quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

BOAS E FELIZES FESTAS



DEVIDO À "SAISON" NATALINA, ESTA PÁGINA NÃO CONHECERÁ ALTERAÇÕES COMO DE HÁBITO.

ASSIM, PARA TODOS OS MEUS AMIGOS, LEITORES E SEGUIDORES, FORMULO VOTOS SINCEROS DE FELIZES FESTAS EM COMPANHIA DE QUEM AMEM, BEM COMO DE PROSPERIDADE E BEM-ESTAR PESSOAL PARA 2011.

MWAKA WA UHYA MUVUSUNGA

MERRY CHRISTMAS AND HAPPY NEW YEAR

CILIMO CAHA CIWAHE

JOYEUX NOEL ET BONNE ANNÉE

KYESE MU MVU MPA

FELIZ NAVIDAD Y PROSPERO ANO NUEVO

MUVU WA MBOTE WOBE

FROHE WEIHNNACHTEN UND GUTES

NEUES JAHR

MVU MBOTE UKE YI AKU

BUON NATALE E FELICE ANNO NUOVO

ODULA IPE IWA

FELIZ ANO NOVO

OVILAMO VYO CIPITO CHULIMA


terça-feira, 16 de novembro de 2010

III SEMINÁRIO LITERATURA, GUERRA E PAZ - Em torno da vilência: palavra, corpo e imagem








Este encontro, que fez parte do VII Seminário de Literaturas de Língua Portuguesa: Portugal e África, teve como organizadores a Universidade Feral Fulminense, no Rio de Janeiro, através da sua Faculdade de Letras e do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana.
O VII Seminário buscou dar continuidade ao espaço de discussão criado no Instituto de Letras da Universidade Federal Fulminense, em que se vem reavaliando a ampliando reflexões teórico-críticas que fundamentam o estudo das Literaturas produzidas em Portugal e África de língua oficial portuguesa.
Em 2010, realizou-se conjuntamente com o III Seminário Literatura, Guerra e Paz, evento internacional lançado na Universidade de São Paulo, em 2006, e realizado pela segunda vez na Universidade Politécnica de Moçambique, em Maputo, no ano de 2008, devendo (ainda sem informação confirmada) Angola albergar o próximo. O evento teve como pano de fundo o repensar da literatura em língua portuguesa produzida em torno da Guerra, com ênfase na guerra colonial de Libertaçã0 Nacional e em diversas guerras civis que tiveram lugar a partir dos processos de independência dos países africanos.

IV ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA












Este IV Encntro decorreu, de igual modo, em Ouro Preto, com uma vasta participação de escritores angolanos, nomeadamente o autor deste blogue, Luandino Vieira, Pepetela, João Maimona, Abreu Paxe, Jacques dos Santos, Kanguimbo Ananás, Akiz Neto, entre outros mais.
O tema central deste grande evento foi "África - dinâmicas culturais e literárias", numa realização da Pontfícia Universidade Católica de Minas Gerais, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Federal de Ouro Preto.

O FORUM DAS LETRAS EM OURO PRETO


Tive a honra de estar presente neste grandioso evento, e a infelicidade de não ter tido a possibilidade de apresentar uma comunicação, ao lado de Laurentino Gomes, moderados pelo Clóvis Bulcão, por razões que aqui não cabem. Todavia a grandesa do evento ficou marcada, sobretudo pelo destaque que deu a África e a Angola e por nos permitir o contacto directo com uma cidade que representa tão de sobremaneira elevada, quanto o esforço involuntário de milhões de africanos contribuiu para o desenvolvimento multifacetado deste nosso país irmão, o Brasil.

O Fórum das Letras

Promovido pela Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e idealizado pela professora Guiomar de Grammont, o Fórum das Letras de Ouro Preto foi concebido com a intenção de promover o diálogo entre autor e público participante, além de valorizar a importância de Ouro Preto, Patrimônio Cultural da Humanidade. O principal objetivo do Fórum das Letras é a valorização da identidade e da diversidade da literatura dos países de língua portuguesa, através da cooperação mútua entre Brasil, Portugal e os países de língua portuguesa da África.

O evento visa a criação de propostas em comum para promover a leitura de forma geral e o acesso dos escritores de diversas culturas de língua portuguesa aos espaços de divulgação e difusão de suas obras no mundo.

O Fórum das Letras divide-se em Programação Principal, Fórum das Letrinhas, Literatura em Cena, Ciclo Bravo! de Jornalismo e Literatura e Via-Sacra Poética, além de exposições e diversos outros tipos de manifestações artísticas e folclóricas. Desde sua primeira edição, em 2005, o evento vem recebendo os mais importantes autores da literatura contemporânea. A seleção, que reflete o cuidadoso trabalho de curadoria exercido, oferece uma amostra significativa da produção literária do mundo atual.

A programação central do Fórum das Letras acontece no Cine Vila Rica, um dos mais belos cartões postais ouropretanos, localizado no centro histórico e palco de alguns dos mais importantes acontecimentos culturais do país.

O sucesso do evento ultrapassou também barreiras geográficas. Em 2008, o encontro originado em Ouro Preto ganhou sua primeira versão em Lisboa, Portugal e, em 2009, foi a vez da França. Convidados pela organização do Fórum das Letras, autores brasileiros foram atração do 5º Salão do Livro da América Latina, que aconteceu na capital francesa. Luís Fernando Verissimo e Zuenir Ventura, dois dos nossos mais conhecidos escritores no exterior, participaram do evento por meio de debates e conferências, e falaram sobre o mútuo fascínio que sempre caracterizou as relações entre os dois países.

Este ano, para festejar os 300 anos de fundação de Vila Rica, cujas comemorações tiveram início em 8 de julho de 2010 e se estendem até 8 de julho de 2011, o Fórum das Letras vai homenagear a África, continente matriz da formação da história e da diversidade cultural do Brasil, sobretudo da antiga Vila Rica, hoje, Ouro Preto.

MEMÓRIAS DA ILHA - CRONICAS


Nota:

Sou digno habitante da Ilha de Nossa Senhora do Cabo, também conhecida por Ilha de Luanda. É uma maravilhosa língua de areia, produzida pela corrente do rio Kwanza e, não obstante estar completamente descaracterizada, ainda é um dos lugares mais procurados por todos, já aí se alojarem quase todos os restaurantes, bares, discotecas e, logicamente, praias. A Ilha das Senhora do Cabo tem um festa tradicional que se realiza todos os anos, com bastante pompa e circunstância, todavia, por me encontrar ausente do país, não participei este ano. Como tributo, aqui vai uma crónica que escrevi em 1994 sobre a mesma, claro em outros anos de outras realidades.


A FESTA DA ILHA

Desafio abertamente qualquer um a contradizer-me, a desmentir-me que, quando a kianda (sereia) era alimentada com o cartão de abastecimento do Ministério do Comércio Interno, a festa da ilha não era muito melhor, muito mais viva, alegre e participativa. E olhem, até nem chovia para estragar tudo, precisamente no momento exacto em que as kalundús (mulheres sobre as quais baixam os espíritos), em seus garridos trajes vermelhos, desciam ao bordo do mar iniciando a cerimónia. Foi um Deus que me acuda com todos os presentes a bazar, porque molhar-se no mar é uma coisa, é digno e estimulante, ser molhado à toa e de sapatos, é outra.

Será que as divindades dos ares (que nome terão, aviandas?) ficaram enciumadas porque para elas não se vê sequer a TAAG ir pôr toalha rendada e farta nas nuvens, e toca de mandar água farta cá para baixo?

Esta festa, como a passada, andou fraquinha. Bem sei, os tempos estão difíceis. Com uma chapa de zinco a cinco milhões, não há barraca que se aguente montar. Minha amiga Antónia, que mantém barraca de comida nos Trapas (mercado assim chamado em honra dos Trapalhões) lamentava-se, amargamente arrependida, ter solicitado autorização para colocar uma filial à berma da estrada, para estes três dias.

“Ai vizinho, a grade está quase a quatro milhões, o frango a dois e meio, agora ainda com a chuva as massas não aparecem...”

Coisas da inflação e da kianda!

Porém o melhor da festa para mim, foi a parte explicitamente cultural e que não teve nada a ver com a Organização. Fui arrancado do noticiário, aí por volta das 20.45, por um alarido enorme na rua. Para meu espanto, cliticlop, cliticlop, cliticlop, passa diante da casa, em furiosa cavalgada, um boi nativo.

“As pacaças do parque fugiram oh meu Deus!”, foi logo o meu pensamento, só para recordar que as ditas cujas devem hoje estar a falar Afrikaans. Uns dez minutos depois, cliticlop, cliticlop, cliticlop, o replay no sentido inverso

Eis quando da turba que já pensava ter-lhe saído o totoloto, um mais afoito ou cuja fome era mais acentuada, no melhor estilo de um Prudhomme que não actuasse no Benfica de Lisboa, mas sim nos Forcados de Santarém, em voo olímpico, consegue agarrar-se ao rabo do boi e lá ele arrastado, esfacelando-se todo no asfalto. Mas como a fome miseris est, ou ainda que, por um apurado instinto empresarial, não largou e o boi foi derrubado.

O que fazer a seguir? A turba quer o seu quinhão, sobretudo já corria a boca livre que os bois estavam a ser descarregados na floresta e iam para o Frescangol.

“Traz catana! Quem tem catana?”, gritava o nosso Prudhomme forcado.

E a catana que não saía!...

Finalmente, o meu vizinho Delfim produziu um machado e a besta foi abatida, sem qualquer compunção, ali mesmo no meio da estrada, os condutores tentando adivinhar se tudo aquilo seria para a kianda. Antigamente só se punha churrasco, vinhinhos bons porque pelo resto a divindade era vegetariana. Mas isso era antigamente, hoje a kianda come muito, só que ninguém é que não lhe dá.

O boi abatido, sem dó nem piedade como referi, há que fazer a repartição, a divisão. Nesse momento até estive quase a sugerir que se arrastasse o animal para o meu quintal. Na repartição foi onde o nosso Prudhomme-forcado quis destorcer o rabo, mas não o deixaram.

“Quem lhe apanhou fui eu!...”, disse o voador esfolado.

“Mas nójú é que ajudámo!...”, replicaram logo vários empresários nacionais.

“O machado é meu!...”, lembrou vizinho Delfim.

“Eu só quero as miudezas para fazer jinguinga!...”, procurava a vizinha Mabunda.

“Quem lhi viu é su eu!...”, ouviu-se, de um miúdo atrevido.

Resumindo, estava quase a sair tiro, sai sempre e sobretudo porque ninguém quer, quando miraculosamente apareceu a amiga antiga, a outrora sargento Beti, hoje já com alta e devida patente, a pôr ordem naquilo tudo.

À distância, fez-se o velório dos bifes e da jinguinga, bem guardados por quatro polícias.

14/11/94

SUMAÚMA - POESIA






SOL

Sol nascente

poente

somente


lua crescente

minguante

ambulante

terça-feira, 12 de outubro de 2010

IV ENCONTRO DE PROFESSORES DE LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA


Estarei no Brasil, participando no encontro mencionado acima, a decorrer em Ouro Preto, bem como no Congresso Guerra e Literatura, este em Niterói, a partir do início de Novembro. Portanto, desculpem o atraso que se registará na actualização do blogue.

sábado, 2 de outubro de 2010

PROVÉRBIOS ANGOLANOS




WOLOLA MUTONDO UTCHÍLI UKEHE

(Endireitar a árvore enquanto é pequena)

De pequenino se torce o pepino.

(Provérbio ngangela, leste de Angola)


MUEZU UA MUADIAKIMI, A-U-SUNGA NI NDUNGE

(Barbas de homem respeitável, com jeito se puxam)

Com brandura tudo se consegue

(Provérbio kimbundo, centro de Angola)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



HENRIQUE ABRANCHES

Dando prova da extrema criatividade e versatilidade do seu talento artístico, Henrique Abranches, antropólogo, artista plástico, escritor de múltiplas expressões, conheceu as prisões da PIDe ainda jovem, como muitos outros, de onde conseguiu passar para o exterior da prisão de S. Paulo. O manuscrito de “A Konkhava de Feti” de onde extraímos os excertos que aqui constam, bem como os de “Titânia”, uma proposta de ficção científica, então uma nova vertente na literatura angolana.


A KAPUNDA GRANDE

Olhai.

As brasas crepitam ainda no choro da sua própria agonia e é como um choro que vem da lembrança de Kapitia, o pequeno Kapitia, o solitário da nossa aldeia com o seu arquinho de música a que chamamos Mbulumbumba. É como o vazio que está agora sobre o morrinho arenoso do meio, vazio de Kapitia, o mago da Mbulumbumba, o jovem solitário, que não tinha geração nem linhagem como tem qualquer de vós. Ele o que foi gerado como nenhuma outra criatura da sagrada aliança da mulher com a Natureza.

Kapitia, onde estás hoje, Kapitia, senão na memória prudente do Povo de agora cuja sapiência é feita de mil dissabores, aquele Povo que tanto te deseja e cria como o de então te desprezou e destrui? Kapitia, o teu arquinho de música soa ainda aos meus cansados ouvidos, pelo lado de dentro, com o mesmo brônzeo som daquele tempo mas com aquela tintura de velhice que bronze ganha através do tempo. Meu pai o aprendeu dos ouvidos do pai do meu pai e a mim mo ensinou.

Quem entre os velhos esqueceu o jovem solitário, aquele que, segundo a tradição, nasceu sob o Sol ardente, sobre a terra fértil das lavras de Nangombe, a Muda? Dizem os que foram velhos antes de nós sermos púberes que Nangombe, a Muda Infatigável, a que nunca teve encantos nem palavras e que por isso nunca foi pretendida, dizem que Nangombe se deixou dormir um dia, no aconchego da terra morna. E veio então Onhoka, a velha serpente, silenciosa e rasteira como sempre vem, e vendo a mulher assim abandonada á imprudência do seu sono, a mulher estéril sobre a terra fértil, Nangombe, a Muda como um rochedo no meio da lavra, ah!, dizem os velhos que foram velhos antes da nossa puberdade que Onhoka, a serpente, foi tomada de apetite! Então se completou aquela força nova e Onhoka possuiu Nangombe! Moko, a irmã da Grande Cobra, fecundou Nangombe, a Muda, a estéril, a velha solitária das lavras mais ricas da nossa aldeia.

Assim nasceu Kapitia da fertilidade de Onhoka e da mudez de Nangombe. Nasceu da imprudência da mulher e da fertilidade da Natureza. Nasceu, cresceu um pouco, e depois falou pela voz de surdina do seu arquinho de música. E foi Kapitia o solitário o mago da Mbulumbumba. E foi também chamado de Kapitia o viajante, e foi ainda conhecido por muitos outros nomes por essas terras de Suku no Sul do Mundo. Assim lhe chamaram depois o feiticeiro da tchihumba, o Mestre batuqueiro. Foi ainda famoso pelo nome de Simanha, o do ferro.

Quem não se lembra do jovem solitário da Kapunda Grande e da sua estranha angústia de interrogar as coisas que nunca dão resposta que se oiça, porque são apenas as coisas? Quem não se lembra de Kapitia, o mago da Mbulumbumba, negro e nu sobre o morrinho do meio, bronzeando sua música doce, docemente, como um murmúrio de vento na quietude da tarde?

Quem esqueceu Kapitia, o viajante, o ignorado solitário da Kapunda Grande, onde construiu o seu cercado de mistério, de paus agudos e secos como os ramos sofredores da árvore cinzenta que julga sombrear o curral do Soba?

Ninguém o ama naquela aldeia de então. Nenhum homem pode compreender a angústia do jovem que quer saber a razão das coisas e de si próprio. Ninguém o ama, mas quando Kapitia trepa o morrinho arenoso do meio, lento e belo como Ekumbi que se eleva no Oriente, quando a sua mão frágil, feita para a carícia, percute a corda única da Mbulumbumba enquanto o peito lhe abriga e remodela o som, e a voz evolui de uma forma idêntica á Natureza, então é como se em redor tudo parasse e ficasse imóvel e cada homem sai de dentro de si mesmo para se identificar com tudo o que parou dando as mãos aos outros homens. A Impala fugidia interrompe a carreira desenfreada, uma pata no ar, as grandes e atentas orelhas apontado para a aldeia do morrinho arenoso. Onkhapi, a onça esquiva, contém a voz constrangida do seu miado, o olhar afiado furando a mata até á aldeia do morrinho arenoso. Ofera, o Vento, o grande mentiroso transmissor de todos os boatos, assenta-se sobre as copas das árvores e sossega para escutar, e até Embangalala detém o seu canto maçador. Os homens cercam devagar o morrinho arenoso de meio e esquecem tudo o que sentiam antes, escutam, e sentem-se agora mais nobres-Kapitia bronzeia a sua música modelada no peito negro e brilhante; ela contém a mensagem das matas espinhosas da Chibia, as matas que cercam cada homem, mesmo num grupo de homens. Então o Povo da aldeia da Chibia ama infinitamente o seu Kapitia, o solitário da Kapunda Grande, ama e chora novas mágoas, boas de saudade para os pastores e viajantes.

Mas assim acontece em cada dia uma só vez. Até ao cair da tarde, diariamente, entre as matas espinhosas da Chibia, o jovem solitário é de novo o da Kapunda Grande que um dia gerou a Muda, o filho de Onhoka, a velha serpente de missangas brancas, Kapitia o que se não compreende.

Ele não se exercita com os rapazes da sua Etanda, os irmãos da circuncisão, porque Kapitia não tem geração. Ele não desfruta dos pequenos prazeres dos jovens com as moças da aldeia que nasceram dos clãs aliados, aqueles prazeres a que nós, os velhos, fechamos os olhos como se não víssemos ou como se nos não fossem gratos. E não o faz porque Kapitia não tem linhagem. Ele não se junta aos caçadores quando perseguem o Olongo entre as espinheiras grisalhas da mata, ou quando regressam ajoujados ao peso da caça, os cães á frente anunciando o triunfo, as mulheres vindo ás portas das casas com o seu bom riso de mulheres do nosso Povo. Ele não dança ao som viril do ngoma djipindjingo, percutido pelos mestres batuqueiros, nem vem ao abraço vigoroso dos pastores em torno da mpwita de mil vibrações, na dança do Kambangula.

Tudo isso ele não faz, porque todo o seu tempo é gasto na Kapunda Grande, os olhos pousados nas nuvens passageiras, os grandes olhos obstinados, grandes e fixos. Todo o seu tempo é gasto também nas margens pequenas do Tchimpumpunhime, o riozinho da aldeia, de novo os olhos parados, húmidos de fixidez, pousados no escorregar das aguinhas quando eles fecundam cariociosamente a areia branca da margem. Todo o seu tempo é ainda gasto nas matas espinhosas, interrogando a gotinha de sangue que o espinho fez saltar do seu peito, ou então, de arco tenso, a flecha trémula e mal apontada, implorando á doce Impala que se deixe comer sem que seja preciso roubar-lhe a vida.

Kapitia, pequeno Kapitia, o que dialogava com seu pai Onhoka, a serpente (e dizem alguns que Deus lhe dirigiu a palavra em noites frias de Julho do Namibe), o que como ninguém conheceu as águas menores do Tchimpumpunhime, o riozinho da aldeia. O que nas suas batidas ansiosas desceu até as areias maiores do Kakuluvar (e dizem alguns que os seus pés intranquilos e levarem mesmo ás paragens insondáveis do Grande Rio Cunene, o pai de todos os rios, como Njamba, o Trombudo, é o pai de todos os animas). Kapitia, nosso Kapitia, o que era temido do Tcimbanda da aldeia, porque sondava todos os mistérios que Suku pôs na terra para fazer os homens pensarem. O que era respeitado pelo próprio Soba, que receava as suas perguntas mais do que seca sobre as lavras. O que era odiado pelos velhos porque desdenhava da sua digna sapiência.

Um dia aconteceu na aldeia...

Tchombe, o velho Tchombe, pai de Tchimbembera, que não é já da vossa memória, Tchombe, o velho mais orgulhoso da aldeia da Chibia, dirigia seus passos pelo atalho de Kapunda Grande, porque esse era o caminho da casa de Katumbo, a quem seduzira na calada da noite. Tchombe ia cansado, ia talvez ajoujado ao peso da carga do seu crime, porquanto Katumbo, sua seduzida, era também sua sobrinha. Ia pelo atalho da Kapunda Grande por onde seguem todos os caminhos incertos, e dizem que aí passando, olhou e viu a pequena figura do solitário erguida na rocha, os olhos obstinando-se nas nuvens rápidas, como aves migradores, os braços erguidos como presas do Pai Njamba quando ergue a cabeça na sua terrível ameaça. Tchombe viu e praguejou, porque o velho sedutor de Katumbo, como todos os homens da aldeia, temia o pequeno Kapitia, sem ter em conta a sua pequenez, como se teme tudo o é incompreensível.

E então veio Onhoka, a serpente sábia, a que contém na sua cabeça todos os séculos da sapiência do Povo, veio rasteira e silenciosa como sempre vem, mordeu o pé de Tchombe e disse:

Incauto!

Porque praguejas contra a terra indefesa da Kapunda Grande?

Porque odeias tu Kapitia o solitário

tão solitário como o crime que arrastas na sombra?

E todos vós dessa aldeia má!

Porque o temeis como se temem os Espíritos que andam com o vento?

Porque desprezais a sua pequenez?

Cautela agora, ó gente incauta!

O ódio que cultivais cresce e multiplica-se

como o mais rico pé de milho que foi lançado nas vossas lavras.

E apesar disso eu vos protejo uma vez ainda,

mesmo quando vos mordo no pé:

Vai Tchombe, do pé mordido,

regressa ao teu ninho de vespas

e diz aos insectos que vivem contigo

que depressa afiem os ferrões,

que rápidos encham as bolsas de veneno!

O inimigo virá num instante,

mais lesto que o virar do vento.

O inimigo virá pelo vosso pobre mel

mas não sairá da Kapunda Grande.

Ele virá pelas vossas fêmeas

e não as levará para a Kapunda Grande!

Diz-lhes ainda, Tchombe do pé manco,

Que Onhoka, a velha serpente,

Moko, irmã da Grande Cobra,

Desafia a ignorância dos homens

Guardando ciosamente o cercado da Kapunda Grande

para aquilo a que Suku o destinou.

Diz-lhes também, na tua de verme húmido,

que Kapitia, o da Mbulumbumba,

é finalmente Kapitia, o que se espalha pelo Mundo!

Tchombe voltou á aldeia e trazia tanto medo que esqueceu Katumbo, a seduzida. Voltou coxo. Tchombe, o do pé mordido. O medo entrara todo dentro de si e espreitava-lhe pelos olhos piscos de velho alarmado.

Tchombe contou do pé mordido, nessa noite, que foi a primeira noite do tempo de calor daquele ano antigo. Os homens ouviram-no e também tiveram medo, o medo de ser homens, e portaram-se como se portam as mulheres: enrodilharam-se mais em torno da fogueira do Tchoto, menearam as cabeças sucumbidas ao peso da notícia, e disseram: Haka!..»

Kapitia, pequeno sofredor da sua própria ânsia de se realizar ignorado e só, sem os aconchegos da aldeia que os homens do seu tempo tinham por aconchego. Kapitia, o que sonhou ausentar-se da própria matéria de que é feito, ultrapassar os seus próprios limites de dentro e de fora, o jovem intranquilo da paz pequena e simples do Tchimpumpunhime, com que costumava travar um longo diálogo:

“Riozinho da minha aldeia, porque foges destas mãos ansiosas da tua mobilidade? Portador de folhas mortas, alimento dos pequenos animais, corredor incansável dos lugares ignorados da minha cobiça? Tchimpumpunhime da minha sedução, cantador efémero do coral dos calhaus rolados através do tempo interminável e do mundo sem medida! Eu sei, riozinho, que nenhuma voz humana da Chibia possui a tua generosidade de ribeiro claro e límpido, que nenhuma voz humana vem de um coração tão fresco como o que se encontra nas tuas ignoradas nascentes. Mas como suportar a tua fuga constante que me ultrapassa e vexa, como a fuga constante do Olongo por entre as espinheiras, ou a da grande ave branca anunciadora do Verão, quando se vai por entre as nuvens passageiras, ou mesmo como o passo cadenciado em digna retirada do negro Tchikwikwi, o que transporta malefícios para as crianças nas suas grandes asas? Como suportar a fuga de tudo quanto eu amo e compreendo, como se inquietude fosse, afinal, o movimento da Natureza, ao passo que os homens vão ficando para se pesarem uns aos outros, para se olharem e temerem, como acontece com tudo o que fica parado e se repete interminavelmente. Os homens e as mulheres da minha aldeia não são a doçura dos bagres do meu Tchimpumpunhime. São criaturas agrestes como as espinheiras da mata no tempo mais seco. São massas de forma sempre idêntica como as pedras inertes a que chamam os excrementos de Suku. Quando se lhes fala, eles respondem tal como todos os outros seres da criação, mesmo o excremento de Suku quando o sol do meio-dia lhe bate em cima espicaçando-o. Mas a resposta que nos dão, ao contrário de todas as outras criaturas de Kalunga, é a resposta deles que vem das suas leis absurdas, das mortas tradições. É um zumbido conhecido e monótono que não tem paralelo e que é feito para intimidar e não para esclarecer.

Ó bagre fugidio que corre a gincana das pedras musgosas! Tu que conheces o outro lado do Mundo, diz-me onde se encontram os homens e as mulheres que são verdes como o capim ondulantes onde se esconda e nervosa Impala, frescos como a sombra da Mulemba onde repousa Onkapi

Miando docemente, amáveis como a areia branca que tu riscas com a cauda achatada!..”

E o Tchimpumpunhime, saltando sobre as pedras com graça de antílope, disse:

“Kapitia... Kapitia... poupa a tua ignorância e vem...”

E o pequeno solitário da Chibia, bronzeando seu choro afinado nas águas passageiras, pega no arquinho de música e vai para o morrinho do meio com uma nova canção de embalar aqueles de quem não gosta.

In “A Konkhava de Feti” U.E.A., 1981