terça-feira, 23 de setembro de 2014

THE CAMBRIDGE HISTORY OF AFRICAN AND CARIBBEAN LITERATURA (Volume 2)





Fragata de Morais (b.1940) is a writer who has continued the ethnographic tradition of Angolan fiction. The relative new comer among Angolan writers spent many years working in theater and film in the Netherlands and Germany. After Independence the mixed-raced Fragata de Morais returned to his native Angola where he published Como Iam as velhas saber disso? (1980) (How Could the Old Women Know of This?) and A Seiva: contos angolanos (1995) (The Sap: Angolan Short Stories. Henrique Abranches in his preface to Morais's Inkuna Minha Terra (1997) (Inkuna My Homeland),  welcomes the author to the rank of those fiction writers who recreate and re-mythfy aspects of Angolan traditional cultures
 
In The Cambridge History of African and Caribbean Literature , Volume 2 (2004)
Edited By F. Abiola Irele and Simon Gikandi.

A VISITA - TEATRO




A ser lançado em Outubro próximo, pela União dos Escritores Angolanos

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


 
O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA

 FRAGATA DE MORAIS, Nasceu no Uíge, em 1941. Diplomata de carreira, ex Vice-ministo da Educação e Cultura, também foi Presidente da Comissão Executiva da União dos Escritores Angolanos. Inclui, em quase todos os seus livros a narrativa do fantástico, embebida nas profundezas no tradicional angolano, muitas vezes em contradição com o moderno urbano. Os contos aqui contidos, fazem parte dos livros A Seiva – Contos Angolanos, e Momento de Ilusão.


O FILHO


E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho...

e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz,

 para que, dando à luz, lhe tragasse o filho.

S. João – Apocalipse 12

 
 
Há sete longos anos que o filho lhe remexia as entranhas. Não havia dúvida, há sete anos que a criança a apalpava por dentro, que lhe falava em silêncio penoso.

No início da gravidez os médicos observaram-na cuidadosamente, todavia, à medida que os meses passavam, insinuaram uma gravidez psicológica.

Ao décimo sete mês, uma amiga, insidiosa, propôs-lhe a possibilidade de uma barriga de água.

“Não sabes o que é, eu explico-te?...”, ofereceu-se.

As íntimas, propuseram os remédios da terra, a visita aos kimbandas, aos adivinhos.

Não haveria nada a perder, que não tentasse esconder o que é da terra. Mulher grávida há sete anos só pode ser curada com a tradição, com o debicar engasgado do galo.

Angustiada, cruzou as longas pernas, vestia o robe de chambre azul cor das águas e reclinou-se no cadeirão de couro da vasta sala de visitas de sua casa.

Acendeu, silenciosa, um cigarro. Não queria ser apanhada em kimbandas. Isso não. Seria o perder do pudor, sabia que os rótulos se arquitectam nos vastos silêncios sociais.

Atirou, com displicência, o fósforo para o cinzeiro e serviu, da pequena mesa ao lado uma bebida, levando-a à boca em longos e melancólicos sorvos.

Olhou para o quadro pendurado na parede oposta. Paisagem típica africana, o capim em movimento, fustigado pela brisa da tarde. Suspirou nostálgica, sentindo a paisagem embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e o copo da bebida estremeceu na mão, à carícia do vento melódico que soprava do norte. O fumo nervoso do cigarro esvaiu-se no ar, rumo ás nuvens onde pairavam as águias das palmeiras, enquanto que, contemplando o momento de ilusão, acabou por tombar adormecida anestesiada pela angústia do desassossego, ao badalar dos pios angustiados do mocho ora desperto na árvore soberba.

O marido entrou na sala, olhou o rosto tranquilo e ainda fumegado do cigarro meio perdido de cinza, e retirou-o da mão palpitante.

As águias das palmeiras gritaram estrídulas.

Como todos, igualmente pensara que a estória da gravidez fosse passageira, e por essa razão acarinhara os anseios da esposa, nunca a desfalcando de amor e compreensão.

“Olha a criança mexeu, o nosso filho mexeu, não viste?”, dizia-lhe, mão no ventre ofegante.

E com este acanhamento vestido de verdades aparentes, foi contando aos parentes e amigos as vicissitudes de futuro pai.

Por volta da gravidez psicológica começou a não conseguir pôr cobro à chacota mal disfarçada, aos ditos apenas sussurrados à sua passagem.

O desânimo aproximou-o mais da esposa e passaram horas de deleite encontrando nomes para a criança, para o filho.

“Sim só poderá ser um menino”.

Inventaram creches e escolas.

Mas quando qualquer dúvida renascia, quando o terror se lhe assenhorava da alma, fugia tinhoso para a amante, pronta e aberta, que o compensava pela gravidez inexplicável, mesmo se, no expirar do tempo, partia mais triste do que viera e mais vazio do que chegara, revertido criança na estórias meio contadas dos adultos, de ser ele o filho do dragão, o fruto do pecado e da vergonha sempre eterna que lambe as labaredas do inferno.

Seu pai, era tio de sua mãe.

E na descendência dos mal-amados, os antepassados obrigá-lo-iam a carregar até aos fins do caminho, a sarna que há sete anos passara para o ventre frutificado da esposa.

Só poderia ser isso.

Agarrou o sufoco e embrenhou o medo nos seios flácidos da amante.

Regressou a casa encontrando a mulher ainda no mesmo lugar, adormecida.

Pensou em acordá-la, não o fez, sentou-se no cadeirão e teve a leve sensação de sentir a

carícia do vento no rosto.

No véu de uma memória que não era a sua, o cadeirão de couro da sala era o tronco seco já meio apodrecido no capim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a brisa suave com as mãos, enganando o desespero que a cingia porque, em breve, seria a época das queimadas, a derruba do nicho incestuoso do amor, e assim não poder encontrar-se com o tio para as rezas suplicantes da carne.

No tempo do cacimbo, a terra reveste-se de castanho seco, a mata ressequida é chama lambedora do fogo posto, impudico em labaredas devoradoras. De um momento para o outro, o que era abrigo e escondia momentos prazerosos, nada mais seria do que um descampado com nascente capim verde, pasto das seixas, dos veados, até mesmo das pacaças mais afoitas.

Na espera do tio, deitou-se não longe do tronco e pressentiu, que alguém se sentara.

Soergueu-se com ansiedade mas não, não fora o tio que chegara, aliás tê-lo-ia visto.

Recordou o momento acre-doce de devaneio, da entrega rendida ao latejo do desejar. Tinha quinze anos e o tio vinte e oito. Verdadeiramente nunca conseguira explicar por palavras ou pensamentos conscientes como tudo começara, o que a dominara, possuíra, feita animal envolta nos perfumes do cio manifestado.

Uma tarde de calor, o capim alto observando-a, aconchegando-a, excitando-a ao âmago, foi a carícia que fez jorrar a água das fontes internas do desejo. Abrira a blusa e expusera os seios negros e luzidios ao beijar da brisa, ao restolhar das folhas próximas

das árvores.

Mulher feita, mulher desejando, arfando sem motivo aparente. Mulher fêmea em aromas vaporosos, ainda que não sabendo.

E quando o tio apareceu feito vadio, como que não conhecendo das tardes de calor da sobrinha, ela fez que não sabia do desejo e do ardor, pretendendo que nunca desejara o que então estava pronto e sacrificial.

E talvez até tivesse sido assim.

Na escuridão da eterna culpa e no despir da razão vacilante, em jeito de despedida, sem saberem ou desejarem, na morte da alma entregaram-se arfantes.

Deram-se a carne perante os olhares nunca adormecidos dos que eternamente vigiam, dos que vivem nos fundos dos rios e das lagoas. E dos que percorrem os caminhos tortuosos dos matos nas noites de luar cheio.

Quando se sentiram saciados, lambuzados do mel e da água viscosa que brevemente os unira na perdição, ficou como marca do diálogo que os corpos mantiveram, a brusca revoada das perdizes assustadas com o lancinante grito de dor do conhecimento que ganhara.

O sangue virginal no capim não foi chorado nem cantado pelas mulheres, como deveria, em afirmações honrosas. O último pingo da seiva amorosa que escorrera envergonhado das carnes já marcadas pela maldição, teimosamente agarrou-se à pequena espiga dobrada, até que a hiena sequiosa o lambeu em gargalhada esdrúxula do pôr-do-sol.

Nunca mais se falaram, quase nunca mais se olharam, mas nos momentos inseparáveis em que ambos sonhavam com as águas do rio transbordando raivoso pelas margens, nesses momentos, como que por acção fatídica, encontravam-se para o amor, para a troca de fluidos, sempre sob a vigilância acesa dos olhares albinos dos que nunca adormecem, dos que vivem com os caranguejos doces.

Aos dezassete anos engravidou. Pérola lançada no chiqueiro.

O tio, em fuga para terras longínquas e inacessíveis, lugares inenarráveis, ninguém mais dele soube.

“Acusa o padre da missão, já tem dois filhos.”, Recomendou-lhe ainda.

Aos dezassete anos engravidou minutos quando foi derrubada a árvore ainda verdejante dos sonhos.

“Acusa o padre da missão, não sejas parva.”

Engravidou horas, dias, semanas, até o aterrador compasso do tempo não permitir mais aquele esconder do inevitavelmente inescondível.

Engravidou desesperos, e raivas ancestrais obscuras que desconhecia.

Das mãos paternas, medrou chicotes cavalomarinhados em sulcos ardentes fendidos no corpo tenro, na ira sempre justa e profunda da família secular, e na dança das kiandas injuriadas

Foi fechada, desterrada para o convento das madres carmelitas até ao fim do pernoitar do pecado, para o nascer alvoroso do dragão encarnado, já que a noite não é para ser vista com os olhos do dia. No parto-morte clamou por vingança no nome daquele que fustigara sua inocência, que saciara seu desejo de virgem-fêmea não conhecedora das regras com que a natureza joga o jogo dos calores e dos suores.

Pois que a natureza se vingasse.

Gemeu as entranhas até o filho nascer e, ao sustentá-lo brevemente nos braços para lhe inculcar todo o fundo tenebroso de sua alma, cuspiu com o olhar embaciado pela dor a maldição perpétua e autófaga. Só então sentiu a força das lagoas profundas a puxar, feliz e liberta.

Na sala, o marido notou a esposa a arfar em agonia no sono, sentiu-a febril ao tomar-lhe a mão. Tacteando, beijou-a com culpa insaciável, nem se lavara ao sair da amante. Esta, grata pela carícia, levou-lhe a mão ao ventre e puxou-o a si, ardendo não da febre mas do desejo. Penetrou com a língua sedosa o bacio da orelha do esposo e vasculhou-lhe os putrefactos segredos da alma.

A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar.

“Que situação ridícula, não posso”.

Todavia os lábios femininos insuflaram a não mais o estertor do delírio. E quando a penetrou desvairado, sentiu a criança agarrar-lhe a força máscula, o pénis, e a levá-lo para o ventre materno no momento supremo do prazer, da agonia, no explodir tumultuoso do plasma.

E m seguida veio a paz e o ruído meigo das cataratas deslizando sobre as rochas em musgo.

Foi, na sala de visitas espaçosa, ao lado do sofá de couro onde repousava o corpo inerte e putrefacto da companheira, que os vizinhos o encontraram sete dias mais tarde.

Do carcomido ventre da esposa saiu assustado um sardão vermelho que desapareceu por trás do cadeirão tronco de árvore, restolhando as folhas secas das tristezas.

O corpo da mulher exalava todo o perfume e aromas mornos das festas das divindades aquáticas.

Ele, coitado, anunciava feliz aos rostos contritos de ansiedade, que o contemplavam em silêncio, que o filho finalmente nascera.

Agora que o desculpassem, teria que ir buscar mel às colmeias e leite ás tetas das cabras para o alimentar.

 
In Momento de Ilusão, Campo das Letras, 2000

memórias da ilha - crónicas


 
DE HOMENS, PORCOS E OVELHAS

Não deixei de sorrir ao ler nas “Curiosidades” do Jornal de Angola, sobre a prisão de um homem por ter tido relações sexuais com um porco.

Imaginem!

Tantas foram as questões que se me colocaram e a tal velocidade, que por fim já não sabia como chegar a uma conclusão.

Tentei ver os direitos do cidadão suinófilo, e verifiquei que cada um come do que gosta, ainda por cima se for carne de porco.

Tentei ser magnânimo e defender a honra violada do porco, pôr na balança o peso do seu predestino, indagando-me se não viria a sofrer muito mais na facão, chegada a altura.

Achei, portanto, que o porco, se tivesse visão, deveria ter mantido aquele relacionamento na clandestinidade e não ter nada de que se ter posto para ali aos gritos, sem o mínimo de pudor. Todos conhecemos quanto grita um suíno, ainda por cima norte-americano, bem alimentado, 56 quilos de alta e vitaminada ração, cientificamente preparada, e de fazer inveja, em termos de proteínas, à alimentação de muita criança mundo afora.

Se decidiu bater com a língua nos dentese desatar a gritar exactamente no momento em que a mana do pacato Austin Gullette passava, dando a conhecer ao mundo aquele amor incompreendido e viril, o que esperava?

Outra questão que me transcendeu, foi a da irmã (não é mencionado o nome da delatora) ter ficado envergonhada por nunca ter visto na vida dela alguém fazer aquilo a um animal indefeso.

Foi essa a palavra, indefeso, que de imediato fez acender uma luz de protesto. E se o animal não estivesse nessa situação de indefeso, teria sido uma porcaria permitida?

É que quando toca a questões de quintas, fazendas e seus animais, incluindo as galinhas, fica-nos muito espaço para a imaginação.

Recordo-me, estava eu a estudar na então metrópole, isto em 1958, e de ter feito uma pequena excursão, nas férias do verão, pelos Alentejos, o que me leva a evocar dois acontecimentos.

O primeiro, era que viajar à boleia naqueles anos em Portugal, era quase um exercício em futilidade, devo ter feito mais quilómetros a andar a pé de que de carro. Por isso tive muito tempo para ir apreciando os campos de trigo à bermas das estradas.

O segundo, foi aquele que aqui vos vou relatar, como sustentação à minha indignação de ter sabido que um coitado de um veterinário qualquer, a pedido da irmã megera, teve que abandonar as delícias do seu consultório para vir examinar a vergonha ultrajada do suíno que, após o caso, começou a viver uma vida de miséria da qual só a misericórdia do facão o salvará. Imaginem, deu para andar a esconder-se à toa por tudo que é canto, e estar sempre assustado. Talvez a irmão do coitado do Austin decida submeter o porco a um tratamento psicanalítico para ver se recupera a saúde mental. Caso contrário, só lhe restará mesmo mandar fazer dele torresmos.

Mas voltando ao porco frio, já que a estória não mete vaca, estava eu encostado a uma cerca à espera de que aparecesse uma alma caridosa ao volante de um carro que me levasse mais para o sul, quando dou por um homem a ceifar o trigo ou centeio, não distingo um do outro, junto à estrada Ao fim de umas horas, durante as quais não passou carro nenhum, notei que o mesmo ceifara uma grande parte da área plantada, mas deixara duas pequenas zonas em que não tocara. Quando se aproximou, talvez para me informar que por ali raramente passariam viaturas, não resisti à curiosidade e indaguei porque havia poupado aqueles espaços?

“Por razões sentimentais.”, Respondeu.

“Desculpe, razões sentimentais?”

“Sim. Olhe naquele espaço maior, foi onde tive a minha primeira experiência sexual, talvez com a sua idade.”, Retorquiu, com um sorriso de quem se lembra de memória grata.

Curioso, perguntei pelo outro espaço não ceifado.

“Ah, ali foi de onde a mãe dela olhava!...”

“O quê? A mãe dela?”, Perguntei, perplexo.

“Sim”

“E não disse nada?”, Insisti, não querendo acreditar.

“Disse”

“E o que disse ela?”, Continuei, a pensar que estava a gozar com a minha cara.

“Béééééééé!...”

Não imaginam pois, caros leitores, como fiquei quando li sobre o coitado do Austin e da sua possível prisão de cinco anos. Tivesse sido no Alentejo, ninguém se preocuparia. Esses americanos têm a mania de que têm que estar sempre à frente de tudo, até porque, segundo as palavras do xerife lá do sítio, o senhor Royce Toney, que colocou o suninófilo atrás das grades, já havia relatos de casos parecidos envolvendo cães, macacos e ovelhas, enfim, a banalidade diária. Mas com porcos?!....

12/09/04
 
In "Memórias da Ilha" Nzila

SUMAÚMA


 
 
 
 
 
 
Tempos sonhados

 
Aprendizes

pronto transformados

em feiticeiros

apagaram incólumes

os tempos do futuro

 

Restou

na obscuridade

o sonho

de vislumbrar

o eco da esperança

do amor

da lembrança

da dor

sempre ao sabor

de um vai sem vem

que é de todos

e não o é de ninguém
 
In !Sumaúma" - U.E.A.