sexta-feira, 11 de setembro de 2009

CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O CENTENÁRIO DE ÓSCAR RIBAS


Luanda 17-08-2009 14:56
Conferência Internacional sobre o Centenário do Escritor Óscar Ribas
Juventude deve ser guiada para a valorização da cultura angolana
Quote: Fragata de Morais reconhece que juventude deve ser guiada para a valorização da cultura angolana

Em entrevista à Angop, à margem da Conferência Internacional sobre o Centenário do Escritor Óscar Ribas, Fragata de Morais afirmou que enquanto não se falar da cultura e dos criadores angolanos nas escolas, em todos os níveis educacionais, os escritores continuarão na sombra e sem o seu trabalho conhecido e valorizado.

“A juventude se não for liderada ou guiada continuará a ter problemas no tocante à valorização da identidade nacional, tornando-se essencial que se preste maior atenção no ensino dos aspectos da cultura angolana”, disse o escritor.

Segundo ele, outro factor determinante é também a criação de uma rede de bibliotecas a nível de todo o país, tendo em conta a distribuição de bibliografias de autores angolanos.

“Nas condições actuais, em que o livro é caro e as bibliotecas praticamente não existem, torna-se quase impossível os jovens saberem da história dos criadores nacionais”, disse.

Fragata de Morais defendeu igualmente a necessidade do Governo rever a situação da importação do papel para a edição de obras literárias.

“A taxa de importação é extremamente cara, facto que obriga a prática de preços altos em relação às obras literárias”, reconheceu.

Com o livro caro, de acordo com o entrevistado, torna-se difícil aos jovens comprá-los, dando, por isto, preferências a outras necessidades básicas das suas vidas.

Relativamente à conferência, Fragata de Morais avança que a sua importância reside no facto de permitir que a sociedade angolana
saiba mais sobre a vida desta figura incontornável da literatura nacional.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

INKUNA MINHA TERRA


Sobre a sua obra Inkuna – Minha Terra, lançada em 1997, o conceituado escritor Angolano, Henrique Abranches, diz o seguinte: “Esta pequena obra do escritor Fragata de Morais constitui para mim uma leitura penosa de onde sai deprimido, não porque eu não conhecesse que a verdade está por trás de muitas das suas estórias, como todos nos que não andamos a dormir conhecemos tão bem. Mas ele soube ser doloroso por vezes ousadamente controverso, quase provocatório. A coragem que passa nalguns dos seus contos, como “Jogo de Xadrez”, ou as “Amizades”, tem traça de um combatente , de alguém que não quer ser derrotado, porque não acha justo, e embora não saiba triunfar, soube ver e sofrer com o que viu ( Martinha), é um bom exemplo, entregando ao leitor a batata quente...

O CAÇADOR

Carlos Macaia despertou, sobressaltado e a transpirar, ao tropeçar numa raiz. Era a quinta vez, em dois meses, que tinha o mesmo sonho de maneira vívida e angustiante. Sentia que alguém tentava alertar para um ainda desacontecimento. O sonho repetia-se inalterável, tal um filme que se vê várias vezes. Enigmaticamente, fora-lhe reservado o papel do personagem principal.
Sem saber como interpretar o facto, homem da cidade perdido na lenta e nativa morte cultural de Katola, via-se incapaz de agarrar os sinais e, para não a preocupar com coisas pensadas fúteis, nunca o descrevera a Jumila, a esposa, grávida de vários meses.
Ainda meio atordoado, sentou-se na cama, suspirou fundo e, desvelado, nas sombras da escuridão para não a despertar, afagou a cabeça da companheira.
“Meu Deus, por que sonho isto todas as vezes?”.
Jumila virou-se, no sono, abraçando-o confortos pela cintura. Macaia deixou-se escorregar, silencioso, para a posição deitada, e perscrutou a melancolia do quarto, entendeu o falar do respirar suave da mulher segredando-lhe tranquilidade.
“Por quê?”
O que significava ver-se caçador num passado tão longínquo, sobretudo numa região em que desconhecia antepassados? Do lado paterno, a família era do norte de Inkuna, descendentes Urongos. Sabia que pelo lado materno escorria sangue Ungo, mas nunca dos Ussas mais ao sul. Por que então o teimoso sonho onde se transfigurava caçador Ussa, quase do início do século, ou mesmo do século passado? Durante horas, na insónia da noite, pensou a questão, lutou para vislumbrar a cegueira que afugentava para confins infindos as verdades desconhecidas, aquelas que lhe resgatariam a alma. Lutou até o sono começar, como chuva, a gotear-lhe as pálpebras, adormecendo-o. Chuva fina e tímida a tombar nas savanas dos territórios Ussa que, soprada por leve brisa, caía miudinha, estorvando-lhe a visão.
Há vários dias que seguia a pista do enganoso antílope. Uma mudança brusca do vento fizera com que o animal o farejasse, pondo-se em fuga. Reencontrou-o, por sorte, na madrugada seguinte, encoberto por um pequeno arbusto. Pastava despreocupado, mantendo a cautela natural que lhe era o garante da vida.
Nkuva deslizou, silencioso, em ansiedades tão retesadas quanto se pudesse retesar um arco, ciente que suas preces seriam atendidas, Baluba não o iria despeitar. Junto ao arbusto, três morros de salalé, quase irmanados em abraço terroso, fizeram-lhe relembrar a Mulala de há tanto tempo. Era um bom presságio.
Sem notar, levou instintivamente a mão ao pénis.
A Mulala fora a maior experiência de sua vida, nunca a haveria de esquecer quer pelas emoções que despertara nele criança, quer pela física dor que a cerimónia comandara.
Porém, poder deixar de dormir na cubata da mãe, libertar-se do falso e efémero nome que lhe havia sido outorgado à nascença, entrar numa confraria que perduraria a vida inteira, poder enfim ser homem, fora muito mais do que qualquer receio, medo ou puro terror ocasionados.
E, agora, aqueles irmãos de terra salalélica abraçados, reavivavam toda uma memória adormecida, pois fora em cima de algo assim parecido, feito mesa emprestada de despojamentos, que seus parentes o grudaram com força, enquanto o mestre tulula em três talhos secos e precisos lhe cortava o desnecessário prepúcio. O sofrimento causado fora atrevido e intruso, felizmente o batuque que regia a cerimónia escancarou-se infernal e seus gritos tornaram-se dança inaudível no terreiro dos antepassados. O corpo, pintado de listras brancas, o mascarado rosto besuntado de cinza, transpiravam todos os suores do mundo conhecido e todos os medos do desconhecido. Foi forte e digno, não houve necessidade de ser amarrado às estacas, mesmo quando o curandeiro emplastou, para prevenir a hemorragia, o órgão com a pasta de folhas que mascara, muito menos quando o ajudante colocou os pós e as folhas pisadas à volta, que serviriam para sarar a ferida e acautelar o contacto com as pernas. Durante dias, até à ocorrência da cicatrização, ficara preso ao tempo, deitado de costas, quase sem se mover, para não provocar indesejadas dores.
Quando o antílope baixou a cabeça para o pasto, a flecha partiu célere do arco e penetrou junto á espádua, anichando-se fundo no tórax do animal. Com um balido de susto e sofrimento, partiu mato fora sempre seguido por Nkuva que, já sem a preocupação do silêncio, ludibriava ágil buracos e raízes traiçoeiras, em passos e pulos precisos, galgando troncos derrubados e protuberantes.
Não desejava nem tinha a intenção de perder o bicho.
O solo era meio arenoso e o animal saltava lesto, esgueirando-se entre os arbustos, alguns revestidos de espinheiras. Às vezes tornava-se invisível, escondido pelos espíritos encobertos nos morros gigantes de salalé, mas Nkuva conhecia bem o terreno e o porte do antílope que ferira. Sabia que desta vez não iria perder o que lhe tinha sido colocado à mão. Correram durante longo tempo até que, mais pela dor que pela exaustão, o antílope estancou, baliu e deitou-se, ofegante. O sangue escorria-lhe pela pele, ora avermelhada.
Pele suave, que Macaia acariciava na barriga da mulher, dormindo serenos.
O caçador farejou imperceptível nos dedos o vento, ajoelhou-se, com o arco e flecha na mão, colocou a azagaia no chão e entoou uma oração rápida a Deus, o peito contrito pela ansiedade.
“Baluba, enche-nos a barriga!”
Olhou para o animal e tentou estudar suas reacções, entendê-lo na agonia que igualmente compartilhava. Desejou desvestir a pele humana, quase ser antílope, sentir as reacções do bicho ferido, para saber como deixar o instinto reagir ou encaminhar-se. Estático, buscou pertencer, integrar-se o mais que possível ao ambiente circundante. Parecer-se com a árvore mais próxima, ter a forma e o cheiro da espinheira mais sinuosa e perfurante, ser espírito de toupeira para cavar bem debaixo dele cova que lhe revelasse a luz da morte na quietude dos imovimentos que percebia de longe.
De momento, o jogo seria o da espera, o do silêncio e o da ansiedade.
Teve, então, aquele pensamento medrosamente estranho que por várias vezes interferira com a caça.
O feito estremeceu-he a segurança, sua mente não estava preparada para entender algo tão estranho quanto um sentimento de culpa instintivo, propiciado na divina capacidade de poder matar ou deixar perpetuar.
Sua mulher de há três anos, Koyola, não conseguia gerar.
Demonstrara-se indisposta para afirmações de vivências. Pensava, assim, com teimosia, repudiá-la, reaver o que era seu e empenhara para uma união frutífera. E por não o ter sido até ao presente, as forças interiores alimentavam sentimentos contraditórios que o forçavam a ver um ser com vida, sua mulher, a não ser capaz de a reproduzir, e um outro, ele próprio, a roubá-la, aniquilá-la.
Por que razão, sendo os seres vivos emanação do mesmo criador, sofrem, matando-se uns aos outros, quando tudo poderia comer capim, folhas, raízes, frutos, sem que a morte tivesse que chegar através da flecha, da bala que vira nos fuzis dos brancos, do porrinho a rachar as cabeças, em guerras sangrentas? Embora lhe fosse um entendimento natural, por vezes tinha relutância em aceitar, entender, que a morte tivesse que ser omnipresente em cada intenção, concreta ou abstractamente.
Quando ojululo, na Mulala, vira alguns de seus companheiros morrer porque as infecções produzidas não aguentaram os enfraquecidos corpos. A mesma faca, que a uns cortara e lançara preparados para uma vida nova e novo mundo, a outros determinara que houvessem que partir, o caminho meio percorrido, para as colinas viajantes que o cágado carrega na carapaça.
As leis que assim o ditavam ele as conhecia e temia, eram, por um lado, as leis da natureza e, por outro, as da ancestralidade e da continuidade. Portanto, aceitava-as inquestionavelmente. Mesmo havendo um medo desconhecido que, à revelia, invadia-lhe a alma, por parecerem, ás vezes, não equânimes e harmoniosas ou desproporcionadas.
O animal gemeu balidos desnecessários. Seu olhar, já meio baço, penetrou através de Nkuva como que entrevendo o caminho sem fim para o Além. Sentiu-se arrependido, mas pronto sacudiu tais ideias, aliás nem eram próprias com o que aprendera. Encaminhou a mente para a fome, para as gentes da aldeia, para o mundo dos vivos. Tentou certificar-se do fim, não estava seguro da proximidade da morte. Ainda não a enxergara no bicho, e não desejava perdê-lo por um gesto incauto ou mal avaliado.
A posição do animal, do local onde Nkuva estava, não permitia uma nova frechada que carregasse as finais e decididas intenções de Baluba. Vigiando, decidiu aguardar. Deitou-se, pretendendo-se morto, talvez o gesto, em enganosa mentira, apressasse a morte do antílope. Como tal, aprendera dos seus antepassados.
A Morte, quando já tem dono, ronda a posse, a Vida dando-lhe luta desabrigada. Só muito raramente consegue ser batida, ou afastada, para outra região. E, quando assim é, fá-lo para reaparecer sempre sem alerta, apanhando o desavisado desprevenido.
A peleja entre Elas é muitas vezes dura, já o vira em várias ocasiões.
Jumila revirou-se na cama, despertando involuntariamente Macaia, que estranhou sentir
os dedos de sua mão esquerda húmidos. Assustado, acendeu a luz do pequeno candeeiro na mesa-de-cabeceira. Confuso, viu-os cobertos de sangue. Com gesto brusco, destapou a esposa que dormia nua, como ele. Pela barriga dilatada, escorria um pequeno fio de sangue do rasgo que a fivela do relógio fizera quando a acariciava no sono. Compungido, limpou com o lençol a pequena ferida, apagou a luz e agarrou-se a Jumila com a maior das angústias.
“Que se passa, o que me está a acontecer?”.
Adormeceu, a observar a vida esvaindo-se na pele do animal, cada balido uma golfada, um broto de sangue. Contudo, a experiência ensinara-o que ainda restavam forças ao antílope para se pôr de pé e encetar nova fuga. Haveria pois que desenvolver uma empatia entre ele, Nkuva, e a morte alheia, rondante. Chamá-la, atraí-la, como se atraía o crocodilo para a ratoeira à berma do rio.
Deitou-se em arco, na posição fetal. Fingiu de morto que escutava no terrível silêncio o barulho da noite em passos mansos.
Reteve o máximo que pôde a respiração e fechou os olhos. Tinha que parecer o mais inerte possível, a fim de que a morte se aproximasse, curiosa e atraída para o verdadeiro propósito e presa. Porém, o cansaço rendeu-se vencido pela ansiedade e pela fome. Acabou por adormecer, coisa rara, talvez os que protegem os animais não desejavam conceder-lhe a visão da vitória. Já a manhã avançara, quando despertou, para notar com alegria, que o animal realmente partira da vida. Assustou para longe a hiena que rondava, e agradeceu a Baluba, voltando-se para Norte em oração.
“Ó Deus, encheste nossas barrigas!”
Em seguida, fez a mesma oração pelos outros três pontos cardeais.
Só então feriu o pescoço do antílope e bebeu um pouco do sangue, pedindo-lhe desculpas pelo que fizera.
“Irmão antílope me perdoa”.
Sabia que os animais eram seus irmãos, assim como sabia e compreendia as leis da sobrevivência, não matava pelo prazer, matava pela continuidade, pela perpetuação do Ser e pelo sacrifício apaziguador dos espíritos, sempre que necessário. Disso ele tinha a certeza.
Fez um fogo rápido, assou um pedaço de carne, recompôs-se e partiu com o animal ás costas, feliz consigo, feliz com Baluba e com a vida, seria bem recebido na aldeia.
Jumila colocou o prato com os ovos estrelados na mesa, ao lado da chávena de café com leite, quente. Sentou-se e esperou pelo marido que, estranhamente, ainda não lhe dirigira palavra, a não ser um lacónico bom dia, ao sair da cama. Ao vestir o robe, notara uma pequena ferida na barriga e não se recordava de como, onde e quando se ferira. Teria que ir ao médico, não fosse apanhar tétano ou qualquer outra infecção. Finalmente Macaia chegou, depositou-lhe um beijo na testa, afagou-lhe a cara e sentou-se, a seu lado. Vendo-lhe o ar preocupado, Jumila perguntou o que se passava, o que o arreliava?
“Não sei. Tenho tido um sonho estranho que se repete várias vezes, quase sem variações. Não entendo nada, nele apareço como um caçador Ussa, de há muito tempo. Imagina, ainda ando de tanga de pele de antílope, caço de arco e flecha, de azagaia e de porrinho, e tenho uma mulher que não me dá filhos...”
Jumila riu, esvaziada do passado.
“Bom, pelo menos de mim não te podes queixar”.
“Não estou a brincar”, respondeu Carlos Macaia. “Fico angustiado. Ainda ontem à noite, não sei como, feri-te na barriga com a fivela do relógio. E isso ocorreu no momento em que esperava que o animal que eu abatera, morresse. Não imaginas o susto que apanhei quando vi os meus dedos ensanguentados, sangue esse que escorria na pele do animal. Será que isto é algum presságio? Logo, tens que ir ao médico, fazer um ultra-som e ver se tudo está a correr bem com o nosso filho”.
“Claro que está”, tranquilizou-o Jumila. “Ainda há pouco, preocupava-me em adivinhar como me ferira, não me lembrava de o ter feito. Está pois tudo explicado, mas não te preocupes, já tenho uma consulta marcada para depois de amanhã. Quanto ao resto, sonho é só isso mesmo. Sonho! Não lhe dês grande importância, mas se o continuares a ter, fala com a Lola, ela é psicóloga e talvez possa dizer-te o que te inquieta, porque efectivamente se o sonho se repete é porque algo no teu subconsciente te impressiona”.
“Também já cheguei a essa conclusão, todavia não me recordo de coisa alguma que me possa ter impressionado, ao ponto de estar a sonhar repetidamente o mesmo. Não assisti a qualquer incidente perturbador, a minha vida é a rotina de sempre, para além da imensa alegria de vir, brevemente, a ser pai... sinceramente, não vejo o que possa ser...”
“Sabes que no fundo que me dá vontade de rir, ver-te caçador Ussa, de pele de antílope e tudo?” brincou com ele, para lhe roubar da mente a preocupação.
“Até deverias fazer um caçador bem charmoso, elegante. Porte erecto, azagaia na mão, faca à cintura...”, continuou.
“Eu é que não acho graça nenhuma...”
“Desculpa-me querido, não estava a tentar minimizar os teus sentimentos. Só pretendia dizer-te que não dês muita importância ao caso. Isso passa, vais ver. Talvez tenhas visto algum vídeo horrível, que não te lembres agora.”
“Está bem, mas se continuar, vou ter com a Lola. Bom, agora tenho que me despachar, senão chego tarde ao trabalho. Esta Muanda cada vez tem mais carros!”.
Afagou a mulher, que o acompanhou até à porta e desenhou, em retribuição, um beijo no ar, com os lábios.
Estavam casados há cinco anos e haviam-se conhecido na universidade. Pertenciam à nova vaga de quadros modernos, pouco experiente das passadas tradições, desligada umbilicalmente até das línguas maternas de seus pais e avós. Suas urinadas intelectualidades desaguavam no mar da oceânica insensibilidade chamada modernidade, um cata-vento soprado em constantes redemoinhos de lestes, oestes, desnortes e suis. Ele, já no quarto ano de direito, ela, no segundo de economia. Decidiram que só teriam filhos depois de Jumila acabar o curso, não obstante as pressões das famílias. Em África, a despeito da urbanização, quem casa e não tem filhos de seguida, acaba por sofrer uma pressão familiar, que ás vezes pode ser perniciosa. Os filhos, mais do que o casamento em si, acabam por ser a consumação do mesmo. Todavia, Carlos e Jumila Macaia aguentaram e, finalmente, presenteavam-nas com o primeiro rebento.
Carlos Macaia nascera em Katola, filho de pai originário do norte de Inkuna, Murongo, portanto, e de mãe sulina, Ungo. Pelo que sabia, seus avós paternos eram ambos Murongos, enquanto que os maternos um era Ilungo, o avô, e o outro Ungo, a avó. Desconhecia osbisavós, embora soubesse que, pelo lado paterno a descendência Murongo mantinha-se, todavia, perdida no lado materno. Os registos coloniais não se estendiam tão atrás para os nativos de Inkuna. Lá, onde a oralidade falhasse, o acontecimento não tinha existência. Era assim que Carlos e Jumila Macaia desconheciam que tinham um parente comum, sua bisavó, Vassanya, filha de Nkuva e Koyola, ambos Ussas.
Na aldeia, ao divisarem Nkuva de longe, as crianças irromperam em alarido e deitaram a correr para onde ele vinha. Os gritos de alegria deram a entender que a caçada tinha sido abençoada. Na choça, Koyola reviu-se feliz por ter o marido de volta. É que, durante a sua ausência, consultara vários tululas e todos foram do mesmo aviso. Não fora fecunda até ao presente, por que não se submetera, ainda, aos ritos para anular as forças do mal que se manifestavam. Quando o fizesse, logo engravidaria, e o matrimónio seria consumado. Não mais viveria com esse estigma e com a certeza de ser repudiada. O facto de Nkuva ter sido abençoado na caça, era um presságio feliz. A carne de antílope que compartilhariam ao almoço, seria a carne que fecundaria seu ventre, esse fora o modo que os antepassados escolheram para a frutificar, sentia-lo. Teria que escolher um bom naco, às escondidas do marido, e enterrá-lo debaixo da esteira que lhes servia de leito, fazendo três orações. Ninguém a instruíra para tal, o íntimo, em sonho, assim a comandara. Porém, igualmente lhe mostrara que a criança só seria procriada, por que, na quinta geração, uma outra devolveria o lugar agora desmerecidamente cedido. É que a ela, Koyola, um feiticeiro comera-lhe o ventre.
Koyola nem pensou mais, preparou-se para obedecer ao comando, a quinta geração vinha muito longe. E a quem fosse, então, o feiticeiro comer igualmente o ventre, que se protegesse. Não iria morrer agora porque alguém a enfeitiçara, ou porque quebrara algum tabu familiar sem o saber.
Nessa noite, Nkuva sentiu a mulher mais ardente do que nunca, feita pasta de milho a afagar a água em fervente papa. Quando ela lhe segredou que o filho estava a caminho, sentiu-se pleno e orou para que assim fosse. Fizeram novamente amor, e ao raiar do sol, partiram para o riacho para as lavagens matutinas da primeira hora e oblações, ao cantar ainda dos galos.
Nove meses depois, Koyola deu à luz uma menina, a quem foi dado o nome de Vassanya, ou seja, “Aquela por quem muito se esperou”. Com dezasseis anos, foi agarrada numa razia que um grupo fez à sua aldeia, e vendida aos brancos, no litoral, como escrava. Viveu e morreu na costa, em Tubela, tendo-se juntado a um outro escravo do mesmo patrão, Mpaki, oriundo do norte e Murungo, a quem presenteou com um casal de filhos. O rapaz, Muntu, juntou-se a Mayassa, de origem Ungo, e geraram o pai de Carlos Macaia. A menina de Mpaki e Vassanya, Xila, foi levada para Katola, igualmente como escrava, onde se juntou a Pedro
Kindiri, Ilungo, e geraram a mãe de Jumila. Sem o saberem, são Carlos Macaia e Jumila, parentemente desgastados, todavia consanguíneos.
A gravidez de Jumila foi decorrendo sem problemas, até ao oitavo mês, altura em que começou a sentir fortes dores ocasionais, para as quais os médicos não encontravam oriunda razão de ser. Por seu turno, Carlos derrapava cada vez com mais frequência no sonhado que lhe era tão familiar. Pressentia um recado, intuía que alguém tentava lhe arranhar a mente para brotar sangria de um desacontecimento, porém, despertava sempre no momento em que o animal, balindo, gorgolejava seu entranhado sangue.
Nunca descortinou se o antílope morria, ou o que o caçador teria feito em caso de nova fuga, e demais dúvidas que ora o abalavam. Por que não chegava o sonho ao fim, a algo de mais conclusivo? E ele, um suposto Murongo, porque aparecia Ussa, numa província de Inkuna que nem sequer conhecia? Porque essas transmundâncias de vivências, esse viajar temporal constante? A todas estas questões, buscava, ansioso, uma resposta.
“Estás a sentir-te melhor?”, indagou à esposa uma noite.
“Olha Carlos, ando assustada, não sei o que são estas dores. Aparecem assim tão rápidas, como se um bicho estivesse a comer minhas entranhas, não imaginas o que sofro.
“Sei, meu amor. Vais ver que não é nada, talvez os nervos. Os médicos não te encontram mal nenhum, todos os exames que fizeste dão-te bem e não revelaram nada. Vais ver que essas dores são psicossomáticas, causadas pela ansiedade de teres o primeiro filho”.
“Talvez tenhas razão, até porque são esporádicas, nem sempre aparecem. Há duas semanas que não sinto nada”.
“Estás a ver?”, alegrou-se Carlos Macaia.
A alegria deles era como as ondas do mar em almas de laterais caranguejos sempre vaiventes, que cocegavam seus medos com estas carícias fingidas de alívio.
Sentindo-se mais confortada, Jumila acariciou-lhe a mão e levou-o para o amplo sofá onde ambos se sentaram.
“E os teus sonhos? Não é estranho que despertes sempre na mesma ocasião?”.
“De facto. Pressinto que alguém deseja comunicar-me, mas é só isso. Nada mais que um pressentimento, uma intuição. Deveremos falar com os nossos pais para saber se no passado terá havido algum caçador nas nossas famílias...”
“Caçador? E da altura que referes, do início do século, ou até talvez do fim do século passado?... Quem? Nem os teus bisavós conheces!... E os meus?”, riu Jumila.
“Pelo menos creio que, até aos meus avós paternos sou Murongo, e antes disso também. Por que raios apareço no sonho como um Ussa? Isso seria mais lá para os lados da tua família, que tem ramos sulinos na sua maioria”
Esta questão permaneceu para sempre.
No dia em que morreu, desfalecido de velhice, Carlos Macaia, partiu para o Além correndo pensamentos, não da longa prole que deixava com a sua segunda e desamada mulher, Matilde, mas que em breve iria finalmente saborear o longo desabraço que a vida lhe despropusera, com a filha única do seu primeiro amor, que nascera morta, e à qual Jumila não sobrevivera. Ambas o esperavam alegremente, agora sabendo que o que estava feito estava feito.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

JINDUNGUICES


"Jindunguices", do escritor angolano Fragata de Morais, obteve, no passado mês de Outubro, o prestigiado prémio literário "Sagrada Esperança". O júri premiou Fragata de Morais pela "originalidade, linguagem correcta, leveza de estilo, brevidade, forte sentido de humor, linguagem coloquial e crítica social que reflecte a vida quotidiana de Luanda". Refira-se que o prémio, no valor de 5 mil dólares, é patrocinado pelo Instituto Camões-Centro Cultural Português em Luanda, o Banco Totta & Açores e o Instituto Nacional do Livro e do Disco (INALD).

CARNAVAL

Cristina abriu a porta do quarto e ao entrar, despencou em rodopio por um longo túnel, numa queda infindável. Quando, angustiada, e ainda enfiada nas sensações do sonho despertou, e sentiu um corpo felpudo deitado a seu lado na cama, gritou de terror.
Momentos depois, apaziguada e com a escuridão do quarto fluindo sobre si, recordou a farra de arromba da véspera, a da primeira noite do carnaval, em que ela e o esposo tinham ido mascarados de felpudos coelhos tropicais.
Um sucesso.
Cristina usara um reduzido biquini amarelo sobre sua luzidia pele negra. Nos seios, redondos e atraentes e sobre os quais descendia em franjas, num pretenso rasgo de pudor, a máscara de uma felpuda cabeça de uma coelhinha, uma surpreendente camuflagem de várias tintas fosforescentes.
Ele, menos ousado, acima do calção bicolor cobrira-se com o traje do roedor, artisticamente esburacado à frente e nas costas, para ventilação. Calçava sapatilhas velhas e diferentes.
Regressados a casa às dez das manhã, mais bebidos do que não, Helder nem se dera ao trabalho de retirar o traje de mascarado.
Ainda dormiam, cerca das sete da noite, o ar condicionado ligado a todo o vapor.
Reconfortada e sonolenta, voltou ao sonho onde foi recebida à porta de entrada por um senhor trajado de papel castanho de embrulho, mascarado de convite, e no qual se podia ler:

A Associação Chá de Abacate tem o prazer de convidar Vossa Excelência Helder e Cristina da Costa para as festas do Carnaval, que se celebrarão no Restaurante Mãozinhas no Bolso, na Ilha de Cabo, com início às 23.00 horas.
Venham mascarados e tragam a comida e bebidas, havendo, todavia, serviço de bar e cozinha para quem queira. Só custo 100 dólares por casal, para os três dias.
Reserve já a sua mesa.
Levou-a para uma mesa, onde já se encontrava Helder, em animada conversa com uma senhora mascarada de cebola cor púrpura.
Mal a viu, O marido levantou-se e dançaram o tango que a Banda Viramilha tocava magistralmente.
Sem mais nem quê, Helder foi-lhe atabalhoadamente arrancado dos braços por uma pândega mascarada de mandioca meio descascada, com quem dançou, tropeçando a cada passo.
A campainha da porta soou estrídula e insistente. Helder acordou sobressaltado, com Cristina agarrada a seu braço, sacudindo-o freneticamente. Surpresa, acordou e para ele olhou absorta.
“Mas que sonho estranho!...”, disse por fim.
“Parece que estavam a tocar à porta”, respondeu Helder.
“Que toquem, não me vou levantar”
Olham para o relógio e admiram-se com a tardio da hora.
“Isto é que foi dormir”, espreguiçou-se Cristina.
“Pudera, depois da noitada de ontem. Nem sei se tenho energias para mais logo”.
“Olha, vamos tomar um matabicho-almoço reforçado, preparamo-nos nas calmas e lá para a meia noite arrancamos.”, sugeriu a esposa.
“Mas não vou mascarado de coelho, aquela porcaria é quente que se farta.”
“Mascara-te de pirata. Pões calções, aquela blusa parte-os-cornos às riscas vermelhas e um lenço na cabeça. Eu pinto-te.”
“Boa ideia, e tu? Ontem foste a sensação, para não dizer a tesão, da festa.”
“Hoje vou mascarada da croquete!”
“De croquete?!...”
“Estou a brincar, vou-me mascarar simples, uma mini saia, um tope e uma pequena máscara, aquela com óculos, nariz grande e bigode.”
Riram, fizeram amor, tomaram banho e foram para a cozinha. Comeram, foram para o quarto, fizeram amor e dormiram até à meia-noite.
Após os longos e monótonos anos dos carnavais da vitória, a tendência da pequena burguesia urbana foi recuperar os tempos perdidos na imolação cultural socialista. Deste modo, lançou-se avidamente nas festas privadas de arromba, com a mesma ligeireza de roupas e preconceitos. O que era bom para o Brasil também o era para Angola, ou há telenovela para todos ou a moral que se dane. Todavia, no desfile principal do Carnaval, na Marginal, essa pequena burguesia não ousava copiar o país irmão.
A Marginal continuava a ser para o pé descalço.
Helder e Margarida saíram de casa por volta da primeira hora da madrugada, recuperados e prontos para a segunda noitada.
Procuraram por uns amigos e compartilharam a mesa. Viram chegar Milocas, mascarada de motocicleta, e o Fausto, mascarado de grávida, conhecido nos círculos da fofoca pelo Pila de Elefante, sendo desnecessárias mais explicações.
“Olhem, pensei que viria mascarado de bomba de gasolina.”, disse Margarida, indicando com os olhos, “até condiria com ela.”
“Bomba de gasolina?”
“Se é verdade o que dizem, bastava-lhe por a mangueira ao ombro e voilá!...”
“Oh não, Margarida! Ainda é muito cedo para esse tipo de laracha...”, disse Helder, entre os risos dos outros.
O recinto ia-se enchendo e conforme as amizades, assim eram juntadas as mesas.
Numa delas, encontravam-se o Choco, a Mandioca, que mantinham um caso secreto só para eles, a Cebola, o Jindungo, pronto reunidos pelo par Sal e Óleo de Palma, num arrojado arranjo mascarado.
Por fim chegou sozinha a que geralmente era a vida da festa, Água, mascarada pura e cristalina.
Por volta das quatro da manhã, a famosa Banda Viramilha não tinha acordes a medir. Os foliões esfalfaram-se primeiramente com as kizombas e afins, depois com os zuks para desengonçar, e após uns trocados que envolveram passo dobles, merengues, tchá-tchá-tchás, voltaram aos agitados ritmos africanos, rendendo-se, agora, serenos, aos melódicos anos sessenta.
A bebida fluía generosa, e os olhares cúmplices dos casos clandestinos e os dos em busca de novas hostilidades, mordiscavam o espaço de ponta a ponta.
Pelas diversas mesas, numerosas senhoras encalhadas, zurziam suas viperinas línguas em recompensados ajustes de contas.
À Lucinda, disfarçada apropriadamente de galinha, só lhe faltava cacarejar. Quando deu pelo Tonecas em compenetrado ziguezague, a vir em sua direcção, levantou-se lesta e afogueada, salvara a honra. Este, quem nem a vira, e que tirara o azimute ao bar, para lá continuou imperturbado.
Na mesa maior, do Choco e da Mandioca algo se passava, as vozes estavam alteradas, e apreendia-se que não só pela bebida.
“Se tornas a fazer isso, rebento-te as fussas!...”, desafiava Choco, descontrolado.
“Mas o que fiz?”, retorquiu Jindungo, picante.
“Vi muito bem, estás aí por debaixo da mesa a empernar com a Mandioca, só que desta vez enganastes-te e a perna foi a minha.”
“Como ousas sugerir uma coisa dessas?”, sentiu-se Mandioca ofendida, não era uma qualquer.
“Tem razão, tem razão, não há gente incivilizada nesta mesa!”, disse Cebola, para acirrar.
“Calma, haja calma, estamos aqui para brincar e dançar.”, tentou apaziguar Sal.
“E quem falou contigo, cara de amargura?”, logo ripostou Choco.
“Não admito que fales assim com a minha mulher!”, gritou Óleo de Palma.
“Tens a certeza que ela é tua mulher?”, contra atacou Mandioca, sentindo que valera a pena vir.
Meia hora depois, como a discussão continuava, cada vez mais acalorada, a Banda Viramilha parou de tocar por se sentir desrespeitada.
As atenções convergiram então para a mesa dos desavindos, agora que, com público, passaram a vias de facto.
Choco foi fisicamente atacado por Jindungo e Sal, que sem mais lhe retiraram a dikanza e o saco de tinta.
Os associados da Associação Chá de Abacate e os penetras, bateram palmas, afinal o floor show começara. Era com espectáculos desta magnitude que se arrecadavam as cotas e se ganhava renome nacional.
Água, que há muito fervia, deu-lhe uma cozedura como manda a lei, enquanto Mandioca, cortada de dor aos pedaços, a ele se aconchegou que, viril e assumido, a abraçou em seus tentáculos. Cebola ainda tentou interceder mas igualmente sucumbiu, em rodelas de lágrimas.
O público não sabia o que fazer. Uns, solicitavam à Banda Viramilha que entoasse o hino nacional, talvez assim se conseguisse compostura, pois a refrega parecia querer generalizar-se, mas logo se gerou maior confusão porque a maioria advogava que o hino não era suficientemente representativo.
Por fim, tão engalfinhados se encontravam, que os mirones só viam porções de Mandioca sobrepostas às de Choco e de Cebola. Óleo de Palma, borrifado por Jindungo e por Sal, cobria-os por cima, numa zanga que parecia, agora, cozinhar a fogo brando. Já sem forças para lutar mais, Água atirou-se a eles como se para dar molho à briga e tudo apaziguar.
E assim acabou aquela segunda noite de Carnaval, com a Banda Viramilha a tocar o hino nacional e os associados da Associação Chá de Abacate a gritarem felizes como nunca:
“Mas que grande kibeba!..

Nota: Kibeba é um prato feito de choco. mandioca, óleo de palma,etc.
Jindungu (plural de ndungu) é que no Brasil se chama de pimenta, em Moçambique de piri-piri, no México chili,etc.

SUMAÚMA (POESIA)


Sobre a obra, Maria Nazareth Fonseca, Professora Doutora em Línguas Africanas, considerou o seguinte: «Os poemas são construídos com uma intenção de investir no nível da figuração. Por isto é interessante observar como se elaboram as relações entre os títulos dos poemas e os versos que o compõem: por vezes há uma aproximação bem nítida entre a intenção do título e os sentidos produzidos pelos versos; outras vezes, a relação entre o título e os sentidos dos versos se faz pela vertente figurativa na qual as palavras são tomadas pelo poeta para distenderem sentidos previstos (Cf. Poema «Elefantíase», p. 16). A forma privilegiada pelo poeta busca a ligeireza, a captação do instantâneo, a mobilidade dos versos curtos e dos efeitos obtidos pela variedade métrica e rítmica.

FLORES

Belzebu
já foi flor

antes
da angústia
cerrada
da noite
esculpiu
calafrios
e temores
a um Deus
inatingível


OPTIMISMO

Não
se procure o optimismo
no passo manco do coxo
na mão do falso pianista
no tique sem toque
da bengala do cego

Sim
No espaço mulher flor
entre dois poemas

CONTOS

Lembram
os bravos
das savanas
as águas
acuadas
dos rios

ao se ler
na aurora
das estrelas
soldados
camuflados
de paz

A PRECE DOS MAL AMADOS-CAPÍTULO CINCO

Num romance pouco comum pelo seu tema - as dificuldades dos Mestiços tanto em Angola, fora das cidades, como em Portugal, um antigo embaixador do MPLA conta-nos as atribulações da sua heroína, que teve de deixar Angola juntamente com o pai português, sob a pressão do avô, chefe tradicional, que ergueu a cabeça com a independência. A nossa ideia de uma Angola paradisíaca para os mestiços é, segundo Fragata de Morais, um enorme logro, e voltamos a saltar para a guerra.

René Pélissier Análise Social, vol. XLI (179), 2006

CAPÍTULO CINCO

A REDONDEZA DA VIDA

Ua-mu-mona mu luanha
u-mu-ijiia ué m’suku.
(Uanhenga Xitu)

O salão do hotel estava decorado segundo os preceitos e hábitos dos casamentos luandenses. Ao fundo, para quem entrasse, uma mesa central, forrada de cetim branco e plena de folhados laterais dourados que tombavam em cascata alvissareiras até ao chão, e atrás da qual, revelando que a felicidade nupcial se distingue da felicidade dos convivas e parentes, sobressaiam dez cadeiras de encosto alto, igualmente forradas com a cor alva do momento. No lado esquerdo, e a conveniente distância, outra mesa, esta redonda, albergava um imponente bolo de noiva a quatro níveis, encimado pelo tradicional casal de nubentes, ambos loiros e brancos não obstante os noivos serem negros. Sobre os folhados alvos que lembravam o ondular de qual mar sereno, inclinavam-se, talvez exaustas da longa espera, sete garrafas de champanhe, dentro dos respectivos baldes revestidos de cetim azul e atolados de gelo fino, rodeados por uma floresta de taças alongadas. As mesas para os convidados, igualmente de cadeiras forradas, de azul celeste, distribuíam-se aleatoriamente pelo salão, no centro do qual fora reservado um largo círculo para a pista de dança. Para qualquer estranho aos hábitos e costumes nacionais, seria difícil afirmar que se vivia num país onde a fome e a desgraça acampavam no quotidiano da vida, tanta e diversa era a comida a abarrotar duas extensas mesas laterais, em alas contrárias, que se estendiam quase por inteiro ao longo do salão. No lado oposto à mesa principal, e em lugares estratégicos devidamente estudados, três bares repletos de tudo que se pudesse desejar consumir em líquidos.
Muitos dos convidados, gente importante e embebida de si mesma, as senhoras olhando-se de revés em enciumadas congeminações não exteriorizadas, caso contrário correr-se-ia o risco de cenas antigas de quintalão, já se encontravam no local aguardando a chegada dos noivos, idos pavonear a muita abastança e o pouco pudor pela Ilha do Cabo, num vasto e ruidoso cortejo de buzinadas cadenciadas e intermitentes ligados, com um operador de vídeo sentado na janela da frente do primeiro carro a filmar não se sabe bem o quê, sendo a iluminação pública precária aqui, inexistente ali. Por fim o cortejo chegou e, pouco após, os sons de uma das mais famosas valsas de Johann Strauss, o Danúbio Azul, ecoaram pelo recinto, deixando os convidados perplexos pois esperavam a tradicional marcha nupcial de Felix Mendelsshon. Numa imagem enublada, aparecem na penumbra do hall de entrada os noivos ladeados de um cortejo de jovens trajados, eles, de jaquetas azul-escuro e perucas brancas amarradas atrás com o laço de cetim. Elas, igualmente de perucas de caracóis brancos que tombavam em cacho pelos ombros destapados, trajavam longos vestidos azulclaro de decotes ousados a sugerirem seios de ilusória dureza, anichados inconformadamente em sutiãs demasiado pequenos. Todos de luvas brancas, numa vistosa e comovente reprodução da corte austríaca do século XIX. Os nubentes pararam à entrada, enquanto as alas dos bailarinos da invisível corte europeia evoluíram, no salão, em passos estudados e ensaiados ao detalhe. Pé masculino calçado em botim envernizado e pontiagudo para a frente, pé feminino calçado em sapatinho dourado para atrás. Reviravolta para a direita, mão esquerda atrás das costas na majestosa vénia à dama que, modesta, coloca o seu pézinho atrás para vergar o torso ligeiramente em gracioso sorriso de agradecimento e revelar aos embasbacados maridos, namorados, noivos e demais machos, os portentosos atributos peitorais, promessas vagas de um inacessível jardim das delícias.
Mal saíra o Strauss filho, entra vibrante o Mendelssohn, e o casal, finalmente, entra em triunfo, em passo marcial cadenciado, para a mesa que lhe estava reservada, através de uma arcada também forrada de cetim branco e plena de flores e folhados azuis, a noiva visivelmente grávida. Ele, impecável no seu fraque cinzento, e de chapéu alto, parecia o mais nobre dos aristocratas ingleses, a enorme barriga confirmando a opulência e a acumulaçãode gases certamente. Os convidados, de pé, aplaudiam delicadamente os aplausos que o civilizado século XIX exigia e, comedidos, foram-se sentando aos poucos, entreolhando-se em silencio, sem desejarem revelar ostensivamente o que lhes ia na alma. Muitos, a maior parte homens, dirigiram-se para os bares. Os flashes dos fotógrafos não descansavam, bem como os operadores de vídeo, registando tudo que fosse considerado alvo de registo, pois os custos não tinham sido exigência.
Uma música suave e romântica, brasileira, deu aso a um silêncio natural enquanto os embevecidos noivos se levantaram e, abraçados em terno amplexo, para folgança das mexeriqueiras, abriram o salão.
- Notaste como a nossa afilhada está um sonho? – Perguntou Lucinda a Tadeu, sentada ao lado direito da noiva.
- Nos casamentos estamos todos um sonho. – Respondeu, meio cansado.
- Não sejas irónico, é que está mesmo linda.
Tadeu olhou para a esposa e sorriu. Levantou-se, ofereceu-lhe o braço e, aos acordes da nova melodia, dirigiram-se para o salão para que os noivos, acompanhados pelos padrinhos, encerrassem a parte cerimonial com o corte do bolo de casamento.
Viram Nazamba a entrar, e Tadeu fez-lhe um pequeno aceno com a cabeça, indicando-lhe a mesa ao lado da deles e na qual já se encontrava o casal Silveira. Correspondeu ao aceno e dirigiu-se para lá. Silveira, ao vê-la aproximar-se levantou-se e estendeu-lhe a mão.
- Como está a nossa amiga?
Nazamba cumprimentou-o e dirigiu-se a Madalena Silveira a quem deu dois beijos, sentando-se na cadeira ao lado.
- Bem obrigado, e como estão vocês?
- Como vê, vamos fazendo por isso.
- Está muito linda, Malena. – Disse Nazamba, com sinceridade.
- Você também, já estou a ver que o próximo noivado será o seu.
- Embora já tenha pensado nisso, não estou com pressa nenhuma, aliás nem candidato existe.
- Será o que menos lhe deve faltar. – Disse Silveira, galante.
A dança acabou e o casal Nascimento dirigiu-se a eles, Lucinda à frente, sorridente.
- Só agora, o que se passou? – Disse, enquanto se beijavam.
- Nada de especial, fui a casa mudar a roupa e refrescar-me um pouco. Acabei por levar mais tempo do que pensava. – Respondeu Nazamba.
- Temos que ficar na mesa principal como sabe, mas convidámos um bom amigo nosso para lhe fazer companhia e ter alguém com quem dançar. – Disse Tadeu
- Obrigado, mas não precisavam de se ter incomodado.
- Olha, ali vem ele. – Indicou Lucinda, fazendo-lhe um aceno.
Nazamba viu um senhor alto, elegante e de boa aparência, de andar firme e confiante. Interiormente sorriu, estranhamente satisfeita. Desde a triste experiência com Malaquias o Cigano, jamais se sentira atraída por outro homem e o facto de ter tido uma reacção positiva e inesperada, causou-lhe uma emoção que não conseguiu definir, todavia agradável. Qualquer coisa renascia em si, teve o pressentimento de que iria sacudir a poeira de um qualquer armário, onde guardara a sete chaves uma qualquer desventura que tinha que ser atirada para longe e esquecida. Com um ligeiro olhar de gratidão, que passou despercebido a Lucinda e a Tadeu, aguardou pelas apresentações.
- Olá Nataniel, como estás? – Perguntou Lucinda, enquanto recebia os tradicionais dois beijos nas faces.
- Bem obrigado, e vocês?
- Então, meu caro? – Indagou Tadeu, estendendo-lhe a mão.
Nataniel cumprimentou os Silveira, Mário e Madalena, e baixou a cabeça para Nazamba.
- Nataniel, esta é a Nazamba, nossa amiga regressada de Portugal não há muito. – Apresentou Lucinda.
- Muito prazer, como está Nazamba? – Disse meio curioso e enquanto lhe estendia a mão.
- O prazer é todo meu, Nataniel. – Acanhada, baixou os olhos.
- Bom, já estão apresentados, temos que ir para a mesa dos padrinhos. – Disse Tadeu, agarrando o braço da esposa e puxando-a suavemente.
Os dois olharam-se e sorriram o sorriso do acanhamento natural de quem se vê confrontado com uma apresentação não fortuita, e largados abruptamente por quem os apresentara. Ambos sentiram-se perdidos, mas logo Nataniel segurou a cadeira de modo a permitir que Nazamba se sentasse e sorriu para os Silveira que, com um gesto meio abstracto de mão, indicaram a mesa das comidas e abalaram em direcção às mesmas. Haviam notado a constrangimento dos dois, e uns minutos a sós talvez ajudasse a quebrar a ligeira crispação.
- Lucinda disse-me que é engenheira. – Começou Nataniel, uns momentos após ter-se, por sua vez, sentado
- Não, sou formada em direito comercial, e você?
- Sou médico e oficial superior do exército.
- Que bom, é uma profissão muito nobre, salvar vidas e cuidar dos outros.
- Mas muito desgastante, esvazia-nos de emoções, não imagina...
- De facto... Deve ser algo difícil, sobretudo na sua esfera, a militar.
Por um momento olharam-se, como que perdidos, cada um sentindo o peso dos silêncios.
- Olhe, se começarmos a falar da vida militar, esta festa vai ser a mais deprimente...
- Só posso estar de acordo consigo. - Riu Nazamba. – Não tem fome?
- Sim, comeria qualquer coisa. O que quer que lhe traga? – Perguntou Nataniel, solícito.
- De modo algum, vamos os dois. – Respondeu, levantando-se.
Lesto, soergue-se e puxou a cadeira quando Nazamba se levanta. O gesto pareceu natural e esta sorriu-lhe.
- Onde é que se formou? – Perguntou-lhe.
- Em Cuba, um país que acho maravilhoso, conhece?
- Não, ouvi falar muito de Havana, creio que era ou é uma cidade maravilhosa.
- Não tenha a mínima dúvida, e os cubanos são um povo admirável.
Chegaram à mesa dos pratos quentes e quedaram-se, mudos, a olhar para a vasta fila dos mais variados quitutes, nacionais e de fora. Nataniel passou-lhe um prato e retirou um outro para si, dando-lhe a primazia.
- E a Nazamba onde é que se formou?
- Em Portugal, o meu pai foi para lá viver em 1975, aquela tragédia angolana que tão bem conhece. Mas olhe que linda mesa, há de tudo... – Falou rápido e para desviar o assunto.
- É o espírito dos nativos, festa sem mesa recheada não é nacional.
Ambos riram e Nataniel fez um gesto para que ela se servisse.
- Vamos começar por onde? – Perguntou.
- Vou começar pela lagosta – disse, olhando para a mesa dos frios - mais logo
comerei qualquer coisa quente.
Servidos, voltaram à mesa onde se juntaram aos Silvério. O salão virara um corre- corre de gente a servir-se, e de crianças em brincadeiras e gritos que atrapalhavam os adultos.
- Nestas festas as crianças deveriam ficar em casa. – Disse Silvério.
- Esta lagosta parece estar deliciosa. - Retorquiu Nazamba, fingindo não ouvir o comentário, que desaprovava.
- Às vezes é difícil deixar as crianças em casa, sempre estão melhor com os pais. – Disse Nataniel. Depois voltou-se para Nazamba, – De facto a lagosta está com um óptimo aspecto, bom apetite.
- Ainda não me habituei por completo a ver tanta comida de uma só vez. Bem me diziam lá em Portugal que aqui não havia fome nenhuma, bastava ir a uma festa para o constatar.
- São as disparidades desta nossa sociedade, uns com muito, a maioria com quase nada, mas até esses tentam ter uma mesa farta, faz parte da nossa idiossincrasia.
- Será? Olhe que não creio.
Madalena Silvério começou a sentir-se incomodada com o rumo da conversa e, mostrando o seu despreparo social, bocejou ostensivamente.
Mas festa é para se falar de política?
- Sabe quem fez o vestido da noiva? – Perguntou a Nazamba.
Apanhada de surpresa, Nazamba não soube o que responder.
Mas que pergunta mais disparatada!
- Perdão?!..
- Se sabe quem fez o vestido da noiva, está uma maravilha! – Insistiu Madalena
- Não, ainda não conheço os estilistas, estou de volta há relativamente pouco tempo. – Retorquiu Nazamba com um sorriso.
- Estlistas?, qual estlistas!... Costureira, e olhe que é muito boa!
- Não, também não sei quem possa ter sido a costureira. – Consentiu Nazamba.
- Um vestido daqueles deve ter sido uma nota cara.
Mário Silvério olhou para a esposa num embaraço mal disfarçado. Tossiu para disfarçar. Com nervosismo apenas escondido, quase entornou o copo de vinho, ficando a toalha respigada de púrpura.
- Entornar vinho tinto é felicidade. – Disse Nazamba, para desanuviar a tensão.
- É... é o que se diz. – Fez coro, Nataniel.
- Ainda bem para os noivos, que sejam pois felizes! - Disse Madalena, expansiva.
- E se fossemos dançar, a lagosta pode esperar um pouco, não acha? – Sugeriu Nataniel, olhando para Nazamba.
- Óptima ideia, com vossa licença. - Disse, levantando-se de imediato.
Com o afastamento da parelha, Mário Silvério tirou o guardanapo que colocara no colarinho da camisa, e com um gesto de desagrado ostensivo, colocou-o sobre a mesa.
- Mas quando é que aprendes a comportar-te?
- Então festa é para estar a falar-se de política? – Retorquiu a esposa, amuada.
- Política? Não viste que não se conhecem e aquilo é só conversa para encher?
- Para mim é política. Fome... uns que têm tudo, outros que não têm nada, isso é política ou não? Até parece que nos estavam a atirar indirectas...
- E nós temos alguma coisa a ver com a fome de uns e a fartura de outros? Por favor come e não estragues a festa. E aprende de uma vez por todas que são os estilistas que desenham as roupas e as costureiras que as fazem, vê se aprendes em vez de me envergonhares.
- Pois agora quando eu quiser um vestido irei a um estlista. Acabou-se a D. Firmina a costureira, já que queres pagar, paga.
Mas porque será que aguento tudo isto, meu Deus? Se não fossem os filhos já me tinha separado deste atraso de vida há muito!
- Vai ver quem tu desejares, não me aborreças. E a palavra é estilista e não estlista, devias é ir para a escola.
Quando me conheceste não te importaste, agora que já és senhor toca de apontar o dedo.
Madalena achou bem dar por finda a argumentação, remetendo-se ao prato de jinginga, intimidade muito menos complicada e de seu pleno gosto. As conversas do marido já as conhecia há treze anos.
Vai lá te lixar mazé, quem és tu para me corrigir? Até parece que a fortuna que tens veio de alguma herança! Se não fossem as crianças, havias de ver se já não te tinha mandado à merda há muito! Estilista ou estlista, não é a mesma coisa?
- E espero que mantenhas a boca calada quando eles regressarem. – Sibilou Mário.
- Não te preocupes, põe é uma garrafa de uisqui na mesa e vai dançar com uma qualquer. Gente fina... Cambada de fingidos, quem não lhes conhece!...
- Já não chega o vexame, ainda queres embebedar-te outra vez publicamente?
- Podes resolver esse problema facilmente, manda-me fazer uma cura de dsentuxicação em Londres!...
- Olha que não seria uma má ideia, e a palavra é desintoxicação, não dsentuxicação.
- Se concordares, não tocarei aqui em mais uma bebida a não ser gasosa.
Mário Silvério viu a parelha encaminhar-se para a mesa e voltou-se rápido para a mulher, até lhe seria de agrado tê-la em Londres por uns seis ou sete meses, quem sabe, com sorte até desejasse por lá ficar, ou em Portugal, na África do Sul não, estava muito próximo.
- Está bem, concordo. Vais a Londres por uns tempos, agora mantém-te calada o mais que puderes.
- Melhor ainda, daqui a um pouco vou desenvolver uma xaqueca e vamos para casa, se quiseres podes voltar e diverte-te.
- Enxaqueca, enxaqueca, por amor de Deus, até parece que fazes de propósito!
Nazamba e Daniel regressados a mesa, sentaram-se, sorrindo para os Silvério.
- Pronto, já demos o pontapé de saída. - Disse, Nataniel a Mário.
- Nós vamos fazê-lo daqui a um pouco, assim que a Malena acabar de comer.
- Olha filho, não contes com isso porque está a atacar-me uma daquelas xa... enxaquecas que bem conheces. – Endereçando-se a Nazamba, – Sofro deste mal e fico completamente arrasada, já percorri tudo que era médico em Portugal e Espanha, mas nada, só mesmo deitada. Levas-me a casa? – Pergunta ao marido.
- De facto assim é, fica atordoada a coitada. Queres ir já ou esperas para ver se é daquelas menos violentas?
- Não, leva-me já. Vocês vão perdoar-me por ter que vos dexar.
- Por amor de Deus, sou médico e sei o que isso é, vá, descanse e melhore pronto.
- É uma pena vê-la partir, desejo que melhore rapidamente. – Disse Nazamba.
- Queiram pois desculpar-nos, vamos, filha? – Perguntou Mário, erguendo-se.
Após a saída dos Silvério, sentiram-se mais à vontade, sem aqueles olhares de soslaio que os tornava receosos da frase que brotasse, simples ou inócua, e que pertencia ao mundo do tactear mútuo das revelações sobre cada. Por longos momentos comeram calados, propositadamente calados, como se o silêncio fosse a palavra que fluía no aconchego de uma sensação inexplicável, presente.
- É estranho, - disse Nataniel, por fim – tive o intuito que a minha vida irá mudar, o que me preencheu de um desassossego de espírito.
Nazamba olhou-o, corando. Para disfarçar, pigarreou e levou o guardanapo aos lábios, numa leve carícia.
- Isso vem a propósito de quê, não estou a entendê-lo?
- Talvez nem eu me entenda a mim mesmo, mas conhecê-la, estar consigo, produziu este sentimento.
- Estará por essa razão a rejeitar-me, é isso?
Rejeitá-la? Meu Deus, sinto-me como um adolescente!...
- Muito pelo contrario, é uma aceitação que me intimida...
- Está então a fazer-me uma declaração de amor! – Riu Nazamba, decidida a ver até onde ele iria.
- À primeira vista? – Retorquiu, jocoso, Daniel.
- É o que me parece… mas continue lá.
- Veja, acabamos de ser apresentados, e sem um mais nem quê aparente, gerou-se em mim uma espécie de agitação de emoções, até contraditórias...
- Creio que a isso se chama empatia, como médico deve conhecer o termo melhor do que eu. Não sei porque estranha.
- Não, não é que estranhe, aliás não existe razão alguma para que não simpatize consigo, ou que essa empatia se tenha desenvolvido. O que me preocupa, é eu sentir uma emoção sobre algo que ainda não aconteceu.
- Está-me a dizer que acredita em premonição? É vidente?
Nataniel riu, nunca se imaginara vidente. Acreditava que todos possuíam o chamado sexto sentido, mesmo quando tantos outros existem dentro do ser humano e aos quais não se liga ou percebe, e nem se lhes dá hierarquia. Todavia, recusava que alguém pudesse objectivamente ver o futuro, nem Deus o conseguira, de outro modo não teria concebido o mundo como o imaginou e o criou.
- Acha que o Criador era capaz de imaginar? – Perguntou, olhando-a nos olhos.
- Perdão?...
- Perguntou-me se era vidente, quando ao próprio Criador lhe falhou essa capacidade...
- Vejo que não liga muito à religião...
- Para lhe ser franco, não, não ligo.
Receoso de que Nazamba se tivesse ofendido, nem sabia que religião poderia professar, quis mudar de assunto. Porém, antes de conseguir falar, Nazamba, que pressentira o embaraço, sorriu para o tranquilizar.
- Eu também não ligo muito à religião, acredito que qualquer coisa existe, agora o que é, não sei e nem me preocupo muito. Talvez por me considerar ainda jovem. – Disse, Nazamba.
- As minhas dúvidas não têm a ver com a juventude, mas sim com outras questões. Por exemplo, não vejo bem como pôde Deus criar o Universo, a vida, em apenas sete dias quando hoje, para se listar ou catalogar todas as espécies conhecidas levar-se-ia pelo menos vinte e cinco anos.
- Mas por isso é que Ele é Deus...
- Correndo o risco de a desapontar, não acho que essa justificação elimine as questões que muita gente honestamente se coloca. Diga-me uma coisa Nazamba, quando Deus criou o Universo, que língua é que Ele utilizou para dar nome ao que gerava? Está ciente das implicações, das maquinações, só nesta pergunta? E mais, já que a noção do tempo era abstracta, quantas horas ou anos teria o dia, que até ao terceiro, era trevas?
- Como conseguiu estudar em Cuba, com tantos questionamentos existenciais dentro de si?
- Como assim?
- Não é um regime comunista, permitiam-lhe essas elucubrações?
- Se analisar com cuidado, verá que estas elucubrações, como lhes chama, só serviriam os objectivos do regime.
- Não sei, não sei…
- Os estudos e a apanha dos cítricos não nos davam oportunidade de elucubrar, creia-me.
- Apanha de cítricos? – Perguntou, admirada.
- Sim, enquanto estive na Ilha da Juventude, tive, aliás como todos os outros, de apanhar cítricos. Era a nossa contribuição para com a revolução, uma maneira de dizermos obrigado a Fidel.
- É uma pessoa intrigante. Conheceu-o?
- Pessoalmente, não. Vi-o em comícios várias vezes e nas reuniões que os estudantes tiveram com o nosso presidente quando visitou Cuba.
- Mas afinal já estamos a fugir ao assunto, o que, no fundo, pretendia dizer-me?
Nataniel olhou para ela, suspirou e abriu as mãos em leque, encolhendo os ombros, numa pequena careta de incerteza. Saberia ele próprio o que, no fundo, lhe teria a dizer, quando até poderia estar no meio ou logo ao de cima? Por certo que as alegrias e a felicidade, por serem leves e passageiras, encontrar-se-iam à flor da superfície dum mar de tranquilidade e pétalas perfumadas. Quanto ao resto, teria peso e força suficientes para mergulhar no espesso plasma dos recônditos da mente, e nadar até ao fundo em braçadas fortes que o deixariam exaurido? Arrimar ao lodo da vida, sedimentado durante anos e a chafurdar, rebuscar o que lhe fora solicitado, a pretensão de afirmar uma banalidade abstracta, um lugar comum déjà vu, talvez até um desejo sórdido, levadas as intenções em consideração?
- O que lhe pretendo dizer? – Viu-se a perguntar, perplexo.
- Exacto, sinto-o preocupado em fazer-me sentir que, se tivéssemos sido predestinados um para o outro, de sua parte quiçá não devará envolver-se mais e para além desta festa.
- Não me interprete dessa maneira, Nazamba, talvez tenha sido cedo demais para exteriorizar o meu devaneio.
- Não diga isso, não considero um devaneio o que me disse, muito pelo contrário, gostei de o ouvir e ver que é uma pessoa que se abre e fala de si, e sobretudo não do que tem, mas do que é.
- Deixa-me sem jeito com tanta lisonja. - Respondeu Nataniel, meio ofegante.
- Estou-lhe a transmitir o que sinto, não pretendo lisonjeá-lo.
- E se fossemos dançar? – Cortou, para fugir ao que sentia.
Sem falarem, apenas tacteando a presença um do outro, dançaram umas tantas músicas seguidas, abraçados, ela com a cabeça reclinada no ombro dele, e observados atentamente por Lucinda.
- É melhor sentarmo-nos, a Lucinda já está ali de boca aberta. – Disse Nazamba a sorrir, no fim da terceira música.
- Vamos… efectivamente há que quebrar esta magia.
- Nem se preocupe com isso, durma uma noite feliz e amanhã a realidade terá feito ninho em nós.
Sentaram-se, Nazamba notou que Nataniel buscava as palavras e aguardou.
- Gostaria de continuar a vê-la.
- Vou deixar-lhe o meu endereço e telefones, e poderemos sair quando for possível.
- Já falámos tanto e nem sei nada de si, onde nasceu, quem são os seus pais, por exemplo.
- Mas logo agora?
- E porque não? Quanto a mim, nasci no centro sul de Angola, em Ualali...
Nazamba não o deixou acabar, perplexa, deu um pulo na cadeira e quase deixava tombar as bebidas. Ofegante, olhou profundamente para ele, atabalhoada.
- Nasceu em Ualali, disse isso?
- Sim, o que aconteceu, porque está tão tensa e preocupada?
- Não posso crer…
- Não pode crer em quê?...
- Não posso crer, porque também eu nasci em Ualali...
Foi a vez de Nataniel se surpreender. Agarrou no copo quase vazio do uisqui e encheu-o, bebendo sofregamente.
- Não pode ser, os únicos mestiços em Ualali eram meus parentes...
- Seus parentes, como assim?
- Eram os filhos de um comerciante, nem me lembro o nome dele, marido de uma filha do soba grande...
- Marcelo, o meu pai, era o comerciante casado com Balanta, minha mãe e o soba grande era Juba de Leão, meu avô.
Nataniel levantou-se e ficou de mãos no ar, como que esperando por palavras que teimavam em não sair. Deu conta da figura que fazia e sentou-se. Tirou um lenço do bolso das calças e limpou o suor que lhe escorria profusamente pela testa. Nenhum deles conseguia interiorizar a revelação inesperada e tão inverosímil.
- Juba de Leão também é meu avô. Quem disse que era a sua mãe?
- Balanta, a minha mãe, se estiver viva, é Balanta.
- Balanta, mal me recordo... saí há muito e nunca mais regressei por causa da guerra.
- É natural… - disse, mais tranquila. – E foram acontecimentos melhor esquecidos, pelo menos para mim.
O silêncio envolveu-os novamente num mutismo melancólico, a magia transformada em surpresa, descrédito e incerteza. Fora como se Deus lhes quisesse mostrar que no seio da noção de imperfeição e da lógica aparente, sempre morara a Sua razão e a Sua mão. Que a vida nada mais é do que um jogo com cordelinhos puxados por mãos invisíveis, sempre numa ordem natural própria.
- Nazamba... Quando nos apresentaram o nome quis-me parecer familiar, mas juro, nunca o teria conotado, nem sequer me lembrava... Não crescemos juntos... Vocês viviam na povoação comercial... O que aconteceu?
Não o ouviu, ou melhor, ouviu-o com a percepção de quem vê uma imagem desfocada. As palavras chegaram-lhe em ecos sinuosos e fanhosos, que se desintegravam nos penedos da mente. Concentrou-se, limpou duas lágrimas teimosas e, de voz meio desembargada, respondeu-lhe, ciente de que tinha que vencer as emoções imediatas desta inesperada revelação.
- Saímos em 1975 quando o nosso avô ordenou que todos os mulatos tinham que ir por serem filhos da cobra.
- O quê?... Nazamba....
Quase teve vontade de o castigar, deixar a afirmação esfarelar-se na sua mente e perplexidade, até ele sentir a culpa que o avô comum deveria ter sentido. Dominou a peçonha que pretendia apoderar-se de si, ele não era culpado de nada. Olhou-o e suspirou fundo, como quem vai encetar uma longa e penosa caminhada, quantas vezes percorrida com outras gentes, com outros argumentos e quase sempre com os mesmos fins, os da busca de harmonia interior.
- Fomos para Portugal, o meu irmão desapareceu, o Tomás. Não sei onde anda, mas não desejo falar disso agora. Formei-me, o meu pai morreu de desgosto e aqui estou. Poderemos falar noutra altura? Estou meia tonta.
Desculpe, Nazamba, fui tudo tão rápido e surpreendente. De facto haverá muito tempo para nos entendermos.
- Está bem, Nataniel, mas agradecia que me levasse até ao carro, não mais consigo ficar aqui.
- E a Lucinda e o Tadeu?...
- Vou ter com ela e dizer-lhes que me estou a sentir muito indisposta, talvez os rissois de camarão...
- Vá, eu acompanho-a depois até casa. Não ficaria tranquilo deixá-la ir sozinha.
- Agradeço-lhe.
Levantou-se e foi ter com Lucinda. Nataniel observou-as, sentia-se despido de emoções, não conseguia acreditar. Se de facto o Ser Supremo existisse, tinha a mania de escrever por linhas tortas. Como um autómato, seguiu Nazamba no seu carro, até chegarem a casa dela. Desceu e despediram-se num aperto de mão duvidoso, com palavras que nem morada fizeram. E quando, no dia seguinte, lhe telefonou para saber como passara a noite, a voz dela soava rouca e cansada, talvez tivesse dormido pouco.
- Olá Nataniel, como está? É gentil de sua parte estar a incomodar-se.
- De modo algum, não poderia deixar de saber como vai a sua disposição.
- Como deverá imaginar, dormi pouco. É o meu primeiro contacto com alguém da família desde que daqui saímos. Foi um verdadeiro choque.
- Imagino que assim seja. Mas olhe Nazamba, não deixe que isso a perturbe. Considero que até foi bom.
Pensou ouvir um ligeiro riso, talvez de escárnio. Esperou, em ansiedade.
- Vocês homens vêm os problemas por outra perspectiva, às vezes acho que mais realista. Nós agarrámo-nos muito às emoções...
- De facto, ainda bem que assim pensa, todavia não lhe telefonei para retê-la ao aparelho. Seria deselegante de minha parte convidá-la logo à noite para um jantar?
- Não sei, talvez não seja boa companhia.
- Não diga isso, posso apanhá-la por volta das oito?
- Está bem, às oito será, mas está desde já avisado.
- Estarei preparado, não se preocupe. Pois então, até logo Nazamba.
Às oito em ponto Daniel subiu os dois andares que conduziam ao apartamento de Nazamba e fez soar a campainha da porta. Momentos depois, Nazamba abriu para que ele entrasse.
- Boa noite, está ravissante. – Cumprimentou-a, com um beijo em cada rosto.
- Boa noite e obrigada. Entre, sente-se ali e dê-me um só instante, como sabe levamos sempre muito mais a prepararmo-nos. As bebidas estão naquela cómoda, sirva-se, esteja à vontade, não demoro mais do que necessário.
- Por mim, esteja à vontade, o que for necessário.
Nazamba saiu da sala comum e dirigiu-se para o quarto de dormir. Daniel serviu um uisqui com soda e sentou-se num dos cadeirões, com o copo na mão, olhando à sua volta, perscrutando o apartamento, evidentemente feminino na decoração e aparência. Ele teria escolhido outro tipo de cortinados e utilizaria muito mais o artesanato em pedra e as máscaras, que colocaria nas paredes a realçá-las, em vez das reproduções existentes de pintura chinesa, emolduradas com vidro. Gostou dos cadeirões e dos tapetes, bem como a simplicidade do estilo modernista da mobília da sala de jantar. Levantou-se e ligou o televisor para o passar do tempo. Sentiu-se feliz pelo estado de espírito da prima, achara-a mais relaxada e tranquila.
- Aqui estou, demorei muito? – ouviu Nazamba a dizer, um pouco depois
Levantou-se e olhou para ela em admiração. De facto era uma mulher linda, pelo menos assim o achou, e que sabia dar realce a essa beleza. Contemplou-a, sem saber o que dizer.
- Ficou paralisado, ou quê? – disse ela, a rir.
- Desculpe, se já estava bonita antes, muito mais agora. – respondeu, com sinceridade.
- Obrigado, às vezes gosto de me produzir, espero que não esteja em excesso.
- Nada disso, está tudo a propósito e de bom tom.
- Já notei que é galanteador, toda a mulher gosta de ouvir mentiras agradáveis.
- Agora a Nazamba é que está a ir à lata dos bolos.
- É verdade, presunção e água benta cada um toma da que quer. Acabou a sua bebida?
- Já, se quiser poderemos ir.
- Posso perguntar onde vamos jantar?
- A não ser que tenha outra preferência, ao Carrapicho, não muito longe da estação dos correios, na Baixa. É especializado em peixes e mariscos, pensei que à noite fosse melhor.
- Já ouvi falar, e de facto preferiria comer peixe. Vamos?
Daniel afastou-se para a deixar passar.
Como mandou o meu avô uma mulher destas embora?
Deu-se conta do disparate que pensara, e sorriu. Em 1975 teria ela uns doze ou treze anos, certamente que não era o que ele agora admirava.
Desceram a escada, Nazamba sempre o fazia desde que uma vez ficara retida no elevador cerca de meia hora, numa tarde de calor horrível. O seu perfume estendia-se suave, escada abaixo. Na rua, Nataniel fez funcionar o desactivador do alarme e abriu-lhe a porta, fechando-a tão logo ela se sentou. Colocou-se ao volante e, sem sentirem a necessidade de falar, dirigiu a viatura até ao restaurante, cada um envolto nos seus pensamentos. Por sorte encontraram um lugar que lhes permitiu estacionar mesmo à frente do restaurante e Nataniel foi de imediato acometido por uns três jovens.
- Tio, é o Miguelito quem vai tomar conta do carro!
- Eu cheguei primeiro tio, é o Joaquim quem guarda melhor, não sai junto do carro.
- Entendam-se, - disse Nataniel, saindo da viatura. – não vou falar com três pessoas, uma basta. Quem fica então?
- Ficamos nós então, os teus filhos Miguelito e Joaquim, 100 cada.
- Está bem, mas ai de vocês se volto e encontro o retrovisor roubado, vou-vos procurar.
- Vai descansado chefe, ninguém vai mexer no carro, juro.
Fechou o carro e dirigiu-se para o outro lado, onde Nazamba aguardara enquanto as breves negociações decorreram.
- Já me vou habituando a ver tanta criança pedinte, e isso é mau. – Disse Nazamba.
- E haverá de se habituar a muito mais, a vida não é fácil e para quem tem consciência, às vezes é revoltante.
Entraram e Nataniel solicitou um lugar para dois, de preferência com vista para a baía, já que contemplada à noite, Luanda não tem absolutamente nada a ver com a Luanda diurna. A baía, ao reflectir todas as luzes dos edifícios e da sua bela marginal, empresta uma visão enfeitiçante de magia e belezas raras, confirmando que as trevas escondem a verdade para, enganosamente, revelarem o encanto das sombras e das sugestões, com que o vinho da fantasia e dos desejos nos inebria tão amiúde.
Nataniel sentou-se logo após Nazamba, a quem o garçom, solícito, ajudara com a cadeira, e contemplou extasiado as vastas águas que brilhavam de reflexos múltiplos.
- Vão desejar um aperitivo? – Indagou.
Nataniel olhou para Nazamba e esperou, inquirindo com os olhos.
- Sim, vou querer um gin tónico.
- Dois gin tónicos, por favor e um pouco de castanha de caju. – Pediu Nataniel, para observar depois o garçom a afastar-se.
Nazamba olhou por cima do ombro do primo para a baía que, vaidosa, trajava o espelhar da lua meia cheia.
- Que maravilha, não é? E nem damos valor, tomamos esta beleza por garantida, tão habituados estamos. – Disse Nataniel.
- É verdade, em qualquer outro sítio do mundo um restaurante neste local, seria forçosamente de luxo, ou então um covil de poetas. – Respondeu Nazamba, sem desejar ser cínica.
- Covil? Porquê covil e não um paraíso?
-É que para mim os poetas são lobos que uivam à lua, portanto só poderia ser um covil…
- Covil, certamente que não é, o que elimina de imediato os poetas. Talvez esteja mais para o luxo. - Nem tanto assim, não tem música ao vivo, por exemplo. – Respondeu Nazamba, enquanto recebia das mãos do garçom o menu, após ter pousado as bebidas na mesa.
- Música ainda é novidade, talvez nos hotéis mais caros, mas nos restaurantes ainda não.
O garçom afastou-se um pouco e esperou, cerimoniosamente. O restaurante não tinha muitos clientes, talvez ainda fosse cedo ou os receios não tivessem esvanecido por completo. Fardas novas jamais vistas em Luanda, passeavam arrogantemente pela cidade capital. A paz, embora presente no papel, era sentida como fictícia ou tremelicada, qualquer suave sopro do destino a podia apagar, remetendo a novo o país para as trevas do oblívio e da destruição ímpar. Havia paz a mais na capital, havia sido afirmado por inconformada boca vinda das matas, ao não saber controlar as emoções libidinosas, quando mirava as Evas renderem, sem pudicícia, seus torneados corpos às carícias dos raios solares, nas praias da Ilha do Cabo.
- Já decidiu o que vai comer? – Perguntou Nataniel. - Talvez um linguado grelhado com legumes, brócolos, se tiver.
Nataniel fez um sinal ao garçom, que se aproximou.
- O linguado é grande ou pequeno?
- É de tamanho médio, mais para o grande e fresquinho.
- O que acompanha? – quis saber Nazamba.
- Com o que a senhora desejar, dependendo de como o vai querer. – respondeu.
- Tem brócolos? Se tiver, desejo-o grelhado, com brócolos e cenoura cozida, nada mais.
- E para a entrada? – Insistiu o garçom.
- Estou a ver aqui uma excelente ideia, presunto com mamão, vou experimentar.
- Quem não tem cão, caça com gato. – Brincou Nataniel.
- Mas olhe que os brasileiros africanizam bastante os pratos portugueses ou outros, já comi um cozido à portuguesa com batata-doce.
- E para o senhor, o que vai ser?
- Traga-me uma sopa de legumes e depois um choco grelhado, mas sem as batatas, só com feijão verde e cenouras também.
- Está de dieta? – Perguntou Nazamba, enquanto colocava o guardanapo no regaço.
- Não, à noite nunca como muito e sobretudo coisas pesadas.
- Poderá parecer impertinência de minha parte, mas desejava-lhe fazer um pedido...
- Faça, até me deixa preocupada com o tom...
- Não, não é nada de grave, todavia sinto-me um pouco constrangido estar a tratá-la com tanta cerimónia, afinal somos parentes!
Nazamba esboçou um sorriso e baixou os olhos.
- Sabe, eu é que não tive coragem de lhe sugerir o mesmo. De facto acho que não ficaria mal tutearmo-nos, não por sermos parentes, não sou muito por salamaleques sociais desnecessários.
- Fico-lhe grato pela compreensão e pela franqueza.
- Mas então... fico-lhe grato? – Divertiu-se com o encabulamento de Nataniel.
- Hábito, é o hábito. Fico-te grato, imensamente grato.
- Também eu, acho que assim há mais sinceridade.
Por uns largos instantes remeteram-se ao silêncio, como que duvidando do novo desafio que a intimidade de tratamento proporcionava.
- Gostaria que me contasses como foi a tua ida de Ualali, a não ser que te seja doloroso. – disse, Nataniel., desejoso de saber.
- Já foi, quando era mais jovem, agora não. Muita água correu por baixo dessa ponte. Lembro-me do meu pai aqui em Luanda, de Tomás, o meu irmão ter desaparecido e de termos que embarcar mesmo assim. Agora, ao olhar para o mar, mesmo ali do outro lado, na Ilha, apanhei umas conchas que tenho guardadas até hoje. Quando encontrar a minha mãe, hei-de devolvê-las ao mar, de onde saíram, terei fechado o ciclo.
- Mas porque abandonaram a povoação comercial?
- Porque o nosso avô decretou que os mulatos, os filhos da cobra como ele nos chamara, tinham que ir com os pais.
- Meu Deus, ele fez mesmo isso?
- Achas que estou a contar uma mentira? – Perguntou, tensa.
- Não, Nazamba, não quis insinuar isso, é que é de facto incrível que ele assim tenha agido.
- Pensas que terá sido o único por esta Angola fora? Todos eles disseram ou insinuaram aberta ou camufladamente a mesma coisa. Porque é que os brancos fugiram, havia razão para tal, a maioria eram pobres portugueses deserdados que logo se adaptariam aos novos ventos? Fugiram uns, porque os comunistas comiam criancinhas e lhes iam roubar tudo. Fugiram outros, porque se lembraram das chacinas de 1961 no norte e repetidas em 1975 em Luanda, e fugiram muitos ainda, porque ouviram discursos em português que significavam outra coisa em umbundu. Mas fugiram sobretudo porque viram o governo e a tropa portugueses abandoná-los à sua sorte. Tudo isso me contou o meu pai, nas suas noites amarguradas de bebedeira.
- É, minha prima, até entendo que tenham sentido o medo do desconhecido, mas que o nosso avô escorraçasse o seu próprio sangue!...
- O racismo é uma coisa terrível, olha para nós, netos do mesmo avô e portanto só um é que foi apodado de filho da cobra.
- É por isso que rogo a Deus que esteja vivo e possa falar com ele. Amaldiçoou a vida do meu pai, da filha dele e a nossa, o meu irmão nem sei se vive.
- É uma questão muito dolorosa, mas a que terás de fazer face um dia.
- É o que mais desejo, Nataniel. Tenho que apaziguar alguns fantasmas, meus companheiros de há muito.
- Espero poder estar a teu lado quando esse dia acontecer.
- Reconforta-me ouvir as tuas palavras, quem sabe?...
O garçom trouxe as entradas e retirou os copos e os pratos dos aperitivos, desejando-lhes bom apetite, ao que corresponderam com um ligeiro meneio de cabeça.
- Vamos mudar de assunto, afinal é o nosso primeiro jantar. Fala-me da tua pessoa.
- Tive melhor sorte, fui para a Cuba, como sabes e estudei. Não foi fácil, mas nada que se compare com o que te aconteceu. Também não tive ainda oportunidade de ir a Ualali, a guerra não permitiu, é uma zona que quase sempre esteve fora das nossas mãos, é complicado de lá chegar, mas em breve teremos essa oportunidades, tudo indica.
- Achas? Espero bem que sim.
- Com os acordos assinados creio que se tornará possível, até porque há já algum tempo que controlamos a área, espero que não seja para a perdermos novamente.
Quando o garçom trouxe os pratos principais, a conversa já tinha versado para assuntos menos emocionais e, para qualquer bom observador, a linguagem gestual revelaria os horizontes de um namoro futuro que, sem desconfiarem, assentara arraiais em praça comum.