizmente que carregava sempre consigo um frasco de quinino. Chamou o empregado mais chegado, aquele que lhe servia de um faz tudo e indagou quem era a rapariga. Ficou agradado ao ser informado que era a filha do soba grande.
Ainda bem, mato dois pássaros de uma só pedrada!
- O que é preciso então fazer? – quis saber.
- O patrão tem que falar com o pai dela, mas é melhor mandar um familiar seu. Se o soba grande aceitar, tem então que falar com ela, a filha.
- Familiar meu, não sabes que estou sozinho?!... – retorquiu irritado.
- Então arranja alguém de sua confiança, posso ser eu. Vou lá e falo com o soba grande, explico tudo e se ele aceitar, o patrão vai depois falar com a menina para ver como vão andar as coisas do lado dela.
Até aí tudo bem, mas mandar lá este gajo a falar por mim é que não estou nada de acordo, acaba por dizer o que não deve e lixa-me.
- E depois, o que tenho que fazer depois?
- Se ela aceitar, tem que dar uma prenda de dinheiro ou um cabrito, ou panos para mostrar que é mesmo de verdade e que o assunto é sério. Aí, fica já quase família.
- Tudo isso, tenho que fazer mesmo isso, não chega só pedir a mão e pagar o que pedirem?
- Dessa maneira fica mal.
- Fica mal porquê?
- Nosso hábito...
- Mas vai já avisando o soba que eu não vou fazer esse casamento com todos as vossas manias, vai ser casamento de branco, não vou andar aí a pôr esteira no chão, come isto hoje, bebe aquilo amanhã e não sei o que mais. Dou o dinheiro e vocês façam lá os vossos ritos e batuques longe da minha casa. E não quero saber de mais coisas, tudo que tiver que dar vou dar de uma só vez, ouviste ?, que a família fique bem ciente disso, nada dessas confusões uma semana isto outra semana aquilo, daqui a uns meses não sei mais o quê e transformam-me a casa em kimbo.
- É melhor fazer logo filho, acaba com todas as falações. – aventurou o empregado.
- Isso é outra coisa, claro que se estou a casar é para fazer filhos. Vai, vai tratar desse assunto, e nada de falares muito, ouviste?
Passou o dia em pulgas.
O que o raio desse preto estará para lá a pintar? Ainda vai acabar por prometer uma data de coisas de que não lhe falei, ou deitar tudo a estragar!
Mas assim não foi, o empregado cumpriu com zelo a missão e a resposta foi positiva, o soba sentia-se muito honrado de poder unir as famílias e teriam que falar em data a anunciar, mandá-lo-ia chamar.
Durante umas duas semanas viveu a angústia natural de todo aquele que aguarda pelo que não sabe quando vem, desmazelando-se nos afazeres, perdendo o gosto pela comida mal preparada pelos criados e nunca a seu gosto, e quando chegou a ocasião de se ir apresentar, quis fazer as coisas à sua maneira não obstante ter sido devidamente instruído para os preliminares e o mínimo de cerimonial a observar.
Todavia, homem cuja ascendência épica reclamava armas e barões assinalados a partir de uma ocidental praia lusitana, bem como a edificação, entre gente remota, de reino que tanto sublimaram, dispensou os salamaleques nativos exigidos e apresentou-se com uma comitiva e dádivas de impressionar e calar qualquer boca que se opusesse.
Com uma estrondosa batucada à frente, que se fazia ouvir a muitos quilómetros, anunciou a sua chegada majestosa em tipóia coberta e levada por quatro robustos carregadores. Já não se usava tal meio de transporte há muito, mas sabia que o gesto inesperado e fora do tempo impressionaria o soba, lembrar-lhe-ia o poder do branco nos tempos anteriores, e cortaria muita conversa que, para ele, seria fiada. Atrás, uma longa fila de carregadores e pastores, cada um portador de uma dádiva. Depois de descer, mesmo ainda antes de cumprimentar o soba grande e futuro sogro, em voz fanhosa devido à emoção, ordenou que os presentes fossem colocados sobre esteiras já estendidas. Caixas e mais caixas com sal, sabão, sacos de açúcar, molhes de rolos de tabaco seco, panelas, copos, talheres e pratos de esmalte pintados de flores garridas, pipas de vinho tinto, garrafões de aguardente, garrafas de vinho do porto, peças de panos vários para uso de homem e mulher, iguarias e doces diversos. Os pastores, previamente instruídos, edificaram uma pequena cerca para onde remeteram todo o gado, as cabras, os porcos, as galinhas, os patos, enfim, tudo o que ele pensara que levasse o soba e os seus a aceitarem o seu pedido e, mais tarde, toda a região a privilegiar a sua casa comercial que, com a união, acabaria por ser expandida. De seguida, sem demais protocolos e arroxeado pela aguardente que antes ingerira para ganhar coragem indómita, por mares nunca antes navegados colocou o interprete a dizer o que pretendia. Não obstante o insólito, ou talvez por sua causa e origem, o espectáculo deu resultado e no ano de 1945, combinou-se a data para o casamento, ficando a tradição pré-nupcial a ser cumprida pela noiva, disso não abriram mão, branco ou não, ela teria que cumprir com os ritos a fim de que o matrimónio fosse abençoado e sem impedimentos impostos pela não observância dos costumes. Ainda assim ele apressou o casamento, e durante longos anos o matrimónio foi estéril. Sentiu-se culpado, África era uma terra muito estranha.
Será que estas crendices são mesmo verdadeiras?
Para se redimir, sentir uma consciência mais tranquila, ordenou que viessem curandeiros de toda a região que, após longas e onerosas consultas, apontaram invariavelmente a culpa para a mulher, o eterno pecado de Eva. Manteve a fé e foram fazendo os tratamentos que lhes impingiram, nunca se ouvindo de sua boca a exigência do rompimento da união e a devolução do dote, como lhe foi aconselhado fazer e impor. Por fim Balanta engravidou e Marcelo viu-se no seio e foco de novo conflito de culturas porque no oitavo mês, apareceram a mãe e tias de a exigir que o parto decorresse fora da casa, ao ar livre, caso não estivesse a chover. Tanto se opôs, tanto gesticulou e se enfureceu que, por compromisso, aceitaram fazer o nascimento dentro de casa, na sala principal. Chegado o momento, forçaram-no a sair, nem no quarto ou no quintal conseguiu ficar. A sua presença poderia trazer azares, já chegara a longa gravidez de oito anos, como diziam as mulheres e o que ele não entendia.
Gravidez de oito anos, estão malucas ou quê?...
Não o quiseram em casa e nada as demoveu, a sua presença poderia dar aso a que a extracção corresse mal, nunca se poderia ter a certeza dele não ter tido ou mantido relações extra conjugais durante este anos todos. Após o parto, quando julgava ir encontrar a tranquilidade merecida no lar, levantou-se outro vendaval porque foi exigido que a esposa ficasse no leito pelo menos uma semana, e que ele não tentasse impedir porque o amarrariam. Esse era o primeiro filho e mesmo que não se passasse por isso, era vedado à mulher fazer fosse o que fosse, não podendo preparar comida, portanto não podendo mexer no fogo.
- Porra, já chega, amanhã quero toda a gente lá fora, só fica a mãe dela e umas tias, nada mais, ouviram?
Claro que ninguém ouviu nem entendeu, aguentou com a casa repleta de mulheres e só não as correu para fora a pontapé, receoso que alguma coisa lhe pudesse acontecer, por não estar ainda completamente familiarizado com aqueles costumes e demandas que achou de estapafúrdias.
Nunca se sabe o que me poderão fazer, diacho quem me mandou?
Considerou ser aconselhável ceder, o sogro sempre era o régulo da região e se o mandasse amarrar ou qualquer outra coisa, o que fazer, quem culpar? Não poderia apresentar queixa, sabia que resposta o chefe do posto lhe daria.
Quem o mandou meter-se com essa gente, não poderia ter mandado vir uma mulher lá da sua terra, agora aguente-se?
Mas jurou que para os próximos partos, nem que tivesse que levar a mulher para outro sítio, haveria de estar presente um médico ou uma parteira reconhecida. Ao perfazer o terceiro ano, Marcelino, o filho, morreu mordido por uma cobra quando brincava num canto do quintal onde se amontoava a lenha, junto ao bananal. Teve que lutar, não quis consultar adivinho nenhum para saber quem enviara a cobra e porquê, teve mesmo que ser rude e afirmar que não queria meter-se nessas coisas, quem brinca com o fogo sempre se queima, e que se o filho morrera dessa forma, é porque o destino assim escrevera na sua página da vida. Por o morto ser uma criança, não lhe cobraram as exigências devidas, todavia Balanta desapareceu por um mês, regressando muda sobre onde estivera e o que fizera. Marcelo, complacente, intuindo que muita coisa teria que aceitar e tentar compreender, nunca mais falou na questão.
Seguiu-se Cecília, nome que a todos fazia rir pois ninguém o pronunciava correctamente a não ser o pai, ficou conhecida por Xila enquanto viveu. A febre tifóide levou-a. Anos depois, vieram Nazamba, nascida em Dezembro de1962 e, dois anos mais tarde, Tomás, os únicos que medraram com força.
Sobressaltado, Juba de Leão deu um safanão involuntário na cabaça da cerveja de milho e voltou a dormitar na benévola nuvem de oblívio que a bebida proporcionava. Contra a parede mais cerca, e ao alcance da mão, uma velha bengala de madeira que ostentava no cimo uma cabeça dobrada de cobra, o cabo de rabo de boi e o chapéu emblemático do poder, feito de ráfia. Era o que sobrara de uma vasta memória de poder ao longo de anos infindos, transmitida através da linhagem.
Um vento tímido penetrou pelas frestas de uma pequena janela, e reavivou as débeis chamas que iluminaram o interior. Fiapos de fumo esvaíram-se, ténues, pela porta, perdendo-se no cinzento da tarde.
Acordou pouco depois com a algazarra da criançada na apanha do salalé que gorgolejava pelos buracos da terra húmida e fumegante. Esfregou os olhos para afastar as imagens dos sonhos. Concentrou sua atenção nos sons que lhe chegavam. Sentiu a falta do fogo a arder, avivou as brasas com a bengala e perscrutou à volta o lugar onde os ramos secos de madeira e gavinhas amontoavam. Cerrou os olhos a fim de poder discernir a vida lá fora e só então notou que a chuva parara. Quis levantar-se, todavia o corpo não respondeu. Puxou com a bengala uma brasa acesa, que acabou por agarrar com a mão, e colocou-a na boca da mutopa, reavivando a mistura de tabaco secado e liamba. O calor do fumo penetrou pela garganta e aqueceu-lhe o peito, para se transformar na tosse antiga e seca.
Sempre gostara da chuva, não só por ser anunciadora de fertilidade e de bonança, como igualmente por confirmar as benesses dos antepassados para com a aldeia e o vastos clãs que há muito comandava. A chuva era a mãe da natureza, era ela que emprenhava a terra e fazia brotar a vida, vira vezes sem fim o milho e a massambala a crescerem espigados, até às colheitas. Com tristeza, recordou os tempos de antanho do soba grande, seu avô, e mais tarde do soba grande seu tio, em que observara as primeiras colheitas a serem-lhes levadas para que se cumprisse o rito da sua distribuição aos antepassados, e só depois ser permitida a colheita de todo o resto. Ele próprio, Juba de Leão, raramente, para não dizer nunca, executara esse ritual, assim como muitos outros, já perdidos no decorrer das luas imemoráveis.
Ganhara o nome quando, homem feito e robusto, numa luta que quase lhe levara a vida, matou milagrosamente um leão solitário, ao atravessar-lhe o coração com a azagaia. Seriamente ferido, foi tratado pelos curandeiros da região e por um enfermeiro filho da aldeia que trabalhava no posto administrativo, a dois dias de viagem. Recomposto, sua fama espalhou-se pelas regiões vizinhas, sobretudo quando o chefe do posto, sem se fazer anunciar, apareceu a cavalo para render homenagem ao chefe preto que matara o leão com uma azagaia, conforme ficou nos registos orais do povo.
Alquebrado, tudo lhe pareceu tão longe e irreverente. Perdera o gosto pela vida e alienava-se no fundo dos sonhos que a mutopa lhe proporcionava, mundo esse em que a mente não era invadida por lembranças bolorentas e humilhantes. Aí, não existiam invasores oriundos do mar que derrotaram seu tio, seu avô e os que lhes precederam. Seres poderosos que lhes roubaram os filhos e mulheres, enviando-os por mares longínquos e estranhos, se apossaram das melhores terras, onde construíram fortes, povoações comerciais, fazendas. Não havia, nesse mundo onírico de fronteiras infindas e amorfas, chefes de posto e administradores para lhe imporem, a ele, Juba de Leão, leis desconhecidas e o forçarem a despachar o seu povo longe, para o trabalho forçado. Não se manifestavam os desenganos da independência que ele vira chegar tarde, e pela qual aguardara com fé e afinco. Aí, onde tudo era calmo e tranquilo, onde nada o perturbava porque etéreo, não se consumia na luta fratricida que lhe destruíra várias vezes grande parte da aldeia, o remetera para exílios vários e, uma vez recuperada a zona, o regresso a um presente nebuloso no qual perdera ainda mais a autoridade e a firmeza das convicções. Não dava conta, nesse mundo diáfano, que não era ele quem mandava, mas sim as diferentes tropas que por lá passavam e que lhe violaram as mulheres e lhe levaram a pouca comida e os mancebos, quando e como bem queriam. Como fizera seu neto Tomás, numa manhã de cacimbo, ainda o dia não nascera, irrompendo violento pela aldeia adentro, a gritar pelo seu nome, só por milagre não o encontrara e raptara.
Quanto partiu, bem antes que as tropas do governo chegassem, pouco da aldeia tinha ficado de pé. Espalhados por todos os cantos, cinzas, corpos de pessoas e animais carbonizados, e o grito reverberado terrível do ódio colado à pele das árvores, embrenhado no visgo que delas gotejava, embebido nas gotas do orvalho e do sangue que escorriam para o mesmo charco lamacento, onde os porcos já chafurdavam.
Pousou o cachimbo no chão e puxou uma velha corda, com força. Fora, sob o capim do toldo, ouviu-se o badalar roufenho de um pequeno sino. Uma figura masculina pronto se desenhou no pórtico e aguardou.
 Manda chamar o meu irmão Nehone.  disse, abstracto.
 Sim, senhor!  respondeu o jovem, retirando-se.
Nehone era um dos muitos dos seus irmãos e que soubera insinuar-se junto do soba grande. Homem ambicioso, apoiara sem reservas Juba de Leão nas várias quezílias e lutas para a manutenção do poder, gerindo os assuntos correntes como um primeiro ministro. O soba grande concedera-lhe plenos poderes e reservara para si a administração das grandes causas da justiça e da moral, bem como a gestão dos ditames do mundo invisível. Era o juiz e o sacerdote, há muito que se fartara do dia a dia administrativo
O temporal desabou novamente sobre a aldeia e sentiu-se reconfortado. O que tinha a decidir, teria mais força para medrar com a chuva caindo, auspíciosa. Olhou pela porta aberta e conseguiu perceber apenas o cinzento da água a rolar com violência, batucando surdamente na terra. Uma felicidade, que há muito não experimentava, invadiu-o, fazendo-o sentir-se rejuvenescido e esquecer a neta. Levantou-se com dificuldade para ensaiar em agradecimento uns passos de dança. Trôpego, quase se estatelava, não fosse a mesa tosca em que se apoiou. Com um sorriso de condenação própria, sentou-se e bebeu da cabaça.
Pensas que ainda és novo?  disse, em condescendência.
Na porta soaram umas batidas secas e Nehone foi anunciado.
 Entra, sai da chuva.  disse o velho soba.
Nehone entrou, inclinou-se, levou as mãos ao peito e manteve-se calado. Com a bengala, Juba de Leão indicou-lhe um banco para se sentar. Olhou-o longamente e concluiu que Nehone sempre o servira com denodo, nunca o questionara e impusera a lei com firmeza, todavia de forma justa. Já nem se lembrava de que mãe é que ele era filho, tantas esposas tivera seu pai. Tinha ciência de que era um dos seus irmãos mais novos e, erradamente, pensou com idade de ser seu filho. Quando agarrou de novo na mutopa, num faiscar da memória recordou-se que Nehone era filho de Teka, uma das últimas mulheres do seu progenitor. Sorriu e gritou para o servente que certamente estaria na porta, meio abrigado da chuva, para lhe trazer mais uma cabaça de bebida.
 Esta chuva é boa...  disse, quase falando para si mesmo.
 É verdade, senhor. Com ela vamos ter boas colheitas. Vai é estragar o trabalho que estávamos a fazer na estrada.  respondeu Nehone, sabendo que havia uma razão para ter sido chamado e que teria que haver toda aquela conversa antes do soba chegar ao assunto principal.
A estrada que estava a ser construída, era o alargar da picada antiga, que iria permitir o acesso de viaturas de maior porte, para benefício da região. Levara-lhe anos a convencer as autoridades administrativas locais que, por fim, concederam-lhe alguns meios quando se começou a falar de guerrilha e bandidos vindos da Zâmbia. A mão-de-obra era da aldeia principal e Juba de Leão esperava que, depois, a estrada não servisse par fins militares.
Ao bater de palmas o soba mandou o servente entrar. Este ajoelhou-se, mantendo a cabeça baixa, e colocou a cabaça aos pés do velho, após ter bebido um pouco do conteúdo à frente dos irmãos. Aguardou, por uns instantes.
 Podes ir, vai para o fogo na tua cubata.  despachou-o, com um sinal da mão.
Quando o jovem saiu, Juba de Leão colocou a mutopa no chão, agarrou na cabaça bebeu longamente e limpou os lábios com as costas da mão. Em gestos lentos, passou-a a Nehone que o imitou, colocando depois a cabaça aos pés do soba grande. Pela primeira vez, talvez pelas sombras avermelhadas que as acanhadas chamas do fogo lançavam na cara do irmão mais velho, deu-se conta do quão gasto e abatido este se mostrava. Manteve, de soslaio, o olhar e tentou adivinhar a razão para a qual o velho soba o convocara sob uma chuva torrencial. Se o chamara com tanta pressa e naquele momento, é porque a questão a ser tratada tinha inicialmente a ver com chuva, o aguaceiro despertara uma qualquer emoção ou lembrança, e se tinha a ver com chuva, tinha a ver com vida, com renovação, e não com desgraça ou morte. Ao dar conta da constatação estremeceu e veio-lhe ao pensamento, como o estampido de um trovão, que fora chamado para tratar de assunto ligado à sucessão, o velho já por duas vezes lhe dera a entender, de maneira bastante sub-reptícia, que havia mudanças a fazer. Agora, media o alcance das afirmações. Sem querer, a sua respiração tornou-se ofegante e o peito arfou involuntariamente.
Mas o meu coração tem que me trair assim porquê?
 Que foi?  perguntou-lhe Juba de Leão.
 Nada, senhor. É a bebida, está boa.  respondeu envergonhado por não se ter controlado.
Com as emoções a dominá-lo, olhou com gratidão para o irmão, nunca duvidara da sua nobreza e rectidão.
Quem planta sempre colhe, o velho também sabe disso.
Chegara a hora de este lhe retribuir os longos anos de lealdade explícita, de admitir que uma mão lava a outra e ambas a cara. Foram décadas de dedicação, às vezes de
negação por nem sempre estar de acordo com esta ou aquela acção que lhe fora incumbida, era pois mais do que justo o reconhecimento de Juba de Leão. Comovido, baixou a cabeça para controlar lágrimas que, empurradas teimosamente do coração, batalhavam para não permanecerem em seu esconderijo.
Kalunga, ajuda-me então, não me vais fazer fraquejar como uma criança!
 Esta bebida tem fogo.  disse, a pigarrear, para disfarçar.
 É verdade, está boa, fermentou bem. Fuma também a mutopa – respondeu Juba de Leão.
Fumar a mutopa, eu ?... Vai fuma, fuma, não lhe desagrades.
- Só um pouco...
Nehone não era afoito nem ao tabaco nem à liamba, mas para não ofender o irmão, agarrou no cachimbo e puxou duas baforadas, que o fizeram tossir, engasgado.
Juba de Leão olhou para ele e caiu no riso, revelando uma boca falha de dentes. A fragilidade do irmão mais novo perante o fumo espantou-o e, pela primeira vez, deu conta de que nunca antes o vira fumar.
- É verdade, nunca te vi fumar, tinha-me esquecido.
- Não é nada. – disse, quase lacrimejando – Engasguei-me no fumo.
A chuva amainou e a trovoada deslocou-se para o norte. O céu clareou o suficiente para deixar penetrar na choça a luz mortiça do fim da tarde, mas todos sabiam que durante a noite o aguaceiro desabaria de novo. As aves mantiveram-se recolhidas nas árvores, sem piar, e as galinhas mais atrasadas encaminharam-se para as toscas capoeiras. Percebia-se o ocasional balido de um cabrito, certamente procurando a teta da mãe para a derradeira refeição do dia.
 Nunca mais tivemos notícias do meu neto Nataniel, já esqueceu a aldeia.  disse Juba de Leão.
Nehone tranquilizou-se quando viu as suspeitas confirmadas, o velho desejava falar sobre quem lhe sucederia. O que diria ao soba grande quando este lhe informasse que desejava indicá-lo ao conselho, para sucessor?
O que vou falar? Só agradecer?...
 Não é nada, vai ver. Os nossos quando vão nas cidades grandes esquecem o que ficou para trás.  respondeu lesto, para o alegrar.
 Mas mesmo Nataniel, já senhor doutor e general no exército? Esse filho não nos pode esquecer.  respondeu o soba, resvalando para a tristeza.
Nehone sabia que Nataniel era o neto preferido de Juba de Leão. As autoridades da província, para agradecerem ao velho a lealdade ao governo, enviaram o neto, ainda jovem, para fora, de onde voltara formado em medicina. Pronto o integraram no exército, deram-lhe, algum tempo depois, a patente de major pela dedicação e desempenho nos postos médicos das frentes de batalha. Regressado à capital, foi colocado no Hospital Militar com um futuro promissor por ser trabalhador, competente, e por todos estimado, dado o seu trato afável. Na aldeia, só podia ser tratado por doutor ou general, já que Juba de Leão não sabia qual a patente que vinha primeiro e não desejava mostrar o seu desconhecimento. General era posto alto, há muito que o reconhecera.
 Senhor, os afazeres na capital são muitos, e a vida é outra. Nataniel é pessoa importante, mas nunca esqueceu os seus.
 É verdade, é um bom filho, mas estou preocupado. Estou velho...
- Velho, qual quê, ainda aguenta muito bem. – respondeu Nehone
- Pode ser, pode ser, mas estou cansado, o tempo passa.
Nehone sobressaltou-se de novo. Esperou que o velho não tivesse notado, não queria revelar ansiedade. Pressentiu que a conversa estava a ser encaminhada para o anúncio que aguardava.
Fica calmo, fica calmo, controla-te!...
Acabara por escurecer por completo e reavivou o fogo. Com os gavetos secos, as chamas elevaram seus bailados serpenteando nas sujas paredes do interior da cubata. Olhou-as fixamente, como que hipnotizado, vendo nelas as frustrações que sentira ao longo da vida, formas desconjuntas, desmembradas numa harmonia de movimentos que mais lhe pareciam o cavalgar desordenado de um rebanho de gazelas, pelas planícies do pensamento.
 É verdade, o tempo passa.  Nehone não sabia verdadeiramente o que dizer.
 Estou como aquele leão que matei, só que ele tinha dentes e eu não.
 Senhor, não diga isso. O leão ainda era forte, nós vimos.
 Sim, vocês viram, mas quem lutou com ele fui eu. Era já um leão velho, solitário como me sinto agora, qualquer um o vence.  respondeu, completamente invadido pela tristeza que a lembrança e a ausência do neto produziram.
Calou-se e coçou um pé no outro, talvez recriando a cena da luta, já que um esgar de sorriso permaneceu esboçado nos lábios semiabertos.
O leão, velho e doente, quiçá cheio de fome porque já não mais caçava, atirara-se a ele, julgando a presa humana mais fácil. Mas mesmo assim, teve sorte em ter saído com vida. Não fora a azagaia que mantinha firme na mão e sobre a qual a fera caíra quando se encontrava derrubado no chão, o que teria sido dele? Deixara que a história ganhasse proporções mais largas porque lhe interessara, conferia-lhe estatura e grandeza. Até o homem branco que mandava, para lhe roubar mais gente para as plantações, viera a cavalo, fingir que lhe rendia homenagem pelo feito. Todavia agora, tudo lhe parecia distante e sem importância. A caricatura de sorriso, murchou por completo nos lábios.
Nehone desejava compartilhar a tristeza do velho, porém preferiu não se manifestar. Não conseguia ler-lhe o coração, escolheu não arriscar, o momento era delicado. Manteve-se a olhar timidamente de soslaio, tentando não esfregar a comichão que se instalara nas mãos, para não revelar nervosismo. Sem saber porquê, teve vontade de rir.
- O meu neto, o nosso filho, tem que vir, a cidade não é boa, estraga os costumes. Olha só na tropa e vê se esses miúdos respeitam mais a gente.
- Assim é, mas o que podemos fazer? Eles é que fazem a guerra.  respondeu Nehone.
- Mas Nataniel não.
- Nataniel é médico, senhor. Ele cura a vida, não a tira.
- Ficou muitos anos fora, mas é o orgulho nosso. Nunca antes tivemos um filho tão importante.
- Lembras-te do comandante Paulo, que o levou para Cuba? – perguntou Nehone, tentando adivinhar o pensamento do irmão.
- Então não lembro, o nosso compadre o camarada Pablo?... – respondeu Juba de Leão, mais animado.
- É verdade, ainda me pergunto por onde andará hoje? - Insistiu Nehone.
- Certamente que o Nataniel sabe, temos que o consultar.
Por uns momentos alegrou-se. Endireitou o corpo e olhou longe, como que vislumbrando através da noite e da intempérie, o futuro brilhante de Nataniel como homem culto e sabido, com fama expandida pelo país, toda a gente devendo-lhe favores, uns, porque curou, outros porque salvou a vida, mais ainda, porque sendo pobres, os tratou de igual modo.
Porém, o ribombo do trovão que os ensurdeceu momentaneamente, trouxe-o, sobressaltado, de volta à cubata e à realidade. Com um longo suspiro deixou pender a cabeça para o peito e, alquebrado, começou a chorar, quietamente.
Nehone assustou-se.
Será que pressentiu a morte e chamou-me para despedir-se?
Boquiaberto, não conseguiu acreditar que o ancião chorava efectivamente e amedrontou-se por ter sido obrigado a testemunhar, pela primeira vez, o sinal de fraqueza no soba e seu irmão mais velho. Olhou-o de frente, e o que viu revelou-lhe a certeza de que ele perdera a vontade de governar e de viver. E, numa explosão mais forte ainda do que o trovão, deu conta de que o sucessor que desejava apontar era Nataniel, o neto deles. Juba de Leão carpia porque tinha a convicção de que os desígnios por si traçados não frutificariam. O neto não aceitaria deixar a capital e viver as vicissitudes do campo e da vida tradicional amarrada a preconceitos antigos e cada vez mais em desuso e em vias de desaparecimento natural. Sobretudo não se submeteria a uma vida rude, de incertezas, que, em comparação à vida da capital era um simples desassossego. Pressentia que o neto recusaria o que, ao ser conhecido, desencadearia fricções, as leis da sucessão, se é que ainda existiam, não eram bem delineadas e seguidas como no passado do seu tio e do seu avô. A maioria dos sobas fora indicada pelos governos, tanto o colonial quanto o nacional, através de uma qualquer repartição ou de um qualquer ministério, ele nem sabia como nem porque razão, qual era soba, quais eram os sekulus. As lágrimas eram o canto do cisne das aspirações há muito torneadas em sua mente e coração.
- O nosso neto não vai aceitar. – Falou alto para consigo próprio.
Uma raiva surda amotinou-se, agigantada e em rompante pelo peito de Nehone.
Eu que estou aqui e ele vai buscar tão longe, na cidade?...
Confirmado que o velho pretendia o neto, descobriu com ciúme e inveja, não a inveja de talvez nunca vir a aceder ao cargo, mas a inveja da rejeição, a traição que se impôs-se a si próprio, já que nada lhe houvera sido prometido em tempo algum. Erguera essa vaidade, sem qualquer indício de apoio ou cogitação alheia.
Eu que te servi toda a vida...
Levantou-se sem pedir licença. Entrado em idade, aprendeu que a lealdade não se paga ou circula de igual modo entre quem a recebe e quem a oferece. Pela sua experiência, devia ter suspeitado que o poder e a lealdade são pesos e medidas diferentes. A quem ela é exigida, aconselha-se unicamente a percepção da sua utilidade, não da retribuição do seu valor.
 Não posso ver o meu soba a chorar, vou sair.  desculpou-se.
Juba de Leão não se moveu, o que tolheu Nehone. Fixou o irmão até este reagir, uma eternidade, pareceu-lhe.
 Senta-te, a conversa não acabou, temos muito para decidir.  respondeu, de maneira seca e altiva, já recomposto.
Agarrou na bengala numa mão e no cabo do rabo de boi na outra, com o qual vergastou três vezes o ar, em raiva surda. A cada uma das zurzidelas, o estampido seco aferroou-se na mente e nos medos mais íntimos de Nehone. Sem notar encolheu-se e Juba de Leão sorriu, ciente de que restabelecera a autoridade e de que aquilo que o irmão testemunhara dali não sairia, o momento de fraqueza e de desalento tinham sido banidos para longe. Nehone sentou-se de imediato, e baixou a cabeça. Estabelecida a harmonia do poder, com a mão que segurava o cabo, agarrou na cabaça da bebida e estendeu-a, não com magnanimidade mas com amizade e suavidade.
 Bebe, para aclarar as ideias. Este meu coração está a ficar fraco, como o de uma mulher- concedeu esta desculpa ao irmão.
Nehone recebeu a cabaça, da qual bebeu, mais para abafar o rancor do que para agradar ao velho. E se se levantasse e afirmasse que não o permitiria, que levaria a questão ao conselho dos anciãos, aos curandeiros e adivinhos? Pronto morreu dentro de si a ideia. Olhou para Juba de Leão e suspirou fundo, parecendo resignado.
Nataniel não vai aceitar, não vai querer abandonar Luanda. Quanto a ti, espera e tem calma, aguenta os ventos até o momento chegar.
O soba grande chamara-o para consultas, e ele, incapaz de ler-lhe a alma, atrevera-se a conjecturar, numa vaidade justificada, a sua ascensão, elegendo-se por antecipação. Bebeu, sôfrego, até quase esvaziar a cabaça, sabendo que contra Nataniel seria difícil lutar, caso o velho levasse adiante a sua ideia. Era o símbolo de prestígio do grande sobado, médico e militar, com um vasto horizonte à frente. Percebeu que o velho detinha os trunfos, pouco lhe valeria no concelho de anciãos opor-se, todavia não desistiria, ainda tinha cartas guardadas na manga que, com paciência e habilidade, lhe proporcionariam a estocada final.
Bebe mais um bocado para ganhares calor!
Agarrou na cabaça e esvaziou-a. O irmão olhou para ele, surpreso, e escancarou a boca num sorriso enigmático.
Já deve estar a ver se me engana...
- Cuidado, não bebas tudo...
Nehone aventurava que talvez conseguisse, ali e agora, mudar-lhe as ideias, fazer-lhe ver que o neto seria muito mais importante na capital, quem sabe um dia até poderia ser ministro da saúde, general, mesmo ministro da defesa, até presidente. E caso isso acontecesse, então o sobado seria muito melhor servido, Nataniel teria a estrutura central do poder para fazer avançar a região. Seria por esse ângulo que teria que convencer os anciãos, desejar algo muito mais elevado para o sobrinho e convencê-los que a vontade de Juba de Leão era válida e nobre, mas pecava por miopia e timidez. Iria provar-lhes que o grande soba já não ousava, perdera o instinto de caça, a noção da realidade e, pior do que tudo, preconizava o laxar da tradição, não queria seguir as leis antigas que levaram a que ele fosse escolhido para dirigir. Tentaria dividir o mais que pudesse, para conseguir impor os seus desígnios
 Estou velho, preciso ponderar.  continuou o soba.
 Senhor, ainda falta muito para esse dia.
 Agradeço as tuas palavras, mas chegou a hora de pensarmos em quem vai tomar o meu lugar.
Mas quem mais te deveria tomar o lugar?
Juba de Leão não tivera irmãs, só ele, Nehone, filho de Teka, que verdadeiramente organizava e conduzia o dia a dia do sobado, sobretudo nos últimos anos em que a mente e acção do ancião começavam a dar mostras de caducidade.
 Não há pressa, senhor. Isso pode desencadear lutas, há muitos sobrinhos, disse-lhe para lhe fazer relembrar a tradição.
 Não haverá lutas nenhumas. Ninguém luta contra o leão, ele é o mais forte e o mais esperto.  retorquiu zangado Juba de Leão. – Acabaste com a bebida,
Nehone baixou a cabeça e recuou. Não era a altura. Levantou-se, dirigiu-se à porta, gritou pelo moleque e, quando este chegou, pediu mais cerveja.
A chuva redobrou e o cheiro da terra molhada penetrou novamente na cubata. Chuva abençoada que a todos alegrava. Na manhã madrugadora, ouvir-se-ia a natureza a estrepitar na terra húmida através do rostulhar das folhas e gravetos movimentados pela correria dos insectos vários, dos milipés, centopeias, ratos e lagartos. Quando o sol rebentasse, uma densa neblina vinda das entranhas da terra, em ascensão esbater-se-ia pelas copas das árvores, deixando no ar um odor penetrante de mofo e ranço.
Pelas frestas das cubatas, para quem olhasse, percebiam-se os reflexos dos fogos a tremelicar e as conversas abafadas. Em todas elas especulava-se sobre os motivos da conversa dos irmãos, mesmo sob uma chuva torrencial e a horas que escurecera. A noite é para os feiticeiros, não para pessoas tratarem de questões, sejam elas quais forem, portanto coisa boa não deveria ser
 Não será melhor deixarmos esta conversa para amanhã, quando a chuva passar?  solicitou Nehone.
 Estás com medo da chuva, ou é o teu pensamento que te está a comer?  retorquiu com violência o soba.
Levantando-se de um pulo, Nehone viu, ou pensou ver, aterrorizado, um raio varar a cubata, atingir o velho no peito e saltitar pelas quatro paredes da casa, saindo por onde entrara. Gritou apavorado, grito que só ele ouviu. Estonteado, caiu contra a tosca mesa.
Juba de Leão, de pé, saracoteava frenético à frente do irmão, o cabo do rabo de boi levitando no ar sobre sua cabeça em igual frenesi, da boca escorrendo palavras ininteligíveis que, ao ecoarem nas brasas sobre as quais agora dançava, compunham a melodia dos gestos que grotescamente esboçava pelas paredes da choça em sombras fantasmagóricas.
Com a cabeça a rodopiar, Nehone foi-se encolhendo até sentir-se do tamanho de uma lagarta e teve a impressão que o coração parara de bater, ou martelava em suas têmporas no latejar surdo dos tambores que ecoavam bem dentro de si.
Kalunga, Kalunga todo poderoso, salva-me do poder deste homem!
Uma luz esbranquiçada, que conferia uma aparência diáfana, irradiava do corpo suado do velho. A porta da choça entreabriu-se com o vento e o braseiro reavivou-se em chamas, como se alimentado por ramos e gravetos secos, no seio das quais o soba dançou por momentos que pareceram uma eternidade. Quando Juba de Leão caiu de barriga no solo, exausto e em completa imobilidade, a chuva cessou mansamente.
Nehone não ousou mexer-se.
O meu irmão é feiticeiro. O soba grande é feiticeiro!
As palavras pensadas martelavam reverberantes em sua mente, apregoando a aparência evidente para a lonjura do infinito.
O meu irmão é feiticeiro, ele é um grande feiticeiro!
Observou o corpo inerte do velho até sentir que este vivia. Só então ganhou coragem suficiente para se levantar e aproximar-se. Apalpou-se várias vezes, não se sabia se a sacudir a poeira ou a verificar se estava ali em carne e osso. Ao olhar para o esgar talhado na cara do soba, recuou assarapantado. Tremeu de medo, um medo ancestral, e não soube o que julgar. Pela mente viu-o feiticeiro, pelo coração sentiu-o sobrenatural, e pela alma, juraria que era divindade poderosa de reino tão tenebroso e medonho que nem arriscava sequer pensar no nome. Viria das profundezas da terra, o senhor da morte e do mal. Benzeu-se e, com o dedo, célere, fez a cruz três vezes no chão, à medida que cuspia outras tantas.
Em nome do pai, do filho e do espírito santo.
Juba de Leão virou-se, pesado, e pediu a Nehone, em voz cansada mas tranquila, que o ajudasse a levantar-se. Com muita relutância, Nehone colocou-o na cadeira, tendo ele logo procurado com os olhos a cabaça da cerveja de milho, que caíra sobre o catre onde dormia, mas não fez esforço para a solicitar. O silêncio reinou por um longo período.
 O meu neto terá que ser chamado, os antepassados querem que ele ocupe o meu lugar.
Nehone, que só deseja abandonar a cubata, não soube o que responder. Nada ali lhe demonstrara que os antepassados tivessem falado, aliás nem os ouvira, mas alguma força ainda o retinha pregado ao lugar para onde recuara. Acreditou ter gesticulado e pareceu-lhe ouvir saídas da sua boca palavras que não eram fala coerente, mas efectivamente suas.
 Rohnes em-etimrep rias rop rovaf!
 O que disseste?  Perguntou o velho, a rir.
 Ojesed em-ri arobme, outse odasnanc, eved ret odis a avuhc, uem oproc iòd.
O soba olhou para ele, boca aberta num sorriso como se já tivesse visto a cena centenas de vezes. Estava a medir-lhe o medo. Ergue-se penosamente, pedindo com o gesto a bengala que voara contra a pequena janela de madeira. Quando Nehone, mesmerizado, a entregou, Juba de Leão colocou-lhe a mão direita na cabeça e pediu-lhe para se controlar, para cessar de tremer feito uma donzela em momento de núpcias. Mandou-lhe abrir a boca e com os dedos enfiados pela goela, num gesto brusco, sacou-lhe o terror que o fazia falar coisas estranhas, fechando-o na palma da mão. Riu, gargalhadas esdrúxulas, os dentes falhos fazendo sobressair o que parecia desvario. Lentamente, levou as frases aprisionadas na palma da mão aos ouvidos do irmão e sibilou:
 Escuta. Escuta o teu pânico, como ousas querer suceder-me?
Nehone ouviu sua própria voz brotar da palma côncava da mão do velho:
- Senhor, permite-me sair.
Esforçou-se para fugir mas as pernas negaram-lhe a vontade. Caiu de joelhos, sem forças para se sustentar e temeu por sua vida, as palavras do irmão ricocheteavam na mente.
Como ousas querer suceder-me?
Desejou pedir-lhe perdão mas a fala não se materializou. Baixou a cabeça, ciente que o soba grande era duende poderoso que o levara a falar ao contrário. O ódio avultou-se-lhe no coração e teve intenção imediata de o matar, ali mesmo, todavia apenas o eco saindo da palma côncava da mão de Juba de Leão:
- Desejo ir-me embora, estou cansado, deve ter sido a chuva, meu corpo dói.
Juba de Leão retirou a mão do ouvido de Nehone que, ao reconhecer o sentimento de cobardia no que antes dissera de maneira ininteligível, caiu de borco no chão, desmaiado.
O velho pressentiu que havia gente junto à porta, dois ou três mais ousados que, não resistindo à curiosidade, e com o cessar da chuva, se haviam aproximado cautelosamente para tentar ouvir ou ver o que se passava.
 Venham retirar este homem daqui e levem-no para a sua casa.  gritou.
Ouviu os passos abafados de retirada precipitada. Sorriu e fez soar o sino. Escassos momentos após, apareceu o jovem servente que, receoso, pediu autorização para entrar. Vendo o soba de pé e o irmão prostrado a seus pés, sentiu um frio gélido penetrar-lhe os ossos. De olhos esbugalhados, recuou a bradar pela aldeia.
- Ai minha mãe, minha mãeeee, manhéééé...
As pessoas acorreram à choça do soba aos gritos, o curandeiro à frente, pensando-o morto.
Penosamente, deslocou-se para a entrada e olhou para eles, desdenhoso e desafiante.
 Quem morreu?  perguntou numa voz roufenha.
Todos pararam num silêncio absoluto. Uns, envergonhados. Outros, receosos. Foram recuando aos poucos. O velho observou-os por uns instantes e depois, apontando o dedo para Tuluka, o mestre curandeiro, ordenou-lhe:
 Entra, o mestre conselheiro adoeceu. Os outros podem regressar às vossas casas.
Virou-lhes as costas e arrastou-se para dentro, logo seguido de Tuluka.
 Fecha a porta.  Comandou, enquanto se sentava.
O curandeiro olhou para Nehone, que continuava inerte onde tombara.
 Teve medo, os antepassados falaram.  Disse o soba, com altivez, mentindo.
 Vou buscar as coisas e o ajudante.  Retorquiu Tuluka, retirando-se lesto.
Juba de Leão procurou pelo cachimbo, renovou a liamba e colocou-lhe uma brasa em cima. Sentou-se, mais reconfortado. Chupou com avidez, tossiu várias vezes e escarrou para o chão, limpando a boca com as costas da mão. Pronto a cabeça pendeu-lhe para o peito e caiu num profundo sono.
Quando o mestre curandeiro e o ajudante entraram, após terem batido três vezes as mãos e não obterem resposta, colocaram-no no catre, sobre um cobertor velho e mal cheiroso. Procuraram por um pano e taparam-no, sorrindo em aprovação do estado em que se encontrava. Tuluka agarrou no cachimbo, fumou pausada e longamente, enquanto o ajudante preparava as coisas para iniciar a sessão.
Os antepassados haviam falado, dissera o soba, caso fosse verdade, logo saberia o quê.





CAPÍTULO DOIS



OS SEM RUMO




A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem
tão manso dentro de nós que se revelam apenas
por um imperceptível pestanejar do pensamento.

(Mia Couto)



Nazamba olhou pela ventanilha, angustiada e surpresa. Nunca em sua vida sonhara entrar num avião, olhara-os, atónita, quando ocasionalmente passavam por cima da aldeia, mal se percebendo o ténue roncar dos motores tão alto voavam. Tensa, agarrando com força a mão do pai, atravessava o turbilhão de acontecimentos e emoções ainda não deglutidos em voo baixo e veloz, rasando as escarpas aguçadas dos medos mais recônditos, que bailavam possessos de angústias. Mal percebera o que se passara à sua volta, não apreendera o porquê dos gritos da mãe a indagar pela aldeia do soba grande, seu avô, se ela não era um dos deles, nascida e crescida na terra, com o umbigo enterrado no quintal da casa onde viera ao mundo. Confusa, não entendia o que o umbigo tinha a ver com a reviravolta repentina que a sua vida sofrera e o porquê de tudo isto.
Num torvelinho de emoções desajustadas, vira-se com malas feitas, levada com o irmão da aldeia materna para a cidade. por soldados brancos nervosos e armados até aos dentes. Pela primeira vez saía da povoação onde nascera e ao chegar à cidade grande, o terror que sentiu, pronto foi substituído pela surpresa do novo mundo que se revelo à sua frente, semelhante à magia das estórias que Balanta lhe contava na surdina da noite, sempre ciente de que, não obstante ser filha do branco tinha que ser iniciada nas coisas da terra. O que ao branco pertencia, ser-lhe-ia inculcado pelo pai e outros brancos da região, o que à terra encarnada africana incumbia, cabia-lhe a ela sua mãe, imbebê-la na alma e na carne. Embasbacada, sentiu medo quando pelas ruas de Luanda o pai os conduziu da pensão para o consulado português e vice-versa. Os carros, os passeios, as montras das lojas, o ror de gente branca nunca por si vista, e, por fim, o mar. O mar deslumbrara-a por completo. Na primeira vez que o pai os levou à praia, um pouco para mitigar o redemoinho em que suas vidas se tinham transformado, as conchas que avidamente recolheu, levou-as sigilosamente em caixa preciosa de cartão para Portugal. Foram, durante muitos anos, as vozes que a chamavam à terra materna, nelas embrulhava a alma quando a imensidão da saudade apertava. Nelas ouviu a voz da mãe e a memória do irmão desaparecido, entre ruídos estranhos que lhe lembravam o manso bater das ondas na areia de onde as recolhera e, por entre o ciciar do vento, às vezes, o uivar dos cães pelas ruelas da aldeia em noites escuras, ao farejarem a onça ou da hiena quando rondavam os currais.
No dia do embarque, Tomás, aterrorizado com o que ouvia os brancos falarem abertamente pelos sítios em que passara seguindo o pai e a irmã, não desejou partir para a terra do progenitor, fugiu e entregou-se ao primeiro soldado angolano que encontrou. Falou-lhe na língua da mãe, dizendo que era órfão e que não queria ir para onde os portugueses o estavam a levar. Conduzido ao comandante na pequena delegação, manteve a mentira. Este, precisando de soldados e visto a criança expressar-se na língua que lhes era comum, sem muitas perguntas, ficou com ele. O pai, abalado, ainda o procurou por umas horas pelas cercanias, não se aventurando mais do que duas ou três ruas à volta da pensão. Contactou a tropa e a polícia, que não se mostraram muito inclinados a resolverem-lhe o problema, o raio do mulato que ficasse se assim era o seu desejo, a guerra acabara, havia outras preocupações. Quando os da pensão confirmaram que o tinham visto sair com uma pequena trouxa, entendeu que o destino do único filho era a terra que o parira. Contou uma amarga mentira à filha que, já anestesiada por todas as incompreensões, simplesmente olhou para ele com olhos que ele tantas vezes vira nos porcos quando lhes metia a faca, no abate. Atirou-se para uma cadeira e teve que morder fortemente a língua para não rebentar em soluços. Um ténue fio de sangue escorreu-lhe boca abaixo, pelo sulco lateral do queixo.
Sentada ao lado do pai, ouvindo o quase silencioso roncar dos jactos do avião, olhava-o de soslaio e via o imenso mar de lágrimas interiores que chorava, envolvendo-lhe o coração amargurado. Nunca antes tendo sofrido, apertou-lhe a mão para que pudessem compartilhar as dores diferentes que os consumiam, filhos rejeitados da intolerância, ele por ser de fora, ela por ser de dentro do que viera de fora. Por fim, olhou pela ventanilha do avião, e observou a vastidão de terra encarnada, que abrangia tudo o que seus olhos conseguiam albergar, entrecortada de verdes diferentes, estendendo-se até chocar com o cinzento do horizonte.
- Papá, a mamã pode-nos ver de lá? - perguntou, relembrando os raros momentos em que ela própria admirara os aviões a passarem por cima da aldeia, em céus elevados.
Como resposta, sentiu a mão do pai apertá-la com tal força que quase gritou. Começou então a chorar baixinho, um pequeno chiado, quase o miar manso de um pequeno gato perdido, a teimosa imagem do irmão rodeando-a com um carinho que jamais lhe expressara. O pai, atordoado pelo sofrimento, levantou-se e foi encerrar-se no quarto de banho, onde permaneceu até que uma hospedeira, preocupada de ver a angustia da criança, foi bater na pequena porta, indagando se ele estava bem. Ouviu-o assoar-se e em voz embargada dizer que sim.
- Estou bem, vou já sair.
Regressou ao lugar, levantou o braço que separava os assentos e puxou a filha, apertando-a contra si. Evitou pensar, recusou-se a sentir e tentou afastar a forte dor que teimosamente o atormentava. Assim abraçados, adormeceram exaustos, esquecendo momentaneamente a vida, para entrarem num qualquer outro mundo onde a dor e a realidade não faziam morada.
Em Lisboa foram recebidos por gente que falava sem fim, vozes de comando semelhantes às dos soldados em Angola quando arrebanhados para a evacuação em Nova Lisboa. Desnorteados, viram-se empurrados por mãos pressurosas para aqui e para ali, preencha este formulário, só tem esse documento?, tem mais gente consigo?, a sua bagagem?, tem família à sua espera? Por fim, terminaram num lar com muitos outros, os homens lamentando o que tinham deixado para trás, uns com amargura, outros com réstias de esperança do regresso sempre possível, acalmada e digerida a situação. Falavam alto e frustrados, quando não agressivos, dos imensos anos de labuta, de sacrifício, tudo deixado para trás para os pretos destruírem, que se iriam comer uns aos outros como já o faziam quando abalaram, da merda do governo de frouxos que os abandonara, o que o país estava a precisar era de um Salazar, estivesse ele vivo nunca a África seria entregue ou perdida. Gritavam obscenidades aos capitães que organizaram a revolução, consideraram-nos traidores e vendilhões do império aos interesses do comunismo mundial. E ela sem entender, olhava-os, sempre agarrada à mão do pai, tudo observando com atenção e surpresa. Começou a sentir sobre si, ainda que poucos, os primeiros olhares de ódio, como se fosse a culpada do que acontecera e, pela primeira vez em sua vida que amadurecia precocemente, entendeu com um rude golpe, que as palavras do avô soba igualmente ali tinham valor, só que ao inverso, os filhos dos pretos que voltassem para donde vieram, ali não tinham lugar. O estrondo, tanto no coração quanto no cérebro, foi fulminante.
Aqui também sou filha da cobra!
Soube então que não era dos deles e que jamais seria. Conheceu um novo sentimento de raiva surda pelo pai e largou-lhe a mão, afastando-se, indo-se juntar às outras crianças negras e mestiças. Disse para si própria que nunca mais choraria em sua vida, e enterrou a memória da mãe e da aldeia, como se possível, não sabendo que a saudade e a lembrança sempre aparecem, sobretudo quando menos esperadas. Rogou aos espíritos que a mãe lhe ensinara a conhecer, que tivessem queimado e destruído a loja do pai, e assim ficou em paz consigo própria, empedernida e sem família, órfã dos destinos e das vozes ainda não ouvidas, que o avô desencadeara.
Por fim, de Lisboa foram para a vila do pai, perdida entre morros de pedra e árvores desconhecidas, para a casa de uma irmã solteirona que ao vê-la pela primeira vez não se conteve.
- Não a poderias ter deixado em África?
O pai olhou para a filha e sofreu uma forte picada no coração. Sentiu como que a alma, caso a alma tivesse peso, lhe caísse aos pés.
- Nunca mais digas isso, nunca! – gritou para a irmã, que se assustou.
Tentou abraçar a filha, que lhe fugiu com um grito.
- Larga-me!
A tia sorriu, sem esconder, adivinhando o vendaval que viria e para o qual contribuiria semeando ventos a granel. Os cegos, só eles esperariam que distribuísse carinhos e benesses à sobrinha, agora que passaria a ter que carregar por onde passasse. Nos olhos com que olharia para os outros, o peso do pecado do irmão.
Trazer uma preta para cá, onde é que já se viu?
- Onde é que ela vai dormir? A casa é pequena. – disse, como que a reforçar o pensamento tido.
- Amanhã vou comprar um cama e põe-se no teu quarto - respondeu agastado.
- No meu quarto? Cruzes credo! Talvez seja mais fácil o céu tombar-me em cima!...
- E porque não, não é mulher como tu? – respondeu o irmão, irritado
- Nunca, não sei que costumes essa gente tem... e mesmo que assim não fosse!
Preferiu não responder. Chamou a Nazamba e disse-lhe que ficaria na sala, no pequeno sofá, amanhã iriam comprar uma cama e que dormiria no seu quarto até arranjarem uma casa própria. A filha não respondeu.
Sem querer, vieram-lhe à mente as imagens do dia em que, carregado na tipóia, se dirigira ao soba para lhe pedir Balanta em casamento, projectando a imagem de homem poderoso com aquele cortejo de presentes para impressionar e logo lhe arrebatar a filha. Sentou-se, desconsolado e levou a cabeça entre as mãos
- Não é justo, Deus. Não é justo – disse, pensando alto
- O que é? – perguntou a irmã.
- Nada. Não é nada, são coisas do passado. Vou dormir, arranja os lençóis e cobertor para a tua sobrinha.
A tia entrou no quarto e pronto se ouviu o seu resmungar, propositadamente alto a fim de que a ouvissem e se fossem habituando ao que sentia e pensava.
- Lençóis, lençóis, quem pensa que é, talvez os queira de seda. Uma serapilheira é o que lhe basta.
Por fim apareceu com um lençol, cobertor e uma almofada. Atirou tudo displicentemente para cima do cadeirão e ordenou à sobrinha que fizesse a própria cama onde e como bem entendesse. Com isto saiu e bateu a porta do seu quarto.
- Não te preocupes filha, isso passa, ela nunca teve filhos. Melhores dias virão.
- Ela não gosta de mim porque sou preta – disse, seca.
- Não és preta, tu és mulata filha.
- Sou preta. Nunca mais serei mulata, serei sempre preta.- respondeu, com raiva e certeza.
Deixou que o pai lhe segurasse a mão, sentiu pena dele, afinal também sofria, não fora ele que abandonara a mãe, obrigaram-no. Comoveu-se, quis chorar mas lembrou-se da jura que fizera. Deu-lhe dois beijos e foi fazer a cama para se deitar.
A noite fechou-se sobre si mesma com o silêncio da casa. Apagou a luz da sala para deixar a filha descansar e sentou-se no cadeirão, tentando vislumbrar o que seria a vida dali para diante, o que faria. Os minutos passaram, transformaram-se em horas de angustia e pesar, ouviu os gemidos da filha em seus sonhos de imensidão sem norte, que seria dela, menina que sempre levara uma vida despreocupada e rodeada de gente, carinho e amor. Que seria da esposa, agora sem ele e certamente vilipendiada na aldeia, talvez não tanto por ser filha do soba grande? Como nem tentara sequer trazê-la? Talvez porque, por um lado, no íntimo soubesse que Balanta não aceitaria, e por outro, porque sabia que ela sofreria sem fim em Portugal. Pediu forças a Deus, ele que nunca se lembrara de viver pelas Suas leis e que nunca fora a uma missa. Talvez em Angola tudo se arranjasse e pudesse voltar. Se efectivamente houvesse eleições, os comunistas não ganhariam e os outros dois movimentos diziam que não queriam que os brancos se fossem embora, bem ouvira na rádio. Teria pois que ter fé e confiança, certamente que após Novembro estariam novamente em Ualali. Quereria então ver a cara do sogro, se teria coragem de o mandar embora após ter recebido ordens do governo assegurando que os brancos poderiam ficar e continuar a trabalhar para o desenvolvimento de Angola. Essa seria a política justa pois havia terra e espaço para todos, uma política de inclusão e respeito, nada parecida à política de exclusão e elitista dos comunistas que lhes ficaram com tudo. Estava certo que os angolanos não se deixariam enganar e, em Novembro, tudo se esclareceria definitivamente através de um governo eleito democraticamente pelo povo. Então voltaria, ele e todos os outros que haviam iniciado a construção da grande pátria angolana. Não queria saber de políticas, nunca pertencera ao grande capital e nunca acreditara que o comunismo fosse a salvação do mundo, sempre houvera oprimidos e pobres, a própria Bíblia o justificava e nem por isso Deus os salvara, o que desejava era a sua casa comercial e ser capaz de comerciar e educar os filhos. Haveria de voltar, se houvesse justiça divina e ponderação humana. Quando começou a madrugada, a cabeça pendeu-lhe para o lado, finalmente adormecido e reconfortado na ténue esperança.
Após o mata-bicho saiu para reconhecer a vila, que não era assim tão pequena e começar a ver onde arranjar uma casa, com a irmã não poderia ficar, suas vidas tornar-se-iam um inferno, já percebera e sabia que não poderia colocar sobre os ombros dela a responsabilidade da educação de Nazamba. Foi igualmente informar-se da escola para a filha e sentiu os olhares das pessoas sobre si, pela roupa via-se que era um africanista, pelo menos assim julgou, desambientado que estava. Tudo era novo e por identificar, afinal a sua terra tornara-se África, seu modo de estar e ver as coisas não eram os mesmos quando abandonara a aldeia há quase três décadas, jovem e pleno de sonhos e vontades. Em África construíra família, se enraizara nos costumes da terra. Sonhara e trabalhara para edificar um país forte e desenvolvido, não percebendo no fundo que o caminho só poderia ser esse, se fosse abrangente e não deixasse de fora a grande maioria da população. Construíra sua casa em chão que o soba lhe dera, mas achou justo que as terras fossem arrebatadas aos nativos para as grandes fazendas de café, de sisal ou de pastos, só assim o país se desenvolveria e a missão da mãe pátria se cumpriria. Mesmo vivendo rodeado de negros e casado com uma, achou normal e justificável, sem qualquer critério cientifico ou plausível, serem os brancos superiores, bem como os costumes que trouxeram e que sobreviviam, ao que ele chamava a missão civilizadora e que custara a vida a grandes homens como Silva Porto, seu exemplo preferido da grandiosidade da defesa dos interesses da portugalidade. Hoje, três décadas após, longe da aldeia e da vida que amara, começava a intuir que sempre fora um estranho em terra alheia. Seus filhos, sim, eram autóctones, haviam nela enterrado o umbigo e comido do barro vermelho africano em suas brincadeiras, conforme lhes ensinara Balanta.
Voltou a casa para ouvir a irmã a resmungar que a sobrinha nem sequer sabia fritar um ovo. Valeria a pena explicar o que fora a vida dela, a vida deles? Olhou resignado para Nazamba e fez-lhe uma festa na cabeça.
- Papá, arranjaste-me uma escola?
- Sim filha. Tenho que levar os documentos e amanhã ou depois começas as aulas. Ajuda a tua tia cá em casa, e o que não souberes vai aprendendo.
- Conseguiste também uma casa?
- Não, isso já é mais difícil. Tem paciência, tudo se arranjará em breve.
Sentiu a irmã a olhar de soslaio, como que dizendo arranja lá essa casa bem depressa.
- Esta casa também é minha, era do nosso pai - disse ele, sem querer.
- Mesmo assim pai, não quero ficar aqui.
- A menina acha que é boa demais para ficar aqui? – não resistiu, a tia.
Nazamba olhou para ela com tal intensidade que esta recuou e benzeu-se.
- Abrenuncio!... Que coisa, meu Deus!
Três dias depois começaram as aulas e, como estranha que era, foi motivo de curiosidade e atenção. Nessa altura ainda não eram muitos os africanos, fossem de que cor, sobretudo no interior.
- De onde vens? – perguntou uma.
- Ah também falas português? – carregou a outra, surpresa.
- Porque é que és tão escura, os teus pais também são assim? – indagou, sem maldade aparente, um terceiro
- Posso tocar o teu cabelo?
- Posso ser tua amiga?
Mas gostou, foi o alvo principal de atenção, sentiu-se uma pessoa à parte, especial. Voltou a casa contente, nunca tanta gente desconhecida lhe houvera conferido tal condescendência. Todavia guardou as sensações para si, limitou-se a informar o pai de que tudo correra bem.
- Daqui a um mês fazes doze anos, estás a ficar uma mulherzinha.
- Vamos ter uma festa, pai? – perguntou Nazamba, relembrando os aniversários passados.
- Festa?!... – cortou, preocupada a tia, mas para logo emendar – Quem tem dinheiro para festas e quem é que a vai preparar? Para além disso não conheces ninguém aqui.
Nazamba olhou implorante para o pai, que soube não poder negar à filha o pedido, logo o seu primeiro aniversário após a saída deles.
- Está bem filha, vamos fazer uma coisa muito pequena. Eu, a tua tia e mais umas duas amigas tuas, não temos muito dinheiro - respondeu, sem revelar a amargura interior.
- E será só por pouco tempo, não quero gente estranha cá em casa. – retorquiu a tia.
Esse foi o primeiro aniversário dos seis que celebrou nessa casa.
Aos dezasseis anos, com um relacionamento paterno cada vez mais conturbado, começou a pensar em abandonar o lar e os estudos. Não mais aguentava os comentários
da tia, as constantes insinuações que não compreendia como o irmão se metera com tal gente, que não fizera mal a ninguém para ter que aguentar com tal castigo, ela que nunca casara via-se agora a criar a filha do irmão com uma macaca. Igualmente já não tolerava as bebedeiras do pai que, não tendo suportado os descaminhos da vida, se remetera ao vinho para eliminar os fantasmas que constantemente o atormentavam, virando-se por isso contra ela. A amizade que sentira pela filha esvanecera-se, ou fora abafada no vinho, parecia que se transformara noutro ser. Resmungava por tudo e por nada, tornara-se numa pessoa azeda, em tudo que a filha fizesse encontrava defeito ou reparo, com a irmã sempre a apoiá-lo. A não ser o televisor à noite, pouco mais os unia.
- Olha para essas a fumarem que nem umas desalmadas, até parecem umas putas – disse para consigo mesmo mas suficientemente audível, uma noite em que, sentados na penumbra da sala, viam um filme.
- Mas são só jovens a divertirem-se numa discoteca – respondeu Nazamba, ofendida pelo comentário do pai.
- Toda a mulher que fuma e sobretudo em público, não anda muito longe disso – rematou, agressivo e desejoso de ferir.
- Se eu fumar então quer dizer que sou uma puta? – perguntou, Nazamba.
- Não te autorizo a usares essa palavra, sobretudo diante da tua tia – respondeu, mais agressivo ainda.
- Eu só a repeti, foi a que o pai usou e a tia também estava aqui.
- Estás a ver o resultado da educação que lhe dás? – interferiu a tia.
Fez-se um silêncio pesado, como se cada ponderasse que espada esgrimir de seguida para reduzir o outro ao silêncio vitorioso dos desencantos que os uniam.
- Mas o pai não me respondeu. Se fumar serei para si uma?... uma...
- Já te disse que toda a mulher que fuma é isso mesmo, e ponto final – rematou, ciente de que a irmã aprovaria, ainda que por omissão.
O silêncio voltou à sala. Nazamba levantou-se e dirigiu-se para o pequeno cubículo que há muito tinha sido transformado em seu quarto de dormir. Deixou a pequena porta entreaberta e deitou-se, vestida. Olhou para o tecto carcomido pela humidade e velhice, deixando os olhos habituarem-se à penumbra e seguiu o diálogo do filme até ao fim. Quando sentiu que o sono estava a chegar, com um esgar de sorriso, decidiu que a primeira coisa a fazer no dia seguinte seria comprar um maço de cigarros e um batom vermelho.
Acordou com a voz roufenha da tia.
- Pensas que eu é que tenho que te despertar?
Como dormira tanto, não gostava de chegar tarde à escola, paciência iria sem o mata-bicho? Riu ao pensar a palavra meio esquecida. Quando a usava, a tia não lhe perdoava.
- Lá vens tu com a linguagem dos pretos.
- Mas ó tia olha que essa palavra foi levada para África pelos brancos.
- Estás a insultar o teu pai, não é?
Nesses momentos sentia-se vingada e fazia todos os esforços para não esquecer por completo a palavra, tornara-se uma arma poderosa, uma farpa a ser lançada ocasionalmente para compensar e equilibrar emoções. Para além da tez castanho-escuro, a puxar mais para o negro do que para o branco, era a única coisa que lhe restara da terra, as lembranças esbatidas e carcomidas não lhe faziam fé, muito menos o rosto da mãe. Nem uma fotografia rara, tudo deixado para trás na correria de abandonar o mato e o país. Escovou os dentes à pressa, vestiu-se como pode, agarrou nos livros sem sequer consultar o calendário das aulas, e partiu porta fora.
- Hoje não mata-bicho, tia. – gritou.
Num dos intervalos chamou a Rita, a única verdadeira amiga que tinha e sentaram-se num banco.
- Não queres fugir comigo para Lisboa? – atirou-lhe à queima roupa.
- Credo Nazamba, o que dizes? Estás a falar a sério?
- Estou. Não aguento mais aquela casa, a minha tia sempre a resmungar, o fraco do meu pai sempre bêbedo, nunca se recompôs. Não é que ontem disse que toda a mulher que fuma é puta?
- E a tua tia, estava presente?
- Claro. Aproveitou logo para meter a colher. Quando sair, vou comprar um maço de cigarros, e vou fumar à frente deles. – disse Nazamba, determinada.
Rita não soube o que responder, a amiga estaria ofendida, e com razão, mas daí a começar a fumar... Largou uma gargalhada.
- O tabaco faz mal, não comeces que é um vício terrível.
- Mais mal me faz o meu pai. Ele disse aquilo para me magoar, por isso vai agora poder chamar puta à filha. E olha, vou também comprar batom e começar a pintar-me.
A amiga olhou para ela em espanto, não era a Nazamba que conhecia, rebelde sim, mas não revolucionária. Segurou-lhe a mão e acariciou-lhe a carapinha, em afago.
- Não faças isso, vamos conversar melhor depois das aulas.
- Quanto ao fugir para Lisboa, não sei, mas que logo vou começar a fumar, juro-te que vou. Vão ver, vão os dois cair para o chão com chiliques –levantou-se, entre risos.
No dia seguinte, quando o pai chegou, ao anoitecer, encontrou-a sentada na escada de entrada da casa, cigarro na mão. Assim que o viu, acendeu-o e puxou forte o fumo, conforme vira seus colegas fazer. Não sentiu a pesada mão paterna a lamber-lhe o rosto porque a tosse causada pelo trago irreverente do fumo a asfixiava, engasgada na saliva. E foi isso que a salvou, pois o pai ao vê-la a perder o ar e a cambalear, agarrou-a pelos ombros e fê-la sentar. Em sua mente ébria não percebia o que estava a acontecer, sentiu-se traído pela vida, vieram-lhe imagens antigas da filha a brincar em seu colo, na varanda da loja.
Papá, papá porque é que os pirilampos acendem à noite?
Não aguentou a facada que recebera, e sentou-se a seu lado em soluços que pareciam balidos. Nazamba levantou-se, agarrou o cigarro que tinha ido parar junto à porta, levou-o aos lábios e tragou, sem engolir, o fumo que atirou à cara do pai, numa vasta baforada. O fumo de todas as grandes queimadas africanas que em si ardiam há muito, ele fora e era o vento indómito que as alimentava.
- Pronto, já sou puta, puta que a minha mãe nunca me chamaria, ainda que eu o fosse – disse, entrando na casa com o cigarro na boca.
A tia, que observara da porta entreaberta a última cena, amedrontou-se e deixou-a passar, benzendo-se. Depois, dirigiu-se ao irmão e agarrou-o pelos braços, sacudindo-o com força.
- Se bebesses menos e procurasses alguma coisa para fazer, talvez te soubesses impor. Nunca a deverias ter trazido, tem a alma tão negra quanto a cor, essa gente é filha do diabo, já diz a Bíblia.
Exaurido de vontades, entrou, agarrado pela irmã que o sentou no cadeirão habitual, onde ficou a soluçar até adormecer.
Horas mais tarde, já com a casa embalada no primeiro sono da madrugada, Nazamba veio com um manta e cobriu-o. Do seu rosto tombaram tímidos fios de tristeza que pingaram para a mão sapuda do pai. Limpou-os, suavemente, com as costas da mão.
Ai meu pai, o quanto nos magoamos...
Abaixou-se, deu-lhe um beijo na testa, encostou o rosto no dele por breves segundos e volveu ao quarto. Tentou adormecer, confusa e embrulhada em imagens da infância, das visitas que faziam ao avô que sempre a tratara como alguém especial. Por volta dos sete anos, teve plena consciência de que era neta de um homem importante, mas não tão importante quanto o chefe do posto, perante quem ele se dobrava em fantasias e salamaleques. Apreendeu ainda a razão e motivo das poucas brancas, esposas de um ou outro comerciante da região, raramente os visitarem, mesmo sendo a casa do pai a mais abastada e de importância reconhecida por ser o maior comerciante da área.
Quando apareciam, era porque os maridos as traziam a reboque, nos seus rostos lendo-se a indisfarçável contrariedade, despeito ou a eterna condescendência dos que se sentem superiores.
Não vá o homem ofender-se, olha que ele é genro do soba grande e isso aqui conta para o comércio.
Observava com curiosidade infantil o desconforto e os incómodos tanto da mãe quanto os da visita, numa desastrosa falta de comunicabilidade, ambas tentando parecer e ser o que não eram.
Vamos daí, não custa nada, pergunta-lhe pelos negócios do marido, da vida da casa, faz um esforço, tens que começar a conhecer a mentalidade desta gente, é aqui que nós vivemos.
A mãe, desajeitadamente a procurar o trato europeu do marido, a outra a tentar mostrar que era amiga dos negros, todavia no discurso o natural sobressair do que era: branca e supostamente dona de um Portugal imenso que vinha e ia pelos mares fora, estendendo-se que nem peste pelos quatro cantos do mundo. O Portugal que Nazamba apenas intuíra nas conversas do pai com os demais comerciantes, abstracto e grandioso e que lhe era revelado nos falares quando se juntavam para um trago de vinho ou para a sueca. Não o Portugal pequenino e real que agora conhecia e a amordaçava nos sentimentos, porque forçada a quase esquecer o berço do nascimento e o íntimo, a alma.
Sofria um Portugal de dor e de raiva, convergido na figura do pai.
Como ousava ofender as mulheres, a memória de sua mãe, chamando-as, ainda que ela, Nazamba, não fumasse? A avó, cujo nome já não lembrava, sim, essa fumava interminavelmente aqueles longos rolos de folha de tabaco enrolada, que empestavam o ar e o hálito, fumados com a ponta acesa ardendo dentro da boca fechada.
Puta?
Puta pela qual pagara riquezas e à custa de quem fizera a sua, comerciando à vontade nas terras do avô, o grande soba Juba de Leão.
Sou tão infeliz, meu Deus!
Agarrou-se à almofada para não gritar no vazio nocturno a dor, embrenhou o rosto nela, e carpiu todas as raivas ancestrais, novamente o juramento quebrado.
Foi para as aulas sem ter dormido toda a noite. Quando a tia acordou, há muito que saíra.
- O raio do diabo hoje abalou cedo, deve estar com vergonha – disse para si mesma.
Relançou os olhos para o cadeirão onde o irmão dormia e estranhou a manta, não se recordava se o cobrira ou não. Condoeu-se, por uns momentos.
O que a vida faz às pessoas, ainda ontem era um homem abastado e olha para ele agora, feito um trapo e humilhado pela filha, mal sabe o que essa cobra lhe fará, vai levá-lo à cova.
Benzeu-se e foi preparar o pequeno almoço, a mão levada ao peito, contricta, no sentir involuntário da pena.
Nazamba continuou a fumar e a pintar-se a seu belo prazer, ainda que não sentindo prazer. Fazia-o para demarcar o espaço que ganhara. A vida tornou-se asfixiante, sentia-se tolhida e sem futuro, já completara o secundário, almejava partir á descoberta do mundo que os televisores e as revistas revelavam, à conquista do desconhecido. Não encontrara ainda a coragem para os informar que um dia abalaria para Lisboa, sabia que com esse gesto afundaria por completo o pai e libertaria a tia que, à medida que os anos corriam, se sentia cada vez mais insegura e ameaçada, julgando que talvez a sobrinha a embruxasse com qualquer doença ou praga africanas, nem os conselhos do padre demovendo-a de tais disparates.
Sentada num banco do jardim público, Nazamba falava com a amiga, enquanto vasculhava as páginas do jornal à procura de emprego.
Meninas com boa apresentação, precisam-se para trabalhar em restaurante/bar selecto e discreto.
Nazamba nem acabou de ler o anúncio, com emoção fechou a página e soube que aí estava a via para a realização do seu sonho mais imediato, Lisboa. Trabalharia à noite e frequentaria a universidade durante o dia.
- Mas tu acreditas nisso?- perguntou-lhe, meia incrédula Rita.
- Olha, se desejas permanecer nesta espelunca o resto da tua vida, isso é contigo, mas eu vou para Lisboa, não fico aqui a apodrecer.
- E o teu pai, Nazamba, o que vai ser dele, já viste como ele vai ficar?
Olhou para Rita e não soube o que responder. O pai, sim, o que seria do pai, que nunca se separara dela desde os dias em que, pela mão, a trouxera consigo, não obstante o relacionamento terrível que os consumia?
O meu pai? Por acaso pensou em mim e no que seria, longe da minha mãe e donde nasci?
Olhou intencionalmente para a amiga e tentou responder, sem o conseguir.
Por acaso mostrou vontade de ficar, lutar, enfrentar o sogro?
- O meu pai?!... – balbuciou novamente, enquanto Rita a olhava.
Fez valer que ganhara o direito à terra, com os laços de sangue?
- O meu pai?... – sussurrou.
- Puxa, até pareces um papagaio. Engasgaste-te ou quê? – riu Rita, meio espantada.
Ao primeiro grito do meu avô, entreguem os mulatos aos pais, agarrou em nós e abalou com o rabo entre as pernas.
- Porque terei que me preocupar com ele? – respondeu.
- Não fales assim, Nazamba. Deus pode castigar-te.
Pelo menos está na sua terra. O meu pai que se dane, irei para Lisboa trabalhar e estudar, a vida é minha.
A amiga, estranhando o novo silêncio e o olhar vago, reformulou a pergunta.
- Nazamba, e o teu pai? Não estás a ser sincera certamente.
- Será duro de início, depois habitua-se. Olha, também me habituei.
- Não digas isso Nazamba, ele sempre esteve aí para te apoiar.
- O que sabes tu? Não imaginas o quanto odeio o meu pai quando penso na minha mãe, nem me lembro da cara dela.
Rita sempre se sentira constrangida ao ouvir Nazamba falar da mãe. Observara como ao longo dos anos as recordações de infância se esvaneceram, cada vez mais ensandecida contra o pai. Não estranhava pois que desejasse partir, embora não acreditando que o fizesse.
- Só que eu acho que devias acabar os teus estudos e depois pensar em regressar à tua terra.
- Disso podes ter a certeza, Rita. Com estudos ou sem eles, hei de regressar, nada me impedirá. Só espero encontrar o meu avô vivo, tem que saber o que me fez.
- Será que vais viver a tua vida com essa amargura?
Olhou para a Rita como se tivesse acordado de um sonho, a amiga involuntariamente mexera na ferida há muito embrulhada no íntimo. Para disfarçar, acendeu um cigarro e voltou a cara.
- Não sei, esse problema é meu.
- Não te quis ofender. É que vejo a tua mágoa crescer de ano para ano. Nazamba, sou a tua única amiga e se te fechas por completo, com quem vais falar?
As amizades são de oportunidade, que amizade, se porventura entre pessoas do mesmo sangue...
- Sei que és minha amiga, mas a nossa amizade não condiciona o rumo das nossas vidas, amanhã casas-te e tudo se tornará nubloso face às tuas novas responsabilidades, trocaremos correspondência ocasional, e pouco mais do que isso será. E quando eu regressar a Angola, então aí tudo se tornará mais longínquo ainda.
- Não vejo as coisas assim...
- Não vês as coisas assim porque não tens que as ver, é só isso. A tua vida foi diferente da minha, sempre viveste aqui. – disse Nazamba, atirando o cigarro para o chão e apagando-o com a ponta do sapato, esmagando uma memória desagradável e pondo fim à conversa.
Que importa com quem vou falar, em Lisboa farei novos amigos e com eles me entenderei.
Ao chegar a casa ao fim da tarde encontrou o pai sentado no cadeirão, olhos vidrados no televisor, a mente a esvoaçar, fraca de virtudes para se alçar mais acima do ver etílico das imagens no tubo electrónico. A tia estava ausente. Quedou-se por largos momentos a testemunhar o quadro, num escondido desejar de ser capaz de o alterar, remover as nuvens que encobrem tanto a montanha quanto o sol, pôr as águas do riacho tortuoso a correr escorreitamente. Recompôs-se e considerou que deveria ir ao assunto sem rodeios, ser-lhes-ia menos doloroso e custoso. Pigarreou para atrair a atenção do pai para a sua entrada.
- Pai, quero ir-me embora. Arranjei trabalho em Lisboa.
Marcelo olhou para ela e não soube o que responder. Percebeu que não valia a pena tentar dissuadi-la, só lhe renovaria a vontade e tudo acabaria numa discussão azeda, para a qual já se encontrava cada vez mais exaurido de forças e vontades. Há muito que aceitara, dilacerado, que perdera a filha. Vira-a transformar-se num corpo estranho, sempre a balbuciar-lhe farpas afiadas que o atingiam no coração, e que só Baco as diluía. Duas lágrimas escorreram-lhe pela face enrugada, limpou-as logo com a mão, não desejou que a filha o visse assim.
- Trabalho, que trabalho? Não conheces lá ninguém...
- Conheço, umas pessoas de Angola que vivem em Lisboa, estiveram aqui durante as férias.
- De Angola, onde de Angola? E porque não me falaste disso?
- Não te falei disso para não te magoar, vejo como ficas quando vês as imagens de Angola aí na televisão. Uma delas trabalha na TAAG e arranjou-me lá um furo. Preciso que me emprestes algum dinheiro, depois pago-te.
- TAAG?... dinheiro?...
- Sim pai, preciso de dinheiro para a camioneta e para uma pensão nos primeiros dias, depois os meus amigos ajudam-me.
- Mas aonde é que vou arranjar esse dinheiro, bem sabes que a pensão que recebo é uma miséria.
Miséria? Miséria que chega para te embebedares todos os dias, não me vais amolecer, não senhor.
- Pede à tia que te empreste. Sabes que ela tem dinheiro, eu pago quando começar a receber.
- Mas o que vai ser de ti em Lisboa, sozinha, sempre estivemos juntos?...
- Algum dia teria que partir, se não for hoje, será amanhã. Estou uma mulher, pai, não sou mais aquela menina que trouxeste pela mão, espantada e amedrontada.
Sentiu a frechada, não mais desejara evocar as memórias e imagens dessa tragédia, afogadas no vinho. Levara as palavras do sogro a peito, e entendera em perplexidade que afinal Angola não era Portugal, não desejara saber o que lhe aconteceria, e aos filhos, caso ficasse. Juba de Leão fora peremptório, levem os mulatos com vocês, e as mães, se desejarem ir. Palavras de investidura nova e que não pertenciam àquela África que conhecera e na qual se sentira à vontade, a continuidade do seu Portugal metropolitano. Pela primeira vez vira-se confrontado com uma África desconhecida, arrogante e dona de si mesma. O que acreditar, em quem acreditar, quando Portugal próprio fugira das suas responsabilidades, o abandonara aos desígnios de novos ventos que não entendia como possíveis e que o amedrontaram? Será que a filha nunca viria a apreender que ele fora incapaz de vestir as roupagens de uma nova situação que requeria coragem, atrevimento e, sobretudo, uma forte dose de inconsciência face ao desabrigo e ao desconhecido pintados no horizonte próximo? Não se apregoara que os pretos viam chegada a hora da vingança, que os comunistas iriam arrebatar todas as casas, as fazendas, os haveres e as mulheres dos brancos? No íntimo sabia que assim não fora, mesmo sentindo cada vez mais a sua raiva e frustração justificadas na carnificina a que os angolanos se remeteram, irmão contra irmão. Talvez até o sogro já não existisse, morto por uma outra qualquer razão mais forte do que a saída dos mulatos, que ordenara. Teve vontade de se levantar e de a sacudir até que as palavras que há anos desejava ouvir sair da sua boca, brotassem para lhe aliviar a alma e o ser. Seria o conforto que facilitaria deixá-la partir em paz e que lhe compraria o sossego que agora cabia no oblívio proporcionado pelas mãos balsâmicas de Dioniso.
- Amedrontada? – gritou, atirando o copo de vinho para o chão – Amedrontada? O que sabes tu de medo, o que sabes tu de construir uma vida e perdê-la depois num segundo, num sopro que nem é teu? Há anos que me culpas da desgraça que se abateu sobre nós, como se tivesse sido eu que te colocou fora da tua terra. Basta!...
Nazamba olhou para o pai e pela primeira vez após o longínquo regresso, viu nele o homem que fora seu pai em África, e pensou que fosse vacilar. Logo se recompôs.
- Não foste, mas não lutaste, abandonaste a tua mulher, a minha mãe - gritou de volta.
- O que querias que fizesse, que me cortassem a cabeça, não vês aí todos os dias na televisão como se matam uns aos outros? Percebes porque o fazem, percebes?
- Mas há lá muitos brancos que ficaram e não morreram.
O pai olhou para ela com tristeza, deu um pontapé na metade do copo partido, limpou a testa e suspirou fundo.
- Os brancos que lá hoje há são outros, não são os que ficaram, são os que nos vieram substituir, os que colocam os negros à frente e que só lá vão de vez em quando para controlar o roubo que é feito para eles. Achas que estão no interior de Angola, fubeiros como nos chamavam, que vivem o que nós vivemos? Que conhecem África como nós a conhecemos? Achas que há lá médicos que praticamente abandonaram a família para se embrenharem nas matas e nas aldeias, médicos que graças ao seu esforço quase irradiaram o paludismo, a doença do sono, a lepra? Angola para nós era uma pátria, um lar, uma vida entregue. Para essa gente de agora, Angola é um sugadouro, uma conta de banco e um riso de escárnio nas costas dos angolanos, porque estes venderam a alma e a riqueza do país para adquirirem fortunas fáceis, não se dando ao respeito. Não os vês aqui em Portugal? Como é que uma pessoa, com os salários que lá se ganham, consegue comprar uma vivenda de luxo em Cascais ou no Estoril, ter a família inteira a viver aqui para os meninos não irem à guerra onde os outros, os pés descalços, morrem? Quantos anos me levou para conseguir ter a nossa casa comercial e um pouco de dinheiro no banco? Trabalhávamos uma vida inteira e tudo lá enterrávamos, prova disso é que hoje nada tenho... O que sabes tu disso, filha?
Parou de falar, a dor não lho permitia. Seu peito arfava com o esforço despendido. Guardara para si a frustração durante os anos, nunca aceitara ver o seu trabalho laborioso ir por água abaixo, nunca aceitara a partida intempestiva de Angola sob ameaças, e a ferida que inadvertidamente pusera agora a sangrar ameaçava jorrar em catadupas.
- Pronto, talvez não saiba. Mas vou para Lisboa, vou cuidar de mim e da minha vida, não posso ficar aqui agarrada a memórias tuas.
- Memórias minhas...- sussurrou para consigo mesmo, exausto – ...memórias minhas, de facto.
Não o faças sofrer mais, pede-lhe o dinheiro e desanda para Lisboa...
- O pai fala à tia e emprestam-me o dinheiro. Eu pagarei tudo de volta. Nada mudará a minha decisão, e será melhor que eu vá com o vosso consentimento.
Nazamba jogava com a certeza de que a tia iria colocar a questão na balança e que decidiria ser mais útil investir uns contos de reis e vê-la finalmente partir, nunca nutrira qualquer tipo de sentimento positivo para com ela. Certamente que, no íntimo, faria uma festa de despedida com foguetes e tudo entre as rezas de sempre, e até seria bem capaz de mandar benzer e rebenzer a casa, o quintal incluso.
- Se é isso que desejas, vou falar com a tua tia. Sei que não te poderei guardar para sempre, esperava que não fosse assim.
- Depois mando-vos dizer onde estou. Vou trabalhar e estudar, quero ter um curso, voltar a Angola formada.
- Sei que és capaz disso, filha. Mas quanto ao voltar a Angola, pensa bem.
- Já pensei, não quero falar deste assunto. Terei lá família, não terei?
- Deus queira que sim, e espero que encontres a tua mãe e o teu avô, que estará bem velho, e quando esse dia chegar, talvez entendas então o que nos aconteceu.
Nazamba fingiu que não ouviu, o que menos desejava de momento era entender o que lhes acontecera e retirou-se, consumida de uma enorme e inexplicável mágoa dentro de si.





CAPÍTULO TRÊS



OS QUE VIERAM PELO MAR AFORA




São como os búzios que levam presa,
no seu labirinto de nácar, a música do mar.

(Mário Vargas Llosa)



Nataniel perscrutou atentamente o soldado cubano, e sorriu perante a fala estranha. Entendera que havia estrangeiros a lutar em Angola, quando o povo aterrado que fugia de outras zonas falou de sul-africanos e mercenários brancos, todavia nunca os vira. Deslumbrado, olhava para a vastidão de fardas verdes, com bonés da mesma cor, gente fortemente armada, parte dela engajada em amena conversa com a população, que se deslocara da aldeia para onde estavam acampados. Não muito longe, uma gama infinda de tanques e outros carros blindados, assim como camiões que lhe pareciam gigantes, com rodas mais altas do que ele. Movimentavam-se por todo lado, entre eles, muitos negros e mestiços e há dias que observava com interesse um que, pela ligeira diferenciação de tratamento revelava que talvez fosse o chefe, um negro alto e de voz rouca com um riso contagiante. Foi-se chegando, pouco a pouco, fingindo despretensão e quedou-se, parado, a olhar para ele como se de algum bicho estranho se tratasse. O cubano achou graça, nunca se vira esquadrinhado de tal modo. Deu um ligeiro passo em frente
- Como te llamas? – perguntou-lhe e, perante a cara de espanto do garoto, ajuntou – Nombre, tu nombre?
Nataniel não soube o que responder.
Nombre?
Soou-lhe meio familiar a palavra e, por intuição respondeu, arriscando.
- Meu nome? Estás a perguntar pelo meu nome?
- Si, tu nome, como te llamas?
- Sou o Nataniel.
- Nataniel!...Me gusta. Quantos años tienes? – insistiu, passando-lhe uma pequena barra de chocolate.
Riu outra vez, o desconforto ainda o dominava. O idioma parecia-lhe o português, mas não era.
Anhos, anhos, quantos anhos tienes?
Só poderia ser quantos anos tens. Decidiu confirmar.
- Anos? Tenho treze.
- Tresse años? Mui bien, y quien son tus padres?
Surpreso, enxergou à volta a ver por onde teriam chegado ao que sabia nunca os vira interessados pelas coisas militares ou assuntos da tropa, todavia com toda aquela confusão, poderia ser que tivessem vindo observar os novos estranhos, a curiosidade era para todos. Mas que ele soubesse, a aldeia só tinha um padre e que se encontrava ausente. Seriam outros? Tornou a olhar e não viu nenhum.
- Padres, mas que padres, não vejo qualquer padre.
O oficial cubano percebeu a perplexidade da criança e notando que a palavra seria certamente outra, sorriu. Estava a gostar do exercício, da descoberta das palavras e das ciladas que criavam quando fora do contexto.
- Tu papá, tu maman.
- Pai, meu pai e minha mãe! – E igualmente rindo, corrigiu - Não é padre, padre é quem reza a missa, o missionário.
- Hombre! Pués padre es missionário en português? Entonces madre será missionária, no és asi?
- Padre é missionário e madre é a mesma coisa.
- Assi pae y mae son papá y mamá, non?
- Sim, é isso. Mas de que terra vieste?
- Mira, soy cubano – disse com orgulho- Estamos aquí para ayudar el gobierno contra las fuerzas imperialistas yanquis, los fantoches zairenses y los racistas sudafricanos. Nuestro presidente es Fidel de Castro, muy grande amigo de Agostino Neto. Tu tanbien bas a ser mi amigo, no?
- Teu amigo? Claro que sim.
- Mui bien, pero quien son tu papá y tu mamá?
- Sou filho do camarada Epalanga e da camarada Zeferina. O meu avô é o soba grande, o camarada Juba de Leão.
- Soba?!...
- Soba é o chefe. O meu avô Juba de Leão é o chefe de toda esta região, ele é quem manda no povo.
O cubano olhou para ele com cara de espanto. Ainda havia reis, chefes grandes em Angola, era a pergunta que a mesma reflectia?
Djuba de Leon? Que nombre más estraño!
- Mira que cosa, no es verdad!... Tu abuelo es un gran jefe tribal?
- Sim o meu avô é o chefe.
- Eso en Cuba ya acabó hace mucho. Y Djuba de Leon por qué, mató a un leon?
- Sim, o meu avô quando era jovem viu-se cercado por leões e matou dois com as suas mãos, sozinho! – exagerou, para ver a reacção do oficial cubano.
Dos leones? Solamente com sus manos?... Sera?...
- Pués tu abuelo és un hombre mui valiente, lo deseo conocer un dia. – respondeu, meio acreditando no relato
- Vais conhecê-lo.
- Pero dime, y los hetchiceros y los curas, aun que los hay todavía?
- Curas? Que curas, precisas de ir na enfermaria?
- Enfermeria? Non, muchacho... curas... misionarios!...
- Se quiseres falar com o padre, só quando ele voltar. Queres confessar-te?
- Confesarme? De que hablas, niño?
- Não pediste para ver o missionário, o padre?
O oficial cubano pensou duas vezes em continuar a conversa, mas tanto o dever internacionalista quanto a simpatia que sentiu por Nataniel, forçaram-no ao diálogo.
- Assi un dia tu tanbien poderás ser jefe grande? – perguntou, para mudar de assunto.
- Não sei, o meu avô é quem sabe. Ele e os mais velhos.
- Los mas viejos? Son el y los mas belhos, quien decide todo? – indagou, curioso.
- Sim, eles é que decidem.
- Y como mandan los más belhos?
- Tem o meu avô, depois vem o kapitango, o mwene kapitango e os outros.
- Muene kapitango, que hace lo muene kapitango?
- É o irmão do meu avô. O camarada Nehone, é ele quem ajuda sempre, faz tudo que o meu avô lhe manda e mais coisas.
- Entonces como un gran ministro, no?
- Não sei o que é isso, mas ele vem logo a seguir ao meu avô...mas como é que te chamas?- perguntou Nataniel, para fugir aos assuntos dos mais velhos.
- Tchamas?
- Chamas...como é o teu nome?
- Ah, mi nombre! Me llamo Pablo. Eo me tchamo Pablo. – respondeu, desejoso de mostrar esforço. - Pero me cuentas que tu abô es jefe, entonces tu padre será el sucesor, o tu tio abuelo, el camarada Nehone? – perguntou, curioso e tentando descortinar as regras de sucessão.
Nataniel, que pensara ter deixado a questão para trás, afastou-se um pouco e respondeu meio seco.
- Não, o meu pai é filho de uma das mulheres do meu avô, há mais gente, mas isso não é importante.
- Una de las mujeres? Pero tu avô tiene más que una mujer?
Foi a vez de Nataniel surpreender-se, não percebeu a pergunta, queria o cubano dizer com isso que lá na terra dele um homem não podia ter mais do que uma mulher? Coçou o cabelo, acenou para os dois companheiros de brincadeiras que escutavam um pouco arredados, cutucou-os nos braços quando chegaram e, entre risos cúmplices, respondeu enfático.
- Sim, tem cinco mulheres. Cinco!...
- Puta vida, como estan vosotros atrasados! Cinco mujeres?...
Nataniel não conseguiu relacionar o número de mulheres com o atraso, antes pelo contrário, quanto mais mulheres um homem tivesse mais desenvolvido estaria o seu poder, a todos os níveis. Achou que o cubano estava a brincar com ele.
- Atrasados? – perguntou, jocoso, olhando para os outros dois.
- Y que hace el com cinco mujeres, cierto que pasa la noche a roncar en dos ó trés dellas, non? En Cuba eso no es permitido, tenemos una y ya nos basta.
- Uma? E a terra, quem trabalha a terra então?
- La tierra? Que pasa com la tierra?
- Sim, quem trabalha a terra?
- Todos, nosotros claro. Porque, en Angola son las mujeres quien trabajan la tierra? – indagou Pablo admirado.
- Sim, elas trabalham a terra, a minha mãe sempre o fez.
- Hombre, Agostino Neto está mal!... – escapou-lhe, sem o querer.
- O quê?... – demandou, Nataniel.
- Nada, niño, nada. Asi que tu abô tiene cinco mujeres!...
- E o pai do meu avô tinha nove!... – afirmou, para o gozar.
- Coño, hay mucho trabajo político a hacer en Angola.– disse, mais para consigo.
Pablo quedou-se pensativo por algum tempo, enquanto as crianças esperavam, atenciosas, buscando referências no seu rosto. Via-se que matutava em alguma coisa.
- Oime, te gustaria de ir estudiar en Cuba? – atirou, por fim.
- Estudar em Cuba?
- Si, estudar en Cuba.
A sua primeira reacção foi de excitação, logo seguida de medo. Pensou umas duas ou três coisas e não soube o que responder. O cubano, observando a hesitação, chegou-se mais. Os outros dois, olhavam para Nataniel, rindo.
- Si, te puedo ayudar si quieres. Hablaré con tu abô y lo areglaré después en Luanda.
- E onde fica Cuba, é em África?
Foi a vez de Pablo rir, mas logo sentiu que o miúdo não poderia ter ouvido falar de Cuba vez alguma na sua vida, nem ele antes ouvira falar de Angola, a não ser que era um país que tinha um movimento de libertação progressista e que lutava há anos contra o colonialismo português. Pouco mais, só em tempos recentes aprendera que Ché Guevara tinha-se encontrado com Agostinho Neto.
- Non, Cuba se queda en las Americas es una grande isla.
- Sequeda?...O que é sequeda?
- Cuba está en las Américas. – corrigiu.
- Na América, a terra do imperialismo?
- No, compañero, en la América Latina – disse, procurando por um mapa nos bolsos, e mostrando – Mira aqui la tienes. África deste lado del mar y nustra Cuba aqui, en el mar del Caribe.
- Então é muito longe.
- Si, muy londge, eô vino de barco y se nos llevó quinze dias, de Cuba para Angola.
- Quinze dias? Não me vão deixar ir. Aqui nunca ninguém viu o mar.
- Si, eô bou a hablar com tu padre y tu abô y les voy a explicar que será necessário
que su hijo y nieto se transforme en un grande revolucionario científico.
O oficial cubano comandava o grupo que se encontrava acampado não muito distante da aldeia, chegado há pouco a Angola e a cordialidade, a afabilidade, bem como a facilidade de comunicação verbal engraçara-os junto aos populares, que para ali se deslocavam todos os dias para amena cavaqueira e sempre receber uns chocolates, uns maços de cigarros e giletes para barbear, sobretudo os mais velhos. A coluna deveria avançar em futuro mais ou menos breve e por agora, para ele, a sede de conhecer Angola e os angolanos era a sua maior ocupação enquanto as ordens de arranque não chegassem. Luanda tinha sido uma surpresa, julgara vir encontrar uma cidade de choças, povoada de animais domésticos e rodeada de feras. O local onde se encontrava, que tinha não muito longe uma aglomeração comercial abandonada que pertencera aos comerciantes portugueses, fazia renascer de novo essa imagem do continente. Descobria chefes tribais com inúmeras esposas, sistemas de governação tradicional, só lamentava não ter visto ainda um leão ou qualquer outra fera que justificasse as florestas por que passara, só observara macacos, macacos de pelo negro, macacos cinzentos, macacos esverdeados, macacos e mais macacos e uma ou outra rara corça, vista de longe, a fugir.
- Tu conoces Luanda? – indagou a Nataniel.
- Luanda? Não, nunca saí daqui. – respondeu.
- Es una ciudad muy grande y bonita.
- Talvez um dia eu consiga lá chegar.
- Y por aqui hay muchos animales? – quis saber Pablo
- Animais? ... Andam fugidos na mata.
Desejava ardentemente poder escrever para Cuba que estivera face a face a um búfalo, que lutara com uma píton gigante que por certo o teria estrangulado, não fosse o seu treino castrense e ter sacado, lesto, o sabre com o qual decepou, em talho preciso, a cabeça do monstro inclemente e longilíneo. Afirmar com caligrafia viril na carta à namorada, à amante, à esposa ou à mãe, talvez nem tivesse nenhuma delas, que atravessara um rio em braçadas másculas fugindo a um jacaré que quase o apanhara, felizmente agarrara-se a tempo a um cipó que pendia de uma frondosa árvore à berma do rio. Ansiava pelas aventuras que lera nas bandas desenhadas, muito mais que a verdura encantada que testemunhava por todo o lado, muito mais que a miríade de aves de cores, tamanhos e vozes diversas nas árvores, dos montes de térmites e do exército de formigas gigantes de mandíbulas vermelhas que viu atravessar a estrada à sua frente e cujo nome esquecera.
Que hormigas mas grandes, me comerian todo!
Nada disso lhe acontecera, e assim, virara sua atenção mais imediata para a premente aventura da revolução internacional e da edificação do homem novo, socialista, igualitário e despido da exploração humana.
Longe do realismo cubano, em cuja vivência lhe fora talhada a marteladas, desde o jardim de infância, a visão idílica socialista, Pablo abria-se finalmente à descoberta do reaccionarismo intrínseco da humanidade. Descoberta que, à medida que o tempo decorresse, embrenhado nas matas e nas batalhas africanas, o levaria de recuo em recuo emocional às grutas profundas e escuras, onde os primeiros hominídeos deixaram gravado nas paredes os seus sentires e afazeres, suas vidas de caça e colecta. Aqui, nas contradições do novo aprendizado do inter-relacionamento humano, Pablo iria percorrer as vastas planícies e lonjura do tempo e da história, e ver a Humanidade a abandonar a existência comunista primitiva. Espantado, verificaria que sobrevivera como espécie por ter mantido ao rubro a aptidão animalesca para matar para comer, e matar por qualquer outra motivo que justificasse a sobrevivência. Teria que testemunhar, sem compunção, o percurso do primeiro embrião que, abortado naturalmente, escorreu involuntário pelas pernas da mulher-fêmea quando, horrorizada, se agachou em convulsão ao tomar consciência do estrépito da faísca que lhe lascara a caverna húmida e escura, até aos novéis embriões dos clones humanos que a ciência previa em futuro breve.
Face a esta nova realidade, lutava pleno de culpas inexplicáveis, face ao conhecimento e à constatação, face à recolha dos múltiplos pormenores para si inexistente. A simples e maravilhosa descoberta que o dentífrico Kolinos, memória remota da sua infância, ainda existia, despertou paixões e recordações de cheiro, de sabor e de cor, entra muitas mais. Sentia-se, sem saber como e por que motivo, negado de um pedaço, de uma fatia do bolo da vida que lhe pertenceria, num outro momento, numa outra situação, mas certamente neste mundo. Julgava ser uma dúvida normal, provocada pelo novo ambiente, com o afastamento da pária e da família, ou talvez não. Não se atrevia a questionar, a negar o que lhe parecia tão evidente. A tanto não chegara, por nunca lhe ter sido facilitado o dever e o direito de questionar, na escolas, na família, nas academias militares que frequentara tanto na União Soviética quanto em sua terra natal. Nos bares, nas ruas e nas praias. Sem essa possibilidade, num mundo pequeno e protegido, o lógico fora ser parte do rebanho e balir o desenvolvimento natural do místico e do religioso convertidos e revestidos do purpúreo manto missionário da criação do Homem novo, para tanto tornado cruzado e apóstolo do socialismo internacional, com a mesma crença e fé dos que o precederam pelos caminhos ínvios da então África tenebrosa e selvagem, necessitada de conversão e purificação através da cruz e da palavra. Não havia diferença de conteúdo e nem de forma, unicamente os fundamentos para o fim pretendido.
Tudo faria para possibilitar a ida de Nataniel. Para ele, altruisticamente, almejava a possibilidade de o jovem poder estudar e regressar, não só com um curso, mas sobretudo imbuído de valores, para ele revolucionários, que permitiriam combater os hábitos que, espantado, descobria e sabia serem contra o desenvolvimento de qualquer país. Dirigentes que crêem em feitiços e protecções, por muitos cursos universitários que possuam, não os podem colocar ao serviço do avanço do país e da harmonia espiritual.
- Que te gustaria de ser? Que quieres estudiar?
- Eu? Queria ser médico, gosto quando vou na enfermaria e vejo o enfermeiro a curar os doentes.
- Muy bien. Cuba es una potencia americana en medicina, tenemos muchos medicos y muchas especialidades. Mañana me gustaria de falar con tu abô, puede?
- Pode, mas também tens que falar com o camarada comissário comunal.
Ficou mais tranquilizado ao ouvir a resposta de Nataniel, afinal a revolução estava presente em toda Angola pelo que lhe era assim dado a entender, o poder tribal estava submetido ao poder político local. Iria observar de perto esse relacionamento, não poderia fazer erros de julgamento que o colocassem em possíveis situações de dificuldade ou constrangimento, quer com as populações, quer camponesas ou não, quer com os agentes da acção política e militar locais. A primeira experiência com África não se emoldurava em nada nos conceitos que trazia, sobretudo os culturais, ficando agradavelmente surpreso com os boleros, rumbas, cha-cha-chas, salsa, tango e outra música latino americana que amiúde escutava nas rádios. Esta constatação conferiu-lhe a impressão inicial de se sentir mais num país do seu Caribe, que em África onde, em sítio algum ouvira ainda o rufar reverberante dos batuques, mesmo ali onde agora se encontrava, porque às noites estava decretado o silêncio absoluto.
- Entonces mañana hablaré com el camarada comissário de la comuna y despues com tu abô. Vale?
- Estás a falar verdade?
- Claro, compañero. Vas a ser medico y un buen medico, te lo prometo.
Passados alguns dias, Pablo falou com as autoridades locais, mostrou-lhes que muito em breve Angola teria que começar a enviar a sua juventude para formação socialista se a revolução tivesse que sobreviver, o país era muito vasto e a população muito esparsa e a longa noite colonial deixara um número exagerado de analfabetismo. Explicou que o dever internacionalista não era nada mais do que uma missão e uma etapa a cumprir, porque caberia aos angolanos, em última análise, desenvolver o seu país e prestar, no futuro, a mesma ajuda desinteressada a todos os outros povos e países que necessitassem e o solicitassem. Falou por longo tempo, a maior parte das palavras passando despercebidas ao camarada comissário comunal, mas dando a entender que a defesa desses ideais e conquistas caberiam às novas gerações, portanto ele desejava poder contar com o apoio da família de Nataniel para poder enviá-lo para Cuba, de onde regressaria não só um revolucionário consciente, como, e não menos importante, um médico ao serviço do povo angolano e da pátria socialista. O camarada comissário comunal, ele próprio um ex-guerrilheiro, sentiu-se bastante lisonjeado que Ualali pudesse vir a ter um filho médico e internacionalista e, em alongada intervenção no seu direito de resposta, levou o comandante cubano a passear, de maneira involuntária mas didáctica, pelos quinhentos anos da opressão colonialista até ao desembocar nas gloriosas chanas do leste, onde ele forçara o tuga a sofrer graves revezes.
- Uma vez estávamos nós preparados para emboscar o inimigo...
Foi de imediato cortado pelo cubano que conseguiu fazer-se perceber, que não tinha muito tempo. Contrariado, teve que regressar ao pedido. Informou que tudo iria fazer junto ao camarada comissário municipal para que esse desejo se tornasse realidade. Só então o camarada Pablo poderia falar com a família, até lá, teria que aguardar com paciência.
- Bueno, pero camarada comissário nosotros non iremos quedarnos aqui mucho tiempo, donde se encuentra el camarada comissário municipal? – perguntou, meio preocupado.
- Não muito longe, mas ele tem uma visita programada à nossa comuna daqui a três dias, poderemos então discutir este assunto de capital importância para todos nós. Como disse Lenine, porquê esperar?
Coño, mas cuando y donde dise Lenine tal cosa?
- Muy bien pero hay que apresarlo.
- Não se preocupe camarada, vou já mandar pôr na ordem de trabalhos a apresentar na reunião que teremos, será o primeiro ponto, logo a seguir ao das informações. Ele, depois levará este importante questão ao camarada comissário provincial, que saberá o que responder.
- Aun que va a llevar la questao al compañero comissário provincial? Hombre, el niño nunca irá a Cuba.
- Irá sim, camarada Paulo.
- Por favor me deje hablar com la familia que despues yo hago todo com mis superiores – implorou Pablo, navegador exímio dos trâmites da burocracia socialista.
- Não sei, camarada Paulo. Vamos falar primeiro com o camarada comissário municipal, que também é filho da terra, e depois logo veremos.
- Bueno, voy a esperar los tres dias, pero no más.
Mal sonhava o oficial cubano que os três dias pero no más, dados como ultimato ao comissário comunal, se transformariam em quase um ano de muita azáfama, idas a Luanda, contactos de todas as formas e feitios e, finalmente, a concessão de uma bolsa de estudo a Nataniel para prosseguir os seus estudos em Cuba, numa academia militar, para onde partiria com uma vasta leva de jovens provenientes de todas as províncias, a revolução socialista não podia ser elitista. O slogan não é de quem quer mas de quem merece, só se tornaria palavra de ordem um pouco mais tarde.
Chegado o dia e a hora, no aeroporto, ao despedirem-se, Pablo deu-lhe as últimas recomendações e o endereço da família para, quando tivesse uma oportunidade, os fosse visitar e levar notícias dele.
- Hodje é um grande dia para ti, Nataniel – disse, orgulhoso.
- É verdade padrinho, estou muito excitado.
- Não te olvides de lo que eô prometi a tu abô e família, trata de estudiar siempre, te quiero ver médico, médico, me escuchas? Non te olvides que somos família – disse Pablo, empavonado.
- É verdade, estou feliz por ver que o padrinho cumpriu com o que jurou.
- Callate, coño, de eso no se fala más – disse, olhando preocupado à volta.
Sem o desejar, veio-lhe à mente o dia em que, ciente de que não lhe restava outra alternativa, fora falar com a família de Nataniel. Fizera-se acompanhar pelo comissário comunal e três guardas cubanos, a quem ordenou que ficassem a controlar a periferia, modo de os manter longe das conversas que percebia poderem ser difíceis. Receberam-no com honrarias, incluindo o repasto de um porco, morto na véspera, pois já toda a gente conhecia o que o bicho representava para os cubanos como prato da sua culinária. Mais tarde, para seu deleite, fizeram-se ouvir as batucadas e as danças que muito apreciava, e que finalmente ouvira em outras paragens mais ao sul. A maior parte da população manteve-se próxima, dificilmente sairia antes que o assunto fosse tratado. O prestígio do soba estava em jogo, a aldeia não poderia falhar de vir a ter a sua primeira personalidade ilustre, o continuador da força e destreza do avô, numa Angola independente onde os filhos da terra eram donos de si mesmos.
Solicitou que fosse levado aos colegas um pouco do porco e daquela bebida leitosa, meio doce meio ácida, que já degustara em vários sítios, e cujo nome ele tinha dificuldade em aprender, umas vezes ouvia chamar kimbombo, outras kissangua.
Sentados debaixo de uma velha mulembeira, o velho Juba de Leão bastante encharcado de bebida, pediu silêncio com o olhar e, meio trôpego, ergueu-se ajudado pelo irmão Nehone e por Pablo, solícito. Limpou a voz, cuspiu para o lado e ergueu solenemente a bengala.
- Hoje é um grande dia para todos nós, com a ajuda do camarada Paulo, o nosso filho Nataniel vai partir para Cuba para ir estudar, ser um médico e um oficial nas Fapla.
- Viva o camarada Paulo! – ouviu-se a voz, também já pastosa, do comissário comunal.
- Viiiiiivvvvaaaaaa! – gritaram contentes os parentes, o que atraiu a gente para mais junto à mulembeira.
- Viva Cuba! Viva Fidel!... – respondeu bem alto, Pablo, para que, de onde estavam os seus companheiros, o ouvissem.
Por contágio, os vivas sucederam-se até que o soba grande mandou rufar os batuques para impor o silêncio devido. Po um longo instante, o que levou muitos a pensar que esquecera a razão do encontro, olhou para o chão, cabeça descaída. Finalmente endireitou o corpo, apoiou-se na bengala e sentou-se na cadeira do poder. Fez um gesto para que Pablo o imitasse. Mais uma vez limpou a voz, cuspiu para o chão e continuou, endereçando-se directamente ao oficial cubano.
- Mas se o nosso filho vai, lá na terra onde vai, não encontrará família, não vai ter tias nem tios, nem pai nem mãe, estará sozinho e seu coração haverá de ficar triste muito cedo, vai querer voltar, é verdade ou não é, camarada Paulo?
Pablo olhou à volta, conferiu que os seus companheiros estavam a distância suficiente para não ouvirem as conversas, unicamente as palavras de ordem, gritadas em pleno pulmões. Colocou-se de modo a que o seu dorso estivesse voltado para eles.
- Bueno, camarada Djuba de Leon, en Cuba la família somos todos nosotros. Nataniel bai a tener muchos tios e tias – respondeu, circunspecto.
O soba grande riu, colocou as duas mãos sobre o topo da bengala e falou mansamente, só os mais cerca o ouvindo.
- São todos irmãos e irmãs do camarada Paulo?
Pablo foi acometido por uma estranha sensação, sentiu no ventre contracções inexplicáveis e teve vontade de rir.
Coño que question mas ideota, como seran todos mis hermanos y hermanas?
- Irmaos e irmanas de sangre non, pero somos todos una grande família revolucionária, Nataniel non ba a estar sossinho.
- Muito bem, camarada Paulo, mas se leva o nosso filho, ele entra na sua família, qualquer coisa que aconteça sabe que tem o tio, ou se não quer ser tio, o padrinho.
Os familiares menearam a cabeça em aprovação, viram aonde é que o soba queria chegar. Vários muxoxos de aprovação estalaram pela assembleia.
- Padrino? – perguntou perplexo Pablo, confirmando, de soslaio, que a distância a que deixara os guardas era efectivamente suficiente para não permitir ouvir o que se falava. - Oiga camarada Djuba de Leon, no me traiga mala suerte.
O soba grande olhou para ele, teria entendido bem?
- Má sorte, está a falar que lhe vamos trazer azar?
- Si, por favor no me traiga má suerte, assar, como dice lo camarada.
- Olhe camarada Paulo, nós não temos esse costume, trazer azar nos nossos amigos, o azar é uma coisa para ninguém chamar, sabe o que acontece quando a gente chama o azar?
- No, no lo sei – respondeu o oficial cubano com um olhar de preocupação.
- Então vou-lhe contar o que aconteceu quando o azar foi chamado.
Porque hablé? Con este pueblo non se puede hablar, hay que mantener-se calado. Me van a hacer perder más tiempo!
- No, no es necessário, no vai a precissar – respondeu lesto, com um ar de arrependimento por ter falado em má sorte.
- Vou falar sim, para o camarada Pablo nunca mais falar de azar.
As pessoas á volta menearam a cabeça em aprovação e um ou outro bateu palmas, sublinhando assim as palavras do chefe como sábias e oportunas.
- Preste bem atenção. Um dia a irmã cobra mais os seus primos e o irmão lagarto mais os seus primos...
- Irmana cobra? – perguntou Pablo, incrédulo.
- Camarada Pablo, escute só e não faça perguntas, então antigamente os bichos não eram nossos irmãos? Até na Bíblia diz que todos viviam de igual no paraíso e que Adão falava com eles, até foi ele quem lhes deu o nome.
- Ta bien, ta bien. Me perdona camarada Djuba de Leon – disse, conciliatório e chegando à conclusão que quanto mais calado se mantivesse, mais rápido dali sairia.
Juba de Leão apreciou a autocrítica do oficial cubano, desculpando-o por ser estranho aos costumes da terra, pigarreou e continuou.
- Como eu dizia, a irmã cobra e os seus primos, que são muitos, e o irmão lagarto e os seus primos, que não são menos, foram ter com Deus, Kalunga, e disseram-lhe que não conheciam o que era o azar, pediram assim para Ele lhes mostrar o que era o azar porque tinham ouvido falar, mas só isso, saber não sabiam. Kalunga ficou muito surpreso com o pedido, ainda os desaconselhou, mas a insistência foi tanta que, aborrecido, pediu-lhes para regressarem no dia seguinte de manhã, far-lhes-ia a vontade. Como combinado, no dia seguinte eles apareceram todos e Kalunga mandou-os que se dirigissem a um local deserto e que se deitassem todos de barriga para o ar.
- Só isso? – perguntaram eles, espantados.
- Sim só isso, respondeu-lhes Deus. Façam isso e logo descobrirão o que é esse azar que estão à procura. Então os bichos foram todos para um lugar deserto e deitaram-se de barriga para o ar, como lhes havia sido mandado.
Pero esto son cuentos para niños, no eh venido aquí para escuchar cuentos para niños, que locura!
Pablo olhou para o relógio involuntariamente, o que fez o soba sorrir.
Vieste em África, queres levar o nosso filho, e não queres aprender a nossa tradição? Vais escutar tudo, há tempo...
Pablo deu conta do sorriso do soba e baixou a cabeça, envergonhado.
- Depois, Kalunga dizendo para consigo mesmo que já que não estavam bem como estavam e queriam conhecer coisas más, ele proporcionar-lhes-ia o almejado desejo. Mandou chamar os milhafres, os falcões, os gaviões e as águias, enfim, todas as aves rapaces e contou-lhes o sucedido, tendo-lhes ordenado que voassem para o local deserto onde os répteis se tinham ido deitar de barriga para o ar e que os devorassem a todos.
- Muy bien, muy bien – disse o cubano, para se redimir.
- Olhe camarada Paulo, estavam todos deitados de barriga para o ar quando uma nuvem grande dessas aves apareceu e começou a comê-los a todos, só escapando um casal que, dando conta de que afinal o azar era aquilo, logo correu para debaixo de uma pedra, salvando assim a vida, porque bem escondidos. Quando as aves se foram embora, esse casal foi ter com Kalunga e disse que já sabia o que era o azar e que não era coisa boa, que não se deve pretender ter ou conhecer o azar. E foi, também, a partir desse dia que esses pássaros e os lagartos e cobras ficaram inimigos. - concluiu Juba de Leão, limpando a boca com as costas da mão- Agora o camarada Paulo ainda acha que lhe queremos trazer azar porque desejamos proteger o nosso filho pedindo-lhe para ser padrinho?
- No, claro que nao, me perdone, nuestra cultura es otra, está muy londge de esas cosas
- Está perdoado, agora o camarada Paulo entende que um filho tem sempre que estar protegido, não vamos mandá-lo assim de qualquer modo para Cuba, tem que ter um padrinho pelo menos.
Os parentes romperam em grande ovação, logo seguidos dos outros à distância O soba fez um sinal com a mão e a tranquilidade foi mais uma vez reposta.
O camarada comissário comunal, estava a sentir a sua autoridade minimizada, ninguém lhe perguntara a opinião.
Estes sobas têm a mania que mandam já vai ver, isso era antigamente.
Aproveitou a deixa e largou em altos vivas a Cuba, vivas a Fidel, pátria ou muerte venceremos, sem esquecer os naturais vivas ao camarada presidente Agostinho Neto, vivas ao internacionalismo proletário, um vibrante de Kabinda ao Kunene um só povo uma só nação e, já sem fôlego, uma atabalhoada a luta continua e a vitória é certa, repetida três vezes em crescendo molto allegro. O oficial cubano suspirou aliviado, os outros companheiros certamente pensariam que estava a dissecar com as populações nativas a questão da presença cubana solicitada por Agostinho Neto, a escalpelizar o dever internacionalista de Cuba e de Fidel para com a libertação total dos povos irmãos para pôr a nu o pensar dessa grande pátria e desse grande vencedor da Sierra Maestra.
- Bueno, lo que é necessário para eô ser padrino? – perguntou, quase sussurrando e desejoso de sair dali tão rápido quanto possível.
- Tem que o baptizar – disse Juba de Leão.
Pablo quase que deu um pulo do banco onde se sentava, uma investida norte-americana à sua terra não o teria colhido de tal modo.
- Bautissar? Como, bautissar?...
- Baptizar, na missão – respondeu o soba a rir devido à cara do cubano, que retirara do bolso das calças um lenço verde oliva e limpara o suor que escorria da testa luzidia.
- Non soy religiosso, non puedo entrar en la missao.
Juba de Leão pensou por um bocado, achou estranho o cubano não ser religioso, todos têm uma religião, mesmo os que professam que não têm sempre têm, nem que seja a religião do medo ao desconhecido, a religião do respeito aos seus mortos e antepassados, a religião ao dinheiro, a religião ao poder, todos têm uma, todavia considerou a questão de ele poder ou não entrar numa igreja de secundária, não era por aí que se furtaria às suas responsabilidades agora já familiares.
- Está bem, não precisa ir na missão, vamos fazer o baptismo no nosso regime.
- Vuestro regime, de que hablais?
- Os seus antepassados não saíram da África? Não conhece os seus antepassados, o
seu caminho? – insistiu, Juba de Leão.
- Si, saliram pero ya hace sieculos y non sé nada de bautismos sea en que regime.
- Camaradas, temos que ter cuidado – alertou de baixa voz o comissário comunal, ciente da importância política do seu posto e da longa vida que desejava conferir-lhe.
Os horizontes da nova era política não vislumbravam o exercício aberto de práticas obscurantistas, o homem novo em construção, e este não era feito de barro, material de frágil consistência e necessitado de cozeduras a altas temperaturas, tinha que combater sem tréguas as taras herdadas do colonialismo, entre elas a fragilidade das religiões, castradoras da mente e perniciosas ao desenvolvimento científico da juventude. Conhecedor desses novos rumos, apanhado no redemoinho das novas bem aventuranças da fé política, cristão novo da administração local, o comissário comunal tinha mais do que razões para estar preocupado. Os feiticeiros e os curandeiros haviam fugido para o cerrado das matas, de lá recebiam os que os procuravam no silêncio da noite. Os padres remeteram-se às missões, aos claustros dos conventos e suas escolas foram confiscadas, obrigados a manterem a boca calada. Não seria ele a ser acusado, fosse por que motivo, por algum aldeão, de ter promovido práticas ancestrais agora proscritas em nome dessa nova espécie de homo sapiens, cujas diferenças ele ainda não vislumbrava, a não ser da boca para fora nas frases, nas intenções e nas palavras de ordem.
- Não podemos fazer nada assim abertamente que envolva os técnicos – disse o comissário comunal, em tom brando.
- Coño, de que estan hablando, técnicos, que técnicos? Para ser padrino es necessário técnicos? – indagou Pablo, cada vez menos à vontade e talvez intuindo a voz de algum antepassado africano a cutucar-lhe a ancestralidade.
-No se preocupe, nós vamos fazer a cerimónia tradicional depois da sua saída.
Se ese es el caso, que bautizen el jovene como quieren, que hagan quantas cerimónias de quantos regimes conocem.
Sentiu-se mais à vontade e desejou que toda essa conversa acabasse logo.
Más que tierra y que gente esta!
- Está bien, puedem fasser la cerimonia mas eô não puedo estar pressente.
- O camarada Paulo fique à vontade, vamos dar-lhe a lista, logo-logo já vai encontrar o Nataniel como seu afilhado, e fica tudo entre nós.
- Lista de quê? Para se bautissar es assi tan complicado?- sentiu-se outra vez em angústia.
- Não, não é nada complicado, só tem que trazer umas coisas que vamos escrever, é para o mestre poder fazer o serviço, a cerimónia.
A contragosto e desconfiado, Pablo disse que sim, ele próprio traria tudo o que colocassem no papel desde que fosse normal, mas, sentencioso, rogou silêncio absoluto sobre a questão, não desejava ouvir mais falar-se deste assunto. Sem saber que iniciara o tortuoso caminho da descoberta de suas remotas origens, foi abraçado efusivamente pelo soba, pelos velhos e pelo comissário comunal que, com a sua presença política, tranquilizara um pouco os espíritos do oficial cubano.
Sorrindo à evocação, voltou a si, e virou-se para Nataniel, colocando-lhe um braço sobre os ombros.
- Es como te digo afilhado, hodje é um grande dia para nosotros, el primero passo de tu vida como revolucionário e médico.
Nataniel olhou para ele feliz. O que ficara para trás, para trás ficara, agora só tinha o caminho, em linha recta, para diante, e estava decidido a aproveitá-lo, estudaria, desejava ser médico e tinha uma oportunidade à sua frente, para além de ir conhecer novas terras e novos mundos. As cerimónias de despedida em Ualali tinham sido um momento difícil, por vezes mais pareceram um óbito pelos choros e gritos das mulheres. Aspergiram-no com uma água buscada da cacimba e levada à floresta para o mestre adivinho abençoar e nela colocar os melhores votos dos antepassados. O corte do cordão com a aldeia amedrontara-o sobremaneira, não obstante o ofego e alegria que a ida para Cuba lhe produziam. Sabia que iria encontrar-se sozinho em alienígenas terras que nem a sua fértil imaginação conseguia visualizar, a descrição daquele mar infindo que levava um barco grande a consumir quinze dias para o atravessar, quiçá prenhe de monstros que nem os saberia descrever ou imaginar, gente com fala estranha que teria que aprender para poder estudar, tudo isto e muito mais, o manteve contrito. Os festejos de despedida duraram uma semana, Nataniel para alem do futuro brilhante que lhe fora predito, era neto do soba, tendo, portanto, toda a aldeia contribuído para que a sua ida fosse a mais pressagiada possível. Nunca o jango principal conhecera tanta gente em festa. No primeiro dia, em que os mais velhos da aldeia pediram em comunhão saúde e protecção para o jovem, cabritos e galinhas foram oferecidos. No terceiro, ao fim da tarde, o avô, como o mais velho da família, convocou todos os parentes para a frente da sua casa, situada no centro da aldeia. No meio da alegria e da expectativa que se vivia, só os parentes ausentes não foram contados. Com os familiares acocorados em frente à casa, Juba de Leão agarrou num pedaço de fuba de milho entre os dois primeiros dedos da mão direita e fê-la cair sobre a terra, em quatro orações voltando-se para o norte, sul, oeste e este, numa invocação dos antepassados clânicos que sua memória conseguiu recordar. Quando terminado, todos os do parentesco presentes agarraram em pedaços de fuba de milho e repetiram o ritual, desenhando, após, com a farinha que lhes sobrara um risco vertical na testa.
O cubano foi igualmente lembrado e, numa cerimónia à parte e à qual compareceram unicamente Juba de Leão, Nehone, Epalanga, o pai de Nataniel, Nataniel, que já fora circuncidado, e o mestre adivinho. Foi então morto um cabrito preto cujos testículos, mais tarde secos no fumo, foram entregues a Nataniel na hora da partida com o fito de os confiar a Pablo para guarda, até ao dia em que regressasse a Angola, formado. No último dia, Nataniel foi instruído da forma como se deveria comportar em terra alheia, como recordar em todos os momentos a família e os idos e não defraudar a aldeia do sacrifício que faziam a fim de que tivessem um filho ilustre e importante.
Ficou grato pelo braço de Pablo no seu ombro, não defraudaria ninguém, estudaria com afinco, formar-se-ia e seria oficial médico das gloriosas Fapla, como ele dizia. Sentiu o padrinho indicar-lhe o caminho para o avião, a hora avizinhava-se.
Chegou a hora, não é? – disse receoso e com um apertado nó na garganta.
Pablo fingiu que não se apercebera e conduziu-o ao interior do Illyushin que o levaria a Cuba, recomendando-o ao piloto e às hospedeiras. Os outros entrariam depois, não tinham um padrinho oficial cubano que os levasse à cabina. Conduziu-o ao assento e avisou que a viagem iria ser muito longa e maçuda
- Quanto tempo, padrinho?
- Mucho, mucho tempo, unas catorsse horas.
- Catorze horas? Todo esse tempo aqui dentro no avião?
- Nao, vao à parar em Cabo Verde, unas islas onde também se fala português.
Nataniel achou que chegara o momento de entregar a Pablo o que lhe fora recomendado. Olhou à sua volta, chegou-se um pouco mais a disse.
- Padrinho, tenho uma coisa a dar-te, é da família, e tens que guardar até eu regressar de Cuba.
Abriu a mochila e retirou um pequeno embrulho amarrado com uma corda tosca. Verificando que ninguém observava, estendeu-o a Pablo que, desconfiado do gesto, o guardou de imediato no bolso, antes que fosse notado. Chegou-se ao afilhado, debruçou-se sobre ele e sussurrou:
- O que és esto?
- É a minha protecção familiar, tem a benção dos antepassados, como vou pelas tuas mãos isso tem que ficar guardado contigo.
Pablo sentiu um fogo interior a consumi-lo, fosse de tez pálida, estaria da cor de um pimento vermelho. Considerou a possibilidade de ser algum feitiço ou talismã, e o peso da responsabilidade tombou sobre ele como se tivesse sido fulminado por um raio. Sentou-se na cadeira vazia ao lado e, tirando o lenço verde oliva do bolso, limpou o suor que gotejava de testa. África cada vez mais o agarrava, mesmo contra a sua vontade, há algum tempo que se dera conta que começara a ser supersticioso, levava uma fita vermelha amarrada no tornozelo, por dentro da meia, e que conseguira, até à altura, manter em segredo dos outros. Que justificação teria se, por descuido, lhe fosse perguntada a razão do gesto? Talvez deve-se substitui-la por uma verde oliva, as desculpas seriam mais verosímeis, poderia ser morto sem que se soubesse e o fardamento roubado pelo inimigo que também às vezes o usava para assaltar aldeias indefesas, assim aquela fita verde-olivo, que certamente passaria despercebida, seria o testemunho imorredouro que aquele corpo era de um cubano valoroso, morto por Cuba e pela revolução internacional. Quem duvidaria das suas intenções, nada mais se falaria sobre a fita, mas agora, vermelha, como explicar?
- Proteccion? Coño, niño que pasa, no necesitas de ninguna proteccion? – ciciou, assustado.
- Necessito sim, guarda bem contigo, não podes perder isso, senão muitos males vão acontecer a ti, a mim, à nossa aldeia.
- Males, que males? No vai a acontecer nada, vas a venir formado e oficial graduado de las Faplas, no vai a acontecer nada.
- Vai sim, padrinho. Agora não te posso explicar, os mais velhos também não me disseram muito, pediram só que guardes isso contigo até eu regressar. É nosso regime e tu és agora o meu responsável, já esqueceu?
Quisera yo olvidar!...
Ao cubano, ainda amedrontado, veio-lhe à mente que em sua querida Cuba havia um ditado que alertava para não se acreditar em bruxedos, mas estar-se sempre ciente da existência das bruxas.
Certamente uma coisa seria guardar o pacote, outra seria não saber o que continha e não desejar violá-lo, vá lá saber-se que forças poderia desencadear, cada vez mais testemunhara coisas que, se lhe fossem contadas, riria de bom grado pela ignorância do relator e não pela verosimilhança do relato.
- Está bien, vou a guardar esto até tu regresso, pero tienes que me disser o que está dentro del pacotito este.
- São os testículos secos de um cabrito preto.
Pablo deu um pulo do assento e foi até à porta de entrada do avião, onde pediu um copo de água à hospedeira. Nataniel viu-o sorver a água sem respirar e estender o copo para ser servido outra vez. Bebeu três, pediu desculpa , agradeceu à aeromoça e veio-se sentar junto a Nataniel, sempre limpando o suor. Olhando à volta, murmurou a novo à orelha do afilhado.
- Testículos secos de uno cabrito?
- Sim.
- Y para qué, que vou a hacer com testículos secos de un cabrito?
- Não interessa, guarda só e guarda bem, quando eu voltar dás de volta porque tenho que levar nos velhos, no meu avô.
Mais tranquilizado, afinal nada mais do que guardar o embrulho lhe era pedido, desde que o fizesse nada teria a recear, no fundo era assunto da aldeia e de gente supersticiosa, não o afectava directamente, levantou-se e mudou de assunto, já começava a tornar-se suspeito aos olhos do comissário de bordo aquele cochichar constante. Puxou Nataniel para fora do assento e, emocionado, abraçou-o, dando-lhe um pequeno soco no ombro.
- Estudia, estudia bien y regresa pronto, un hombre para servir Angola y la revolution. Buen viaje – disse, saindo rápido para que a fraqueza dos sentimentos não fosse entendida, alguém já vira um oficial superior cubano a lacrimejar por ter cumprido com o dever sagrado da revolução internacional?