sexta-feira, 16 de maio de 2014

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA (Capítulo da Recolha Tradicional)






ANTÓNIO FONSECA

 

António Antunes Fonseca, nasceu no Ambriz a 9 de Julho de 1956. Membro fundador da Brigada Jovém de Literatura de Luanda, tem mantido actividade regular no jornalismo radiofónico, garantindo um programa de dicado à tradição oral dos povos angolanos. Os contos aqui contidos, mantêm toda a sua beleza das regiões Congo, revelando aspectos particulares sobre a sua cultura.

Licenciado em Economia, é membro da União dos Escritores Angolanos

 

O CABELO E A FOME

 
O cabelo e a fome eram irmãos e viviam na mesma aldeia.

Um dia foram às partes do leste fazer negócios para, de seguida, irem comprar escravos e bois. Foram ao leste e trocaram borracha com fardos de mantas e panos. Estavam já de regresso, quando, a meio do caminho, o céu ficou carregado ameaçando chuva.

A fome começou logo a cortar ramos de árvores, a arrancar capim e construiu uma cubata e meteu-se lá com o seu fardo. Quando o cabelo ia também meter lá o seu fardo, a fome disse-lhe:

- Aqui não entras.

O cabelo disse à fome:

- Irmã, embora eu possa suportar as chuvas ficando fora, deixa-me guardar o meu fardo na tua cubata.

Todavia, a fome não ligou ao pedido.

Choveu muito e o cabelo ficou molhado. Depois meteram-se a caminhar e, tendo andado bastante, dormiram. Quando nasceu o novo dia, o cabelo disse:

- Irmã, fiquemos hoje aqui para eu estender e secar o meu fardo que se molhou com as chuvas de ontem.

Mas a sua irmã fome não ligou novamente ao seu pedido.

Puseram-se de novo a caminho, até que chegaram à aldeia deles de Kazocami, onde foram recebidos com muita alegria. Depois deitaram-se.

No dia seguinte, o cabelo desata o seu fardo e verifica que os seus panos e as suas mantas estavam meio podres de bolor. Tentou apressar-se a secá-los ao sol, mas de nada lhe valeu.

As senhoras fizeram-lhe grande troça, dizendo:

- A fome trouxe bons panos e mantas, tu só trouxestes esses podres. Quem vai aceitar esses artigos nesse estado?

Dias depois, partiram os dois irmãos para o Kuango, onde ainda reinavam negócios de escravos e bois, a fim de comprarem os seus escravos e bois. Quando chegaram, cada um apresentou o seu produto. Os clientes apreciaram os artigos da fome em relação aos do cabelo, que estavam meio podres. A fome comprou muitos escravos e bois; os fardos do cabelo ninguém os quis comprara; os clientes queixavam-se que já estavam meio podres. Um velho caçador ofereceu-lhe uma vaca pelo fardo todo, mas ele não quis e preferiu voltar com o seu fardo para a aldeia.

Já estava de volta, quando um muata (chefe) da aldeia o chamou e lhe disse:

- Qual é a maka (conversa, confusão)? Porque estás de volta com o seu produto?

Ele contou tudo quanto se dera. Então o muata disse-lhe:

- Dá-me todos os panos e todas as mantas e eu dou-te um cão, que apanha cavalos-marinhos. Se souberes onde há cavalos-marinhos, o cão apanha-os, e assim refarás toda a sua riqueza na venda da sua carne.

E o cabelo aceitou o conselho e ficou com o cão. Os irmãos retomaram o caminho e chegaram à sua aldeia. A fome sempre foi recebida com aplausos e louvores, ao passo que ao cabelo sempre foi feita troça pela população da sua aldeia, que dizia:

- Vieste com um cão! Farias bem melhor se voltasses com o seu fardo! Porque é que compraste o cão?!

O cabelo, triste e revoltoso contra sua irmã, separou-se dela.

E a fome foi morar à beira do rio, onde abundavam cavalos-marinhos. Ela cultivava milho, feijão e jinguba; os cavalos-marinhos comiam e estragavam todas as culturas. Ao recordar a actividade do cão do seu irmão cabelo, foi, por isso, ter com o seu Irmão cabelo e disse-lhe:

- Meu irmão, empresta-me o seu cão para dar cabo dos cavalos-marinhos que estão a estragar as minhas culturas.

- Não pensas e nem tão pouco tens vergonha! Fizeste-me apanhar tanta chuva e o meu fardo teve que apodrecer a ainda vens pedir o cão?

A irmã, porém, insistiu no pedido:

- Faz favor irmão, empresta-me o seu cão.

Este aceitou e satisfez o pedido da sua irmã.

- Toma cuidado! Quando fores com ele à caça dos hipopótamos, o primeiro hipopótamos, não lhe castigues quando ele o comer! Se assim o fizeres, ele fugirá e não o verás para sempre.

Quando a fome chegou a casa, começou a caçar em perseguição dos hipopótamos e apanhou o primeiro. O cão iniciou logo e a fome, com gula, bateu-lhe e assim o cão logo desapareceu.

Ela, atrapalhada, foi ter com o seu irmão cabelo e disse-lhe:

- Meu irmão, o cão fugiu-me por minha desobediência às tuas recomendações.

- Tens de pagar muito – disse-lhe o cabelo.

A fome, sem refilar, pagou muitos escravos e bois, mas o cabelo exclamou:

- Ainda falta muito.

A fome entregou-lhe todos os filhos, netos e ficou ela sozinha.

Este disse:

- Ainda falta muito.

A fome disse ao seu irmão cabelo:

- Uma vez que não tenho mais nada, ficou eu próprio na tua casa como escrava.

- Nem com isso; falta muito.

Com medo da morte a fome desatou a fugir, perseguida pelo cabelo. Ela olhou para trás… O seu irmão vinha com a catana; a fome foi correr a uma boa velocidade, nem conseguiu travar e entrou na boca da pessoa até ao estômago.

O cabelo, por sua vez, atrás da fome, veio parara na cabeça, no queixo como barba, nos lábios como bigode, nas axila e nas outras partes do corpo, à espera da senhora fome, para com ela ajustar as contas sobre o cão alheio que tinha fugido.

E a fome quando tenta sair vê o irmão com o seu exército em todo o corpo da pessoa e volta imediatamente para dentro. É assim que as pessoas sentem o estômago a roer.

 
Narração inicial: anónimo

Local: Lunda, 1980

In: Contos de Antologia, INALD, 2008

 

MEMÓRIAS DA ILHA - CRÓNICAS







OS SONHADORES

 
Há quem afirme que os sonhadores são os salvadores do mundo, talvez porque ao escutarmos as mais belas músicas, ao lermos os mais belos livros e poemas, ao nos revermos nas mais maravilhosas pinturas, ao tentarmos entender as mais engenhosas profecias e a sabedoria universal, cheguemos à conclusão que tudo isso é possível porque houve e há gente que sonhe.

E acho que isso é um facto, as realidades, os avanços conseguidos nas sociedades, são e serão fruto do sonho de alguém que soube acreditar em si mesmo e partiu para a labuta, para a concretização do seu desejo, da sua visão, da ânsia do querer. Todas as grandes descobertas foram chamadas de loucuras, ou tidas sem futuro prático, mesmo as mais recentes como o automóvel o que, fazendo um parêntese, me faz recordar uma pequena fábula, quando começaram a aparecer as primeiras máquinas automotoras, em que o burro, feliz, anunciava ao cavalo o seu fim, o homem não mais iria depender dele para a locomoção.

“Se eu me tornarei indispensável como cavalo, não sei o que será de ti como burro.”

“Ora, meu amigo, tu poderás ser dispensado, mas burros sempre os haverá!”

Foram esses sonhadores que nos deram a nossa essência. Sem esses visionários, ainda se acreditaria que a terra é plana, que não havia um Universo e sabe-se lá o que mais. Jesus Cristo não seria hoje o que É. Buda nunca teria penetrado o mundo que concebeu. Cristóvão Colombo nunca teria chegado ao novo continente, não obstante os seus desígnios serem comerciais e de direcção oposta, porque a força impulsionadora, para além das correntes marítimas, foi o sonho pela aventura, pela crença de que do outro lado daqueles mares, certamente algo o esperaria.

Todavia, os sonhos são os espinhos da roseira e não foi sem propósito que o Cristo foi coroado com uma coroa deles. A maior parte dos grandes sonhadores pagou caro pela sua visão de um outro mundo, pela sua crença e fé numa outra ideia, pela proposta de uma alternativa. Grandes sonhadores, como Moisés, como Ghandi, embora seguidos, foram maltratados pelos que os seguiam, pois a natureza humana é invejosa e, assim, as suas gerações os sacrificaram, de uma maneira ou de outra.

Se formos à Bíblia, entre muitos profetas, encontraremos Isaías, o anunciador de uma mensagem que nem sempre satisfez as coligações políticas dos chefes de Jerusalém, porque também anunciava que “o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á junto do cabrito, o vitelo e o leão pastarão juntos... o bebé brincará na toca das cobras, e a criança meterá a mão no buraco da víbora”. E o que lhe aconteceu, segundo relatos deixados? Terá sido serrado em dois.

Confúcio, cujos ensinamentos ainda hoje são referência na China, foi de igual modo um visionário que desejou um mundo melhor, confinado numa filosofia a que ele chamou a “Grande Harmonia”. Em vida foi humilhado, vexado, para mais tarde, os imperadores citarem as suas máximas, para o seu retrato estar em lugar de honra, para lhe serem construídos templos e oferecidos sacrifícios, para ser chamado de sol e lua, tal a sua glória. Assim como as asas das aves são as que sustentam o seu voo, assim é o sonho para os sonhadores, para os que sabem que não há limites que o confinem.

Esta crónica é dedicada e visa aqueles todos que sonham, que não desistem face à dura realidade, que sabem que sonhar é olhar para a frente e crer em si próprio. Estas palavras são para todos aqueles que sabem que é no ovo que está o futuro pássaro que, no meu caso, seria a bela ndua fugidia dos meus anos de menino, nas matas do Zavula.

 

14/08/05

VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA (ESTUDO)






VERTENTES DA FICÇÃO INSÓLITA ANGOLANA (excerto)

 
Jurema Oliveira

Professora da Universidade Federal do Espírito Santo na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense – Uff, desenvolve pesquisa na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

 Resumo: Depreender na literatura angolana as vertentes da ficção insólita contemporânea.

 Palavras-chave: tradição, oralidade e insólito

 O corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do mundo (ZUMTHOR, 2000, p.90).

O presente trabalho tem por objetivo discutir as vertentes da ficção insólita angolana. Para esse estudo escolhemos as obras dos autores (…) e Fragata de Morais.

 
           … FRAGATA DE MORAIS escreveu Como Iam as Velhas Saber (1983, A Seiva (1995), Jindunguices (1999), Momento de Ilusão (2000), Amor de Perdição, Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos (2003), A Sonhar se Fez Verdade (2003), A Prece dos Mal Amados (2005), O Fantástico na Prosa Angolana (2010) e Batuque Mukongo (2011).

 

O século XX presenciou modificações históricas importantes no cenário mundial e em particular nos países africanos de língua portuguesa. O fenômeno violência nasce do desejo de dominação de um homem sobre todos os homens, mas, de acordo com Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não o cria. Em contrapartida, as ações violentas fazem emergir no cenário social experiências insólitas, não habituais do ponto de vista cultural. A violência neutraliza toda e qualquer possibilidade de os homens se organizarem e viverem em harmonia e consequentemente abre espaço para o luto visível nas imagens refletidas num espelho d’água embaçado. Estes fatos constituem o móvel, os eventos sustentadores do gênero insólito:

           [...] o mundo organizado de repente se desorganiza, sobrevém então o desequilíbrio e as personagens oprimidas passam a viver o clima do absurdo, isso então seriam as características de um ‘insólito contemporâneo’ que lida com o coletivo e a vida pública, problematizando-os (Rodrigues, 2007, p.92).

 

Nessa perspectiva, os eventos não ocasionais, violentos, são postos em movimento por uma língua ficcionalizada que desloca as falas de seu lugar habitual, dando nova roupagem à ideia de apagamento, de censura promovida pelo discurso oficial, e abrem espaço à circulação da heterogeneidade identitária e discursiva, numa demanda múltipla dos eventos insólitos que rondam as experiências humanas diárias dos “pontos-sujeitos”, a base da ficção de Boaventura Cardoso para quem o personagem tem sempre um movimento especial, insólito. Sendo assim, em “A árvore que tinha batucada” do livro A morte do velho Kipacaça, o elemento de destaque é a árvore:

 

Para Carpentier, o maravilhoso constitui-se na modificação da realidade. Assim, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé, uma crença. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos:

          [...] o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou especialmente favorecedora das inadvertidas riquezas, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que o conduz a um modo de ‘estado limite’ (CARPENTIER, 2009, p. 9).

 

A experiência inabitual de que fala Carpentier presentifica-se no mistério que envolve a árvore, mobilizando, assim, toda a comunidade. No plano maravilhoso, é comum encontrarmos expressões ou termos que remetem os fatos ocorridos ao mundo sobrenatural, sem uma explicação racional. De acordo com Todorov: “O fantástico se define como uma percepção particular de acontecimentos estranhos” (TODOROV, 2004, p. 100)…

… O maravilhoso modifica o cenário, gera um estranhamento e estabelece novas categorias para a realidade. Sendo assim, o conto “O filho” do livro Momentos de Ilusão, de Fragata de Morais, nos apresenta uma experiência inusitada que é uma gravidez de sete anos: “Há sete anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso”. A narrativa de “O filho” se desenrola valorizando o sobrenatural e o erotismo, pois o esposo ao cumprir o ritual afetivo conduz o desfecho do conto:

          … Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não de febre, mas de desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.

A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.

“Que situação ridícula, não posso”.

Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma. (...)

Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.

Do carcomido ventre da esposa saiu um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas (Morais, 2000, p. 13).

 

          Numa perspectiva numerológica, o sete é o número místico por excelência em todas as religiões e seitas, desde as mais primitivas as mais modernas. O sete é o número da criação. É também o número que indica a relação viva entre o divino e o humano, entre o bem e o mal.

 

No conto “A Seiva”, da mesma obra, Fragata de Morais metaforiza a fertilização da terra, símbolo maior, e a fertilização da mulher. Os personagens centrais nutrem um amor com “raízes na inocência rural e na crueldade terrível da natureza” (Morais, 2000, p.30), pois “o relâmpago quando desvirgina o firmamento, seu grito de prazer troveja pelos ares, derrubando árvores, casas e mesmo gente. Nada se lhe opõe no caminho da fertilização da terra. Assim seria com ele”(Morais, 2000, p.30).  Essa força sobrenatural oriunda do amor era ponderada constantemente por Mbuta que:

          … Lembrava as longas conversas com Jorge sobre o que seria tradição, usos e costumes antigos, face à Bíblia, à palavra simples, mas pesada dos padres.

          Convencera-se por fim que, feitas bem as contas, seria trocar um feitiço por outro. Abandonar a crença dos antepassados para abraçar a crença do feiticeiro dos brancos que curava leprosos com um simples toque de mãos, punha paralíticos a caminhar com uma mera vontade e palavra e, coisa jamais vista na tradição dos negros, ressuscitava mortos. Pesadas bem as coisas, de facto não havia motivos para reter a crendice clânica. O que se perdesse por um lado, a Bíblia reporia por outro, era como estava escrito olho por olho, dente por dente (Morais, 2000, p.32).

         

O questionamento feito por Mbuta acerca das tradições negras e brancas nos permite ler uma similaridade nas experiências vivenciadas por ambos os grupos humanos em torno daquilo que se origina de uma revelação não habitual, mágica decorrente da fé. Um exemplo fortalecedor do maravilhoso no conto “A seiva” diz respeito ao relato de Jorge acerca do batismo de seu bisavô materno:

          … Jorge contou que seu bisavô materno, de nome Kiavulo, fora baptizado com o nome João Patrício pelo padre, por o original ser gentio. Segundo o argumento do agente de Deus na terra, agora que virara cristão, seu nome teria que ser em consonância, nada desses nomes esquisitos que ninguém sabia o que queriam dizer. Kiavulo, que desejava aprender as coisas dos brancos, enfiou-se na catequese. Algum tempo depois, entre outras informações complexas, ficou a saber que lhe era vedado comer carne às sextas-feiras. Ora um dia desses, João Patrício, como então exigia ser chamado pelos outros naturais, caçou uma lebre e preparava-se para a comer, quando a nova consciência o admoestou, por ser o fatídico dia. Mas como a fome não tem nada de cristã nem aprendeu a ler a Bíblia, João Patrício agarrou no bicho já esfolado e antes de o comer meteu-o na água do rio, fazendo o sinal da cruz sobre o mesmo.

          ‘Se Kiavulo ser agora João Patrício, tu kabulo ser agora peixe. Branco pode fazer, mim também’, sentenciou para paz de sua consciência (Morais, 2000, p.32).

 

          Num ritual que envolve preceitos e quebra de preceitos percebe-se que o imaginário das personagens está imbuído de sensações experimentadas cotidianamente, pois o real maravilhoso se mostra de um lado na religiosidade africana e, por outro lado, no catolicismo, bem como nas práticas culturas africanas diárias. No desfecho do conto depreendemos uma sucessão de fatos extraordinários:

          … Jorge Torres, atordoado pela voluptuosidade inesperada da namorada, logo se recompôs. Apertou-a com paixão e preparou-se para o amor. Com frenesi conseguiu desnudar-se.

          Quanto a Mbuta, já há algum tempo que partira da casa da lenha. Só o corpo restara, cada vez mais abraçado a Jorge.

          Sua essência descia enroscada pelo poste na clareira, ao ritmo do bater abafado das mãos e dos pés das mulheres em seus cânticos de fertilidade.

          Silenciosa, feita serpente maior do que a jiboia, foi apertando os elos pelo corpo do amado que, de olhos cerrados e arfando, gozava o amor e a entrega, sem notar que a asfixia que sentia não se devia ao êxtase do prazer fulgarante e ritmado, mas sim ao aperto premente da cobra em si enroscada.

          Quando sentiu o ar faltar-lhe por completo, no momento excruciante do orgasmo, já roxo, seus olhos esbugalhados viram a enorme cabeça da jiboia a olhá-lo, língua bifurcada silvante.

          Despedindo-se no último beijo de amor, sua cabeça tombou por fim para o lado, o corpo inanimado amassado.

          A serpente desenroscou-se e rastejou silenciosa para o mato, desaparecendo. Ao longe, os contratados tocavam seus batuques dolentes que falavam das saudades da terra e dos familiares (Morais, 2000, p.34).
 

          Nos contos de Fragata de Morais, o real maravilhoso flui livremente, pois apresenta no primeiro momento situações totalmente normais para só no futuro proporcionar ao leitor um cenário sobrenatural.

 

O estilo maravilhoso de que fala Carpentier no livro O reino deste mundo (CARPENTIER, 2009, p. 10) não é privilégio das Américas, mas uma herança de uma África que imprimiu suas marcas e traços históricos numa diáspora que se descobre herdeira de uma cosmogonia ainda em construção. As ações ditas insólitas, inabituais tem um arcabouço fundado por um enredo cosmogônico que se desenvolve por meio de uma elaborada estrutura simbólica como aquela percebida nas longas festas do Komba, ritual de passagem de um ente querido em Angola.

A performance experimentada pelos personagens do conto…. …bem como do ritual amoroso do conto ‘O filho”, de Fragata de Morais mostra o corpo em performance, conceito pensando por Paul Zumthor na obra Performance, recepção, leitura (2000). De acordo com o mesmo autor performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual.

 

O conto “Desencontros” de Fragata de Morais, retrata a história do espírito de um soldado chamado Hernando de La Cuenca y Fraga. Numa perspectiva que remete a um contexto simbólico-religioso, Evaristo, o esposo, presencia a possessão da mulher Filipina:

… Uma noite, em que Evaristo teve o susto da sua vida, ao entrar no quarto deu com Filipina sentada na cama em profundo transe, olhos esbugalhados e em cheliques. Pensando presenciar um ataque de epilepsia, agarrou-a pelos ombros com o fito de a deitar, sendo violentamente sacudido por um abanão que o enviou de encontro à porta do quarto. Estatelado no chão, boca aberta de espanto, ouviu uma voz masculina rouca e profunda a sair pelos lábios da esposa (Morais, 2000, p.38).

 

Hernando de La Cuenca y Fraga retorna para cobrar um reconhecimento que não teve em vida e usa o corpo de Filipina para obter reconhecimento pelos seus feitos:

Evaristo esfregou os olhos, Filipina olhando-o fixamente e altiva. Parecia-lhe uma blasfêmia ouvir, não as palavras preferidas, mas a voz masculina e roufenha gorgolejando pela boca da esposa.

“E o que tenho eu a ver com isso?”, ouviu-se perguntar.

“A tua mulher terá que divulgar esta minha miséria. É injusto, ninguém se lembra de mim. Andei com o general Pereira de Eça a combater para o engrandecimento da pátria...”

“Minha mulher?!...”, disse, de olhos, agora mais esbugalhados.

“Sim, tua mulher!”

“Meus Deus, que pesadelo!...”, balbuciou Evaristo, esvaído de forças e vontade.

“Pesadelo é o meu. Mandume passeia-se por aqui de cavalo branco, servido por vários Lengas e a cada instante ouve seu nome ser recordado. Quanto a mim, nem a minha família sabe que existi!...”, disse Hernando (Morais, 2000, p. 39).

 

Os acontecimentos insólitos são aqueles que não ocorrem com frequência, contrários às práticas sociais diárias, logo, causam espanto, estranheza, pois destoam dos hábitos comuns dos indivíduos em suas experiências quotidianas, resultantes historicamente de um sistema de concepções herdadas, correspondentes às formas como os homens se relacionam e transmitem seu conhecimento entre uns aos outros em uma determinada cultura e em um determinado momento das distintas realidades sociais. Diante disso, “é lícito opor o insólito ao natural, e ao ordinário, termos comuns na teoria dos gêneros literários quando se quer falar de Maravilhoso, Fantástico, Estranho, Sobrenatural, Realismo Maravilhoso, Absurdo” (GARCIA, 2007, p.19). Seguindo as explicações do dicionário, podemos ampliar nossas informações acerca daquilo dito natural. Segundo ainda o dicionário, o termo “natural”, significa aquilo que segue a ordem natural das coisas, lógico, próprio do instinto, instintivo, espontâneo, enfim, o que é previsível, provável (FERREIRA, 1986, p. 1608).

 

O projeto literário angolano contemporâneo conta com várias correntes, uma decorrência das mudanças sociais e políticas. De acordo com Vasconcelos (2009), o período pós-independência é marcado literariamente pelos diversos e múltiplos processos de ruptura conceptual de arte com o tipo de regime e sua falência num universo de múltiplos e de intermináveis experimentalismos. Esse experimentalismo conduziu a trajetória artística dos diversos escritores angolanos. Assim, transitando entre experiências tradicionais e fatos extraordinários Boaventura Cardoso e Fragata de Morais produziram obras representativas das vertentes insólitas da literatura angolana.

Bibliografia:

CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

            CHAVES, Rita, MACÊDO, Tania & MATA, Inocência.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

GARCIA, Flavio (Org.). A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

MORAIS, Fragata de. Batuque mukongo. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2011.

O fantástico na prosa angolana. Luanda: Mayamba, 2010.

A sonhar se fez verdade. Luanda: Inic, 2003.

 A prece dos mal amados. Porto: Campos das letras, 2005.

Momento de ilusão. Luanda: Chá de Caxinde, 2000.

Jindunguices. Luanda: Inald, 1999.

Como iam as velhas saber. Luanda: Inald, s.d..

A seiva. Luanda: Inald, s.d..

Amor de perdição. Luanda: Chá de Caxinde, s.d..

18 – RODRIGUES, Tailane. In: GARCIA, Flavio (Org.) A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.

19 – TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.

20 – ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

 

 

          

 

SUMAÚMA





Óbitos
 
 
O olho do viandante
é rápido
não tanto
quanto os passos
gravados
pela peçonha
 
 
na cobra
o morto dança
sortilégios tribais
 
noites de óbito