quinta-feira, 12 de maio de 2016

LITERATURA NACIONAL


 MANIFESTO DO MOVIMENTO
“VAMOS DESCOBRIR ANGOLA”

1. Em 1948, alguns escritores angolanos, tendo como figuras de proa Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto e Mário Pinto de Andrade criam o primeiro movimento literário dos naturais da terra, o Movimento dos Jovens Intelectuais. Esse grupo de intelectuais que viria a integrar a chamada Geração de 50, enquadrados na Associação dos Naturais de Angola, publica a primeira colectânea de poesia angolana, o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa. Também editaram o jornal MENSAGEM (Luanda, 1951-1952), com o intuito de "marcar o início de uma nova cultura, de e para Angola, fundamentalmente angolana". Este primeiro movimento cultural que surgiu em Angola adoptou o lema: “VAMOS DESCOBRIR ANGOLA”, que “incitava os jovens a redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um trabalho colectivo e organizado; solicitava o estudo das correntes culturais estrangeiras, mas com a finalidade de reflectir e nacionalizar suas criações positivas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão a avidez do exotismo colonialista. Tudo isto deveria basear-se no sentido estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas".

2. Apesar da coragem e determinação deste grupo de intelectuais, sob o domínio da potência colonial portuguesa, MENSAGEM contou apenas com dois números, pois recebeu um veto do Governo-Geral de então, constituindo este revés um profundo golpe no iluminado propósito da Geração de 50.

3. No dia 11 de Novembro de 1975, após uma luta sem tréguas contra o colonialismo, Angola alcançava a Independência. Em 10 de Dezembro de 1975, era proclamada a UEA, com os objectivos de, nomeadamente, “Promover a defesa da cultura angolana como património da Nação; Estimular os trabalhos tendentes a aprofundar o estudo das tradições culturais do povo angolano; Fortalecer os laços com a literatura e as artes dos outros Povos Africanos;
Promoção dos valores culturais nacionais e de todas as conquistas universais”.

4. No 8 de Janeiro de 1979, considerado "Dia da Cultura Nacional", no acto de posse dos novos membros da União dos Escritores Angolanos, Agostinho Neto, sempre imbuído dos pressupostos da Geração de 50, defendia: “(...)  Do ponto de vista cultural, há que analisar. Não adaptar mecanicamente. Há que analisar profundamente a realidade e utilizar os benefícios da técnica estranha, só quando estivermos de posse do património cultural angolano. Desenvolver a cultura não significa submetê-la a outras.”

5. O curso da História da África Contemporânea veio provar que o slogan “Vamos Descobrir Angola” lançado em Luanda, em 1948, era já um prelúdio nacionalista do Renascimento Africano promulgado em 2013, pela União Africana, por ocasião do seu Jubileu de Ouro. Nos dias 22 e 23 de Agosto de 2013, foi lançada, na República do Congo, a Campanha do Renascimento Cultural Africano para os Estados Membros da África Central. A Campanha visou sensibilizar os Estados-Membros da União Africana a ratificar a Carta do Renascimento Cultural Africano e a promover o renascimento cultural africano e o espírito do Pan-Africanismo.
A Carta do Renascimento Cultural Africano, no seu artigo 3º, coloca como um dos objectivos cruciais: “l) dotar os povos africanos de recursos que lhes permitam fazer face à globalização.”

6. É consabido  que as nações mais desenvolvidas conservam sempre um pano de fundo residual cultural, prioritariamente determinado pela língua, mesmo que essas nações sejam feitas de vários povos e nações misturados. Já entre nós, aqui na África Austral, o substrato bantu está a diluir-se a cada década que passa, está a tornar-se obsoleto, e um elemento desse substrato, as línguas locais, está em desuso paulatino.

7. Com a expansão das Tecnologia de Informação e Comunicação (TICs), hoje, no século XXI, o Mundo deixou de ser uma Aldeia Global (numa aldeia, há espaços largos de mobilidade) para se tornar um Apartamento Global, onde a privacidade perde as fronteiras e tudo se sabe sobre todos (Big Brother global).
Se a imediata universalização das tendências da Arte Universal, nos domínios da Literatura, da Música, da Pintura, do Cinema, do Teatro, da Dança, etc., constitui um factor positivo a ter em conta no uso generalizado das TICs, há um aspecto negativo que consiste no facto de que a Globalização, com o apoio das TICs, criou a miragem de que a uniformidade artística pelo padrão ocidental significa modernização. Portanto, há uma desconsideração do fenómeno da Diversidade a favor de uma polarização universal. A cultura dominante anglo-saxónica ampliou a paleta comercial e hoteleira da nossa arquitectura social urbana com denominações inglesas.

8. Como está definido nos princípios fundamentais da política cultural da Carta, no seu Artigo 21º: Os Estados africanos deverão: a) assegurar que as tecnologias de informação e comunicação são utilizadas para promover a cultura africana.”
Foi este precisamente o legado que nos deixou a geração da revista Mensagem para quem “A nova poesia de Angola teria de encarar o ritmo-emoção característico do homem africano; ritmo-emoção esse que lhe era transmitido pela própria natureza em que ele se integrava e com quem vivia em contacto directo e em plena comunhão.”

9. Hoje, a Cultura Angolana apresenta uma diversidade de manifestações muito ricas nos domínios das Artes e das Letras, manifestações essas que representam a síntese estética dos sentimentos e emoções colectivos de todo o Povo, da Alma de uma Nação.

10. Neste contexto, e porque os ideais de emancipação e afirmação cultural da Geração de 50 ficaram cristalizados no crisol da História de Angola, apesar dos seus mentores desaparecerem na curva do tempo, a UEA entende que a sombra protectora e libertária da nossa bandeira confere-nos a mais lídima oportunidade para recuperamos esse rico e inextinguível legado que as gerações dos nacionalistas não puderam concretizar, dada a incontornável repressão colonial.

11. Neste momento de grande transcendência histórica, num contexto de profunda transformação material da sociedade e de modernização do Estado Angolano, a UEA propõe-se resgatar alguns esses valores essenciais do nosso património ancestral, com vista a valorizar o produto cultural e o estatuto do escritor deste tempo.

12. A total liberdade conferida pela Independência de Angola constitui uma oportunidade para o resgate pleno de vários instrumentos ideológicos culturais que nos foram legados pelos nossos ancestrais. A UEA, enquanto legítima herdeira dessa tradição literária, mantém firme a ideia de que a independência de Angola não significa uma ruptura com os ideais do Pan-Africanismo e do Movimento de Libertação. Dentre eles, os que orientaram a fundação do movimento dos Novos Intelectuais de Angola, particularmente o slogan cultural "Vamos Descobrir Angola!", como expressão da nossa maneira africana de sentir, e que Agostinho Neto condensou de forma magistral na sua ode ‘A Voz Igual’, com esta frase lapidar “Reencontrar a África”, e, nos versos sublimes: “a forma e o âmago/ do estilo africano de vida”.

13. Com este ideário histórico-cultural, é possível aos membros da UEA iniciarem um movimento de renascimento artístico-cultural e congregarem em torno dele outros Artistas Angolanos, sob o lema ‘VAMOS DESCOBRIR ANGOLA’ que procurará, com meios e capacidades intelectuais dos seus membros, e por meio da cooperação com o Executivo Angolano e as instituições e organizações angolanas, a União Africana, a UNESCO e os artistas e intelectuais de todo o planeta, iniciar acções com vista a:

a) Retomar e promover os postulados teórico-culturais do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, de 1948, e do seu slogan apócrifo VAMOS DESCOBRIR ANGOLA, no sentido de ‘combater o respeito exagerado pelos valores culturais do Ocidente (muitos dos quais caducos); incitar os jovens artistas e escritores a redescobrir Angola em todos os seus aspectos; estudar as modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas e válidas; pautar-se, na obra de arte, por privilegiar a expressão da autêntica natureza africana, com base no senso estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas’;
b) fortalecer o papel do património cultural e natural na promoção da paz e da reconciliação nacional;
c) estudar e divulgar os recursos para lidar com a globalização, em particular, o conceito de crescimento qualitativo dos valores éticos e estéticos, dos padrões de convivência, que enriquecem a vida humana e que constituem a esfera ampla da Cultura e dos outros elementos que constituem a ‘ARTE DE VIVER’.


sexta-feira, 6 de maio de 2016

INKUNA MINHA TERRA



LIVRO PRIMEIRO


JOGO DE XADREZ
Joaquim Katú e Francisco Chindende viram passar um corpo em retorcidaqueda livre. Pareceu-lhes ser o do colega José Benvindo. Aterrados, esperando ouvir a todo instante o baque surdo do corpo a encontrar esfarelado alcatrão, curvaram-se no parapeito da janela. António Keta, sentado à sua secretária, quase foi derrubado pelos colegas que, atordoados, deitaram a correr para o rés- do-chão. Ao perguntarem aos guardas se não tinha caído do quinto andar um corpo, mais precisamente o de José Benvindo, entreolharam se, produzindo um lustroso sorriso cínico e afirmaram não ter visto nem ouvido coisa alguma. Abasbacados, já que tinham sido objecto da mesma alucinação, encetaram soturnamente o caminho de volta, pelas escadas.
“O que foi, o que vos deu?”, indagou Teta, que os aguardava perplexo.
“Nada, não foi nada.”, disse Katú, tentando esconder a ansiedade e a vergonha dos dois. “Não foi nada e saíram daqui a correr, depois de quase me terem atirado para o chão?”,  insistiu Teta.
“O Chindende pensou estarem-lhe a roubar o carro.”, retorquiu Katú para fugir ao assunto.
Pressentindo que mentiam, mas não desejando incomodar-se, com um encolher de ombros, António teta tamborilou oi tampo da secretária.
Chindende e Katú olharam-se, via-se que ainda se interrogavam a eles próprios.
“Bem, já que não é nada, continuem o que estavam a dizer.”, adiantou Teta.
O pequeno gabinete empestava a tabaco. Na parede, por trás da secretaria de António Teta, director para uma das áreas geopolíticas do Ministério do Exterior, a fotografia do presidente da República. Não obstante a larga janela aberta, o calor tornara-se insuportável, porém as pequenas gotas de suor que fluíam pelas faces de Joaquim Katú e de Francisco Chindende, feitas manhã de cacimbo, eram sobretudo de tensão. Pretendiam sondar António Teta sobre melindrosa questão.
O momento político fermentava em expectativas e movimentações de toda a ordem, o partido único havia realizado há pouco o seu congresso, apresentando tanto uma direcção regenerada, quanto uma política reordenada. O facto implicava uma fase de intrigas intestinais visando a promoção pessoal e a ascensão. As lutas desenvolver-se-iam pelos gabinetes do funcionalismo público e da nomenclatura partidária, com o ajuste de contas que houvesse a ajustar. Redondamente quanto possível, política, rácica, tribalmente, de outro modo.
Chindende e Katú apareciam, por opção própria, como afiado gume de catana desbravadora de ínvias picadas, com abnegado ardor e juventude, dado a ascensão pretendida só assim ser alcançada mais de imediato.
Nesta gesta, ninguém quereria ser visto como tendo pertencido a um passado imediato ora comprometido, as ratazanas abandonariam o barco aos então timoneiros para navegarem, doravante, ao leme da jangada, num tortuoso rio chamado deserto.
A lealdade, onde pudesse existir, tingia-se no esmalte da tribo e da família.
Primeira era-se nação, no conceito clássico do clã, e só depois se era país no sentido desejado. O problema é, por isso, não só enxergado como situação essencialmente política, mas, pior ainda, assim vivido.
Joaquim Katú há momentos que girava um cigarro nos dedos, demonstrando um nervosismo inconsciente a António Teta, o mais velho dos três, sentia-se pouco à vontade. Indagava-se sobre o que os ruminantes colegas desejariam.
Coisa boa não devia ser, tanta cautela e conversa branda só era prenúncio de patifaria ou tempestade.
Originário da capital do país, nascera num dos bairros mais populares de Katola, filho de pequeno funcionário dos Correios e Telégrafos e de senhora que frequentara a escola pública até à quarta classe, ambos tementes a Deus.
Graças a este pano de fundo, tivera uma educação esmerada para a época.

Katola de então era um burgo acanhado suando provincianismo, onde a pequena burguesia negra e mestiça formava uma classe,conquanto incipiente.
Foi nessa camada que o nacionalismo fez sobressair os expoentes que, mais tarde, conduziriam a luta de emancipação nacional.
Nas matas, e comissário político, tivera que se impor como nacionalista, ciente de que o factor tribo jamais poderia insinuar-se. Aprendera as línguas locais das diversas regiões político-militares em que actuara, assimilara e respeitara os costumes que não eram os seus.
Décadas depois, tentava-se articular no seu gabinete patifaria que contradizia toda uma filosofia própria, e sentia-se agastado. Já nem recordava as vezes que presenciara casos similares, estigmas que sempre existiram como apelo à emoção, fartando-se de ouvir que os brancos não gostam dos pretos, os pretos não gostam dos mulatos, os Ilungos detestam os Murongos, os Ungos isto, os Ussas aqueloutro.
“Mas nós somos um país africano.”, disse enfático Joaquim Katú, segurando na mão direita o cachimbo apagado e dando continuidade à conversa interrompida há pouco.
“Certo. Agora dá-me é uma definição objectiva do que é ser-se africano. É africano um branco que já é inkunino há gerações, mesmo sem ser daqueles que nasceram e cresceram no mato feitos um qualquer outro preto e que de europeu só tem a cor? E um mulato o que é ele então, euro-africano ou vice- versa? É africano um negro nascido e crescido na Europa, ou Ásia?”
“Quando o Chindende disse que a nossa diplomacia não devia ter um branco à frente, foi uma afirmação geográfica, foi sob esse ponto de vista que concordei.”, soou um pouco em falso, Joaquim Katú.
António Teta acendeu um outro cigarro e atirou o fósforo para o cesto do lixo, falhando o alvo.
“Ao pretender-se que na nossa diplomacia não devam estar, em postos chave, pessoas de epiderme mais clara do que a nossa, é não só um absurdo, uma aberração, como perigoso e uma faca de dois gumes.”, disse, convicto.

Os outros entreolharam-se. Contavam com este tipo de argumentação. Sentiam que Teta não percebera ainda o coração do ser humano e a tendência instintiva para a posse, para a acumulação a qualquer preço, mesmo o da dignidade. Não o interromperam, deixaram-no continuar, já agora desejavam conhecer até onde iria.
Havia alturas em que cogitava sobre o que em realidade germinaria nas mentes dos seus camaradas mais novos? Os valores feneciam num mar de lama? Assim a ser, num futuro não muito distante, o país entraria em crise por se ver esvaziado da autoridade. Sem moralidade não se governa, não se alcança justificar o bem-estar de poucos através da corrupção cada vez mais abrangente. E, em última instância, acreditava que no mais recôndito da indecência, esconder-se-ia, intrinsecamente anichado o reconhecimento e o amor à pátria, que venderiam os caminhos à auto-castração de ego nacional.
Observou Katú a acender o cachimbo e aspirou a nuvem aromática que seespalhara no ar. Pensou que faria bem em deixar de fumar.
“Tudo poderá estar muito certo, mas quando os ministros africanos reúnem e aparece no seio deles um branco a representar um país de África negra, o que sentem?”, insistiu Francisco Chindende.
É uma infantilidade o que acabas de dizer. Essa África nunca existiu na realidade, foi uma África desejada pelos pais das independências, cheia de armadilhas com negritudes e autenticidades. Onde foi parar o pan-africanismo face aos interesses nacionais imediatos dos vários países africanos? Não sei se sabem, no início da luta armada, os brancos inkuninos foram tachados de portugueses progressistas, ou qualquer coisa assim parecida. Pode-se compreender essa análise. O início da luta armada exigia-o. Tu Chindende, embora te consideres um ser evoluído, não te libertas do preconceito social ao qual dás uma matiz rácica. Como camponeses, era mais do que natural que os teus pais sentissem o branco como o sentiam. Branco era branco e ponto final.
Toda via a tua experiência não é essa na sua totalidade. Serás por seres dono de terras, possível e futuro latifundiário?”, retorquiu António Teta alfinetando-o.
De facto, Francisco Chindende era filho de camponeses. Nascera em Kala-Hanga na província de Angulo, conseguira uma bolsa de estudos das igrejas evangélicas e formara-se em ciências políticas. Regressara ao país em 1976,integrando nas fileiras da juventude do movimento de libertação, na área das relações externas, passando mais tarde para o Ministério do Exterior.
Nunca rejeitara a origem nem o passado, todavia sentia-se menos à vontade quando face a urbanos. A ascendência fazia-o sentir-se dono de uma mancha oculta, que em situações específicas, tornava-se visível e incomodativa, como agora, sofria por ter que apresentar a noiva a seus pais. Lucinda era de Katola, de família destribalizada bem enquistada na pequena burguesia administrativa, e estudante universitária. Sentia as pressões por ser sulino, pressões essas muito maiores, pelo motivo inverso, quando a levasse à terra. Sua gente teria extrema dificuldade em aceitar uma jovem do Norte e não uma camponesa, já que as meninas da cidade não representavam os padrões adequados a toda uma vivência rural mais arreigada à tradição, à identidade cultural.
“Eu latifundiário? Deves estar a brincar certamente. A pequena chitaca do meu velho nem deve produzir três sacos de milho!... E o que tem isso a ver com o facto de termos um branco à frente da nossa diplomacia? Aliás, não é só o ministro, e não vale a pena acusar-me de racista.”, contra-atacou, a apalpar terreno escorregadio.
Teta olhou para Katú pensando que Chindende brincasse. O à vontade da afirmação, a irreverência proposita da levaram-no a ver que não. Havia ali uma provocação intencional, esperava-se uma reacção qualquer da sua parte e, de preferência, emocional.
“Mas ó meu caro, se pões a questão nesses parâmetros, é precisamente o que te poderão chamar, por muito de acordo que possam estar contigo”, interrompeu Katú, admirado.
“Certo.”, respondeu Teta, “por muito pouco que tenham sido, quando seguraram a arma na mão para defender o ideal comum, não disseste nada, pois não? Talvez até tenhas pensado, aqui está um desses gajos bem fixe, portanto este, e só este, poderá ter acesso à nossa nacionalidade, quanto à cidadania. Agora que desejas ascender, desejo esse natural, quem não quer ascender, gritas que está no teu caminho e há que removê-lo? E se não estivesse, estarias a gritar que por seres Ungo não vais a sítio nenhum num governo dominado por Ilungos, e sei que não te faria impressão, e até acharias justo, não obstante serem uma minoria, veres um negro presidente dos Estados Unidos. Enquanto os homens não se tratarem por iguais, não haverá harmonia, porque entre o que dizem e o que fazem, existe um mundo de obstáculos medonhos e falsos.”, disse António Teta , atendendo o telefone que tocava.
Aproveitaram a breve pausa para reacenderem cigarros.
Francisco Chindende, que mantivera um sorriso enigmático durante todo este tempo, tornou-se sério e intencionado. Esperou que Teta desligasse o telefone.
“Parece-me que ao quereres ver a árvore, acabas por perder a noção da floresta. E olha que a floresta somos nós.”, disse tão logo que pôde.
A afirmação confirmou a Teta que Chindende tinha um objectivo delineado e que estava a tentá-lo transmitir. O que fazer, abrir o jogo forçando-o de imediato a pôr as cartas na mesa, ou dar-se por desentendido e esperar que fizesse o passe?
“Certo, talvez até assim seja, mas diz-me uma coisa Chindende, será que na floresta todas as árvores são iguais, da mesma família, do mesmo porte, dão os mesmo frutos? Se me disseres que sim, estarei de acordo contigo, ponha-se um ministro negro só pelo facto.”
Joaquim Katúa chava-se sem saber como intervir, tinha que ter cuidado com a atitude. Também considerava haver muitos mulatos e Ilungos no Governo, embora reconhecesse que, no primeiro caso, era uma consequência directa do colonialismo. Quem tivera pai branco acedera com mais facilidade a uma educação formal, portanto, dentro de duas gerações, no máximo, a actual maioria mestiça educada tornar-se-ia numa minoria mestiça educada, pelo simples facto dos números. Todavia, cedo aprendera na vida que a posição mais cómoda, e proveitosa, é a de se esperar e ver para que lado o vento sopra.
O pai fora bola de pingue-pongue às mãos da vida, exactamente por ter tomado sempre posições contra os mais fortes, numa atitude algo missionária e mística. Sem ser político ou politicamente envolvido, deu por si deportado como terrorista, denominação com que se afastava qualquer um.

Katú jurara que nunca lhe aconteceria o mesmo, seria flexível, passaria a bola para onde tivesse que a passar, sem tibieza e com desenvoltura, mas só nessa altura e quando servisse seus interesses. Via no momento uma oportunidade de singrar, de subir de terceiro secretário para segundo, quem sabe até primeiro, caso houvesse a troca de ministros como se tinha por certo.
Adoptaria então uma posição imediata e consequente.
Em Ikuna, quando se toca num branco ou num mulato, os outros gritam logo que é por racismo. Vivem nessa susceptibilidade permanente, não obstante o forte peso económico que comandam, conscientes da sua deficiência política em termos de poder real. Em autocomiseração, lambem então as supostas mutilações e isolam-se em castas.
Talvez fosse aconselhável não se mostrar ainda.
“Ambos argumentos são convincentes, talvez se devesse é deixar o novo possível ministro declarar suas intenções.”, disse por fim para participar.
“Declarar suas intenções?”. Indagou surpreso Chindende. “Claro que não vai declarar intenção alguma. Se não nos aviarmos, vai é deixar tudo na mesma e agarrar-se aos mais velhos aí!”, afirmou, apontando o dedo para António Teta, e rindo como se o que dissera tivesse sido em jeito de brincadeira.
Teta tomou uma decisão quase instintiva, já lhe descobrira o jogo e não desejava ouvir mais.
“Já dei a minha opinião sobre tudo isto, não concordo e não vou meter-me em tramoias seja contra quem for. Mas se saírem-se mal, não me venham contar nada que não vos ajudarei. E aliás, se o que acabo de ouvir não for mais do que uma ideia de mau gosto, avisarei o ministro, poderão ter a certeza.”
Os dois mais jovens entreolharam-se assustados. Teriam jogado pesado demais? Ambos sorriram para desanuviar o momento.
“São unicamente troca de ideias, de opiniões...”, disse Katú.
“Claro!”, afirmou Chindende. “É mera especulação, pressupondo-se que de facto haja a troca de chefias na pasta”. Levantou-se. “Bom, vou andando para a minha secção. Logo se verá...”
De imediato Katú se levantou. Não desejava ficar sozinho, não sabia o que iria sair da boca ou da cabeça de António Teta, não se queria comprometer.
José Benvindo olhava pela janela para o largo fronteiriço. Pela primeira vez sentia-se desprotegido, o facto de ser membro do partido já não lhe oferecia a certeza do agasalho comum. Ao longo dos últimos anos sentira que o que os unira se desintegrava paulatinamente, nos ares dos interesses pessoais. Já não havia tropas portuguesas a combater, o colonialismo fora irradiado. Por isso, talvez já não se sentisse a necessidade de conquistar terreno junto ao povo, neste caso através de uma política justa de distribuição de proventos que a independência trouxera, a cada um a sua parcela. Enfim, comer-se daquela panela que fora comum a muitos durante a longa luta de libertação. Paradoxalmente, nunca sentira o que agora sentia. Afinal, a morte física fora algo mais certo e aceitável, uma possibilidade ou condição nas escolha que fizera.
Pela primeira vez em sua vida olhou para a cor da pele e tomou consciência dela como algo concreto e impeditivo. Nunca lhe acontecera tal, acreditar que a pigmentação alguma vez pudesse ser denominador nos rumos que a vida lhe reservaria, ou na de qualquer outro ser, numa pátria independente e soberana.
José Benvindo nascera em Aíze, filho de um emigrante português, que arribara com seu pai a Inkuna em 1900. Seu avô paterno tornou-se comerciante na capital do país, até que a morte o tolheu em 1925, aos 75 anos. O pai, Filipe Benvindo, sem vocação para o comércio, cedo faliu e meteu-se à aventura rumando para o Congo, então colónia europeia. Sem grande sorte, regressou a Inkuna e instalou-se no norte do país, em Aíze, transportando madeira para a capital. Numa das localidades entre Aíze e Katola, conheceu Maria de Lurdes, uma jovem mulata filha da negra Rita Kauía com o comerciante, também mulato, Abreu Júnior, este por sua vez filho da negra Madia com o comerciante português Abreu. Foi um namoro rápido, as viagens eram longas e não assim tão frequentes, um noivado ainda mais célere e o casamento logo de seguida.
Durante uns anos, até 1943, permaneceu a semitrabalhar para o sogro, altura em que decidiu rumar para Ubanza, uma província cafeícola, e aceitar o cargo de gerente de uma vasta fazenda em Nvula, que pertencia ao Banco de Inkuna, onde permaneceu até à sua morte.
Por essa altura, já José Benvindo se encontrava no exílio. Com o advento da independência integrou o Ministério do Exterior, chefiando uma das áreas geo-políticas.
Bateram à porta e viu Malette Golpes entrar. Com um sorriso e um rápido aceno de mão, sentou-se .
“Oi, tudo bem?”, indagou, Sem esperar resposta, continuou. “Já ouviste as novas? Parece que vamos ter novo ministro, fala-se insistentemente no Tala Ngo. Estamos lixados se assim for.”
Malette Golpes funcionava há cerca de quatro anos na Repartição Consular. Era nativa de Bula-Bula,uma província sulina deInkuna e filha de pais mulatos.
Formara-se em Direito na ex-metrópole colonial e regressara, como a grande maioria, pela independência. Dotada de palavra, mais ou menos nova nas lides político-partidárias, esbanjava teses e teorias dos manuais da revolução.
“Estamos quem?”, perguntou cuidadosamente e fechando a revista que lia.
“Nós, ora quem mais?! A malta aqui vai ser marginalizada, podes apostar.”, disse apontando para a pele do braço.
Benvindo não acreditava que isso fosse acontecer. Sabia que não se podia fazer do mulato o ponteiro do conta quilómetros da viatura, pretendendo-se chegar mais ou menos rápido a este ou aquele ponto, no que toca os diferendos entre raças, o embrião dos mesmos residindo nas diferenças sociais, nos problemas económicos entre classes e não no factor epiderme.
“Até pode ser que tenhas razão, todavia não creio. Olha, o Tala Ngo é uma pessoa menos extrovertida e espontânea, cuidadoso, delicado mesmo e não é tipo para muitas iniciativas pessoais. Quanto à cor, só se deixar-se ser levado.
Já o conheço há muito e nunca o vi ser racista ou manifestar-se como tal. Aliás, com a quantidade de mulatos que tem na família, nunca o poderia ser.”
“Mas como interpretas tu então o que aconteceu no congresso do partido? Os sinais são evidentes, a esquerda foi varrida, a mulatada vai ser varrida.”, precisou, preocupada.
Depois de ligeira pausa, em que não tirou os olhos dos dela, disse: “Mas então vai-se marginalizar a esquerda, e não os mulatos. Poderá haver casos pontuais de ajustes de contas antigas, tudo é possível...”
“Mas é precisamente onde estou a tentar chegar!”, interrompeu Malette vivamente. “Não vês que é mesmo por aí que o gato vai às filhoses? Certamente não irão publicar que tu ou eu não temos por completo a cidadania por sermos mulatos. Vão inventar uma estória qualquer para justificar o gesto, aliás tu, pela tua proximidade e intimidade com o ministros, vais ser o primeiro a ser varrido. E acredita-me, não creio que o novo te vá segurar.”
Benvindo franziu o sobreolho. Também já ouvira esse insinuação.
“Olha Malette, que faz a política é o bureau político, quem a aplica como membro do governo é o ministro, que igualmente é membro do comité central do partido, não sou eu.”
“Isso seria bom se assim fosse. Por onde tens andado?... Doravante vamos ter uma política que nos vai embrenhar no continente, esse será o blá-blá-blá mais imediato e fácil para se justificar o passo dado. Que estávamos muito voltados para a Europa, para os latino-americanos e muito pouco para a África, podes crer que será uma política banto e terá que ter, portanto, um ministro banto à sua frente.”
José Benvindo riu da afirmação. Soara-lhe como uma piada.
“Ministro banto? Claro que vamos te rum ministro banto. O Tala Ngo não o é? Tu e eu não o somos, em matizes diversas? Sabes Malette, ao fazeres tal afirmação, tocas no grande dilema de muitos de nós mulatos. O problema de ser ou não ser banto, seja em que perspectiva se coloque a afirmação, não está presente.”
Malette impacientava-se, parecia querer interromper meneando vigorosamente a cabeça, todavia Benvindo fez que não percebeu e continuou.
“Para além disso, Inkuna é um país negro na sua vasta maioria, e se se fala muitos dos mulatos e da sua apetência pelo poder é por que, sinceramente, a sua presença em cargos a níveis nacionais ultrapassa de longe a sua representação demográfica.”

“Tudo isso é muito bonito, porém não te leva a sítio nenhum. Estás na cidade, e a urbe é a moradia de ratazanas, não de ratinhos campestres bem intencionados e líricos. Não estás farto de ver que, quando cai o ministro, caem os mais próximos?”
“Está bem, caem porque só lá estão para prestar serviços. Não têm nada a ver com função e saber, estão lá para cobrir as negociatas, os assuntos pessoais, fazer as requisições e organizar os cambalachos, ou porque são família ou tribo, não porque técnicos competentes e qualificados. E nos raros casos em que o são, se não encobrem as falcatruas ou começam a denunciar actos de imoralidade administrativa na gestão da coisa pública, ou ainda pelo simples silêncio reprovador ao não desejarem meter-se em determinadas coisas, tornam-se uns empecilhos, inventa-se uma estória e vão para a rua.”
“mas então qual é a diferença? Eu não vou esperar que me façam a cama.”
“É teu direito, desde que para isso não pises ninguém!...”, disse Benvindo, já um pouco agastado com o assunto.
Estava ciente de o que Malette afirmara poder ser uma possibilidade. Parte da argumentação que usara forma mais para se convencer a si próprio, uma espécie de exorcismo do mal. Nada mais restava que nos unisse uma década apenas após o erguer da chama da liberdade? Só os interesses pessoais, as manigâncias, as falcatruas, o aboletamento da coisa pública, o uso e o abuso do poder, só isso nos convergia num número cada vez menor mais ínfimo?
Recusava aceitar que assim fosse.
“Espero que não esteja a exagerar”, respondeu Malette Golpes, “mas caso assim venha a ser, não sentirei pena de ti. Enxerga-te antes que seja tarde, essa maralha não brinca, é real e voraz, se não os acompanhares serás devorado.
Levantou-se, e como entrara, saiu atirando-lhe careta de sorriso.
À noite, quando relatara à mulher, a primeira reacção fora de o querer levar a uma tulula para lhe darem uma lavagem e fecharem-lhe o corpo, impedir qualquer mau-olhado. Teria que ser benzido para que tudo se anulasse.
“Sabes muito bem que eu não acredito nessas coisas.”, disse, cansado.

“Não acreditas, ou finges não acreditar? De qualquer dos modos,não precisas de acreditar para lá ires. Vou falar com a dona Fifi, ela conhece uma velha de fama e depois digo-te qualquer coisa.”
“Por amor de Deus mulher, não me metas em mais assuntos. Já te disse que não quero ir e que nem vou, não se fala mais no assunto.”
A esposa olhou para ele contrita. Derramou-lhe uma lágrima como se pressentisse algum mal.
“Se há problemas, uma pessoa deve proteger-se, nada mais.”, disse semi-resignada.
Benvindo incomodava-se com a conversa, tinha uma posição de superstição que tentava esconder de si mesmo. Sabia que, dentro de um contexto determinado, estas manifestações nada mais eram do que paliativo, um alívio moral para aspectos da vida que de um momento para o outro se modificam sem causa aparente. Fartara-se de ver isso, aliás a mãe, sempre que podia, e às escondidas do marido, chamava ao casarão da fazenda a velha Lumba, para consultas e adivinhações. Ele ainda hoje suspeitava que o pai soubesse e fechasse os olhos.
Naqueles longínquos anos, europeu no mato acabava sempre por africanizar, quer quisesse ou não. Começavam os mulatos a nascer, as famílias negras a aparecer e a impor os usos e costumes, enfim, a cultura banto a contaminar.
Conhecera muitas dessas experiências, não obstante seu pai ser bastante rígido quanto à perda de valores ditos civilizados. Daí o sentir-se culpado, vacilante, quando a esposa, preocupada, no fundo só lhe estendia uma mão carinhosa e protectora.
“Está bem mulher, um desses dias vamos, mas agora não me fales mais no assunto.”, disse, para encontrar uma saída airosa.
Como se previra, efectivamente o ministro do Exterior mudara.
Semanas após, quando teve conhecimento que alguns dos colegas se articulavam para iniciar a caça às bruxas, António Teta achou por bem falar com Tala Ngo, para que não fosse apanhado desprevenido.
O novo ministro era um homem calmo, retraído e, como não podia deixar de ser, antigo na luta emancipalista. Entregara a sua juventude à causa da libertação, singrara dentro das estruturas partidárias, atingindo alto nível na nomenclatura. Era natural de Katola e provinha de família estritamente urbana.
Teta entrou no gabinete e cumprimentou-o. Sentaram-se à volta da mesa de trabalho, sem cinzeiros, já que não fumava.
“Como vão as coisas?”, perguntou Teta. “Trabalho não vai-te faltar...”
“Sabes que conto contigo... disseste-me que querias falar sobre movimentações?... não tenho intenção de mexer nos quadros e nas chefias, anão ser que alguém queria sair.”
“Pois, é sobre isso que te quero falar. Como é hábito na terra quando um ministro sai, quase todos os que trabalham de perto com ele vão à vida. Alegro- me de ver que assim não pensas, até porque mesmo antes da tua vinda, já havia por aí articulações para se varrerem uns tantos clarinhos.”
“ai é? Esta malta é tramada, mas parece não me conhecer, nunca fui racista, e se alguém tiver que ser movimentado não será pela pele. O que se diz por aí então?”, quis saber Tala Ngo.
“Que o ministro cessante caiu por ser mulato, isso já sabes certamente, que portanto os mulatos nas chefias devem ir igualmente, as coisas de sempre.”
Um longo penoso silêncio apossou-se dos dois. Tala Ngo sentiu-se preocupado, situações desta natureza tinham que ser analisadas com todo o cuidado porque, se não controladas, muito poderia acontecer, e logo no início do seu mandato. Na presente questão haveria posições ambíguas e irreconciliáveis, certamente. Uns puxariam para um lado, outros para outro. Levantou-se e circulou pelo gabinete várias vezes.
“E quem está por trás de tudo isso?”, quis saber.
“A coisa ainda é embriónica, não sei bem quem seja o principal articulador.
Uma vez o Katú e o Chindende vieram ao meu gabinete e levantaram a questão.
Estou seguro que o objectivo era sondarem-me, disse-lhes que não estava de acordo e que se fossem avante te avisaria, pensando que com isso deixassem cair o assunto, mas ao que parece assim não foi.”
“É bem possível, são gente nova e vão querer subir rápido. Crês que te contarão novamente?”, perguntou Tala Ngo.
“Não sei. Não te preocupes, manter-te-ei informado.”
O ministro sentiu-se um pouco mais apaziguado e mudaram de assunto.
Entretanto, na casa do Chindende, uns tantos dos novos diplomatas encontraram-se para definir o que fazer, tornava-se imperativo uma acção concreta e a muito curto prazo. A haver que agarrar o boi pelos cornos, teria que ser já, enquanto o ministro saboreava a vitória e elaborava os planos.
“Álea jacta est.”, disse Chindende rindo.
“Deixa-te lá de latinismos e diz-nos o que pensas.”, respondeu um deles.
“O novo ministro terá irremediavelmente que tomar uma decisão e para qualquer lado que se vire está à pega. Para já, há que contar com o factor psicológico e aproveitar-se o momento.”
“Está bem, já sabemos tudo isso...”
“O problema com o Benvindo é que ele também é amigo do novo ministro.
Haverá que gerar uma situação que, pelo menos, crie ou engendre dúvidas no Tala Ngo.”, disse Francisco Chindende, agora sem dúvida em controle dos outros, já relaxados. “José Benvindo não está ligado a família nenhuma influente, o que torna a coisa fácil. Meus senhores, qual é o ponto fraco do ministro?”
“Demasiadamente cauteloso, às vezes parece que têm que o empurrar.”, afirmou Chindende de imediato.
“Qual é o deficit mais evidente do Benvindo nesta conjuntura’”,continuouKibi.
“Ter sido apaniguado do ex-ministro.”, ripostou novamente Chindende.
“Pois então é por aí que se deve armar a ratoeira. Uma vez conseguido, teremos o apoio de todos.”
“Mas como?”, quis saber Chindende. “Nunca se viu ou percebeu o Benvindo como racista, antes pelo contrário, às vezes até parece um preto branco, se é que isso existe!”
“Surpreendes-me pelo desconhecimento da alma dos teus nobres concidadãos. Uma coisa é o que o Benvindo é, outra coisa é o que poderá parecer, e nesta nossa terra temos a vantagem única de sempre caber ao acusado o ónus de provar a sua inocência. Isto aqui não é a Suíça.”
O jovem diplomata que fizera a afirmação, Kibi, sabia do que falava. Anos antes, ele próprio fora acusado de ser contrarrevolucionário pelo simples facto de se recusar a participar nos Sábados Vermelhos. Tinha a certeza de que uma vez a semente da dúvida implantada, Benvindo teria os dias contados como Responsável. O objectivo estava ao alcance, desde que não houvesse traições no grupo, o que acreditava não acontecer.
“Olhem, há dias entendi a Malette Golpes contar à Sala Tirocínio qualquer coisa sobre o ministro, como foi de passagem, não deu para compreender, mas acho que se podia explorar o caso, e se for o que eu penso que seja, temos o nosso peixe fisgado. Quem se dá bem com a Malette?”, indagou Kibi.
“Mas então o que é que pensas?”
“Acho que a conversa teria a ver com um deles ter insinuado que o ministro era banto, ou algo assim parecido.”
Sorriram e acharam que seria bom demais para crer. Certamente que a conversa teria a ver com tudo menos isso, a sorte não poderia estar assim tão obviamente do lado deles. Haveria que ver, inquirir.
“Eu poderei sondar a Malette, temos um relacionamento cordial e, caso seja verdade o que acabas de informar, como é ambiciosa, talvez consiga fazer-lhe ver ganhos imediatos.”, respondeu Chindende.
“Porém é mulata, certamente que não vai deixar cair o parente.”, acautelou um outro.
“A questão não será a de defender o parente, mas sim o que lhe apresentarmos como possibilidade real. Acho que não será difícil, deixem comigo, incluso somos da mesma banda.”, afirmou Chindende.
Pouco mais havia a dizer. O encontro, entre cerveja e gargalhadas, verteu para outras futilidades das vidas banais e agastadas, que Katola permitia.
José Benvindo, em casa, era mais uma vez assediado pela esposa para que se protegesse.
Queria que o marido fosse a uma velha sua conhecida para uma lavagem contra o mau olhado, incluso já arranjara o vinho, a gasosa, a fuba, o amendoim, a mandioca, o milho, o dendém, a cana de açúcar e o pano vermelho para amarrar no braço ou, se por vergonha de revelar que fora ao tulula, no dedo grande do pé direito.
Constrangido, cedeu para evitar arrelias no lar.
No sábado imediato, logo pela manhãzinha, partiram para um dos bairros da periferia de Katola. Uma vez chegados à casa da tulula, compungido, encolheu- se no fundo do assento do carro.
Nunca se perdoaria se alguém o visse naquela situação. Às pressas entrou para o quintal e colocou-se atrás de uma grossa e velha figueira, enquanto a mulher falava com a mestra. Estava vestido de um calção curto e velho, o tronco nu, já que a roupa teria que ficar no chão onde seria lavado com o banho que a idosa mesclaria. A esposa, de igual modo seria tratada.
De longe viu a velha pisar algo num pilão os ingredientes que a esposa trouxera e, mais tarde, virá-los para dentro de um balde de lata. Benvindo viu-a ainda remexer tudo com uma vassoura de palmeira e fazer gestos e cantilenas que não conseguiu perceber, por o quarto onde ela estava se encontrar num semipenumbra e distante da árvore atrás da qual se protegia.
O estômago doía-lhe e só então deu conta do nervosismo que há muito o dominava. Comum olhar de imploração, tentou transmitir a angustia à esposa.
Achava que não se devia brincar com o fogo, todavia agora era tarde para recuar. Já que aquiescera, teria que se entregar. Acabou por sorrir e sentiu-se valente. Olhou pelo lado positivo do medo, consolou-se.
Quando a velha se dirigiu a eles, depois de os ter colocado num canto próprio do quintal onde não pudessem ser observados por estranhos ao ritual, Benvindo sentiu-se muito fraco e recorda-se de ouvir o galo, que escarafunchava no quintal, cantar três vezes antes de desmaiar de ansiedade.
Despertou uns cinco minutos mais tarde, a esposa envergonhada e a velha relutante em fazer-lhe a lavagem, insinuando que precisava de um outro tratamento por estar dominado pelo espírito de um antepassado insatisfeito com algo que ele teria que descobrir. Talvez algum pacto familiar tivesse sido inobservado ou quebrado. Ao ouvir isto, José Benvindo vestiu-se sem demoras, agarrou na esposa, agradeceu à velha e partiu, mais angustiado do que chegara.
“Não devias ter agido dessa maneira. A velha tem razão, o teres desmaiado foi um sinal.”, disse-lhe a esposa no carro.
“Se nos metemos nestas coisas, nunca mais de lá saímos, porque hoje é a lavagem, em seguida o espírito descontente, depois não sei mais o quê!...
Chega, por favor não insistas.”, respondeu meio amargurado.
“Zé, não temos nada a perder. Se pessoas na tua família mantiveram um pacto que não foi cumprido, ou foi quebrado, então como a velha falou, haverá que agir.”
“Minha querida, por favor não insistas. Vamos para casa., o que tive hoje foi uma quebra brusca de tensão, nada mais.”, disse Benvindo, sem muita convicção.
“Está bem, veremos mais tarde. Mas olha, por muito civilizado que querias ser, somos africanos, esta é a realidade que nos rege.”, insistiu a consorte.
“Eu sei que somos africanos, não precisas de mo dizer. Por amor de Deus, estamos a quinze anos do século vinte e um!...”
“E o que quer isso dizer?”
José Benvindo tentava não demonstrar a irritação que sentia. E, por ser abstracta, mais o roía, como o zumbido do mosquito que não larga o ouvido a noite toda. A esposa continuou.
“Somos natureza, plenos de vitalidade que o nosso intelecto embruma, porque a civilização nos ameaça com valores que embora nos sejam hoje próprios nos são alheios e, às vezes, incompreensíveis por fugirem ao ambiente particular da nossa cultura. Esta ideia da aldeia mundial é muito bonita, só que exige um preço elevado.”

Na esquina das ruas ex-Ferreira Nataniel e ex-Namora Santos, o sinaleiro deu prioridade à transversal. De um carro que passava, alguém acenou para eles.
“Por que é que o negro não pode mais ter carapinha”, continuou a esposa, “não mais pode usar panos, por que é que tu não mais podes usar ostensivamente a fita vermelha amarrada  no pulso, ou qualquer outro sinal de harmonia entre o corpo e a alma? Por que não podes aparecer no ministério trajado da África, sem que seja considerado atraso e boçalismo? Estás a tentar dominar o que não podes, a desintegrares-te?”
Desta vez José Benvindo não conseguiu controlar-se, interrompeu zangado.
“A desintegrar-me? Queres dizer que vamos ter que começar a sacrificar pessoas para que a chuva venha, para que o negocio prospere e por aí fora? É isso que referes quando falas da minha desintegração?”
A mulher passou-lhe a mão pela nuca para o acalmar, entendia o que sentia com o ocorrido na velha.
“Claro que não. Falo tão somente da perda do calor humano que todos sofremos com a inversão de valores que nos são alienígenas. As nossas culturas estão asfixiadas. Os contágios culturais não pode de maneira alguma deixar- nos sem raízes, a herança de qualquer povo, e se não as preservamos ou as transformamos de maneira saudável, acontece o que está a acontecer.”
De um contentor aberto, levantou-se uma revoada de moscas quando um maluco colocou a cabeça de fora.
“Quanto cidadão há por aí em Inkuna em que a única coisa que o identifica com o continente é a cor da pele? São considerados africanos por serem negros, nada mais, mesmo que venham da China. Sabes por que é que tu, não obstante seres africano de nascimento e de cultura, és considerado aos olhos de qualquer, de estrangeiro? Precisamente por nos faltar essa base tradicional. Assim, és sinónimo de caravela, algo que veio do mar e de fora.”, continuou a esposa.
Já mais apaziguado, moderou a condução. Afagou a mão da mulher que sorriu, feliz.
“Tens razão, fomos divididos desde o início, confundidos com assimilações e outras coisas, e assim esvaziados ao longo dos séculos.”, disse José Benvindo, afrouxando no semáforo.
“Estás farto de ver gente a relacionar-se, como se fossem negros “negros uns, e negros “pretos” outros, numa incompreensível aberração. É terrível observares esse eterno complexo de culpa, porque no fundo o que se pretende é o realce em termos de classe. Sou melhor do que tu, tenho mais escolaridade ou dinheiro!”
O carro virou para o largo Quilaba no qual desembocava a rua onde os Benvindo moravam. A mulher levantou o vidro da janela e continuou.
“O racismo é uma emoção que pode ser camuflada durante um certo tempo, mas nunca escondida por completo. Verás o racismo numa família observando o comportamento dos filhos e não o dos pais.”, respondeu Benvindo, vendo os filhos sentados no muro da casa, conversando com outras crianças.
“Por isso sentimo-nos Murongos-inkuninos, Ussas-inkuninos, euro- inkuninos,afro-euro-inkuninos, a não ser nos raros casos em que somos campeões africanos disto ou daquilo. Encontramos então a identificação cultural que nos converte imediatamente em nação e gera linguagem identificadora que nos consubstancia como Inkuninos e Africanos.”, rematou a esposa.
“De acordo, mas quem castra as manifestações espontâneas da busca da definição de uma cultura nacional? Os estigmatizados, porque julgam que o poder está na assimilação do que vem de fora. Se eu disser lá no ministérioque fui ver uma tulula, o que me vai acontecer? Por acaso até nem sou, mas se fosse religioso e desejasse ir à missa ou ao culto, que me aconteceria? Sabes que no outro dia uma colega minha ficou ofendida por lhe dizer que deveríamos ter orgulho de sermos bantos?”
“Não nos devemos conformar, Zé. Esses dirigentes que publicamente pretendem ter poucas raízes africanas, em nome de uma ideologia política nascida na Rússia, pensas que não vão aos tululas para protegerem o cargo, as mordomias e as benesses? Pensas que não rezam, que no íntimo não dizem
“Se Deus quiser”, “Graças a Deus”, “Que Deus me ajude ou acuda”, ou ainda “Ai minha Nossa Senhora, se me deres isto eu prometo-te aquilo”?”
“Sei que assim fazem, mas por favor mulher...
“Desculpa, está bem”; deu-lhe um beijo na face e abriu a porta para sair.
Seriam umas dez e meia da manhã quando Francisco Chindende cruzou com Malette Golpes, nos corredores do Ministério do Exterior.
“Olá Malette, como vão as coisas?”, deu uma certa intenção à pergunta e à voz.
“Olá, bom dia. Como vão as coisas? Acho que te caberia dizer, andas por aí todo agitado...”, disse Malette provocando-o.
“De facto, ainda bem que perguntas. Daqui a uns vinte minutos passa na minha secção para concertarmos umas coisitas, enfim, pormos a fofoca em dia”, continuou, no mesmo tom.
“Está bem, puseste-me curiosa. Até já, então.”, acenou com a mão.
Chindende agradeceu aos deuses a ocasião propiciada, tinha desejado não ir à repartição dela, procura-la especificamente. Haveria de ser como fora, ao acaso. A sinceridade que procuraria transmitir seria mais crível se parecesse espontânea. Malette teria que sentir que aparecia como um elemento natural, quase predestinada, uma peça sem a qual o jogo não poderia ser jogado. Conhecia a ambição dela, todavia não sabia até que limites iria. Malette não seria difícil de convencer, e só com a participação dela o estratagema ganharia toda a verosimilidade, com o testemunho dela quem iria duvidar da palavra de um pré-lavado contra outro pré-lavado? Esse seria o maior trunfo e, como tão bem sabia, quem conta um conto, sempre acrescenta um ponto...
O terramoto do Benvindo viria por inércia. Até porque, com dúvidas de poder ser acusado, o ministro refugiar-se-ia no contra-argumento de que se não faço isto ou aquilo é porque estou a proteger o “branco” e, ao desejar que não fosse apodado de racista, contribuiria para que efectivamente o fosse.
Chindende de igual modo estava ciente que logo os poucos brancos do ministério se insurgiriam e diriam que estavam a ser perseguidos, que a terra também era deles e que não tinham culpa de ter nascido com a cor que tinham. Que já tinham dado provas de serem inkuninos e um não se sabe mais o quê.
E,po rfim, igualmente tinha a certeza de que os mulatos não confessariam que muitos eram arrogantes e que se a alienação havia em relação a eles, alguma era derivada de si próprios, do seu complexo de superioridade em relação ao negro, tanto maior quanto fosse o de inferioridade em relação ao branco. Portanto, quem soubesse mover essas peças com denodo, antes de se esfolar eventualmente num tropeção escorregadela, poderia alcançar posições que de outra maneira levar-lhe-iam uma eternidade, porque no fundo, a luta não era racial, era de interesses, sobretudo de classe.
Malette apareceu, ar de desinteressada e à vontade. Chindende, que estava sozinho na secção, fechou a porta e ofereceu-lhe um cigarro.
“Então, cá nos vamos habituando ao novo ministro.”, disse, em forma de cumprimento.
“Vamos ver, ainda é cedo para dizer seja o que for, embora todos os conheçamos. Acho que se tiver o nosso apoio poderá fazer algo de bom.”
“Pois, é mais ou menos disse que te quero falar, o momento exige que pensemos em nós, se esta malta dos antigos ficar nos mesmos lugares ad eternum, onde é que iremos? Há que criar espaços para a nossa evolução natural, o topo tem que abrir ou criará uma pirâmide invertida muito em breve. Os embaixadores não saem do ministério. São políticos que o presidente nomeia, como todos sabemos e vemos. Portanto, minha amiga, há que se fazer algo enquanto é tempo.”, disse Chindende, iscando o anzol.
“A nosso nível, deves estar a gozar comigo?”, respondeu Malette curiosa.
“Não, não estou. Há malta que está nas chefias das direcções políticas há anos só porque lutaram no maquis, e colha como o nosso país está com essa política. Tu e eu somos licenciados.”
“Lá isso é verdade, mas se te apanham a falar assim estás frito, sabes não é?”
“Claro que sei, também não falo assim com qualquer. És alguém com quem me identifico, da nova geração, inteligente, com formação superior e acho que se juntarmos forças poderemos avançar.”, incitou Chindende.
“Mas por que eu?”, desconfiou Malette Golpes.
“Já te expliquei, não há outras razões. Somos uns tantos com a mesma ideia e intenção, e só nos faltava tu para a incorporar.”
“Não conseguirão nada sem mim? Por que sou tão importante no que planejaram?”, continuou, desconfiada.
“Só te posso revelar o plano quando tiver a certeza que podemos contar contigo, que és uma das nossas. Sabemos da tua coragem e ambição, aliás isso
é o que nos une, somos vencedores natos, o mundo é nosso se partirmos à sua conquista. Sei que entendes isso, daí perceber os teus receios, todavia a sorte só bafeja os que tentam e os que ousam...”
Malette perdeu parte da tensão que a dominava e relaxou na cadeira. Ficou silenciosa num longo período de reflexão. Se bem percebera, algo já estava na forja para desancar alguém, agora quantos, onde e quem, ela não sabia.
Igualmente não percebia onde entrava a sua participação e, sobretudo, a valia que imputavam. Feitas as contas, talvez não tivesse nada a perder.
“Ouve lá ó Chindende, põe-te no meu lugar e vê se avançavas às escuras.
Tens que me dizer mais, o que sei é pouco.”, disse Malette.
“Não é que eu pessoalmente duvide de ti Malette, mas prometi aos outros.
Há uns certos fulanos que podem ser retirados das chefias com relativa facilidade, três pelo menos. Agora, o problema está em tirar o primeiro. É aí que precisamos de ti, e não me peças mais porque não te posso contar para além do que já sabes, o que não é pouco.”
Malette tornou a ponderar. Decidiu que se a mosca que estava prestes a ser engolida por uma osga na parede, efectivamente o fosse, ela aceitaria. Seria o augúrio de que tudo correria bem.
“De acordo. Entro convosco, não tenho nada a perder.”, respondeu já aliviada e relaxada.
A osga cuspiu as asas da mosca para o chão e correu lesta a esconder-se atrás do quadro com a fotografia do presidente de Inkuna.
Chindende soube então que a tinha nas mãos; o passo a seguir teria que ser dado com cuidado e de maneira a fulminar. Nu fundo, nunca gostara de Malette Golpes, sobretudo pela mania de querer demonstrar que sabia mais do que os outros. Todo o Ministério do Exterior já tivera a oportunidade de, em uma ou outra ocasião, adormecer ao agreste som do parlapapiar da ilustre defensora da revolução e afins.
“Fico feliz dever que te juntas anós. Contava que o fizesses, por ter e conhecer inteligente e perspicaz. Sendo assim vou directo ao assunto. Já deste conta que nunca evoluiremos se as chefias antigas se mantiverem. Os embaixadores são nomeados pelo presidente da república e não abandonam a vida diplomática anão ser que morram, e só mudará quando nós, os jovens e formados, lutarmos para tal. Teremos que criar espaço próprio, impormo-nos e dar mostras de competência. O resto será um pouco como a selecção natural das espécies...”
“Soa muito bonito, porém como chegar até aí, se a política externa é pelouro da presidência, e ministro algum conseguiu indicar fosse quem fosse para as embaixadas? Os embaixadores quando estão em Inkuna nem se dignam a vir ao ministério...”, disse Malette.
“É assim, porque os directores são antigos e acomodaram-se, amedrontaram- se, é malta que está no posto só porque lutou. Isso tem que acabar., se quisermos ter uma diplomacia profissional. Não nos licenciámos para ficar aqui por baixo eternamente. E quando dermos prova da nossa competência, terão que nos ouvir. Olha para as nossas embaixadas, algumas não são mais do que escritórios de interesses comerciais pessoais, onde casualmente se faz diplomacia. Mas passando ao assunto principal, a nível das nossas direcções, há três directores que podem bazar. O problema é conseguir-se pôr o primeiro a andar. Os outros irão por apatia. É a propósito disso que te queríamos falar, ouvi dizer que o Benvindo chamou ao Tala Ngo ministro banto numa conversa que teve contigo.”
“Não foi bem assim como dizes, ele não chamou e muito menos no contexto que insinuas...”
“Bom, muito bom. Confirmas assim que efectivamente a conversa teve lugar, resta saber quem, como e porquê chamou banto ao ministro. Se não foi ele, quem terá sito então?...”
Malette Golpes sentiu um frémito até ao mais fundo da alma. Fora agarrada, percebeu a jogada e no logro em que caíra. Estava num beco sem saída. Esperou que Chindende não a tivesse visto corar.
“Bem, não tinha analisado o problema sob esse ponto de vista...”, calou- se porque ofegava, e tentou acender um cigarro, sem o conseguir, para não revelar que tremia.
Chindende disse para consigo mesmo: “Já estás minha linda e desta não escapas.” Sorriu e deu-lhe tempo para se recompor. Lento e cavalheiro, acendeu-lhe o cigarro.
“Mas como, Malette? Só pode ter uma interpretação, a afirmação é rácica, sem sombra de dúvidas, e se não foi ele...”, apertou o cerco.
“Olha Chindende, quando o Benvindo afirmou que se íamos ter um ministro banto e as nossa política ia ser, por consequência, banto, interpretei que doravante estaríamos voltados para o nosso continente...”, afirmou, procurando uma saída airosa.
“Nada disso, se o Benvindo disse que o ministro era banto, fê-lo num contexto rácico e depreciativo. Portanto, não tem moral para dirigir uma área política. Agradeço-te a informação. Como imaginas, vou ter que relatar o acontecido ao Tala Ngo.”
“Filho duma cadela”, pensou Malette, “afinal era isso que querias de mim.
Estou tramada, se não entrego o Benvindo, é a minha vida que se complica. Se o entrego, não sei como vou poder encará-lo!...”
“Quando o ministro me chamar, contar-lhe-ei tudo como te contei a ti. Agora não esqueças que nos encontramos no mesmo barco e tu numa posição muito mais perigosa. Certamente se as coisas correrem mal, tudo desabará sobre ti.”
“Macte animo, generose puer, sic itur ad astra.”, disse gozão.
“Deixa-te lá dos latinismos, que não tens graça nenhuma.”, respondeu
Malette, agastada.
Dois colegas que repartiam a secção entraram e Malette aproveitou para sair, ainda não se senti bem. Chindende acenou-lhe a despedida com a mão, um sorriso de matreira cumplicidade nos lábios.
Dias depois, António teta foi ao gabinete do ministro, após um telefonema em que o informara que teria que o ver de imediato.

* Coragem valente criança, é assim que se vai aos céus.
“Não te trago notícias muito boas, esses filhos da mãe foram avante com o projecto, e já tens uma batata quente nas mãos...”, disse, sem cumprimentar o amigo.
“Calma, senta-te primeira e conta-me tudo depois. Não poderá ser tão grave assim.”
 “Perdoa-me, mas até é. Há pouco, o Chindende esteve no meu gabinete e informou-me que tinha provas de que o José Benvindo te havia chamado ministro banto e que, por consequência, doravante iríamos ter uma política externa banto.”, respondeu Teta.
“Acreditas nisso?”
“A questão não é acreditar ou não.”
“Claro que o Benvindo, mesmo que o tenha afirmado, vai negar.”, disse Tala Ngo, igualmente na dúvida.
“Aí é que está o problema, nunca conseguirás provar nada. E mesmo que te tenha chamado de banto, não é crime nem deverás fazer grande questão, projectar-te-ás como mais um negro complexado e com vergonha das suas raízes. Não é à toa que a questão aparece por esse prisma, quem organizou isto está plenamente consciente das nossas divisões. Agora, podes é ter a certeza que essa corja vai movimentar-se e deixar-te num beco sem saída. Seja o que fizeres, vais ser criticado, qualquer variante que escolhas, vai ser contrati.Não sei se devas ir dando tempo ao tempo e deixar a questão morrer. Se, depois, as suspeitas apontarem para que a acusação seja verídica, o que sinceramente duvido, nas calmas poderás decidir o que fazer em termos de diálogo, doutro modo só irás alimentar o monstro.”
Tala Ngo parou para pensar. Sentiu-se aborrecido por estarem a criar-lhe problemas. Sabia que as jogadas, para ganho de espaços e influências, se manifestariam num futuro curto, mas nunca pensou que fosse tão de imediato.
O primeiro passo a dar seria ouvir Chindende e Malette, para verificar o grau de solidez da acusação que fizeram, depois falar com o José Benvindo e, por último, aconselhar-se com os amigos. Estava ciente que, qualquer que fosse a decisão, não seria fácil. Se pendesse para o Benvindo, é porque estaria a proteger um “branco”; se o punisse é porque estaria a discriminar, a atacar sem provas um minoria só por esta se encontrar supostamente desprotegida.
Se não fizesse nada, é porque seria frouxo, lerdo. E por último, o que António
Teta lhe dissera era bem verdade.
Dias depois, tala Ngo chamou Francisco Chindende ao gabinete, de imediato antipatizou com ele, e sem rodeios foi directo à questão.
“Sente-se. Ouvi dizer que fez umas afirmações ao director António teta sobre a minha pessoa. O que se passa de concreto?”, falou de modo seco.
“Camarada ministro, a situação é delicada e não sei muito bem como começar...”, respondeu Chindende, preocupado com a frieza.
“Comece pelo princípio, como começou com o director Teta. Parece não tersido esse problema.”
“Mau, já meti o pé na argola”, disse para consigo mesmo, Chindende. “Vai com calma, fala-lhe directo e olha-o nos olhos”, aconselhou-se.
“Camarada ministro, no outro dia em conversa com a Malette Golpes, veio a caso uma troca de opiniões sobre a nossa política externa, ou seja, os novos rumos que ela certamente seguirá, quando foi-me dado a entender que um colega, o director José Benvindo, teria afirmado que doravante iríamos ter uma política banto, já que o ministro era banto. Queira-me desculpar a franqueza, mas foi assim mesmo que ela me pôs a questão.
Tala Ngo enervou-se, coisa rara com ele, todavia escondeu.
“Em primeiro lugar, gostaria de entender como sabe quais os rumos que a política externa nacional vai seguir e, em segundo, estimar o que significa para si ministro banto e política externa banto?”, indagou, sereno.
“Camarada ministro, não fui eu quem fez tal afirmação, não sei o que ele quis significar com isso.”
“Certo, não estou a perguntar-lhe o que o camarada Benvindo quis significar com isso. Mas pela importância que você deu, quero saber o que para si poderá significar essa afirmação.”, insistiu Tala Ngo.

Francisco Chindende compreendeu que poderia cair numa armadilha e parou para reflectir. Mas teria que ser rápido, não podia permitir que Tala Ngo sentisse nele a mínima hesitação. Mais uma vez olhou-o directamente nos olhos quando retorquiu.
“É uma questão difícil de responder, camarada ministro. Dei importância por que pareceu-me que se estava a tentar denegrir não só um dirigente, como sua actuação futura e, por extensão, o país.”
“De que modo se está a denegrir um dirigente ao chamar-se-lhe banto, o que na grande maioria somos, e porque haveria Benvindo de denegrir o pais do qual é nativo, e pelo qual lutou?”
“O termo banto é aqui aplicado depreciativamente, camarada ministro, foi dito para inferiorizar uma pessoa e sua acção. Foi assim que senti, e daí ter contado ao director Teta. Achei meu dever informar.”
“Primeiro, colocar-me num plano inferior em relação a quê e a quem? Segundo, você estava presente quando tal afirmação foi supostamente feita, para poder apreender ou não a intenção e o significado?”, disse deveras aborrecido Tala Ngo, que começava a adivinhar o que por ali vinha.
“Não, camarada ministro, mas a Malette Golpes poderá melhor do que eu confirmar se falo verdade ou não. Foi com ela que o assunto se passou, não comigo. Só que,sabendo que ela ficaria calada, resolvi alertar quem de direito.”
Tala Ngo viu que dali já não extrairia mais nada. A jogada estava clara e evidente, restar-lhe-ia ficar com a batata quente na mão e ver como actuar de seguida. Teta tinha razão, Benvindo não teria sido tão desajeitado, tão inábil, para formular tal afirmação e dentro do contexto em que a inseriam, concluiu.
“Está bem, pode retirar-se.”
Francisco Chindende, inadvertidamente, suspirou de alívio. Nunca supusera que Tala Ngo reagisse desse modo, tornava-se imperativo alastrar a acusação o mais possível, e da maneira mais rápida. Só assim evitaria que Benvindo se safasse. Quanto mais gente soubesse melhor, quanto mais se falasse a nível de Katola, mais Tala Ngo estaria amarrado ao inevitável.
Dois dias depois, o ministro convocou Malette Golpes e deu-lhe o mesmo tratamento. Esta confirmou categoricamente que Benvindo o tinha chamado de banto de maneira depreciativa, o que achara impróprio não só por saber que ele era amigo de longa data do ministro, mas porque devia respeitar um dirigente não só partidário, como governamental. Notara que Benvindo tinha um sentimento de lealdade muito forte para com o ministro cessante e não medira bem as palavras, talvez pensando que por ela ser mulata como ele, a coisa passasse despercebida. Para ela, ser-se banto era motivo de orgulho, por que todos nós o éramos mais ou menos, referiu.
Como Chindende, Malette saiu preocupada e insegura se tinha feito a coisa certa. Não esperara, de igual modo, pela reacção de Tala Ngo. De imediato dirigiu-se à secção de Chindende que a acalmou e fez ver que Benvindo nunca poderia safar-se da enrascada em que se encontrava enfiado. Talvez que o ministro não decidisse de imediato, mas desde que a chama fosse mantida viva, mais cedo ou mais tarde, teria que tomar uma decisão, até por que não era homem para ir contra ventos ou correntes.
Passados três meses do encontro do ministro com Chindende e Malette, na casa de José Benvindo registava-se um ambiente de óbito. Na sala, cheia de vizinhas, sua mulher gritava insultos a Tala Ngo e à falta de justiça no país.
Culpava, sobretudo, o marido por não se ter protegido, por não ter continuado o tratamento. O resultado estava ali á vista, fora exonerado da carreira diplomática, perdera o emprego e o que iria ser deles agora com dois filhos pequenos? E quem lhe ia dar trabalho, nessa situação?
Para sua consolação, muita gente do bairro, ofendida e revoltada, incluindo parentes do ministro, dirigiu-se a casa deste na vã tentativa de o obrigar a rever sua posição. Todavia não aquiesceu.

O que estava feito, estava feito.