quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FELIZES FESTAS


A TODOS OS MEUS AMIGOS, LEITORES E SEGUIDORES, UMAS FESTAS FELIZES COM UM ANO NOVO PRÓSPERO, NO SEIO DE QUEM VOS AMA E DE QUEM AMAIS.

O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO (NO PRELO)


ANTÓNIO DE ASSIS JÚNIOR

Nascido no Golungo Alto, Kwanza Norte, em 1877, e falecido no exílio em Lisboa, em 1960, depois de uma vida marcada por prisões, residências fixas, desterros, o autor é, no campo literário, o último grande representante de uma época que teve o seu início por meados do século XIX, após a abolição da escravatura e que conheceria o seu fim pela segunda década do século XX. O trecho aqui contido, representa, ainda que encurtado, uma parte da população chamada civilizada, sociedade flutuante e de definição equívoca, numa definição do jornalista Castro Lopo, e localiza-se ao longo do rio Kwanza, entre a sua foz e Mpungu a Ndongo.

UMA SOMBRA

Seis horas de uma tarde de Fevereiro.
Entre as Ruas de Sá da Bandeira e Oliveira Massango, imediações do mercado, notava-se desusado movimento, próprio dessa hora, de homens mulheres e crianças que se dirigiam para as bandas dos bairros de Cahoios, Cambunze e Capacala, recolhendo aos domicílios.
No mercado, murado, calcetado e gradeado, tendo ao centro um alpendre coberto de zinco, as quitandeiras de fuba, azeite, batata e peixe seco armazenavam os balaios e quindas, potes e cabaças, dando assim por finda a faina desse dia, para continuar no imediato.
Outros homens, gente de ganho, de passo ligeiro, transportavam sacos e outros volumes á cabeça e tudo se encarreirava para aqueles lados onde as mulheres chegavam, e formavam grupos com as que encontravam – umas conversando e criticando os acontecimentos do dia, outras as cenas doméstica -; estas de pé, de quindas à cabeça e mãos à cintura, aquelas assentadas, com grandes lenços cobrindo-lhes as cabeças e, finalmente, ainda outras varrendo o terreno fronteiro às portas,
Todos aqueles grupos conversavam animadamente, e até pareciam dominadas pela mesma ideia, ou interessados no mesmo assunto sobre que conversavam, a avaliar pela forma e olhares perscrutadores por tudo que os cercava, cheios de curiosidade ou medo. As vozes, ao princípio alterosas e alegres, baixavam gradualmente de timbre, para que ninguém mais ouvisse o que diziam.
Todos esses colóquios ou conversas não podiam certamente deixar de referir-se, como os olhares davam a perceber, a uma pobre mulher, ainda nova, que um pouco distante, de passo incerto e olhar vago, os panos a arrastarem e a baba a cair dos lábios, se dirigia para os lados onde se encontravam.
Era o assunto de todos os dias, a conversas obrigatória sempre que duas pessoas se encontrassem nas encruzilhadas daqueles dois bairros, e vinha apaixonando consideravelmente os circunstantes desde que a doença da desgraçada rapariga se manifesta havia já cinco meses.
Ximinha Cangalanga, mais conhecida por a Doida dos Cahoios, constituía o objecto da conversa que dominava aqueles grupos. Natural de Luanda e filha de um Cabinda, patrão de lancha que fazia carreiras no rio Quanza, fora por seu pai entregue, anos antes, uma senhora do mesmo nome para ser educada. A mestra falecera havia já onze meses Ximinha, sem que ao princípio ninguém o suspeitasse, endoidecera haveria meio ano, depois de assistir a doença e o passamento da Rosária, sua condiscípula e amiga.
No princípio atribuiu-se à acção do jinvunji(Hidropisia. Feitiço que faz encher a barriga de água) que a preceptora professava, segundo de dizia, em alto grau, como sendo a causa da doença; depois veio a certeza da sonolência, que dizimava em grande escala as populações válidas das margens do Quanza e Lucala, para fim, se acreditar na existência de uma
força diabólica que reduzira aquele corpo à situação em que se encontrava.
Já não podia atribuir-se-lhe idade, em razão da sua excessiva magreza.
Os olhos, outrora grandes e formosos, eram sem expressão num brilho, as narinas dilatadas, beiços estendidos e cabelo desgrenhado. Caminhava lentamente, segurando com dificuldades os panos, que caíam, e soltava de vez em quando umas gargalhadas arrepiadoras, que mais pareciam casquinadas de feras, seguidas de palavras e frases desconexas e incoerentes.
Procedia dos Cachoios, de que lhe proviera a alcunha, em direcção à beira do rio, passando por Capacala. Atingindo o ponto de destino, tornava por mesmo caminho até ao local da partida. No percurso para qualquer dos lados tomava um desvio ou outro atalho, mas era certa a execução do itinerário.
Não se detinha, como também poucos olhavam para ela. Pretendia, às vezes, nos momentos que a outros pareciam de lucidez, recordar factos e, aos que passavam, apenas pedia que a desamarrassem.
- Sim, estou amarrada, estou presa, não vê? - e apalpava os pulsos e os tornozelos. - É esta a corda, e o guarda... o guarda está ali...
Vagueava o olhar e, trémula, apontava para além, num gesto incerto e indefinido.
- E ela está ali, a seguir-me também, e este soldado... a puxar-me...vê? Desata-me... sim, desamarra-me, e ficarei solta...
E com estes dizeres, que ao princípio ninguém compreendia, seguia seu caminho sem aguardar sequer resolução do pedido formulado.
Aqueles olhos jamais secaram, e toda uma imbecilidade se estampara por aquele semblante, cansado de contracções.
E assim andava, vacilante e indecisa, para, alguns passos depois, parar e, num grito lancinante e doloroso, que deríamos uma gargalhada, exclamar:
Ah!... ah!...ah!.. a! Tamene ki nganhanene’ ami-ê! (Oh! Oxalá eu não roubasse) …ah! … ah!… ah!…ah!… ah!
- As fronhas? Eram duas... sim... kiene… na mala.... exacto... saku...sim.. na mala... (Kiene (exacto)Saku (antigo saquinho de dinheiro em cobre)).
E ria, ria às gargalhadas, dolorosa, arquejante e sinistramente, terminando por frases incoerentes, imperceptíveis.
- Coitada da Ximimha! Bem melhor seria de Deus a levasse - aventurou Isabel Brás, filha do velho Kimbumba, que se encontrava na ocasião em que ela passava.
- Sim, seria bem melhor - apoiou umas das companheiras. - Muitas vezes não sabemos o que fazemos; pensamos que ninguém nos vê, o no entanto...
- Mas o que ela quererá dizer com aquela história de pedir que a desamarrem? – Observou uma donzela de outro grupo.
- Sim, é verdade. Pois ela está solta, ninguém a prende... – secundou uma outra, com certa admiração.
- Oh!, filha cala-te!... Ninguém sabe o que nos virá a acontecer amanhã – aconselhou uma mulher meia idosa, lá do canto. – Esta terra, cheia de seres sobrenaturais, de mitos e feitiços de toda a ordem, que se revelam em sonhos e em outros casos da nossa vida, foi sempre cheia de surpresas e decepções. Falando e criticando, os manes levantam contra o censor. Pessoas incrédulas aqui sossobram. E Embora custe, o ki a tobela […] o riembu, mutu umoxi k’a ki rimukin’ê (O que o povo aceita é temeridade um só querer obstar. Vox populi vox Dei).
Vê-se, horas mortas, mágicos atravessando o rio às costas dos jacarés; outros ordenando às serpentes imolar vítimas; ainda outros, disfarçados em chuva, provocam a fúria dos elementos – sapos que nos tiram a vida durante o sono, e galos metamorfoseados em raios, que nos incendeiam as casas -; falando a sós, o kimbanda nos revela amanhã as nossas palavras e pensamentos. Aqui reunidos, olhares invisíveis nos vigiam e ouvidos indiscretos escutam nossos dizeres, Quem diria… sim, quem diria que esta pobre rapariga… oh! O jinvunji… o feitiço da nossa terra… calemo-nos.
- Tem razão, velha Joana; isto aqui é uma terra difícil; ixi ia ituta; ia jinvunji, ia ianda… (Terra de mitos, feitiços e entes sobrenaturais. Kianda, segundo João de Pinho, é uma "divindade da mitologia africana. Segundo a crença dos indígenas, Deus Nosso Senhor dividindo o mundo por todos os espíritos do mal que afligem a humanidade, coube à Kianda o império dos mares, dos rios, das lagoas, dos lagos, das pontes, dos charcos, dos outeiros, dos bosques, etc. Sob sua influência também ficaram sujeitos os animais racionais e irracionais, a chuva, a peste, a fome, a guerra, a paz e, finalmente, todos os elementos. A mesma influência nos destinos humanos, a que preside, se lhe atribui quando, numa família, a parturiente dá à luz um ser deformado, ou anómalo. Neste caso toma o nome de Kituta, e é tratado com todos os respeitos e cuidados. Em geral é de pouca dura: regressa à procedência por não ser este o seu mundo") calemo-nos sim… calemo-nos todas, que tudo isto mete medo… muito medo…
E o sussurro, a conversa, ao princípio animada e alegre, decrescia, diminuía de intensidade pela aproximação da Doida dos Cahoios, no seu passo lento e incerto.
Avizinhava-se a noite e, sob pretextos vários, as componentes dos grupos se dispersavam, uma a uma, tomando cada qual o seu rumo.
E a doida lá seguia, cumprindo o seu fadário. […]

[…] Noite fechada.
Na sala de entrada os olhos que compunham os diversos agrupamentos continuavam conversando - uns sobre os acontecimentos do dia: as comitivas de quiocos e bangalas que entraram nesse dia para a casa do Sousa Lara, do Karikoko ou do Mesu’a ngatu; o avanço do caminho-de-ferro como possível causa do decrescimento do comércio do Dondo; as chuvas do ano; as cheias do rio; as doenças da região e o modo de
as combater; os estragos do jacaré, etc. - e outros colocavam as pedras sobre um tabuleiro de damas na extremidade da mesa.
Lá dentro chora-se... conversa-se.
No quintal, sob o toldo armado, a confusão de vozes e grupos era maior: a bisca era a o jogo quase que obrigatório dos que ali se encontravam - pelo menos o que todos sabiam melhor -, provocando a hilaridade dos presentes quando dois parceiros apanhavam um capote de doze pontos, ou o da direita rondava e chiava o sete do aniversário. O entusiasmo então crescia com a saída de uns, impotentes de uma desforra, e a entrada de novos parceiros mais adestrados no manejo das cartas.
No chão, homens e mulheres do povo, estendidos sobre loandas e esteiras, contavam missoso (histórias, apólogos ou narrativas com cantos adequados), ofereciam jihengele (adágrios) e propunham jinongonongo (enigmas), tudo sob a frouxa luz de fumarentos candeeiros, velas e lamparinas de azeite de palma, noites seguidas até altas horas em que os jogadores abandonavam o campo das manobras e os historiadores, que já ninguém escutava, emudeciam por sua vez para, na noite seguinte, condenarem os que adormecerem antes de findar ou se interromper a história - o que se testemunhava com a apresentação de um objecto seu (um pano, um lenço brinco, um botão, etc.), em poder de um terceiro, tirado enquanto dormia.
As condenações consistiam, em geral, na apresentação, em dia aprazado, de comidas e bebidas para todos os historiados e ouvintes de cada grupo - o que animava os contadores a novas históricas e novas condenações por muitos dias, além de outros comidas e bebidas fornecidas pelas parentes e amigas da finada. E lá dentro, no quarto das viúvas, o mesmo sucedia. Cada uma contava o que sabia «para passar o tempo e entreter as viúvas», sem contar as ofertas em géneros e o dinheiro dos que iam cumprimentá-las por si ou por parte de terceiros. Só estas é que se não sentiam muito satisfeitas pelas visões que de noite as faziam estremecer a cada passo, sem embargo de nunca terem olvidado, diziam, os preceitos a observar em casos tais: choravam, invocando a alma da defunta, duas vezes durante o dia - ás 6 horas da manhã e a igual hora da tarde -, até ao dia da celebração da missa ou simples responso.
- É que a essas horas – sossegava a velha Mungongo-a Zuze - a alma da finada, que nos não abandona jamais, vagueia pelas casa que habitou e sabe que é lembrada; as nossas lágrimas são como que um bálsamo que suaviza a alma dos que já lá vão...
- Sim; mas a tia há uns dias para cá aparece-me em sonhos muito zangada, a bater-me e a arrancar os panos que trago vestidos - respondeu Ana Reis, pesarosa. – Hoje sonhei com ela a correr atrás de mim com uma acha de lenha acesa.
- É talvez por as suas lágrimas não serem sinceras – insinuou, do outro lado, velha Chica- ; vocês, as meninas de agora, às vezes estão a chorar, sim, mas a pensar em outras coisas!.. isso não é bonito.
- É verdade – apoiou Capaxi, que entrava nesse momento -; também a Ximinha já me apareceu em sonhos a pedir-me que te avisasse a acabar com os amores que estás tendo com um Fulano daqui mesmo.
- Eu, minha senhora!? - Protestou Ana.
- Eu não sei se isto é ou não é assim: eu não tenho vindo cá às noites, como sabes. Se é verdade ou não, consulte a sua consciência. os mortos não falam, mas os espíritos vêem e sabem tudo.
Ao protesto da Ana Reis, Rosário levantou os olhos, em ar de censura, para a companheira, e baixou-os em seguida, puxando o pano preto para a cara.
Capaxi viu isso, e compreendeu.
- Então é verdade - disse consigo -; os mortos não mentem.
- A mim também - disse por sua vez Ximinha Cangalanga – já me apareceu duas vezes em sonhos com um homem que parecia um soldado, a amarrar-me uma corda à cintura. Eu aflita, queria gritar, mas debalde; queria fugir, e não podia; eu chorava e debatia-me com toda a força, e suores frios inundavam-me todo o corpo quando acordei, trémula e assustada. Ali! Que medo!... uoma ua’nhi ué... (Que susto!?...)
-Também tive ontem, é singular!... o mesmo sonho que tu, Ana – disse – Rosária, levantando um pouco o pano que lhe tapava os olhos - ; a minha mestra corria atrás de mim, zangada, com um tição aceso… Não são bons estes sonhos; não lhe parece, D. Capaxi?
- Ah!, sem dúvidas nenhuma. Eu apenas sonhei com ela dois dias depois do seu falecimento; vinha vestida de preto e trazia na mão um chicote. Assentou-se junto de mim e, em conversa, repetiu as mesmas palavras que me dissera, neste mesmo lugar, momentos antes de morrer: que «de nada receasse, porque fui muito sua amiga, mas que os meus olhos testemunhariam muita coisa; mesu mé mondo kala mbangi. Mukutu uámi uá ka íba, o ima iâmi ia ka uába!? Ambula, paxinha, mondo tala maka. Ja´kula ka Humbi, kizúa kilombelombe u j’ibula»... (Teus olhos serão testemunhas. Foi mau o meu corpo e bons os meus haveres!?... oh! Deixe, Paxinha, verão (os olhos) coisas. Dêmos tempo ao tempo, dia virá que tudo se saberá...» Kakulu (de ukulu), o primeiro, o mais antigo, remoto. Humbi, pássaro do tamanho da águia, preto (assim conhecido possivelmente em razão da sua longevidade, que em certa época do ano ou de anos aparece em bando, no espaço, muito alto, soltando pios estridentes, agudos. Entre os indígenas, a aparição destas aves pressagia cataclismos, desgraças, algum acontecimento mau. Kilombelombe, corvo. Em síntese, traduz que «pelos bens deixados pelo Humbi - o mais antigo dos pássaros - perguntará um dia o novel Corvo»)
- Também a mim disse o mesmo, e que não tivesse medo- acrescentou a velha Chica.
- Dessa maneira vejo que mesmo do Além visitou a todos- disse Munhongo –a – Zuze -; ela bem o disse: «Do outro mundo falarei...»
- Eu estou á espera se completem os trinta dias para as missas- continuou Capaxi- ; ela por certo não se zangará connosco, por abrimos as janelas ao trigésimo dia.
E passaram, para esse efeito, a combinações várias, acerca do acto a realizar. Mas os sonhos, reputados maus por uns, e havidos por avisos salutares do Além por outros, continuarem, por parte das viúvas e Cangalanga, como da Capaxi, que por meio deles tomava todas as providência tendentes às disposições da casa.
- Grandes surpresas nos reservou Ximinha Reis – comentava D. Conceição.
E não se enganou.
Os dias foram passando nesse tumultar de contos, choros e jogos e, ao vigésimo quarto dia, Capaxi anunciou entre a multidão do quintal a celebração da missa, sufragando a alma da Ximinha ao trigésimo dia. – “Pangu a ibula mukulu, matote á calunga a maibula mufundi” (Pergunta-se a virtude ao espírito, e os restos mortais ao enterrador) - começou ela por dizer. Ninguém duvidou das provas de sentimento que desde o dia do passamento da nossa amiga todos têm vindo aqui tributar-lhe. Semelhante procedimento é uma demonstração do quanto Ximinha era nossa amiga e por todos estimada, sendo até a primeira Presidente honorária escolhida da primeira associação que aqui se organizou. Gozou de gerais simpatias e a sua porta jamais se fechou para ninguém. Creio, pois, que todos os que se encontram aqui presentes não se recusarão a contribuir para as missas com o que puderem, venerando assim a memória daquela que nos faz aqui vir. Se é certo que a ideia não é nova – a constituição do que nós chamamos sangu (Subscrição, colecta ou donativos ou total de quantia angariada entre vários para compra de comidas, ou para qualquer outro fim) - nem por isso deixa de primar pela oportunidade; e penso que só desta maneira poderemos testemunhar a amizade que tivemos pela nossa amiga...
Estas palavras foram aprovadas por aclamação, por todos bem recebidas; e nos quatro dias imediatos cada um ia entregar à proponente a parte que lhe cabia na contribuição.
- Bem lembrada, sim senhor – apoiava Venceslau -; a proposta não podia ser, melhor, nem mais a propósito.
- É verdade - apoiou Isabel Brás, que viera de dentro e assistira à prelecção -; a defunta era muito nossa amiga e devemos por isso concorrer com o nosso óbulo para as missas a celebrar… Santas palavras as da senhora Capaxi.
Eu - disse Venceslau - tencionava ir-me embora amanhã com o seu irmão José Brás; mas agora espero pelas missas...
- Venceslau, que assim falava, era um rapaz alto, esguio, tinha os seus negócios e residência no Libolo, e vinha ao Dondo por vezes entregar géneros e mantimentos, que permutava, e fazer novas requisições de mercadorias. Natural da localidade e conhecido da defunta, ali ia às noites passar com outros umas horas jogando a bisca a ouvindo misoso.
A aproximação do dia aprazado fazia atrair ao local fora das horas do costume mais pessoas, disposta a prestar o seu auxílio nos donativos, arranjos e aparatos da casa, para que nada faltasse.
Maria de Castro e velha Chica a tudo providenciavam, lavando louças, compondo e limpando mesas; e Muhongo e Capaxi entre si concertavam a forma como o acto devia correr. Conversa vária se abordava entre os minúsculos grupos assim constituídos e no meio dela não escapou a dedicação que Capaxi mostrava pela sua amiga.
- Oh!, amizades como esta aparecem para exemplo das ingratidões do mundo...- sentenciava Maria de Castro. […]

[…] Em 1872 seguia, Quanza acima. D. Clara Júlia Pires Pederneira. Se marido, João Feleciano Pederneira, acabava de ser despachado administrador do concelho de Pungo Andongo, onde já residia, e decidiram fazer a viagem por mar, que era, senão dispendiosa, pelo menos mais cómoda.
Esperaria uns dias no Dondo pela esposa, que se destinava também a uma devoção à Muxima, à milagrosa N.ª S.ª da Conceição, em cuja igreja, situada na margem esquerda do rio, se ajuntava avultado número de peregrinos idos de toda a parte. Ali esperava D. Carla encontrar cura para os seus achaques morais, e para isso levava, representada em doze velas de cebo, uma promessa devido ao seu estado de saúde, que a trazia bastante preocupada.
De facto, havia muito tempo já que anunciara ao marido, antes da saída deste para Luanda, que ia em breve dar-lhe mais um herdeiro – o terceiro do seu segundo matrimónio; mas o período de gestação passou sem que aparecesse à luz do dia o fruto das suas entranhas. A incredulidade do marido e o seu próprio desânimo constituíram uma nódoa negra na existência de ambos.
- Foi por certo um engano de tua parte – dizia-lhe o marido a medo -, pode lá ser que, passado quase um ano, não tenhas pelo menos mostrado indícios de gravidez? […]
[…] Saiu a velha Maceca a desempenhar-se da missão que se impusera. Uma mulher de nome nga Samba-ria-malunga, kimbanda de altos merecimentos, consultada, adivinhara por meio dos seus manes, tratar-se de um hebu – feto cuja gestação se prolonga por anos sem conto -, frequente em terras de imagens encantadas ou entes sobrenaturais, que dominam o curso das águas e habitam os altos penedos de Pungo Andongo, onde era natural.
A gravidez do hebu de D. Clara ecoou por toda a povoação com a velocidade de um relâmpago. Era quase o assunto de todas as conversas, e todos aconselhava e aceitavam como precisos os preceitos impostos pela kimbanda. O recolhimento em um recinto reservado tornara-se, pois, necessário, para honra dos deuses do Olimpo e proveito dos doutores da Terra.
Tudo, porém, tem seu termo, como os males seus remédios. Para este caso, o da cura do hebu, bastaria observar as regras que a kimbanda prescrevesse e o fenómeno desapareceria, o encanto quebrar-se-ia, deixando nascer a criança.
D. Clara ao princípio hesitou, duvidosa; mas por fim acabara por ceder, por ver nisso o único meio de cura, conforme vozes dos circunstantes. «Era preciso observar os preceitos indicados, no caso de querer ter saúde e ver-se livre daquele pesadelo…»
Cumpriu.
Em Pungo Andongo, longe do marido, subtraíra-se das vistas das pessoas de certa respeitabilidade; tirara os vestidos, que substituíra por panos, e descalçara as botas. Untara a cabeça de tacula, com traços pretos na testa e nas fontes; na cintura um pequeno guizo e sobre a cabeça uma espécie de coroa feita de erva de kandámbia (Certa gramínea, que também serve para alimentar gado suíno).
As refeições tomá-las-ia sozinha, bem como qualquer bebida (água) e dormida. A qualquer acto que praticasse ou resposta, invocaria primeiro o nome de hebu e, assim, com um pequeno chocalho, saxi, anunciaria todos os movimentos que executasse:
- Hebu iami, sentemo-nos; hebu iami almocemos; … caminhemos; … deitemo-nos; respondamos, etc.
- Ai! Que aborrecimento!? – murmurava ela de vez em quando.
- Assim é preciso, senhora; que fazer? – animava a Maceca.
O hebu constituiria, assim, a sua única preocupação, o canto ou a conversa obrigatória para aquelçes com quem lidasse… Era preciso que assim fosse; de contrário malograr-se-ia tudo.
- Kuvala ku a rile o kanjila um ngongo, tu banga ua’nhi? (Sucumbiu pelo mundo fora o passarinho por amor de seus filhos)
Que devemos fazer? – apoiavam algumas mulheres que a iam visitar.
Mas o tempo foi passando e o encanto não se quebrava; a barriga continuava no mesmo estado.
- Tem paciência, senhora; o hebu é um ser de muitas virtudes, como também causa de muitas desgraças; a kimbanda afirmou…
- A kimbanda é tão boa intrujona como tu, minha parva – retorquiu, fora de si, D. Clara. É de mais, e não posso suportar por mais tempo estas mindángulas
(Patranhas).
Levanta-se furiosa e, arranca os cordéis que a ornamentavam e arremessa tudo para a casa do diabo, decidida a contrariar as prescrições da doutora e provocar a ira dos deuses.
- Ora é de mais; se eu tiver que morrer, que morra; mas não aturo mais isto… […]

[…] Foi em princípios de Julho, depois dos sucessos que ficam descritos, que seguira para Luanda, onde se marido se preparava para ir tomar posse do seu novo cargo.
Posta ali, o marido não deixou de insistir que se tratava apenas de uma cisma, de um equívoco, e nada mais.
- Bem os milongos (remédios) da terra não deram nenhum resultado; é realmente uma pantominice, a que ninguém deve dar crédito. Mas eu tenho fé, e iniciarei uma jornada até á Muxima, e a N.ª S.ª da Conceição, que me ajudará, desde já entrego o ente que as minhas entranhas contêm… Ela me ajudará e salvar-me-á.
- Faça o que bem entender, Clara; a fé é tudo neste mundo; é com fé que escapamos da morte; e realizamos empreendimentos que nos parecem impossíveis. Mas, cá para mim, o que disse está dito: é cisma…

///

As viagens por via marítima, nesses recuados tempos, embora cómodas, não deixavam de ser dispendiosas. O vapor estava prestes a sair e nele se instalaram João Pederneira e sua mulher […] ele passando em revista algumas notas por que iniciaria os trabalhos logo após a sua chegada à sede da administração; ela recolhida em fervorosa oração, no íntimo da sua alma, tendo com única preocupação a promessa feita à protectora das mães infelizes. […]
[…] Já junto da barra, o barco baloiçava um pouco mais do que seria de desejar. Alguns passageiros não puderam suportar o enjoo e tiveram, recolhidos nos seus beliches, que “chamar pelo Gregório”, na frase picaresca do Comandante. D. Clara, que fora um desses passageiros, receosa e inquieta, não pôde sossegar. Pesava-lhe a cabeça, que ardia em febre. Uma inquietação violenta invadira todo o seu corpo e, por fim, uma onde de água salgada veio varrer o convés do vapor, fazendo-a assustar grandemente.
A ideia de que o navio submergia, seria engolido pelo mar furioso, imenso, encapelado, não tardou a apossar-se dela. Seu marido e a velha criada, que junto se encontravam, não conseguiam sossegá-la.
- É lá possível o vapor ir ao fundo, Clara! – dizia-lhe o marido.
Mas ela, transtornada, alucinada, a nada atendia, nada a fazia conter. Dir-se-ia que endoidecera.
E nesse estado de corpo e de alma, agarrando-se a tudo e tudo mordendo – paus, ferros, lençóis e as próprias vestes -, o vapor singrando barra dentro e, no convés, alguns passageiros mais ousados ou dominados do desejo de admirarem o doce espectáculo da passagem do mar para o rio, contemplavam o fechado mangal das terras do Tombo – D. Clara, apenas assistida de seu marido e ajudada pela celha criada, dava à luz do dia uma robusta criança de sexo feminino.
- Bravo!, quebrou-se o encanto. Louvada seja a imaculada Maria mãe de Deus – disse ela como que falando a sós.
- É verdade… tinhas razão… Ora até que enfim… Quem tal diria!...~
- Kolê-nu! Oh! Kiua! Kiua (Exclamações de alegria, que traduzem: Eureka!... Hurra!... Aleluia!... Viva!...) – exclamava, por seu lado, a velha criada, que, louca de alegria, agasalhava a parturiente.
- Chamar-se-á Elmira – disse o marido, tomando a criança nos braços.
- Sim; mais chamá-la-ei de Kapaxi.
- Ora adeus!... mas que lembrança…
- Será como quiseres, mas é assim mesmo: ió mon’ami ua jipaxi; Kapaxi kami ka jingongo, ka malamba… (Kapaxi corresponde a Dores portuguesa ou Dolores espanhola… «Essa é a minha filha de sofrimentos e dores…» e jipaxi, jingongo, malamba, são sinónimos, traduzem a mesma ideia)
E dizendo isto, mentalmente agradecia, em breve e contrita oração, à N.ª S.ª da Muxima, à Mãe das aflitas, mama Maria, refúgio das almas abandonadas, que mais uma vez se revelara protectora das mães sofredoras.
Foi isto no dia 5 de Agosto.
- Vê, senhora!... e encanto quebrou-se, não com as ninfas das pedras de Pungo Andongo, mas com as do mar, mais fortes e virtuosas – dizia por fim a velha criada, recebendo a menina. – A velha Umba tinha razão… cá temos a nossa menina…
Jingolêla j’ a ri tula… (As primícias manifestaram-se) […]

[…] Às 5 horas da tarde, D. Clara pôs-se a caminho com destino ao Mièji. Ia a pé, apenas acompanhada do criado Mateus, que também dá pelo nome Malianvu, de espingarda de pederneira ao ombro.
- O velho Quinguimbo tinha vindo participar à senhora que o leão…
- Sim, já sei tudo; o menino Alfredo disse-me, mas eu estava no óbito do meu sobrinho…
- Não era mau, senhora, mandar parte do gado para outro lugar. Quinguimbo está cansado, velho; o curral precisa de ser reconstruído e os bichos…

- Minha irmã disse-me a mesma coisa, mas também as mudanças não dão bom resultado, não fazem nada bem aos gados. Os pastos e as águas não são os mesmos, o gado ressente-se e às vezes morre…
D. Clara apressava o passo para assim poder estar de volta ainda dia. E mesmo porque uma simples inspecção não levaria muito tempo. A estrada, pouco transitada, não era muito larga. Mas, no fim de um quarto de hora de trajecto, D. Clara estaca, assustada:
- O que é isto? – Pergunta ela apontando para um traço verde-escuro que a poucos passos atravessava o caminho.
Mateus olhou:
- É uma cobra, senhora.
- Está morta?
Mateus tornou a olhar:
- Está viva, e caminha tão devagar…que se não percebe.
- Ora aqui está – disse ela altamente intrigada – umas em sonhos e outras na realidade. O que quererá de mim essa cobra?
Perturbou-se, com embaraço nos movimentos. Não sabia se avançava, se recuava. Cismática, dotada de espírito fraco, deixando-se influenciar, como vimos, por elementos estranhos, não atinava com que fazer. Tirou o xaile com que se cobria e tentou avançar, mas não pôde. Por fim, tomando alento, passou o xaile pela cintura, recuou um passo e falou assim:
- Cobra dos meus infortúnios e mensageira das minhas desgraças, que quererás tu de mim? Sim, o que pretendes? Nos anais da minha vida ocupaste sempre um lugar sinistro. Porque me persegues, já em sonhos, já acordada? Porque atravessas o meu caminho? Quem és seja amigo o teu mandante, sejas tu o próprio malfeitor que te transformaste em cobra, porque me embaraças o caminho? Oh! Maldita Oh! Satanás!
- Vai procurar outros caminhos! Vai imolar outras vítimas! Que as anjos do céu te excomunguem e afundem no fogo eterno! Maldita tens sido sobre a Terra! Não me alcançarás, não e quebrarei teu encanto e magia...
Depois deste exórdio, que ela chamaria muxibu
(Contestação às divindades ou manes tutelares pelos males que se apresentam ou desgraças que ameaçam a existência. Muxibuuêlé; muxibu ua lungu diz-se numa pendência quando o contestante decai ou vence, afinal. Kulunga, ter razão), recuou mais um passo e, cedendo o lugar, disse para o criado:
- Mateus, mata esta cobra...
Este avançou e, apontando, disparou. A viva, detonação ecoou por aqueles campos fora. A cobra, eficazmente atingida, contorceu-se muitas vezes e imobilizou afinal. Mateus com a ponta de um pau, afastou-a para o capim e cheia de precauções seguiram seu caminho, lançando ao local um derradeiro olhar.


///

Quinguimbo deu conta à patroa dos estragos do leão: matara sete bois em 15 dias. O curral estava defeituoso e sem grande segurança. Mas que o ia reconstruir; as crias desenvolviam-se bem...
D. Clara, porém, não prestava grande atenção á exposição do velho serviçal, que não deixou, por sua parte, de notar a inquietação de sua patroa.
- O que tem a senhora, que se mostra assim tão alheada? O que lhe sucedeu? - perguntou em voz baixa ao Matianvo.
- Foi uma cobra que viu atravessada no caminho.
- Mordeu-lhe?
- Não; estava parada...

- E fugiu?
- Matei-a eu…
- Com um tiro - completou Quinguimbo olhando para a espingarda.
- Sim
- Ah! Foi o susto que apanhou...
D. Clara nada disso ouvia; assustava-se arreada, a cada momento, olhando para trás e para todos os lados, como que a querer evitar a aproximação de alguma coisa. Vagueava olhar em volta e estremecia a cada instante.
- Riuê! nhok’ê...
(Aii!... a cobra) - exclamava tremente.
Sentia-se doente; suores frios inundavam-lhe o rosto e um torpor esquisito se apossava de todo o seu organismo.
Era noite. Ao marido, filhos e criados contara o encontro inesperado que tivera pelo caminho, narração entrecortada pela exclamação de nhoka, com olhares perscrutadores.

- O nhok’ ei! Inhi i andala n’ eme, o nhok’ ei (Esta cobra!... O que pretende de mim esta cobra!?...)
dizia repetidas vezes.
Assentava-se muitas vezes sobre a cama, onde já se não sentia bem. Esperança assentada sobre os calcanhares junto dela, tomou, apesar da sua idade, a palavra, e, em tom de conselho, disse:
- Efectivamente, senhora, a aparição de uma cobra é sempre sinal de qualquer má nova. Assim o ouvia de minha falecida mãe; assim o disseram também as velhas no quintal, às quais contei o sucedido.
- Sim; para mim uma cobra é prenúncio de mau agoiro. Foi assim na morte de minha mãe, e, há dias, no caso do meu sobrinho...
- Pois, se a senhora dessa licença, eu e a Catarina iríamos saber o que essa cobra queria, quem mandou... é sempre bom...

D. Clara nada respondeu; estava recolhida na cama, rodeada de suas filhas. A visão da cobra não lhe passava; em todos os objectos e em todos os lugares divisava a cobra, “a mensageira da morte”, como lhe chamava, contorcendo-se agonizante por largo tempo, até á imobilidade… Lembrava-se depois das visões de cobras que tivera e das pessoas de família que pereceram, confundindo-se em recordações várias, absorta, extasiada, para depois de algum tempo exclamar assustada:
- Aiuê! Nhok’ê….

No seu sonho sempre crescente, outras cobras lhe apareciam, grandes e pequenas, enlaçadas e solitárias, enroscando-a nos pés, braços, tronco... Ela debatia-se, mas debalde, porque o número crescia… crescia… Arrepelava-se, sacudia-se, gritava que a acudissem. E com esse grito nos lábios, com essa frase tremenda, fatal, saltava, de repelão, para fora da cama, transtornada, assustada, de olhos esbugalhados...
- Aiuê! Nhok’ê...
Dois dias depois regressou Uakinga da sua missão cabalística.
- O que lá te disseram? Que novas me trazes? – perguntou logo que a criada entrou.
- Não são más, senhora.
- Como assim?
- Foi uma precipitação de sua parte e nada mais.
- Não compreendo. Então a cobra...
- É fácil compreender, senhora. A cobra passava; como qualquer outro vivente, seguia seu
caminho; não lhe acometera, não fizera mal a ninguém; e ela agora “chora a sua vida”, que lhe foi arrebatada… (Ku a lunga i al’ o’ rila o mucunhu uê)
- Oh!... mas eu sonhei... sei, não me enganei… cobras e feiticeiros...
- Hum! Nzoji... malanza, xinhola; ki u inda, kala kiri (Sonho… Ilusão, quimera, senhora; quando se sonha afigura-se-nos verdade).
-
Mas como sabes tu isso?
- A ixana mu’ ia malunga... e falou
(Foi chamada na panela dos espíritos).
- Visão tua, Esperança; já tua mãe me dizia a mesma coisa, para me sossegar...
- Engana-se, senhora; eu vi com estes meus dois olhos; e não quero ocultar-lhe o que vi nem deixar de dizer-lhe que ela disse...
- Então o que viste?... Conta lá.
- Eu vi a cobra dentro da panela de água a ferver e, por intermédio do kimbanda, a cobra falou...
Houve uma pequena pausa, como que a calcular o efeito produzido por estas palavras, e continuou:
- A cobra falou... Lá do outro mundo
, «chora a sua vida»; «passava, seguia meu caminho como qualquer vivente; não lhe a acometera, nenhum mal lhe fizera; o caminho é de Deus e dos homens, quem passa vai e quem fica está: porque me matou? - Perguntava ela. - Por que causa, por que crime?» Eu vi... e ouvi com os meus próprios ouvidos...
E Uakinga, então, espraia-se em minúcias; a recepção do kimbanda; o ritual do mutakanu (Este termo vem do verbo kutakana, buscar, encontrar, dar de face com..., e equivale a preparos, ou adiantamento que a consulente dá para o kimbanda manobrar), assinalado pela entrega de seis vinténs e uma garrafa de aguardente; os preparativos em quarto escuro; a confusão de vozes fanhosas e guizos no alto da cubata; a exibição da panela de barro, nova com água sobre três masuika
(Pedras sobre que assenta a panela, para cozinhar; trempe), sem fogo por baixo e esta, mediante palavras cabalístacas do kimbanda, ferver; aparição da cobra de azul-escuro, dentro de água, contorcendo-se em voltas de agonia e, por fim, as palavras que proferira, com espanto e admiração dos assistentes...
Eu vi, senhora, sem necessidade de dizer kanduka
(Palavra que, em assembleias ou acto solenes, significa «apoiado», «continue» antítese de «malanza», não é verdade), palavra do costume quando o kimbanda adivinha a verdade que já sabemos, disse... que era preciso fazer...
Uakinga esperou.
- Então... diga lá... o que se deve fazer? – Perguntou a patroa com algum interesse.
Como qualquer vivente que era, deseja ser chorada a mu rila o tambi
(À letra:”que se lhe chore o óbito”). Tem a senhora que nomear uma das minhas companheiras para servir de muturi (viúva) e, durante 8 dias fazer óbito, dar o sangu e a comida da noite (Kuria usuku, ceia dedicada aos espíritos na véspera da missa ou responso, e coincide com a limpeza da lareira, cuja cinza, durante todo esse tempo, não é varrida (kakomba o rito-kua), nem a casa limpa, em sinal de tristeza. Em pontos mais afastados, e entre indivíduos separados no seio da igreja, as viúvas e parentes do morto besuntam a cara de carvão, lodo ou cinza; sendo nessa noite os detritos lançados ao rio ou depositados sobre a sepultura do finado.
... missas... etc.
D. Clara ouvira silenciosa o relato da jovem criada, que lhe revelara segredos do outro mundo. A dúvida, porém, não a deixava tomar uma resolução, ou fixar uma ideia. Contudo, a revelação do kimbanda tinha bem o seu fundamento.
De facto, a cobra não lhe acometera; mas o que fazia ela ali? Podia tê-la feito fugir, para lhe deixar passagem; foi esse o seu erro, talvez o seu crime. Mas ela Fugiria? Não se revoltaria contra ela?... não lhe queria mal; e porque lhe atravessara o caminho por onde passava? Que fim? Que lhe queria?
Estas e outras perguntas assaltavam-lhe à mente enquanto Esperança concluía a narração do que vira; e, por fim, o desejo da cura, de não mais ver nem sonhar com cobras, de se ver livre daquele tormento, triunfou. Aceitou e aprovou os desejos da cobra, chorosa, lá no outro mundo, e consentiu em satisfazer a vontade da alma «vítima», que do além-túmulo reclamava sufrágios...

- A fé tudo neste mundo - repetia o marido quando teve conhecimento da ocorrência -, é com ela que as magos e os doutores tiram das coisas deste mundo o seu melhor resultado...

///

Na cubata de Catarina, a muturi escolhida, reuniu-se o óbito com a assistência e choros dos demais escravos. Para lá mandava D. Clara garrafas de vinho, de aguardente e iguarias às viúvas e suas companheiras, pois a alma da cobra recomendara «não faltar nada», e Catarina nenhum preceito olvidava - não fosse ela, do outro mundo, fulminá-la também...
No sétimo dia teve lugar o sangu, que em outro lugar já explicámos, para todos os que fizeram parte do óbito, e o oitavo a
«comida da noite» guisados e assados de carnes de porco, carneiro galinhas, vinhos, licores, doces, etc., que se dá ao espírito da pessoa morta á meia noite.
Esta cerimónia é a mais delicada nestes casos, em que a alma do morto comparece no local com os seus amigos e parentes. Preparada a ceia, colocam-se, ao ar livre e em lugar não acessível a todos, sobre uma mesa coberta de uma toalha muito branca, com copos, pratos e talheres, as viandas e licores, tudo compatível com a categoria ou grau de educação do falecido ou do que faz a cerimonia, na qual intervém, em geral, uma velha a que chamaríamos «mestra de cerimónia», que dirige, compõe e harmoniza as duas partes; os que já foram e os que ainda cá andam. É uma cobra? Não; é uma alma a sufragar. Aí, tudo, comidas e bebidas, permanece descoberto, como que abandonado, por espaço de meia ou uma hora, pela pessoa mais velha ou pela encarregada da cerimónia, enterrados, como o fora o corpo do invocado, para que «viva por lá, no outro mundo, em paz e sossego, e não venha ou tente perturbar os que cá ficaram». E no dia seguinte, de manhã, é mandada celebrar pela muturi uma missa na igreja, ou simples responso, sufragando a alma do defunto, para que entre na eterna bem-aventurança.
Mas, no caso que estamos registando, a dúvida não foi pequena sobre se se devia, ou não, mandar rezar a missa.
- Como, se cobra não tem nome? – Obtemperava Esperança.
- Na verdade, assim é; mas não se trata aqui de um a cobra - retorqui Catarina.
- Eu ouvia minha mãe dizer que a missa é mandada celebrar por almas de pessoas iguais a nós... Uma cobra não uma pessoa... replicou Esperança.
- E se assim é, para que estamos nós aqui? Se lhe «choramos o óbito» como se fosse uma pessoa, como omitir a cerimónia da missa? – insistiu Catarina, receosa de qualquer maldição da cobra.
- A cobra pediu óbito, não pediu missa; além disso, a senhora está ainda doente... que diriam depois?
- Sim, o melhor é não se dar a missa na igreja, porque disso não entendemos, é quanto basta.
- Eu também assim o entendo – apoiou Tekula.
- E mesmo porque o sr. Padre não aceitaria celebrar missa por alma de uma cobra – rematou Esperança. – Era o que faltava...
- Mas, vejamos bem – tornou Catarina -; não se trata aqui de cobras, porque, de facto a cobra já não existe; mas sim da alma de um defunto, por quem choramos ao óbito...
- E esse defunto como se chamava? – Retorquiu Esperança.
Catarina reflectiu um momento e, vencida, nada respondeu. O seu pensamento não abrangeu, decerto, aquele outro caso revelado por Anatole France, se não estamos em erro, da viva discussão que na corte celestial se levantou sobre o baptismo de uns pinguins levado a efeito por um padre míope, e se, por esta circunstância, deveriam ou não dar entrada no seio da cristandade. Até aí, para estabelecer a comparação, não chegou o pensamento de Catarina, nem se preocupou em saber se, a ser certa a metempsicose, as almas que se evolam deste mundo conservam no outro a forma da matéria, que a terra consome. Calou-se e aparentemente concordou em não se celebrar a missa na igreja. O acto limitou-se, portanto, no dia seguinte, a uns choros sumidos, e á abertura das janelas.
O que mais era preciso?

///

Tudo se fizera como o kimbanda havia recomendado e Uakinga traduzido; D. Clara, no entanto, nenhumas melhoras experimentava.
Esperanças e Catarina, finda a cerimónia da abertura das janelas, foram dar conhecimento da forma como correu o óbito; mas tal revelação não a fizera sossegar; pelo contrário, fraca, olhar vago quase sem brilho, a doente denunciava já aquele estado estranho que se nota em organismos cansados de lutar. Não lhe interessava já a narração das duas servas como se interessara para na organização do óbito. Oito dias bastaram para nela se operar a mutação que a todos assombrava. O seu estado agravava-se de dia para dia. Dir-se-ia que aquele corpo sossobrava sob o peso de um tormento que o aniquilava. As duas servas notaram-no e, entreolhando-se, não ocultaram, como as outras pessoas que ali se encontravam, a sua estranheza.
Catarina recordou:
- Não sei - disse ela para a companheira -, parece-me que se não cumpriu bem a vontade revelada pela alma da cobra.
- Porquê?
- Porque se não deram as missas...
- Oh! Isso não tira nada.
- Parece-lhe? E esta agitação da senhora, o que significa?
Esperança nada respondeu. Talvez por, naquele momento, não lhe interessarem já os argumentos da Catarina.
- Mamã; as cobras, ainda que mortas, também falam? – perguntou a pequena Hortênsia.
A esta observação da ingénua criança, D. Clara, como que acordando de uma longa e pesada letargia, abraça-se á filha olhos muito abertos, exclamando: Ai! nhoka!... nhoka!
Trémula, agita as roupas e procura com o olhar qualquer ciosa que receia, mas que não vê. O tormento aumenta dia a dia e a doença como que atingindo o auge, continua sua marcha desastrosa.
Catarina e Esperança, desde então, jamais se separaram do leito da enferma, absorvida em seus pensamentos.
Poucos dias mais durou e, numa quarta-feira, 28 de Novembro de 1877, D. Clara Júlia Pires Pederneira deixava de existir.
- Aiuê, nhok’e! - Foram as suas últimas palavras.

In “O Segredo da Morta” (Romance de Costumes Angolanos) União dos Escritores Angolanos, 1979

ANTOLOGIA PANORÂMICA DE TEXTOS DRAMÁTICOS


Desejo, antes de mais, homenagear este grande homem e símbolo das letras e das artes angolanas, nacionalista e patriota da primeira hora, guerrilheiro comprometido com a libertação do seu país, há pouco falecido. Resta em paz, Fernando Costa Andrade "Ndunduma we Lepi"

COSTA ANDRADE “NDUNDUMA”

NO VELHO NINGUÉM TOCA

Palco ou terreiro escuro.
No centro, uma fogueira com brasas vivas e poucas labaredas.
Alguns caixotes, brancos, pedaços de trocos, tijolos num total de vinte irregularmente dispostos em semicírculo, em troco da fogueira.
Cinco cadeiras das quais uma de braços no centro do semicírculo.
Uma luz de intensidade crescente começa a iluminar o semicírculo centrada sobre as cinco cadeiras vazias.
Lentamente começa a ouvir-se, progressivamente, som de ngoma ou marimba, dolente, magoado.
Quatro jovens vestidas de panos escuros entram vagarosamente no local vindas dos lados dos espectadores. Duas trazem, cada uma por si, um pequeno banco individual. Entram no recinto pela esquerda. Aproximam-se da fogueira.
As duas primeiras colocam no chão os seus assentos e sentam-se. Fazem-no lentamente, fixam o olhar na fogueira, distantes. A terceira jovem dirige-se ao semicírculo e toma um assento Volta para junto das companheiras. A que permanece de pé olha em redor pausadamente, fixa o público um instante, solta de repente um grito de dor, e começa a soluçar.

4ª JOVEM
Jika... Jika... Jika...
(Baixa lentamente a intensidade do ngoma até se tornar apenas audível, distante)


1ª JOVEM
Para quê chorar? A vida não regressa...

2ª JOVEM
Eu tenho um filho nos braços.
O Pai é um herói...
Eu não quero heróis...

4ª JOVEM
A guerra, maldita guerra...
Jika... Jika...

3ª JOVEM
Nem sempre a morte leva só uma pessoa.
Mata quantas vezes,
o coração de todo o povo...

4ª JOVEM
Jika morreu pela mesma razão
que divide os vivos e as causas

3ª JOVEM
Não está provado que os vivos
estejam sempre todos
contra a morte

1ª JOVEM
Mas ele está vivo na nossa dor
Ele vai surgir agora mesmo.
Vem do vento,
vem do mar,
da lua ou da terra. E dir-nos-á
quantas perguntas flutuam
no cais
da interrogação dos homens.

(Sem calar-se completamente o ngoma,, ouve-se agora o som do mar furioso, o vento de temporal. A 4ª jovem entra em paroxismo. Aumenta o choro, soluça convulsivamente e começa a chinguilar. Pára o vento. Tocadores e dançarinos de makopo entram pela direita.
Levantam-se duas das jovens. Juntam-se aos dançarinos de makopo em torno da 4ª jovem que chinguila ainda uns minutos. Levanta-se e dá os primeiros passos de dança. O makopo atinge intensidade, dura cinco minutos. A jovem cai. Pára o makopo de repente.
O ngoma faz-se ouvir; as luzes perdem intensidade e o foco aponta para a 2ª jovem que se manteve sentada.)

2ª JOVEM
Eu queria um tribunal
para julgar o vento que trouxe a notícia,
O fogo que o matou,
a terra que o sepultou,
as águas que o separam de mim.
(Cai lenta e parcialmente o pano)

II

Ouve-se o vento de novo. Trovões. O ngoma percute. A sala está escura. Da esquerda entram quatro embuçados de negro. O foco acompanha-os incidindo sobre os rostos. Sentam-se nas cadeiras do semicírculo, deixando vaga a cadeira de braços. Os tocadores e bailarinos reunidos à direita estão sentados no chão. As jovens nos lugares onde se encontram.
A 4ª jovem está deitada junto dos bailarinos com a cabeça apoiada sobre as pernas de um deles.

1º EMBUÇADO
(A Terra)
Eu sou a Terra
Quem tem a culpa é o mar.

(Ouve-se o vento diminuindo de intensidade até parar por completo.)

O Ar e as Águas,
eu Terra
somos a consequência da culpa.
A culpa veio das ondas.
As águas consentem
a razão que o mar não tem!

2º EMBUÇADO
(O Ar)
Eu sou o Ar.
Quem diz que tem a verdade?
A verdade não escolhe.
Ela é! Nada mais.
Ser verdade é ser total!
Jika não é do mar
Jika já é do tempo!

TERRA
Tempo, Água, Ar e Terra
são o meu grito surdo
somos o mundo no mundo
nem segredos nos resistem na procura infatigável.

AR
Quem define o mar
se o mar se prolonga no vento
e na imaginação?
Jika não é do mar
é o alvo da culpa!

TERRA
Mas também não é só o tempo
Jika é terra que é da terra
terra liberta e viva
terra do tempo e do mar
crescendo terra no vento
nascendo terra nas águas.
Jika é terra, tempo e terra
A luta entre o todo e o alvo
definirá a culpa absolvendo o mar.

AR
Mais que Terra ele é o Tempo
deixa que o tempo recorde
neste tempo de viver
como vivem os heróis.

TERRA
Esse rugido rouco
rouco rochoso e cru,
é um protesto das águas;
é o mar que vai à frente
vai encontrar-se com ar
nas sombras líquidas
que me intercalam os veios
e levam Jika ao diamante
ao petróleo e ao verde verde da
folha.
Esse rugido é um aviso
que se contém numa taça
das palmeiras matinais.

AR
(Põe-se de pé energicamente)
Chamem o vento!
Venha depressa
o vento!
Venha o vento, ele é
do ar,
quando me ergo em combate!
Perguntem ao vento pelo tempo
eu solto o lamento lento
desse passado que esquece.
Jika será encontrado
em cada encontro das coisas
e do nada
será total e simples
parte do alvo
(Senta-se o Ar)

TERRA
Venham o Tempo e as Águas.
Sentados na praia calma
decifremos a verdade.
O tempo de Fevereiro é ver futuro.
Maio a parte do tempo desviado.

AR
E a vida?

TERRA
Podes chamar a vida
sentá-la aqui no arco
da pergunta.

AR
A vida não pode parar
seria conter no Maiombe
Jika na cinza apagada
alvo reduzido ao facto.

TERRA
A vida que vive a verdade
não pára quando se senta
apenas procura o caminho.
Trás também aqui a vida
somos o todo visado
AR
E a morte?

TERRA
A morte há-de estar presente dia a dia
e cada dia esconder-se entre as raízes.
Cumpre a estrada das marés!
Fique distante um momento.

AR
Aceito.
Não há morte que permaneça!
A morte adormece
é esquecimento.
Só a vida se transforma em sempre
pela morte escolhida.
(Baixa o pano lentamente)

III

A sala iluminada. Todas as personagens e figurantes presentes. Entra o Tempo vestido de azul e a Vida vestida de vermelho.

TERRA
(Levanta-se e aponta respectivamente)
Aqui o Tempo e as Águas
Aqui o Ar e a Terra, o Fogo.
Aqui a Vida para definir o Herói.

(Senta-se, aponta-lhes lugares entre os bancos dianteiros. Enquanto o Tempo se senta, a Vida permanece de pé.)

ÁGUA
Herói
é simplesmente o Homem.
A causa aqui é outra.
A causa é grande e trás ofensa.

AR
(de pé)
Proclame a Terra a interrogação das coisas!

TERRA
(Após um curto silêncio)
Quem pode reivindicar
o pólen fecundo do exemplo?
Quem era o alvo?

AR
À raiva e ao bater da onde
corresponde o estremecer da Terra.
Não seja a violência
o critério da razão.

TEMPO
Nem a calma o diapasão do hábito!

AR
(sempre de pé)
Violência e calma
são a dialéctica da realização.

TEMPO
Fomos aqui chamados porque
somos?
Jika é o primeiro degrau da escalada
para o alvo, sendo alvo, todo, unidade,
coesão...


TERRA
A setembrina flor da espera
surgiu.
Dela o projecto realizado
no suor, no sangue e na vontade.
Na fome, no braço, na veia tensa.
Mas porquê?

VIDA
Nada mais quis que os passos livres
os sonhos livres, o querer livre...

AR
(de pé, pausadamente)
Vivemos agora o tempo de viver
Viver o tempo de criar o tempo claro
Claro da clareza das ideias novas
Novas de nascer nova a revolução
Revolução que dá e fertiliza
o tempo finalmente agora
de viver

TERRA
Eu quero que se construa
a vida sobre a vida,
e não da morte.
Foi o mar que trouxe a culpa
e deu ao corpo inerte de Jika
a sua fria certeza de paragem!

ÁGUA
O mar, a terra, o ar
a culpa reúnem em partes tantas
que são a culpa sem culpa
do dever de exigir raivosamente
a liberdade;
e no entanto não são a culpa
que determinou o alvo
só o tempo de Maio
nos dirá qual a raiz do ódio.
TEMPO
Jika marcou o caminho,
deixou o corpo embarcado
num palmo de coaguladas decisões.

AR
Jika é já o tempo todo todo o tempo
deixou de ser possível ser da morte
rasgou a culpa
que é nossa e de ninguém!
Nós somos todos alvos porque unidos.

VIDA
Eu a vida.
Não me detenho!
Não mo permite a vossa permanente
ansiedade
mais humana que telúrica
húmida e pátina musgosa
mais humana que volátil
humana porque Vida ou Morte.
Não!
O mar não é culpado, nem o ar
nem a terra, nem a sua ofensa
se alguém pode julgar que seja o Homem.
Só o luta e cria
só o Homem é vida ou morte pela vida
e a transforma.
Eis o que define, o alvo
Jika é a vida sempre
por ser Homem
ele pode ser do tempo e é do tempo
ele pode ser da terra e é da terra
das Águas, do Ar, ou dos quissanges.
Será de uma canção
ou um desejo
pertence a tudo
sem ser de mais ninguém
que do exemplo.

TERRA
Só a morte não tem o direito
de reivindicar-lhe a posse
para lá do tempo que o reteve
um só instante.

VIDA
O instante entre as lágrimas
e o respeito.
Entre a memória
e o primeiro passo
do depois!

TERRA
Em frente os homens!
O discurso é sobre vós
e a distinção entre o fim e a partida.
Levantem-se o som e o gesto
Vibrem!
Jika é a mensagem
não deixou lugar ao luto.

Levantam-se os dançarinos, o ngoma faz-se ouvir e, à excepção da Terra, do Tempo e da 4ª jovem, que permanecem onde estão, todos os figurantes entram na roda do makopo e dançam. Cinco minutos. O pano desce lentamente.

INKUNA MINHA TERRA


O ALMOÇO

Fora jurado amor à primeira vista.
Ninguém duvidava, ao ouvir Malaquias “Gordo” contar, com paixão, a estória do seu matrimónio, que engorda há quinze anos.
Conhecera a então futura esposa num dos programas matinais de culinária, que a T.V.I.
(televisão de Inkuna) quinzenalmente apresentava naqueles anos idos. A fama de bom garfo, aliada ao facto de ser dono do mais famoso restaurante de luxo de Katola, levara a que o convidassem a presidir ao júri do concurso. Aos concorrentes era atribuído um valioso prémio, com base na receita mais original, no prato melhor confeccionado perante as inquiridoras câmaras televisivas, e nas parcas chamadas telefónicas recebidas no programa, sobretudo de aborrecidas donas de casa querendo dar palpites gastronómicos.
Embasbacado, mesmerizado nos jeitos e trejeitos culinários das mãos da fada Serafina Coquillage (assim se inscrevera), entrou em acelerada órbita amorosa quando ela, sem o querer, acariciou castamente o corpo engordurado do coelho.
Ao esquartejá-lo, cada golpe de retalho, era uma insinuante flechada de Cupido no já esfrangalhado coração de Malaquias que, boquiaberto, inalava os suados respirares da amada.
Quando Serafina começou a temperar o bicho com sal, pimenta, vinho branco (um copo), alhos e louro (uma folha), Malaquias havia tomado a decisão mais intempestiva e séria de sua vida. Se a senhora fosse solteira, ou desimpedida, nada, mas absolutamente nada, se interporia no caminho de sua felicidade. Chamaria a si a grata tarefa de desencalhar aquela frágil nave das rochas do desamor e da solidão para, incólumes, navegarem os mares doces da vida compartilhada entre caçarolas, almoços, amores e jantares.
O continuado carinho demonstrado por Serafina, ao segurar o tacho que levou a lume com o azeite (cinco ou seis colheres de sopa), a cebola picada, o ramo de salsa e um pouquinho de água, para refogar o inditoso lapin, confirmou a justeza das suas pretensões.
Mulher assim não era para andar à solta, a desperdiçar tempo e talento em programas de televisão, ainda por cima para gente que nem apreciava ou entendia a arte e o amor envolvidos. Era um atirar de pérolas aos porcos...
Sentia que Serafina Coquillage, o pseudónimo que escolhera revelava toda uma alma preparada a servir repastos dignos das ilandas, dar-se-ia por realizada não só a gerir a vasta cozinha do seu famoso restaurante na Ilha de Katola, como a de sua casa, na qualidade de esposa amantíssima.
Serafina teria uns trinta anos, com uma cor negra a fugir para o castanho que reluzia ás luzes dos projectores do estúdio, corpo bem roliço (85 quilos) e mais para o baixo de que para o médio, e uns serenos abaulados olhos.
Viúva há quatro anos, o anafado marido morrera de enfarte cardíaco, irresistente aos bons tratos do garfo. Sua razão de vida encontrava-se nas panelas, tachos, frigideiras, esfregões e afins. Não por ser mulher, mas sim por chamada divina, um sacerdócio.
Imbuída desse espírito, ganhara concursos por tudo quanto era canto, apresentando agora seus melhores pratos no programa televisivo das dez da manhã. Levar a palavra do bem comer aos ímpios, convertê-los, era um gesto da mais alta subliminidade.
Extravasando transcendência, metia agora no tacho, onde deixara o roedor a alourar, a polpa de tomate (2 colheres de sopa) e o resto dos ingredientes (uns quatrocentos gramas de nozes picadas, pimenta preta ralada, cravinho e o decilitro de natas).
Com a coração a estoirar, mesmo antes de terminada a confecção do prato, Malquias decidiu que daria nota dez àquela fada gastronófila.
“Que maravilha, que destreza! Merece o máximo!...”, ia cochichando, suficientemente alto para os outros dois membros do júri, um, empregado seu, o ouvirem.
Quando Serafina Coquillage colocou o aromático coelho já preparado e enfeitado de salsa picada, sobre rodelas largas de pão torrado, não conseguiu esconder a enorme alegria. Tão cedo o programa terminou, dirigiu-se a ela e apresentou-se.
“A senhora foi deliciosamente maravilhosa”, disse, enfatizando a palavra deliciosa. “Poderíamos sentarmo-nos ali a um canto do estúdio e provar a peça de arte que confeccionou? Dei-lhe nota dez, nem que fosse só pelo seu nome artístico...”, continuou, estendendo-lhe uma mão adiposa, mas firme.
“Quão gostoso é ouvi-lo”, respondeu, sabendo que encontrara, por fim, a alma gémea.
Depois de terem comido o coelho que Serafina (Valente era o verdadeiro nome) confeccionara, Malaquias levou-a a casa para se preparar e irem, dali a uma hora, almoçar no “Pantagruel”, seu famoso restaurante.
Decidira que seria depois da sobremesa. Sabia de antemão que o cérebro e o coração funcionam muito melhor quando o estômago está satisfeito. Seria logo após a sobremesa que lhe formularia o pedido de casamento. Caso negasse, poderia sempre tentar conquistá-la propondo-lhe a gerência do restaurante. Nunca fora aventureiro, todavia iria arriscar num jogo de tudo ou nada. Onça que não caça é onça velha, morre de faminta vida.
Ás doze e meia, como combinado, tocou à campainha da casa de Serafina, que não se fez esperar. Exsudava antecipação e seus vastos seios não o escondiam, ofegava. Malquias, cavalheiro, abriu-lhe a porta do carro, esperou que se sentasse e fechou-a com cuidado.
Serafina adorou, confirmava um pouco a ideia que fizera dele, atencioso, bom garfo e o suficientemente gordo para a tornar feliz. Aceitaria qualquer investida do adiposo garanhão, dentro das medidas da decência e do socialmente aceitável.
“Depois da sobremesa, tenho uma proposta muito importante para lhe fazer...” atirou, para sondar.
“Sobremesa? Não me fale de sobremesa, que é parte mais importante de qualquer refeição para mim”, disse, meiga e enternecida
Malaquias tremelicou de emoção, o Mercedes guinando de vontade própria, ligeiramente para a esquerda.
“Espero que tenha parfait de laranja...”, continuou Serafina, emocionada.
“Parfait de laranja?... Creio que não temos, mas doravante se não o encontrar na carta das sobremesas, paro de comer por uma semana. Juro-lhe!... Aliás, vaaiii ensinar o nosso maitre doceiro como o confeccionar da maneira que gosta”, emendou rápido, não se perdoando por não ter o referido parfait.
“Quanta doçura de sua parte! Até é bem fácil de preparar, leva poucos ingredientes. O estimado Malaquias mistura bem o leite condensado (uma lata), o iogurte natural (um casco), o sumo natural de laranja (um copo), e as cascas raladas das mesmas (pouco menos de uma colher de sopa)”, disse Serafina, ciente que lhe fazia uma declaração de amor.
“Por favor Serafina, não continue, comove-me... e estou a conduzir...”, disse Malaquias com sinceridade, o Mercedes fugindo novamente para a esquerda.
“Ó meu querido amigo, não seja modesto”, riu com pudor.
“Olhe, depois continue a misturar, numa panelinha, a gelatina (sem sabor, e em pó), e a água (meia chávena) até a dissolver. Quando tiver ganho consistência mínima, coloque em taças, intercalando camadas de creme, com camadas da mistura obtida com a castanha de caju picada (cerca de meia chávena), e o chocolate branco ralado (igualmente meia chávena)”, estimulava, a meiga Serafina, mais uma vez Coquillage.
“Tempera suas palavras com tal carinho e saber, que me deixa extasiado!... Disse alternar camadas de creme de laranja, com a mistura da castanha de caju e chocolate branco? Será que ouvi bem?”.
“Ouviste Malaquias!”, disse-lhe, sem notar que o tratara por tu.
“Oh Serafina, como me enche a alma com esse parfait!...”, retorquiu, segurando-lhe a mão sem aperceber. “Continue, continue meu bombom, e depois?”.
“Oh Malaquias, como me derretes com tuas palavras, sinto-as como se fossem a mais doce tarte de framboesas... mas deixa-me acabar! Depois enfeitas com rodelas de laranja e pedaços da castanha que sobrou, e pões na geleira até estar pronto!...”
Foi ao verem, apavorados, o outro carro contra o qual iam inevitavelmente chocar por estarem fora de mão, que Malaquias notou, atordoado pela ousadia, que segurava a mão de Serafina, e esta, espantada, que já há algum tempo o tratava por tu, contra todas as regras da boa educação, tendo-lhe incluso confessado a sua maior fraqueza, a tarte de framboesas.
Durante as duas semanas do internamento de ambos, na mais chique clínica privada de Katola, a cozinha do restaurante “Pantagruel” esmerou-se no envio dos melhores pratos para o
patrão e sua futura esposa. É que Serafina Valente, logo após o desastre, perante a surpresa dos médicos que lhes colocavam o gesso nas pernas, aceitara novamente a proposta de Malaquias “Gordo”, feita ainda quando nos bancos do carro acidentado.
Quanto ao magnífico BMW do outro condutor, desprestigiadamente atirado para a berma do passeio e destruído quase por completo, o problema era da seguradora, o que estava feito estava feito.

Katola, capital de Inkuna, no ano de graça de 1996

SUMAÚMA

Sobre a obra, Maria Nazareth Fonseca, Professora Doutora em Línguas Africanas, considerou o seguinte: «Os poemas são construídos com uma intenção de investir no nível da figuração. Por isto é interessante observar como se elaboram as relações entre os títulos dos poemas e os versos que o compõem: por vezes há uma aproximação bem nítida entre a intenção do título e os sentidos produzidos pelos versos; outras vezes, a relação entre o título e os sentidos dos versos se faz pela vertente figurativa na qual as palavras são tomadas pelo poeta para distenderem sentidos previstos (Cf. Poema «Elefantíase», p. 16). A forma privilegiada pelo poeta busca a ligeireza, a captação do instantâneo, a mobilidade dos versos curtos e dos efeitos obtidos pela variedade métrica e rítmica"

AO RAIAR

Ao raiar
da serenidade
sente-se a raiva
contida nos passos
do camaleão

chora-se a andorinha
trespassada
da dor
que pende arguta
na ilusão


DESERTOS


Grão na areia
areia nos grãos
de areia
que o vento
semeia

A PRECE DOS MAL AMADOS


CAPÍTULO SETE
O VOO SINUOSO DOS MEDOS

Mamba nto na nto
(provérbio kikoongo)

Pela aldeia soou o rufar inesperado dos tambores, o eco reverberando pelas árvores das matas e a assustar muita gente. Não era hora para batucadas mas sim de labutas várias, portanto os pensamentos foram muitos.
Largaram os foles do ferro, os pilões, o trançar das esteiras, o secar da carne e correram para a povoação.
Retiraram as nassas a colocar para apanhar o peixe, pararam o lavar da roupa, esqueceram os brinquedos de vime e de lata, os laços para agarrar passarinhos.
Amarraram os panos à cinta, colocaram as crianças às costas, abandonaram as enxadas junto aos milharais e abalaram em ânsia pelos vários carreiros para a aldeia, mas logo o divisaram, o soba grande, a caminho do jango, precedido do portador da cadeira do poder, que a colocou no local próprio. Nela se sentou de imediato, com o ar mais feliz de sempre, rodeado de Nehone e demais anciãos do conselho.
Evidenciava rejuvenescimento, o porte o mais erecto que a idade lhe permitia, a velha barba arrumada e o brilho resplandecente do sol, há muito raspado dos olhos com a lâmina fina dos desgostos, fulgurava novamente em chamas cintilantes.
Tranquilizaram-se, afinal não fora a desgraça que batera à porta, as novas teriam que ser boas, não se tira a gente dos seus afazeres sem causa justa, restava agora aguardar que lhes fosse comunicado o motivo, a razão da convocação. A jovialidade do velho era sinal de boa nova. Os comentários estalavam por toda a parte, a curiosidade não tem natureza para ser domada, ela é mãe de todas as formas e sussurros possíveis, soltos em catadupas sinuosas ecoando à flor da pele de cada. A curiosidade rasteja, como a minhoca, pelos buracos escuros que cava, abrindo sulcos que arejam a ansiedade.
Foram-se acocorando, formando num vasto semicírculo, na boca aberta da floresta. Cochichando felizes uns, outros resmungando porque arrancados da labuta, o fogo ia esfriar, o ferro quente perderia o ponto de molde. Todos expectantes, todos ansiosos a arderem de uma bisbilhotice quase infantil. Por fim Juba de Leão levantou-se, fez um sinal com o cabo de rabo de boi para os músicos, que irromperam em batucada. Pouco depois, confiante da força que a alegria o impregnara, ergueu-se, avançou uns passos caducos, quase de maneira grotesca, e saracoteou o corpo numa dança da sua infância, marcando o compasso com o espanta raios ou enxota-moscas. Os mais velhos, de memória avivada pela dança há muito semi esquecida, bateram palmas de contentamento, os mortos de há muitas décadas iriam ser relembrados. Há largas décadas que não se mencionava o seu descanso, para que fosse de paz e a terra não lhes pesasse sobre os ossos. Enfim iam relembrar os de ontem, os de anteontem e os de sempre. Foram-se juntando um a um, os que ainda podiam, à dança comandada por Juba de Leão, entre o grito estrídulo das mulheres e a surpresa das crianças e jovens. Um imenso murmúrio de aprovação, sobrevoou os milharais, por cima dos batuques.
Cansado, sentou-se, logo seguido pela maioria. A alegria escorria-lhe por todos os sulcos do rosto cavados pela vida.
Um velho avançou, inclinou-se perante o soba grande e logo se fez silêncio, o porta-voz, aquele que anunciava ao povo as mensagens de Juba de Leão, iria falar. Apenas se percebia o longínquo balir dos cabritos e o cacarejar desta ou daquela galinha, as crianças nem buliam, talvez retidas pelo momento electrizante. As cigarras nos paus vários que circundavam o jango, pararam o seu trinar estridente.
Boas novas, boas novas! – Anunciou o porta-voz, acenando os braços.
Gozando as atenções concentradas em si, pigarreou, coçou a barba, cuspiu para o chão e pareceu não querer anunciá-las de imediato. Ensaiou dois passos em frente e levantou ambas as mãos, as palmas voltadas para o povo, os dedos meios dobrados pela arterite.
- O nosso rei está muito feliz... Gritai! – Comandou.
Todo o povo gritou, um longo e unido ehyeeeee, várias vezes, à medida que o soba levantava o enxota-moscas. Quando se deu por satisfeito, levantou ambos os braços e todos se calaram, felizes e risonhos.
- Quando acordou pela manhã ouviu o cantar do pássaro da sorte, tuí-piu-piu uma vez, tuí-piu-piu, duas vezes, tuí-piu-piu três vezes. Ficou feliz e pensou, que notícia é essa, que boa nova me vão trazer, mas como tinha receio dos maus-olhados, guardou no coração, só para ele, o pressentimento.
Parou e olhou à volta. Juba de Leão meneava a cabeça em aprovação, como que se as palavras do mestre arauto tivessem acabado de sair da sua boca. A plateia, continuava em atenta expectativa. Com um gesto quase imperceptível, um levantar ligeiro do cabo de cabo de boi, revelou que ao mestre porta-voz que devia continuar.
- Ao meio da manhã chegou o senhor enfermeiro, que trouxe as boas novas. – Calou-se, enquanto ajeitava o traje, propositadamente.
O silêncio tornou-se ensurdecedor. O mestre proclamador perscrutou novamente à sua volta, como que meditando se o momento para dar o bote chegara, ou se os fazia aguentar ainda um pouco mais naquele sofrimento. De soslaio, viu que Juba de Leão de igual modo gozava a tensão gerada.
- É verdade, o pássaro da sorte cantou três vezes – repetiu – tuí-piu-piu, tuí-piu-piu, tuí-piu-piu... gritem! – Ordenou.
Novamente o povo gritou, três vezes repetido, o longo ehyeee, gozando a excitação.
- E quando esse pássaro canta toda a gente sabe que a felicidade não está longe, não é verda...?!
- Verdade!... – Gritaram todos em uníssono.
- Não é verda?!... – Repetiu.
- Verdade!... – Aclamaram.
- Logo-logo chega, e foi o que aconteceu... O nosso irmão enfermeiro trouxe as boas novas... gritai!
O povo eclodiu em novos gritos de excitação e contentamento, muitos dançando mesmo sem o batuque. Quando o silêncio subsistiu, o porta-voz pigarreou e lançou a notícia.
- O nosso filho general doutor, o nosso Nataniel finalmente vem-nos visitar.
As mulheres romperam a bradar, enquanto os homens batiam as palmas de satisfação e alegria. O burburinho foi enorme e generalizado, o batuque furou toda aquela alegria e Juba de Leão levantou-se ensaiando os passos de dança anteriores. Pouco tempo após, cansado e ofegante, sentou-se.
Ai as minhas pernas, a idade já não me ajuda, estou mesmo velho.
Mandou parar a percussão e aos poucos as pessoas foram-se sentando, as mulheres a cochichar entre si.
- Já é casado? – Quiseram saber.
Quando a preocupação chegou aos ouvidos do soba, mandou o porta-voz anunciar que o enfermeiro afirmara ser Nataniel casado, com a sua prima Nazamba, aquela que fora na terra do pai, muitos anos atrás, e sua própria neta, encontrando-se grávida do primeiro filho.
O burburinho foi enorme, era verdadeiramente uma notícia importante e as pessoas começaram a indagar-se sobre o que faria o soba, mas todos estavam felizes e esperaram que ele orientasse a celebração da boa nova. Ordenou a morte de vários cabritos e a busca da sua reserva de cerveja para a festa, que durou a noite inteira.
Quando despertou, mais tarde do que o costumeiro, encontrou a comida, já fria, pousada no local habitual. Sem perceber onde estava, olhou para a mesma com enjoo, a boca abrasada pela ressaca. Os olhos percorreram o interior da choça como que buscando orientação. Tudo lhe parecia abstracto, uma névoa povoada de formas inquietas e movediças. Ao fim de muito percorrer com o olhar as paredes e o tecto, conseguiu concentrar a mente no que o envolvia. Apercebeu-se que estava deitado no catre e reconheceu o interior da sua casa, sendo então assaltado pelas imagens da véspera. Ao recordar os netos, foi invadido por uma vontade involuntária de vomitar e o estômago contraiu-se furioso em espasmos.
Vêm-me cobrar? Vou ter que me proteger, ai Kalunga, estou velho... velho!
Bateu as palmas, esperando que alguém ouvisse. Uma cabeça espreitou e ele pediu que mandassem uma das suas mulheres, a mais nova, para cuidar dele.
Vou ter que falar com o mano Tuluka. Preciso ter a certeza, saber tudo.
Horas mais tarde, refeito e alimentado, saiu da choça e foi-se sentar nos troncos estendidos debaixo de uma árvore frondosa cerca, e ordenou que Nehone viesse ter consigo.
A chegada do casal fora anunciada para dali a umas semanas, a aldeia tinha pretendido que se deslocasse antes, todavia Juba de Leão fez-lhes notar que o neto e a neta eram pessoas importantes, com trabalho importante na capital do país, haveriam de se deslocar a Ualali em devido tempo e oportunidade, saberia quando, no seu coração.
Pobre coração de velho que, temeroso da longa mão da morte a vaguear não muito distante, com dificuldade distinguia o traço fino que separava a intenção, dos factos que desejava ver acontecer antes de poder fazer o sucessor para evitar as malditas lutas intestinais com feitiços a sujarem este ou a limparem aquele. Inconsciente de que o poder dos reis e sobas fora há séculos esmagado, aniquilado e, com a independência, empacotado em papel de embrulho e levado para Portugal com o colono, para não mais voltar, almejava ser sucedido por um homem moderno, educado. Os novos donos do poder sabiam que os avanços da economia, da educação, da cultura, da tecnologia, da ciência política, não permitiriam o retrocesso ao feudalismo, à autocracia, à gerontocracia asfixiante, às doutrinas ocultas e à inevitável incompatibilidade com o Estado, detentor de técnicas de gestão modernas de administração onde os legados do oculto pouco contavam ou pudessem exercer preponderância no seu dia a dia, a não ser que viessem dos adivinhos ou feiticeiros para o fechamento do corpo da dirigência reinante, ou para a anulação intriguista dos que lhes fizessem sombra. Pouco importava uma montanha sagrada ou um vasto terreno de túmulos milenares, ou grutas gravadas de animais rupestres, se estivessem repletos de ferro ou de qualquer outro mineral precioso e brilhante de futuros promissores. Ele próprio sabia nunca ter sido rei como fora seu avô, como fora seu tio, que ainda impuseram impostos e direitos de passagem aos brancos e que ditaram quem vivia ou não nas suas terras. Ele nunca efectivamente governara, nem no tempo do branco nem agora. Lá bem no fundo de si mesmo reconhecia que os tempos não recuam, que a água do rio não anda para trás, o que vestia como sentimento era a saudade de um passado que lhe fora trazido pelas vozes dos antepassados onde a memória já nebulosa se fundia, sem querer, na lenda e no mito, destapando apenas factos ocasionais acontecidos consigo mesmo, como a morte do leão que levara a que o seu nome fosse mudado, que a sua reputação viajasse para alem das fronteiras do potentado e fosse, até, considerado pelo colono como um negro destemido e valente, agora tudo tão longe, tão inacessível à própria mente, tão sem importância, tão imaterial!
Cada vez percebia menos das coisas e dos acontecimentos, a mínima situação ultrapassava-o, não entendia as ordens recentes chegadas para mobilizar as populações a votarem nas eleições, não percebera o complicado sistema de listas, cartões de registo, caixas de voto. Sem entender o que dele se esperava, o que se pedia, o que era isso de votar?
Votar mais o quê, como?
Veio-lhe á memória a única experiência que tivera quando o quiseram tirar da herdada cadeira do poder, ele sobrinho escolhido pelo tio e pelos anciãos, porque descendente da aristocracia, filho de Mabunda, neto dos originários da linhagem. Desejavam que compreendesse que o poder era agora, com a independência, popular e revolucionário. O soba tinha que ser eleito democraticamente, e se dependesse deles, ser substituído pelo comissário comunal onde e quando possível. Não percebera as vozes novas que vituperaram contra si, que xingaram, que exigiram fora, rua com ele, abaixo o obscurantismo, viva a revolução proletária, a terra para quem a trabalha, a cada um segundo o seu esforço e a sua capacidade, a mulher é igual ao homem, com os mesmos direitos, como se não percebessem que desde a primeira voz humana, a mulher é escrava do campo, é esposa e fêmea parideira, sua única validade é dar continuidade, seguimento, e saber sofrer. Não tivesse sido o povo teimoso, resoluto e conhecedor dos seus valores reais a fazer face aos desígnios dessa meia dúzia de pretensas vozes antibióticas, talvez até tivesse morrido, de morte matada ou de morte de desgosto face à incompreensão dos valores novos e alienígenas.
Então que diferença havia nesse votar de agora, nessa escolha de gente, nomes e partidos de que nunca ouvira mencionar, quando só conhecera um que sempre mandara nele e no país, e o outro que, em morte anunciada, passava pela região num cavalgar de ciclopes ateando labaredas alimentadas em vendavais sulfúreos? O que dizer ao seu povo, o que lhe explicar, ele, velho e deserdado dos tempos? Só mesmo o neto Nataniel, homem formado em Cuba, general aos seus olhos, possível ministro da defesa ou mesmo presidente um dia, só ele podia herdar a sua cadeira, explicar aos seus os tempos novos na linguagem dos que mandavam, dos que diziam vive ou morre, vai em paz ou para a cadeia, paga ou não paga, um para ti cinco para mim, fica aqui ou fica ali, já que com eles aprendera e convivera e lhes era igual ou superior. Mas antes de morrer, teria que saber isso tudo, aprender o mínimo desse jogo de interesses e movimentações estranhas, tinha que virar aprendiz político de feiticeiro, saber andar em cima da linha. Não queria descer ao fundo das lagoas sem poder explicar aos antepassados como estavam os novos horizontes no seu pequeno mundo e nele, o lugar do herdeiro natural, Nataniel, homem que deveriam bafejar com sorte eterna, dar-lhe alento e talento para ser o que se esperava, tanto dos vivos quanto deles os mortos. Já chegara o susto que tivera quando lhe vieram anunciar que Nazamba, a neta que ele rejeitara, estava em Luanda e que iria casar-se com Nataniel, segredo que guardou para si a sete chaves fechado. Mas porque não ficara na terra do pai, tantos anos passados para voltar e no meio de quanta gente, ir logo conhecer o primo e ambos se apaixonarem? O que lhe dizer, como poder explicar-lhe que sua mãe Balanta fora agarrada, nem sabia se estava viva, com sorte talvez agora aparecesse vinda de onde fosse.
Ai, Kalung’ééé!...
Era o que mais ansiava, nem que dos fundos do mundo, feita escrava, velha, gasta, acabada, pronta a morrer ainda que injuriando com pragas terríveis seu pai Juba de Leão, o homem que só lhe trouxera desgraça na vida, mas que se plantasse ali diante dele. Não tinha idade nem estatuto para estar a gagueja perante os netos uma qualquer e despropositada desculpa, pretensa inocência amarfanhada que nem nela ele próprio acreditaria.
E agora, ai Kalunga ajuda-me! O que fazer com a minha neta, o que vou fazer quando ela chegar aqui nos seus?
Tudo isto foi o que Juba de Leão conversou consigo próprio, buscando uma luz para os escuros sentimentos em luta que a notícia da vinda dos netos produzira. Tinha umas semanas para recompor emoções e ideias, para se aperceber das conversas das gentes a fim de poder encontrar um caminho que não fizesse desagravo ao povo, que não fosse motivo de murmúrios e desagrados. A neta, ainda que por alguma via tivesse conhecimento da ausência da mãe, certamente iria perguntar-lhe, assim como sobre a casa do pai, agora destruída e coberta por mato de cobras e gafanhotos. Não iria imaginar, nunca seria capaz de visualizar, de entender o sentimento das suas explicações esfarrapadas, a guerra era uma experiência única, pessoal, intransmissível e indescritível em termos de emoção, de marcas, de vazios sentimentais e psíquicos, de acções e reacções, de passado e de futuro. Para ela seria a imagem antiga da bonança e da felicidade, do ritmo monótono da certeza e da segurança, da união familiar, da paz e da tranquilidade.
A imagem da infância e da inocência prevaleceria, lá bem atrás no subconsciente sobre o pretenso entendimento dos acontecimentos e da compreensão possível dos rumos que o destino delineara ao longo dos anos. Assim não fosse, seria a racionalização a imperar em asfixia sobre as leis do coração, a negar à alma sangrada e dolorida a evasão. Isso intuía o velho soba, não obstante desconhecer as leis da mente e as filosofias, as dele eram as da vida. Ninguém cala um coração dorido de mulher, sabia que iria confrontar um animal acuado nas memórias, e ele, velho decrépito, procurava febrilmente por uma saída. Com o nervosismo, os gases revoltados no ventre soltaram-se num longo assobio seco que lhe aqueceu a alma e o baixo ventre. Riu e pensou que o peido solta-se para libertar as cólicas e os gases, e ali parou, porque se soubesse filosofar, teria ajuntado que igualmente se solta para lhe apalpar o odor, julgar a intensidade, verificar-se a densidade no espaço circular e concêntrico da sua acção, antes que de se esvair, de se diluir nos espaços diáfanos das lembranças, por fim apaziguado e integrado, feito memória de si mesmo, nada mais.
Talvez fosse melhor, mais prudente, ver, ouvir e calar e decidir a maneira de agir face aos resultados. Já presidira a muitos conselhos de anciãos, casos sem fim passaram-lhe pelas mãos e para todos encontrara uma solução. Até problemas que tinham a ver com os céus, a terra, o sol e a lua, resolvera. Já fizera cair águas em catadupas, das nuvens ressequidas na terra árida da seca, e muitas mais maravilhas que as guardava só para ele, os segredos profundos das noites. Todavia este espinhoso assunto envolvia directamente os seus mais chegados. Teria que aguardar pelo que a neta lhe dissesse, não valia a pena estar a pôr a cabeça a fervilhar, estava velho e, mais do que tudo, desejava paz e tranquilidade.
Quando Nehone chegou mandou-o sentar-se a seu lado, carícia que este estranhou, não vislumbrava o motivo de tal deferência, ainda por cima pública. Ponderou usar o mocho próximo, mas acabou por considerar não valer a pena antagonizar o gesto oferecido. Com cuidado, sentou-se nos troncos, um pouco afastado do irmão mais velho. Esperou que ele falasse.
- A festa foi grande, bebi muito. – Disse, mais para si mesmo, Juba de Leão.
Que conversa quererá deste vez?
- É verdade, foi uma boa festa, a cerveja não faltou. – Respondeu Nehone, olhando-o de soslaio.
Juba de Leão levantou os olhos para o ar, e com a mão fez pala para poder observar um bando de aves que passava. Nehone imitou-o e continuou à espera. Sabia que a conversa chegaria, as regras são para serem cumpridas.
- Patos, parecem... – disse o soba grande, baixando a mão e coçando os pés um no outro.
- É, parece, se para a semana ou depois ainda tiver, é o cacimbo que não vem muito longe.
- O nosso filho Nataniel está a chegar, com a Nazamba...
- É verdade, grande dia, todo o povo está feliz.
O silêncio tornou a imperar. Um, não sabia como começar para chegar ao que desejava. O outro, aguardava teimosamente não loquaz porque adivinhava qual a questão e o embaraço. Nehone tinha bem gravada na memória a humilhação que sofrera anos antes quando Juba de Leão agarrara o seu medo na concha da mão e o fizera escutar as palavras cobardes negando-lhe a cadeira e o chapéu, a ascensão ao poder reservado para Nataniel, segundo seu desejo, mesmo sem consultar o conselho de anciãos.
- Sim, está feliz mas também está a falar. - Respondeu o velho.
- A falar, senhor? O que o povo está a falar? – Fingiu surpresa, Nehone.
O soba olhou para o irmão a perscrutar a seriedade, a intenção, da questão. Dando-se por satisfeito, desviou a olhada, baixou a cabeça e, enquanto suspirava fundo, esfregou a carapinha como que a afastar qualquer dúvida. Bateu as palmas e logo apareceram, não se sabe vindos de onde, dois moleques.
- Vão buscar a mutopa e a cabaça da cerveja. – Ordenou.
Nehone mexeu-se no assento. As coincidências entre a conversa mantida há anos sobre a sucessão e o que agora se anunciava, tudo começara com o mesmo cerimonial, inquietavam-no, Juba de Leão sabia que ele pouco bebia e que não fumava.
Ai não, não vai repetir tudo outra vez, não vou aceitar.
- Vieram-me informar sobre conversas...
- Que conversas? – Quis saber Nehone.
- Já lá vamos chegar. Deixa primeiro vir a bebida, tenho sede.
- A casa já está quase pronta. – Disse logo de seguida Nehone, como que a fugir ao assunto.
- Casa? Que casa? – Perguntou Juba de Leão, atónito.
- A casa. A casa para o casal ficar, já esqueceu?
- Cobriram bem o tecto, o capim estava bom?
- Está tudo bem, só falta trazer a cama com o colchão e o armário, que vem do município também a mesa e as cadeiras, mais os pratos e o resto. Fizemos como na cidade, uma sala e um quarto, mas o resto, vão no mato?
O velho levou algum tempo a pensar, o que queria Nehone dizer com o resto vão no mato? Quando se fez luz na sua mente, sorriu abertamente.
- Isso... Fez bem perguntar! Mandem cavar um buraco por trás da casa, cimentar e fazer uma casota à volta. No quarto de dormir põe o alguidar e a jarra que estão na minha casa, mais o espelho.
- Tudo vai ficar pronto para quando chegarem. – Confirmou Nehone.
- Ainda bem, não deixa nada em falso, nossos netos são da cidade.
- É verdade, e são pessoas importantes, doutores.
- Doutores só? – Perguntou o velho, com orgulho mal contido. – Nataniel é coronel ou general. A Nazamba é doutora de advogado e directora.
Os moleques voltaram com a mutopa, as brasas, duas canecas de alumínio e a cabaça da cerveja, que destaparam para o velho ver. Juba de Leão agarrou na concha de madeira e remexeu a bebida, afastando para o lado as impurezas.
- Sirvam. – Ordenou a um deles. - E vão buscar comida, estou com fome.
O facto de o velho soba estar faminto agradou a Nehone, a bebida seria para acompanhar o conduto e não para lhe soltar a língua e os espíritos. Juba de Leão esperou que o moleque que ficara agarrasse nas brasas e as colocasse na boca do cachimbo, para logo em seguida começar a puxar o fumo, duas, três baforadas que o fizeram tossir e cuspir com força para o lado. Mais duas ou três, e considerou o tabaco aceso. Sorriu com satisfação como se o dia começasse então, e olhou para o irmão.
- Você não fuma, nunca te vi a fumar, fazes mal, todo o homem devia fumar e beber.
- É verdade, mas eu nunca acostumei.
- Talvez seja melhor assim, mas isso não importa.
A comida chegou aportada por duas mulheres, que estenderam a esteira no chão, ajoelharam-se diante do velho e destaparam as iguarias para ele ver, uma panela com uma galinha cozida inteira e a outra com as papas endurecidas de milho. Com as mãos, uma delas agarrou na galinha e desfê-la em pequenas partes, colocando-as de volta na panela de barro. Pegou de seguida num pedaço e comeu-o, chupando os dedos.
O velho soba, contente, segurou na moela e começou o repasto enquanto a outra mulher repetia o cerimonial com a cerveja, demonstrando assim que tanto uma quanto a outra não estavam envenenadas. Juba de Leão indicou que as panelas fossem colocadas entre ele e o irmão e fez um sinal para que se afastassem. Nehone deixou que ele petiscasse as miudezas e só depois retirou com a mão esquerda uma perna da galinha, enquanto que, com a outra, amassava uma pequena bola da massa de milho que afogou no molho e levou à boca, com deleite. Dois cães aproximaram-se, ao cheiro da comida, sendo logo enxotados pelos moleques que se mantinham à distância. Comeram em silêncio, a não ser pelos estalos de prazer com a língua ou o chupar dos dedos, os lábios feitos guardanapos campestres. Juba de Leão segurou a caneca com a cerveja e levou-a à boca, tragando em sorvos rápidos. Nehone gostou de ver o irmão revitalizado e, por estranho que pareceu ao soba, concedeu beber uma caneca, empurrando tudo para o acamar no estômago. O soba grande agarrou novamente na mutopa e chupou, feliz, a vida estava boa, uma barriga cheia sempre oferecia novas perspectivas e tornava o mundo circundante mais tranquilo e apelativo.
- Agora podemos falar. - Disse, endireitando o corpo.
Nehone aguardou, sentiu um ligeiro formigueiro nas mãos e coçou-as. Considerou-se preparado para o que viesse, de facto todos deviam comer antes de negociar ou resolver questões importantes, o conforto e o calor no estômago dão alento e coragem.
- Como é que vamos fazer com a Nazamba?
Foi apanhado desprevenido, nunca pensara que Nazamba fosse motivo de preocupação para o soba grande.
- Nazamba, senhor? O que tem a Nazamba?
- O que tem a Nazamba? Então não é nossa neta, a que mandámos embora?
Sorriu um largo sorriso interior. Afinal o velho estava amedrontado com o passado que agora renascia.
Mandámos embora, quem a mandou embora não fui eu, agora chegou o momento de repartir a culpa?
Achou-se rico, havia-lhe sido colocada nas mãos uma dádiva inesperada, a indecisão do velho, o seu medo sobre o que pudesse vir a acontecer quando forças que ele não controlaria se desencadeassem imprevisíveis.
- É verdade, mas também está casada com Nataniel...
- Pois... é verdade.
- Mas está a pensar em quê, então?
- Não sei bem, por isso mandei-te chamar, queria falar contigo antes de ouvir os mais velhos.
Não me ouviste então, hoje já achas que vale a pena?
- A vinda dela poderá causar muita confusão, tudo depende...
- É verdade, por isso precisamos de juntar as nossas ideias. Durante muito tempo sonhei com a minha neta, depois passou. - Confessou, Juba de Leão, inadvertidamente.
- Nunca falou que sonhou com a Nazamba. – Disse Nehone, surpreso. – Quando foi isso?
- Há muito tempo, Nataniel não a tinha ainda conhecido.
- E que diziam os sonhos? – Quis saber.
- Mas para quê? – Perguntou Juba de Leão desconfiado.
Mas para quê? Então não sabe que os sonhos falam?
- Não são os sonhos a verdade?...
Ao ser relembrado da premonição, Juba de Leão estremeceu. Bem o avisara, na altura, o mestre adivinho após ter consultado os ossos e os paus, e a conversa veio-lhe à mente.
- Vejo uma grande sombra, muito grande. Tem a forma de um animal, um elefante furioso. – Revelou Tuluka.
- Elefante furioso?
- Sim, está zangado e é rodeado de muita gente, alguns com caveiras empaladas e cobertos de peles de antílopes.
- Quem são, quem é essa gente então? – Perguntou, temeroso, Juba de Leão.
- Só podem ser os nossos reis e demais antepassados, dançam à volta do elefante que levanta a sua tromba em bramidos terríveis.
- Dançam, dançam, e que mais, e que mais?
- O elefante avança e confronta um leão que lhe faz face.
- Leão? Aiiii... Kalunga... Disseste leão?
- Sim leão, que é esmagado. E olha, sobre o elefante vejo a forma de uma mulher.
É sempre aconselhável saber o que os sonhos dizem, se vamos falar desse assunto - As palavras de Nehone despertaram-no das memórias – Conta então!...
- Falavam do seu regresso e ela vinha sentada nas costas de um elefante.
- De um elefante, não vinha numa cobra? – Perguntou Nehone, interessado.
- Cobra? Não. Vinha no dorso de um elefante
Nehone mais uma vez sorriu largamente para dentro.
Afinal os antepassados mostraram o seu desagrado, e ele manteve tudo em segredo!
- Mas falaram do seu regresso, como?
- Não me lembro bem, só que ela voltava, aparecia no dorso do elefante mas nunca me falava, só me olhava em censura.
- E o elefante, soba, o elefante de que cor era?
- De que cor era? – Surpreendeu-se Juba de Leão.
- Sim, de que cor?
- Era preto, como todos os elefantes.
- O trono dos antepassados!... – saiu-lhe inadvertidamente da boca
- O que dizes? – Perguntou, sem compreender, Juba de Leão.
- E estava feliz, fazia muito barulho, ou pisava tudo à sua frente?
- Não recordo, mas para quê tanta pergunta? – Retorquiu Juba de Leão, não desejoso de falar mais sobre a questão.
- Meu soba, pediu ajuda, responda só à pergunta. – Insistiu Nehone.
- Quando o mestre adivinho me falou a primeira vez, o bicho estava furioso, mas aquele que me aparecia estava feliz, carregava a nossa neta com dança.
Nehone sorriu ostensivamente. – Já não pergunto mais nada.
- E então? – Quis saber o soba.
- Só vou falar mais tarde, hoje não. Deixa a nossa neta vir, não há problemas, vamos recebê-la bem, como filha nossa.
O que lhe deu então, que não quer falar depois de todas essas perguntas?
- Só isso?!..
Juba de Leão estranhou, mas como Nehone parecia satisfeito e contente, não insistiu. Talvez o irmão quisesse dormir sobre tudo o que fora dito, ou pretendesse consultar alguém.
- Está bem, mas sobre isto não deves falar com ninguém... por enquanto. – Alertou.
Devia saber que para se caçar o bagre não se mexe no lodo.
- Não falarei, pode estar descansado.
Os dias passaram céleres, a ansiedade fizera ninho em todas as casas e quando, ao longe começou a ouvir-se o buzinar repetido da viatura do comissário comunal, a comoção foi total, mais parecia que a povoação estava novamente a ser invadida, tanta era a gente que corria e gritava por todos os lados. O soba grande, tentando manter a dignidade e a compostura, caminhava lesto para a mulemba, perseguido pelos outros anciãos, esquecido do portador da sua cadeira que, atarantado, recuara para a ir buscar. O povo fez alas ao longo da rua por onde apareceria a viatura, batendo palmas e já dançando. Nazamba era a expectativa maior, a memória dos mais velhos avivara acontecimentos passados e, ao longo dos dias que procederam a notícia da vinda do casal, foram vários os comentários e as estórias que se cintilaram nos fogos nocturnos do aconchego conjunto de falas e mais falas.
Quando o Land Rover fez a curva que logo anunciava a aldeia, o delírio das mulheres e das crianças foi total. Rodopiaram sobre si mesmas em passos cadenciados de dança. Juba de Leão, para não mostrar o tremor que lhe aferrara o corpo e alma, teve que se sentar. Não muito afastado, Nehone olhou-o pelo canto do olho, meditabundo.
Agora tremes...
Na viatura, Nazamba olhava extasiada, nunca pensara que seriam alvo de tal manifestação. Seu coração batia a ritmo desconcertante, agarrada à mão do esposo que a olhava de soslaio, satisfeito e de igual modo curioso, expectante. Nataniel reconheceu o avô sentado debaixo da mulemba e indicou para Nazamba.
- Olha, aquele velho ali é o nosso avô, o soba grande Juba de Leão.
- Nem me recordo da sua cara, qualquer de um deles poderia ser o nosso avô se não tivesses indicado. Como irá ele reagir? – Indagou, cerrando ainda mais a mão do marido.
Nataniel colocou o braço por cima dos ombros da esposa e acariciou-lhe o queixo.
- Não te preocupes com isso, teremos tempo...
- O que lhe vou dizer?
- Não importa o que lhe irás dizer, cumprimenta-o e quando não souberes o que fazer... olha para mim, eles entenderão.
- Mas eu não sei nada das tradições...
Nataniel olhou para a esposa e sorriu, sentindo-lhe a angústia e a contrição. Também se sentira assim quando chegara a Cuba.
- Pronto saberás tudo, dá tempo ao tempo. Verás que lhes conquistarás o coração.
A viatura estancou junto à árvore e o comissário comunal desceu de imediato, dirigindo-se ao soba, que não teve forças para se levantar. Suas ressequidas pernas tremiam.
- Soba grande, trago-lhe os seus netos, recebe-os em paz.
Nataniel desceu, esperou por Nazamba e, uma vez chegado junto ao avô ajoelhou-se, batendo de seguida as palmas das mãos, três vezes. Juba de Leão, como que energizado, levantou-se, agarrou a espádua do neto e ergueu-o com força. Olhou-o em censura e apertou-o nos braços, enquanto que de seus olhos escorriam lágrimas teimosas.
- Nunca mais te ajoelhes perante mim. – Sussurrou-lhe ao ouvido.
Tentou perceber o reparo do avô, mas não conseguiu. Achou por bem não dizer nada e apertou-o em silêncio. Depois separou-se, olhou para o velho com um largo sorriso, estendeu a mão para Nazamba, que aguardava e puxou-a a si.
- Avô, está aqui a tua neta e minha mulher, a nossa Nazamba.
Nazamba, relutante, resistiu até que pôde à pressão ligeira da mão de Nataniel para se movimentar para o velho ou falar. Este, compreendendo o sentimento da neta, avançou e tomou nas suas, as mãos tensas de Nazamba.
- Meu amor, por favor. – Sussurrou-lhe Nataniel ao ouvido.
- Como está, meu avô? – Disse para que os mais cerca a ouvissem, enquanto abraçava o ancião que, novamente, teve que se sentar. Nehone, observando, baixou o rosto para que não fosse possível ler-se-lhe o sorriso de desprezo que espelhava.
Parabéns minha sobrinha neta, venceste o primeiro encontro, mantém essa força!
- Sentem-se, sentem-se. – Tentou disfarçar as fraquezas, a das pernas e a da coração.
- Há horas que estamos sentados avô.... – Respondeu Nataniel.
- Estão cansados, precisam de comer e beber. Vamos sentem.
- Temos mesmo? - Sussurrou Nazamba ao ouvido do esposo.
Como resposta, Nataniel sentou-se no banco que lhe trouxeram, convidando Nazamba, com um gesto de olhos, a fazer o mesmo. De longe, todos olhavam intensamente, estudando o rosto e os gestos do velho, assim como os da neta. Viram-na perdida e as mulheres mais novas riam, gozando o embaraço da parente citadina, sentada ali ao lado do marido só porque estudara e esquecera, ou talvez nunca aprendera, os costumes, mulher não tinha que sentar ali com os homens.
- Avô, ainda não cumprimentámos os mais velhos.
- É verdade meus filhos, esta minha cabeça está a ficar muito leve.
Percebendo o desconcerto do soba grande, Nehone aproximou-se com um largo sorriso e endereçou-se ao sobrinho.
- Então o meu neto já não me reconhece, não se lembra do velho Nehone?
Nataniel ergue-se lesto e segurou as mãos que o tio-avô lhe estendia. Levou-as à testa e inclinou-se.
- Perdoa-me meu avô, mas o tempo foi muito. – Chegando-se ao ouvido, segredou-lhe. - Lembro sim, lembro muito bem, aliás tenho que devolver-lhe aquele pacote.
- Pacote, que pacote? – Perguntou Nehone em espanto, o que fez com que Juba de Leão olhasse para ele.
- Já não se recorda? – Respondeu bem-humorado, Nataniel.
De repente Nehone lembrou-se e levou as mãos à boca, para esconder a surpresa. Acercou-se ao ouvido de Juba de Leão e explicou-lhe o que se tratava. O velho sorriu e olhou para o neto.
- Fica para mais tarde, agora é comer e tirar a poeira da garganta.
Nehone conduziu o neto e a neta aos mais velhos e, à medida que se cumprimentavam, relembrou-os um a um entre apertos de mãos, sorrisos e a confirmação, como que a desculpá-los, que eram muito jovens para se recordarem de todos deles, agora envelhecidos e sofrendo das marcas do tempo, mas que estavam muito felizes de os ver e esperavam que pudessem ficar ou regressar mais vezes.
Assim que Nazamba teve uma oportunidade, voltou-se para o marido e perguntou-lhe que assunto é que tinha de ser tratado mais tarde.
- Uma questão antiga, depois conto-te.
- E é assim tão séria que teve que ser segredada?
- Não, não é séria, só que lhes é reservada.
- Vocês e os vossos segredos...
Juba de Leão percebendo uma inquietação na neta, voltou-se para Nataniel e sugeriu que Nazamba talvez precisasse de se retirar, tinha ar de cansada.
- É verdade meu avô, eu vou acompanhá-la e volto logo.
- Tem dois miúdos e três raparigas para ajudar tudo no que for preciso, é só chamar.
- Tanta gente assim, para quê? – Perguntou Nazamba.
Perante o olhar de reprovação do avô, baixou a cabeça e enervou-se.
Esqueci-me de lhe falar destas coisas, diacho. Não sabe que se estiver menstruada não pode cozinhar, nem acender o fogo.
- Desculpe avô. – Respondeu Nataniel. – Está um pouco nervosa, logo lhe passará.
- Esta nossa neta já não sabe nada. - Disse Juba de Leão após o casal se ter afastado.
Nehone olhou para o soba e esteve para lhe falar o que pensava.
Então, não a mandaste embora para a terra do pai?
- É verdade, esteve fora muito tempo e desde criança... – respondeu.
O soba grande manteve o olhar, inquiridor, tentando ler-lhe a alma, a intenção, todavia Nehone aguentou sem se intimidar.
Estas indirectas, sempre estas indirectas, o que é que ele quer?
- É verdade, muito tempo... – condescendeu, unicamente para não parecer fraco.
- Vamos ter que falar com o Nataniel. – Disse Nehone.
- Falar com o Nataniel?...
- Tem que ensinar à Nazamba as nossas tradições, a nossa linhagem, tudo.
Mais uma vez Juba de Leão olhou para ele desconfiado.
Nossa linhagem? A propósito de quê, vem esta conversa?
- Sim, ela tem que aprender, mas vai ser difícil.
- Depende, se ela estiver interessada aprenderá rápido. – Respondeu Nehone.
- Está bem, mas agora o nosso neto está a voltar.
Nataniel, de sorriso nos lábios, chegou e pediu licença para se sentar junto ao avô. Aceitou a caneca com a bebida que lhe foi oferecida e disse que sim, que queria comer, estava faminto. O resto dos velhos achegou-se e olhou com orgulho para o filho predilecto da aldeia.
- Recebemos os teus recados quando voltaste de Cuba, mas só agora, passados seis anos nos encontramos, meu neto. – Disse, emocionado, Juba de Leão.
- É verdade, avô. Mas não dava para vir, fui logo para a tropa e esta zona não era uma zona segura.
- O teu primo, o irmão da tua mulher, o Tomás, atacou aqui duas vezes, só por sorte não morri.
- Veio com muita raiva, tivemos que fugir. – Reforçou Nehone.
- Não entende porquê que ele atacou assim a aldeia? – Perguntou Nataniel, desejando ouvir a confirmação pela boca do avô.
- Não recordas, eras criança, mas eles foram mandados embora daqui. – Disse Nehone, com toda a intenção e olhando para Juba de Leão.
- Eles quem? – Perguntou Nataniel, insistindo.
- A tua mulher nunca te falou?
- Chega! – Gritou Juba de Leão.
Estás com medo da verdade? Chega porquê?
Nataniel olhou para o avô e depois para Nehone e tentou entender porque se antagonizavam os irmãos?
- Perdão avô, mas não entendi, a minha mulher nunca me falou de quê? – Fingiu não perceber ou entender.
Explica-lhe agora que a mulher não é filha da terra...
- Deixa, Nataniel, isso fica para mais tarde. – Respondeu Nehone.
- Estou cansado, meu neto e o momento agora é de comer e de saber de ti. Essas questões antigas falamos mais logo. Conta-me do teu trabalho – Mudou de assunto o soba.
O que terá havido, para os dois se digladiarem logo à minha chegada? Será o problema da expulsão da Nazamba?
- Estou a trabalhar no Hospital Militar Central.
- Muito bem, mas conta-me, o que se está a passar em Luanda?
- O que quer saber, avô?
- Isso da paz e das eleições, já estou velho.
- A guerra acabou, assinámos um acordo de paz e agora o povo deve escolher quem vai ser o presidente da república e os deputados.
- Mas acabou mesmo? Continuamos a ouvir muita coisa aqui. – Disse Nehone, apoiado pelos outros velhos.
Nem ele sabia se efectivamente a guerra acabara. No papel sim, mas nos terrenos das operações, nos corações dos políticos e dos militares, será que teria acabado? As palavras eram ainda muito acesas, inflamadas e em alguns bairros de Luanda o terror sentia-se. A truculência evidente. Os rostos trancados de vingança, os conhecidos mas todavia inusitados fardamentos, a transparência da sede do poder nos rostos crispados dos dirigentes que saíram de longos anos de privações e das matas, a jactância dos seus soldados juntos às mulheres citadinas, pouco alentavam as populações das urbes.
- Sim, acho que acabou, embora os estrangeiros, as nações Unidas, não estejam a contribuir para a paz.
- Porquê assim? – Perguntou Juba de Leão.
- Sabe avô, eles deviam ser como um árbitro de futebol, ver que a partida corre bem e quem ganhar ganhou, sem confusões. Mas não, não controlam o desarmamento, aceitam aquelas armas podres e fazem de conta que não vêm os velhos e crianças que estão a aparecer nos campos de desmilitarização como soldados.
- Assim a guerra vai continuar!...
- Esse é o meu medo, avô. Mas vamos confiar e trabalhar para ganharmos as eleições, não podemos perder, senão ninguém vai ficar vivo. Esses meninos bonitos que eles mandaram em Luanda estão a dar a entender isso, afirmam que se não ganharem que vai ficar feio e outras coisas que metem muito medo às gentes.
- E nós aqui, vamos fazer como?
- O avô tem que ouvir bem a rádio, a do governo, não a outra e manter um contacto muito estreito com o camarada comissário. Tem que levar todo o povo a seguir o seu exemplo e o avô já sabe que vai votar no partido e no presidente do seu neto, porque foram eles que me mandaram estudar em Cuba e fizeram de mim médico.
- É mesmo assim, o meu neto falou bem. Mas se a guerra voltar? Esta zona nunca foi segura, hoje está um, amanhã passa outro!...
- É o risco que devemos correr avô, não se pode estar bem com Deus e com o diabo, temos que escolher.
O velho esticou os dedos e retirou um pedaço de galinha que tinha sido trazida há muito. Encheu novamente a sua caneca e a do neto e ficou meditativo. Os outros, de igual modo apreensivos, abanavam as cabeças ou cofiavam as barbas. Nenhum desejava novamente a guerra, esses políticos tinham mesmo que se entender, caso contrário seria o povo metido no meio feito bola de futebol como sempre, e a violência cega a servir de árbitro.
- Mas a maior parte de nós nem sabe ler e escrever. - Disse um dos anciãos.
- Não faz mal, todos temos de votar. Haverá listas com as fotografias das pessoas e as bandeiras dos partidos, só temos que pôr aí uma cruz. - Disse, exemplificando com um gesto. - Tudo vai ser explicado e não podem fazer erro, tem que estar bem claro, porque se errarem o voto não conta.
- Ai filho, é muito complicado. - Respondeu outro velho.
- Vão aprender, vão aprender, é só prestar atenção. – Retorquiu, sorridente, Nataniel.
- Isso é para vocês mais novos, nós nunca votamos. - Falou o mesmo velho.
- Quem é que votou aqui em Angola? Ninguém, é a primeira vez e temos que escolher com cuidado. Os nossos sobas têm que entender tudo muito bem, não é avô?
- Vamos deixar para depois, fala-nos do teu padrinho, como está? – Pôs ponto final à questão.
- Eu ainda estava em Cuba quando ele voltou. Está bem, mais velho e gordo.
A conversa, nesta toada de recordações e factos mais recentes, decorreu até ao acender dos primeiro fogos, altura em que os mais velhos deles principiaram a retirar-se. Nataniel pensou na mulher e esperou que esta estivesse a dormir. Quis ausentar-se, todavia não ousou para não ofender o avô. Tinha muitas perguntas a fazer, sobre Balanta, sobre o primo cunhado, o Tomás, sobre o que o velho pensava, se queria vir para Luanda e viver com eles, porém achou que havia tempo. Calcularam ficar uns quinze a vinte dias e não havia necessidade de desejar cobrir todas as questões logo na primeira jornada. Deu conta que só estavam os três, o avô, Nehone e ele, talvez esperando que dissesse qualquer coisa ou tivesse o primeiro gesto de retirada.
- O avô não vai entrar? Os mosquitos não estão a incomodar?
Juba de Leão riu e voltou-se para o neto
- Estava a pensar a mesma coisa, sim, é melhor irmos para dentro.
- Vamos avô, eu acompanho. – Disse, ajudando o velho a erguer-se.
Os dias pareceram passar céleres, não obstante os poucos afazeres para o casal. Nataniel observava Nazamba via-a tensa, á procura de uma via de entrada, de uma desculpa, de um percalço qualquer do avô que viesse a permitir o escancarar da porta do passado e deixar fluir em catadupas o que retivera por longos anos. Condoeu-se da esposa mas sabia que não deveria ser o polo catalisador, aguardaria o momento e dar-lhe ia o apoio, a solidariedade e a força necessárias para que saídos dali, encontrasse a paz interna e olhasse para o seu passado como uma memória apaziguada, portanto entendido e aceite.
- Achas que deveria ir ver a casa do meu pai? – Perguntou ao marido, num princípio de noite.
- Será que ainda existe? Ninguém nos deu a entender até agora.
- Estranho, não é? Todos me olham como se fosse uma marciana ou usasse uma máscara, ficam à espera de uma reacção.
- É um pouco de receio e um pouco de delicadeza.
- Delicadeza?... – Perguntou, surpresa.
- De uma maneira ou de outra, sabem o que o nosso avô fez e que, por ironia do destino, hoje somos marido e mulher.
- Daí a delicadeza?... – riu.
- É, são gente simples e a situação é incomum, por isso aguardam, ansiosos.
- Mas não me vou embora sem confrontar o nosso avô, tenho esse direito. Tudo tem que ficar clarificado, sobretudo o que aconteceu à minha mãe.
- Estou plenamente de acordo contigo, há que esvaziar esse poço profundo que foi cavado dentro de ti, todavia deves ser cautelosa, ele para alem de ser nosso avô é o soba grande e tu, face a este povo, és uma mulher.
- E então?
- Então que tens que ter um jogo de cintura muito mais elástico do que o meu, por exemplo. Mas conta comigo, estarei do teu lado, até porque a Angola de hoje não é a Angola de quando partiste.
- Essa não é a questão. O fundamental para mim é entender o que se passou. Não imaginas o que foi ver o meu pai estiolar, um homem que era forte, lutador e amante da sua mulher e filhos.
- Sei…
- Sabes?... Tenho essas imagens a importunarem-me, já viram quase fantasmas dentro de mim, e por não entender o que acontecera fui cruel para ele, maltratei-o, neguei-lhe carinho e amor. O lugar dele era aqui, e este velho caduco do nosso avô arruinou a família. – Desatou a chorar.
Nataniel chegou-se a ela e agarrou-a nos braços, cerrando-a, ele próprio lutando com sentimentos de culpa, com a simpatia e solidariedade que instintivamente devia à esposa e com a falta de não poder sentir com a mesma intensidade a raiva e sofrimento dela.
- Eu sei, meu amor. Achas que também não sofro com tudo isso? Mas está feito, tens é que encontrar o teu equilíbrio e contarás sempre comigo.
Ouviu-se um bater fraco, quase que receoso, na porta semiaberta da casa. Calaram-se e esperaram. Nazamba rapidamente limpou as lágrimas e deu as costas à porta. Nataniel pigarreou e por um instante não soube o que fazer. Ainda não era a hora de jantar para eles, portanto não poderiam ser os moleques com a comida.
- Posso entrar?
Reconheceram a voz do tio-avô, e Nataniel levantou-se para deixar Nehone entrar.
- Boa noite avô, faça favor de entrar e de se sentar. Como vai?
- Boa noite avô, como está? Sente-se, por favor. - Ecoou Nazamba, voltando-se e já recomposta.
- Ai meus netos, os ossos doem, já estou a ficar velho, vou mesmo me sentar, obrigado. – Respondeu Nehone.
- O avô quer comer ou beber qualquer coisa? – Perguntou Nataniel.
- Não, obrigado. Vim mesmo só para vos ver e falar um pouco.
- Ainda bem, estou mesmo a precisar de saber umas coisas, avô – disse à queima-roupa Nazamba, o que o surpreendeu.
- Podes falar, minha neta. Mas antes arranja-me só um copo de água.
- Só água?...
- Só água mesmo, a garganta está seca.
Nazamba dirigiu-se ao tosco armário, retirou um copo e foi ao moringue, do qual se serviu. Levou o copo ao avô, num pires, e regressou ao lugar.
O velho recostou-se na cadeira, passou os olhos pelo quarto e, olhou-a nos olhos, sorridente.
Ainda bem que é ela que começou a conversa.
- Está bem fresca esta água, muito obrigada minha neta. Então o que é que queres saber? - Perguntou, fingindo casualidade.
- Esperei que o avô Juba de Leão me falasse dos tempos passados, perguntasse pelo meu pai e me explicasse sobre a minha mãe, mas infelizmente assim não foi.
É mesmo por aí que quero que você vá, minha neta! Fala, fala a tua alma.
- Deve estar à espera de uma melhor oportunidade, o assunto não é fácil para ele. - Disse Nehone.- Deve estar a observar-te, a conhecer-te melhor para saber como começar. Vais ver que é isso.
- Certamente que será isso, logo ele nos procurará. – Reforçou, lesto, Nataniel.
- Até poderá ser, mas não vou ficar à espera. – Respondeu Nazamba, olhando para o tio-avô.
- A pressa é inimiga da razão. Tu nem conheces a história da tua família, o tronco da vossa árvore... – Disse Nehone, fingindo que limpava uma unha, com o polegar.
- Mas quem nos escorraçou daqui então, não foi a família?
- Calma Nazamba, não te excites – disse Nataniel.
- Não, deixa falar, tudo tem que ficar bem explicado. - Incentivou Nehone.
- Mas bem explicado para quê, avô? - Indagou Nataniel.
- Porque tudo tem a sua hora e todos terão que entender o que se falará. A chuva quando cai é para toda a gente. – Respondeu.
- Não entendo! – Disse Nataniel.
- Pois eu entendo! – Respondeu Nazamba. – Fale-me então dessa minha família e dos motivos porque me quer explicar tudo.
- Hoje não… hoje só vou explicar-vos as descendências.
Mas que estória é esta, porque quererá ele explicar-nos as descendências? Será que a da minha mulher é diferente da minha?
- Mas isso vem a propósito de quê? – Perguntou Nataniel, desconfiado.
- Deixa o avô falar! – Solicitou a mulher, de igual modo desconfiada.
- É que, meus netos, devemos saber de onde saímos, a nossa força vem daí, daqueles que nos antecederam e partiram.
- Não entendo. – Disse Nazamba
- Eles é que velam por nós e nos indicam os caminhos. Não se pode esquecer isso, quando o fizermos, estamos perdidos, somos gente sem rumo, pirilampo que acende e apaga sem iluminar nada. Vocês sabem quem são os vossos bisavôs, por exemplo?
Nazamba e Nataniel entreolharam-se e só não riram por respeito ao velho, em tal despreparo se sentiram com o chofre da pergunta.
- Não avô, não sabemos. – Responderam quase que em coro.
- Viram? Viram?... – Perguntou, entusiasmado, Nehone.
- Então diga-nos lá quem foram, avô. – Disse meio a brincar, Nazamba.
Estou mesmo a gostar desta minha neta, nada como o parado do marido.
O velho sentiu-se feliz. Pigarreou como que para aclarar a voz e bebeu do copo. Colocou as mãos sobre o tampo da pequena mesa e afastou o candeeiro mais um pouco para o lado. Guardou silêncio, cabisbaixo, como requerem as grandes ocasiões.
- Olha Nazamba, tu és filha da Balanta e do Marcelo. Não vou agora falar da tua mãe, com a graça de Deus estará viva, e do teu pai tu é que tens que nos falar. O que tu já devias ter feito, não ficar a aguardar que o teu avô Juba de Leão falasse primeiro, mas como cresceste fora da aldeia, a gente percebe. A tua mãe, Balanta, é filha de Kolele, do clã da Lebre, e de Ondjaki, do clã do Cão. Esses, são os teus avós maternos e a tua avó Kolele é irmã de Juba de Leão.
- Clã da Lebre? – Perguntou Nazamba, espantada.
- Olha eu também não sabia, mas deixa, logo explico-te. – Disse Nataniel.
- Sim, portanto os teus avós maternos são Kolele e Ondjaki, ela filha de Luvumbu, que vem dos que se chamam Galo, e de Mabunda, ainda dos da Lebre. Teus bisavôs, do lado da tua mãe, foram Zwela e Karima, filhos dos grandes reis de outros tempos.
- E o que tudo isso faz de mim? – Perguntou, curiosa, Nazamba.
- Faz com a minha neta pertence aos da Lebre, não esquece, tens que saber bem toda a tua linhagem.
- Olhe avô, eu nem sabia que a minha avó se chamava Kolele, o meu pai nunca me falou e nem tenho a certeza se ele próprio saberia. – Disse Nazamba.
- Sabia, sabia, ele é que nunca te falou, deve ter sido a raiva pelo que aconteceu. Como o mandaram embora, deve ter eliminado tudo que era nosso dentro de si, a filha já lhe bastava para relembrar essa parte da sua vida. Sabes, minha neta, nós os pretos vemos o mundo de outra maneira, não é o mesmo mundo dos brancos e assim, parece que não temos coração, que a vida não tem valor ou tem pouco.
- É isso mesmo. Como correram com o meu pai e os filhos e deixaram a minha mãe sozinha? Ela não amava o seu marido, não tinha parido os filhos?
- Tudo isso é muito difícil, minha neta. Como posso explicar hoje, dezoito anos passados e com toda a desgraça que caiu sobre nós? Até o teu irmão Tomás atacou a aldeia duas vezes e tivemos sorte de fugir.
- Deviam ter morrido todos.
O velho calou-se. Olhou para Nataniel e entendeu o seu silêncio. Afinal tinha mesmo que deixar cair a água sobre o passado, e com quanto mais força melhor, só assim aliviaria a dor da neta e talvez a levasse ao que pretendia. Suas palavras, por dolorosas que fossem, deviam ser essa chuva resgatadora.
- Entendo a tua raiva, a tua vontade de vingança, mas se achas que tens que te vingar, nunca será com ódio ou rancor, só com entendimento e com a paciência. – Respondeu Nehone.
- O que quer dizer com isso? – Perguntou Nataniel.
- Por agora nada, um dia vão entender se lembrarem-se das minhas palavras.
- Desculpe, é com o soba Juba de Leão que eu tenho que ter esta conversa, só com ele, o soba grande todo-poderoso que teve que esperar a saída dos brancos para revelar esse poder. – Disse Nazamba, para ferir.
- Nazamba, não precisas de enveredar por aí! – Cortou Nataniel.
- Não? Devias ter ouvido o meu pai e todos aqueles que foram corridos daqui.
- Mas isso é a História, é o rumo dos acontecimentos que o Homem traça e não controla, perde-se neles e a maior parte das vezes até é comido por eles.
- Está bem, vamos ficar por aqui. Falaremos quando estivermos a dois.
- Desculpe avô, a ferida é grande e profunda. – Solicitou Nataniel.
O velho suspirou fundo e aguardou um momento para ter a certeza que a tempestade passara. Com um gesto pediu mais água e, após ter sido servido e tomado uns goles, abriu novamente o seu sorriso.
- É verdade, vamos lá a isso. Nataniel também não dever saber toda a descendência porque saiu cedo para Cuba e nunca mais voltou. Mentira?
- Não avô, é verdade. – Respondeu.
- Pois escuta. Tu és filho de Epalanga, do clã Abelha e de Zeferina, dos descendentes do Rato, como sabes. O teu pai, Epalanga, é filho de Juba de Leão, dos da Lebre e da sua terceira mulher, Teka, daqueles das Abelhas, portanto tu e a Nazamba são parentes mas podem casar, não são das mesmas casas na linhagem.
- E então, avô? – Quis saber Nazamba.
- E então nada, era só para vocês saberem.
- Sabermos o quê? – Insistiu Nazamba.
- Tem calma, a altura vai chegar e aí vais entender tudo.
- Meus Deus, que mistérios avô!...
- Mas quero ainda pedir-vos um favor.
- Fale avô, o quê é? - Perguntou Nataniel, olhando para Nazamba em expectativa.
- Agradeço guardarem por agora esta conversa só para vocês.
Ambos assustaram-se com o pedido, intuíram que havia algo de muito mais profundo nesta vinda dele à casota, com uma explicação aparentemente inócua sobre as raízes de ambos. Tinham vindo de férias e para conhecer a família e resolverem o pleito de Nazamba, não para se envolverem em qualquer outra questão e, muito menos que tivesse a ver com coisas antigas e que lhes eram alheias. Todavia, a exigência carregada no tom do pedido teve o efeito que Nehone desejava.
- Está bem avô, mas depois terá que nos explicar porquê.
- Estejam descansados, quando o momento chegar eu falarei. Agora vou.
- Não quer mesmo comer ou beber nada?
- Não, meus filhos, fiquem bem e boa noite.
Após a saía do velho, o casal não soube o que dizer. No ar, como visgo invisível, fluía pendurada como teia sedosa de aranha gigante, o ritmar da sensação mais estranha e que os atemorizava. Intuíam que qualquer coisa fermentava em determinadas pessoas da aldeia, e Nehone teria sido o primeiro a manifestar-se e introduzindo-os na genealogia comum.
- Acho que devemos regressar a Luanda, tão cedo quanto seja permitido. – Disse Nazamba.
- Também não vamos começar a ver fantasmas onde eles não existem.
- Pois é precisamente isso que eu acho que nos estão a mostrar.
- Como assim? – Perguntou Nataniel, surpreso.
- Então para que foi toda esta conversa e o sigilo exigido?
- Sei lá, coisas de velhos.
- Ai é? E por falar em segredos, o tal pacote, ainda não contaste do que se trata.
- São costumes nossos, Nazamba, são mesmo coisas de velhos e eu era jovem. Foi algo que fez parte dos rituais para minha protecção enquanto me encontrasse fora. Só isso.
- Bom, isso eu entendo. Todos nós nos protegemos contra o desconhecido, seja com o sinal da cruz, com figas, patas de coelho ou qualquer outra superstição. E deu resultado?
Nataniel olhou para a esposa e sorriu, talvez colocando-se a mesma pergunta. No fundo, e não poderia ser de outro modo ou a existência das religiões seria negada, os fabricados caminhos protectores são sempre funcionais, sejam os da protecção benigna, quanto os da maligna, que conduzem ao inferno e à perdição. O fundamental é que haja a crença nos seus poderes, na sua capacidade de acobertar os medos, os receios, as angústias, restituindo a fé, a esperança num amanhã mais promissor. Uma prece, fugaz que seja, uma solicitação à força invisível é tão fundamental quanto um pedaço de pano vermelho amarrado no pulso ou no tornozelo. Invocam e pretendem protecção, indiciam rumos desejados, forjam tranquilidade e balanço que permita o correr monótono do quotidiano.
- Se deu resultado? Acho que deu, guardei o talismã que me foi confiado e aqui estou, formado e casado com a mulher mais formosa do mundo.
- Se pensas que me desvias do assunto com galanteios, estás redondamente enganado. – Respondeu, dando-lhe um beijo na face.
- Acho que devem ter aí um plano qualquer para nos reter.
- Até nem me importaria nada de viver aqui alguns tempos, talvez me ajudasse a reencontrar-me.
- Viver no mato? Tu?
- E porque não? Achas-me incapaz de voltar às raízes?
- Queres uma resposta sincera? Irias ficar sem saber o que fazer.
- Tenho que encontrar a minha mãe, saber do meu irmão...
- Antes de mais devemos ver o que vão dar estas eleições, há vozes ainda muito acaloradas...
- Não acreditas então que a paz seja verdadeira?
- Não sei, os cavaleiros do apocalipse andam à solta.
- Não tens fome? - Perguntou Nazamba para acabar com a conversa.
- Tenho, vou chamar os miúdos da casa. Já te viste a cozinhar lá fora, no fogo, todos os dias?
- Vocês homens têm a mania de que são os únicos a ser capazes de tudo fazer!
Após o jantar Nataniel foi dar um pequeno passeio pela aldeia, seguido por uns tantos jovens desejosos de ouvir relatos da guerra, e Nazamba, agarrando num livro, afastou um pouco o petromax por causa do calor que gerava, concentrou-se na leitura.
O dia amanheceu cinzento, e a bruma cobria a maior parte da aldeia. Deslizando por entre as casas, envolto num longo cobertor que o cobria quase por completo, Nehone entrou, sem se fazer anunciar, por uma delas. Um cão enroscado em si mesmo, preguiçosamente levantou os olhos mortiços para a figura que cruzara a porta do amo e voltou ao sono. Se pensasse, certamente teria indagado qual seria a sorte do assunto que levava o mais velho Nehone a deslocar-se tão cedo à casa de Kavungu, o mestre adivinho.
Depois das saudações, Kavungu veio à porta e encostou-a, não obstante o fumo do pequeno fogo sobre o qual ardia em gemidos prazerosos, uma velha lata de manteiga com uma mistela que relembrava um café muito diluído. Nehone observou-o, como ao espaço que o circundava, repleto de máscaras, paus, raízes, penas e outros artefactos da profissão. O velho Kavungu era pessoa respeitada e tido como um grande curandeiro, a sua fama estendia-se por muitos lugares, até o comissário provincial o mandara chamar, à sorrelfa, ao palácio várias vezes.
- Mano Kavungu, temos que tomar uma decisão, o Nataniel e a Nazamba não vão ficar por muito tempo. – Disse Nehone, aceitando a caneca da mistela e a maçaroca que lhe eram estendidas.
- É uma decisão difícil...
- Pode ser, mas lembra só aquela altura... o que os amuletos falaram...
- Sei... mas temos que tomar cuidado, tudo mudou.
- Mudou como, então? O velho cada vez está mais caduco e naquela altura os antepassados falaram, foi você mesmo que disse...
- É verdade, mas agora há a Nazamba.
- Mas é isso mesmo, não lhe falei já dos sonhos do velho soba? Não é ela que aparece num elefante preto?
- Mas os outros, e o povo, vão aceitar uma filha do branco?
- É nossa filha também, e é você mano Kavungu que tem que convencer o resto.
- Não vai ser fácil, o irmão quis matar o velho...
- Mas todos sabemos porquê, a raiva dele tinha razão de ser.
- Ainda não estou convencido, vamos ter que esperar, preciso consultar o meu cesto outra vez.
- Pode ser, mas o tempo é curto. Quando eles voltarem tudo tem que estar acertado.
O cão ladrou e os velhos calaram-se, aguardando. Ouviram-se passos de crianças em grande correria. O cão tentou entrar e foi corrido com um gaveto que o curandeiro atirou. Voltou ao mesmo sítio e enroscou-se, a terra ainda quente do calor do seu corpo, aconchegando-o.
- Já falaram quando é que desejam ir? – Perguntou Kavungu.
- Não, mas será daqui a pouco tempo, talvez duas semanas.
- Então temos tempo, vou consultar o cesto ainda hoje.
- Porque não o faz à frente de todos os outros?
- É arriscado, primeiro eu só. Depois, amanhã falamos e logo veremos como prosseguir.
- Volto logo à noite, é melhor.
- Está bem, mas traz alguma coisa quente para beber, à noite faz frio.
- Não tem problema, vou trazer.
- Mas já falaste com eles?
- Não, primeiro temos ter a certeza. Só depois falarei com eles.
Kavungu esperou que Nehone saísse para colocar o cesto dos amuletos no centro da sala, após ter fechado a porta com a tranca.
No balaio havia pedaços amarrados de cabelo, retalhos de pele de antílope, duas pequenas figuras de madeira representando um elefante macho e outro fêmea, unhas e dentes de leão, outros de onça, sementes e raízes, argila branca e argila vermelha, penas de galinhas do mato e o que mais.
Quedou-se pensativo por largos momentos, tentando vislumbrar um caminho certo para os pensamentos. Sabia não poder desafiar impunemente o poder do soba grande, a não ser acobertado pela maioria dos anciãos que formavam o conselho e fortificado pelo que os amuletos indicassem. Que Juba de Leão estava velho e incapaz de dirigir com autoridade, todos o sentiam, porem procurar-se substitutos ou regentes sem as devidas cautelas, poderia desencadear jogos de forças contendoras que levariam a sérias desavenças e mesmo mortes. Nestas alturas os venenos funcionam, os percalços e acidentes inexplicáveis viram a justiça do mais forte ou maligno. Teria, pois, que ter a certeza absoluta do sentimento dos velhos e do povo. Nehone desejava vingar-se da humilhação que sofrera há anos quando tivera a pretensão de julgar que Juba de Leão o iria indicar como sucessor ou regente, até Nataniel decidir se aceitava o cargo ou não e, por já os ter ouvido reconhecia que os argumentos que Nehone invocava para tentar levar a bom porto os seus desígnios, eram válidos e evidentes. Kavungu contava com a decrepitude do soba grande e com a possível anuência dos netos, e enquanto esta última condicionante não lhe fosse esclarecida, não arriscaria.
Uma lufada de fumo sacudiu-o da letargia a que se remetera. Endireitou o torso e agarrou no balaio, erguendo-o por cima da cabeça, colocando-o depois novamente ao solo. Por fim, deixou-o ao nível do peito e remexeu-o três vezes, como se peneirasse os amuletos. A cada gesto pedia aos antepassados que lhe mostrassem o caminho, que lhe revelassem a verdade. Por três vezes, ficou em cima o elefante fêmea sobre um dente de leão. Kavungo começou a suar, agitado. Repetiu outras três vezes a adivinhação e outras tantas apareceu o elefante fêmea à superfície, sobre um dente de leão. Homem habituado a ser respeitado, quando não temido, quase desmaiou, nunca na sua vida observara tal fenómeno, sentiu medo, um medo que partiu do mais fundo das entranhas e que se transferiu amarrado para a mente, congelando-lhe os pensamentos e os gestos. Gritou e gritou, mas não conseguiu ouvir a voz própria, sentindo a língua costurada ao céu-da-boca. Aterrorizado, entendeu que se sempre acreditara ser Juba de Leão um poderoso mago, tinha a confirmação e certeza que Nazamba tornar-se-ia no vendaval que varreria o sobado ora abandonado pelos ancestrais, na revelação dos amuletos. Os castigos seriam grandes e fatais se assim não se cumprisse. Dominou-se o suficiente para alcançar uma cabaça e sorveu uns largos tragos de aguardente para dar consistência às pernas que se recusavam a carregá-lo. Por fim colocou o cesto no local próprio de resguardo. Sem pensar no que faria de seguida, enrolou a esteira e pô-la contra a parede, tudo em gestos que lhe pareceram levar uma eternidade.
A conversa com Nehone não poderia ficar para mais tarde, chegou à porta, gritou por um dos assistentes e mandou chamá-lo. Enquanto aguardava sorveu novamente da cabaça de aguardente e reconfortou-se, o coração já não latejava desordenadamente. Recolocou a esteira no centro da sala e o balaio de adivinhação. Pouco depois entrou Nehone, circunspecto, cioso de que alguma coisa teria passado, Kavungu não o chamaria em tão curto de espaço de tempo por ter-se esquecido de um qualquer detalhe.
- Senta, mano. – Disse-lhe, a voz agastada, indicando-lhe o outro lado da esteira.
Nehone sentou-se sem dizer uma palavra e notou, pelo cheiro, que o curandeiro bebera. Aguardou que indicasse porque o mandara chamar.
Kavungu, por sua vez, trancou a porta e sentou-se na esteira, pernas cruzadas uma sobre a outra. Sem mais palavras, agarrou no cesto e ergueu-o sobre a sua cabeça, murmurando as encantações e preces só de si conhecidas. Nehone estremeceu com arrepio inopinado, relembrado do que lhe acontecera com o irmão. Tentou concentrar-se, não fosse o adivinho notar e procurar motivos e razões ocultas na arrepio que ocorrera. Desta vez Kavungu não remexeu o cesto como fizera antes, sobre a esteira atirou de imediato o seu conteúdo e, sobre o dente de leão e todos os outros amuletos, regia imponente o boneco que representava o elefante fêmea. Com o dedo, apontou o resultado para Nehone, cuja expressão indicava incompreensão.
- Olha, o elefante mulher caiu sobre o dente do leão.
Como resposta, Nehone abriu um largo sorriso, começara a perceber o que o adivinho sugeria.
O sonho do velho! A neta aparece sobre um elefante!
- Mas sobre isso eu já tinha contado. Esse sonho já nós conhecemos – respondeu.
- Sim, mas nunca aconteceu que tudo se repetisse três vezes seguidas.
- Três vezes?
- Sim, há pouco atirei três vezes e a resposta foi sempre a mesma. Olha só!...
Agarrou nos amuletos, remeteu-os no balaio e, após as mesmas cantilenas, atirou-os na esteira. Repetiu mais uma vez, com resultado igual.
- Vês? Os espíritos estão muito zangados com Juba de Leão.
- Mas era isso o que eu dizia. – Respondeu Nehone.
- Mas os velhos e o povo vão aceitar a filha do branco?
- Você que é o adivinho, devia saber que nos antepassados não há filho do branco nem filho do preto.
- Vai ser grande confusão.
- Só se quiser, quem duvida do adivinho e dos amuletos?
- E se ela não aceitar?
- Quem mandou o aviso lá do outro lado, sabe o que está a falar. – Respondeu Nehone de modo a cortar possíveis dúvidas.
- Amanhã vou no mato apanhar umas raízes e caçar um pequeno animal. Durmo mesmo em cima do pau, não me esperem, quando regressar falamos com o régulo para convocar o conselho e explicaremos tudo.
- E quando vamos falar com a Nazamba?
- Não tem pressa, primeiro tem que vir o que está primeiro. – Finalizou Kavungu.