Uma brusca lufada de ar quebrou uma asa à gaivota, lançando-a para o gelo do canal, onde ficou volteando, atordoada. Vários transeuntes junto à ponte buscavam vias de a salvar, todavia a tarde fria de inverno fustigava as ruas de Amesterdão. Ruas estreitas, calcetadas e escorregadias, ladeando os canais ora gelados, impedindo a navegação das pequenas embarcações que os utilizavam. Ás largas barcaças, sobrava o rio Amstel, pontilhado de blocos de gelo quebrado.
No conforto ameno da residência, uma pequena cave de dois quartos na Prinsengracht, Lito Boal lia uma revista cinéfila, quando a campainha da porta ressoou com insistência. Apressou-se a abrir, pois sabia que nevava e estava frio. Para seu agrado, viu Samu Lenga entrar, exsudando alegria. Abraçaram-se mesmo antes do amigo retirar as luvas, o cachecol e o pesado casaco que o protegiam.
“De onde vens?”, perguntou Lito Boal feliz de rever Samu.
“Acabei de chegar de Estocolmo. E contigo, como vão as coisas?”
Samu Lenga, na casa dos trinta, o rosto meio tapado por uma espessa e escura barba que tipificava o guerrilheiro, era o retrato do quadro dinâmico que fizera vários anos nas diversas frentes da luta contra o colonialismo português. Pela integridade moral e política, pelo multifacetado trabalho desenvolvido nas diversas frentes e pelo domínio de vários idiomas, fora agraciado com o novo posto. A luta emancipalista entrara em fase mais desenvolvida e dinâmica, e tornava-se necessário alguém do seu porte, a nível dos países europeus. A Suécia reconhecia e apoiava directamente vários movimentos africanos, permitindo deste modo a instalação de uma delegação que cobria os países nórdicos.
Lito Boal conhecera Samu Lenga ao ser instruído pela direcção do movimento para se aí se apresentar. Uma forte amizade os uniu de imediato.
Por fim sentados, e com uma chávena de chocolate quente nas mãos, a conversa voltou-se inevitavelmente para Inkuna, a luta libertadora e últimos desenvolvimentos. Depois das questões de maior interesse e mais imediatas terem sido abordadas, Samu tirou dum envelope castanho grande, um maço de fotografias recentes e mostrou-as ao amigo.
Singularizavam momentos da vida dos guerrilheiros, nas matas. Ao olhar para uma delas, o coração de Lito Boal quase parou de bater. Numa clareira rodeada de pequenas árvores, um grupo de guerrilheiros repousava distraído, excepto uma jovem que, de costas, voltara a cabeça como se chamada naquele instante. Sua boca semiaberta, os olhos grandes e vivos como a luz do sol, emanavam toda uma beleza e tranquilidade que contrastavam com a metralhadora pousada no colo. A imagem produzia um efeito forte. Talvez pela carga emocional da fotografia, que no fundo condensava toda uma aspiração pessoal, Lito Boal apaixonou-se naquele momento.
“Meu Deus, Samu, quem é esta miúda? Que coisa mais linda!”, perguntou exultante
“É a Dalila. Para além de ter sido seu instrutor, por coincidência até tirei a fotografia. Tínhamos acabado de regressar de um ataque a um posto português”, informou.
“Que maravilha! Posso escrever-lhe?”
“Se o fizeres brevemente, ainda és capaz de a apanhar em Dar-Es-Salaam onde de momento aguarda a ida para Leningrado. Vai estudar na União Soviética”.
Na manhã seguinte, foi um dos primeiros gestos seus. Sentou-se e redigiu uma carta a Dalila, na qual mencionava que vira a sua fotografia quando Samu Lenga o visitara, e que se quedara bastante impressionado com o que o retracto transmitia. Estava de momento a estudar cinema na Holanda, e dentro de mais três anos, uma vez terminada a Academia, iria apresentar-se em Dar. Caso fosse possível, tentaria visitá-la um dia em Leninegrado. Entretanto, ser-lhe-ia muito grato corresponderem-se.
Durante meses viveu na esperança de uma resposta, de uma aceitação que lhe permitisse encetar uma amizade, embora que à distância. Pensou escrever uma segunda carta, só não o fazendo, por duvidar do paradeiro de Dalila. Quando já interiorizara que gesto fora uma infantilidade, eis que chega um subscrito da União Soviética. Sobressaltou-se de ansiedade, só poderia ser a resposta. E de facto assim o era. Dalila informava-o da surpresa que tivera, nunca houvera recebido carta de ninguém, muito menos da Europa ou da Holanda, lugares que só ouvira falar nas notícias. Que tivera problemas com os camaradas da segurança do movimento, mas logo se tranquilizaram quando mandou o chefe abrir o envelope e ler, para todos, o que lá estava escrito. À parte disso, que teria grande alegria em escrever-lhe, e prometia que responderia a todas as cartas que dele recebesse. Com a missiva, enviara uma fotografia pequena, a cores.
Ao longo de dois anos mantiveram a correspondência, como namorados que o destino separa contra suas vontades. Sem se conhecerem, foram entregando retalhos de suas vidas um ao outro, moldando um sonho que os uniria talvez um dia nas matas de Inkuna. Lito Boal ainda tentou deslocar-se a Leninegrado, todavia a pequena bolsa de refugiado não permitia pagar os 50 dólares diários, que as autoridades soviéticas exigiam aos estrangeiros.
Mais dois anos decorreram até que finalmente se conheceram no Palácio do Povo, em Katola, quando o presidente da república, e comandante-em-chefe das forças armadas, impunha as primeiras patentes aos seus antigos comandantes, agora oficiais superiores de um exército nacional. Através do visor da máquina de filmar, Lito Boal descobriu o rosto de Dalila ao lado de um dos antigos comandantes de coluna. Eufórico dirigiu-se a ela, que de imediato o reconheceu. Abraçaram-se, no amplexo de quatro anos de amizade platónica.
Samu Lenga que tudo observara, sorriu ao virar-se para receber o abraço de um antigo companheiro de luta.
Dalila e Lito Boal recolheram para um canto e falaram. Do momento que se vivia, da pátria livre, do sonho realizado e, por fim, de como ele gostaria que se vissem.
De longe, o comandante ao lado de quem Dalila estivera, observava-os com curiosidade.
Dalila afagou-lhe o rosto, beijou-o na face e disse que gostava muito dele, mas que tinha homem, era aquele comandante que ele vira a seu lado, e apontou, o que fez o mesmo desviar rápido o olhar. Enfatizou que a amizade carinhosa deles, mantida por carta, era uma chama que primeiramente a envaidecera, e que mais tarde se tornara numa afeição real e sincera, algo muito especial e íntimo, mas que nunca poderia ter sido mais do que fora, por não se conhecerem no fundo. Quando na União Soviética, a vida continuara, não parara na beleza do gesto dele, nem na necessidade dela de afecto e carinho, sobretudo porque tão longe da pátria e em país tão diferente. Muitos dos seus companheiros de guerrilha estudaram com ela, daí a ligação que, mais tarde, acabou por estabelecer com o comandante seu homem.
Lito Boal viu o devaneio antigo fenecer, confirmando que os rumos da vida e aqueles do sonho, raramente convergem. Propôs-lhe que se mantivessem amigos, e quando por fim arranjou mulher, Dalila tornou-se achegada da casa e da família que começou a ser construída.
Porém, nunca pararam de se escrever. Coisa só deles conhecida, comparsas num segredo. O desejo de perpetrarem, ou melhor, de não abandonarem o elo que sempre os unira num sentimento de cumplicidade, levou-os, sem que nenhum o tivesse mencionado, a tocarem-se daquela forma. De vez em quando, um recebia um bilhetinho, uma nota, do outro. Não se poderiam negar por completo, sempre quedava a nostalgia que todos os passados consigo carregam.
Os anos passaram, Dalila perdeu o esposo, tornou a casar, alargou a família e, quinze anos mais tarde divorciou-se do marido.
Lito Boal, por sua vez, ao fim de vinte anos de união, separou-se da mulher.
Livres, não ousaram admitir que o rio secara e, frustrados, intimamente desiludidos com o destino, não desejaram olhar para o que restara, as pedras nuas no fundo de um leito pouco profundo, onde o casco de um amor que nunca merecera a confirmação de o ser, soçobrara, por desígnios impenetráveis. Intuíam que se os fados assim o impuseram, seria porque quem tece as teias da vida, não aquiesceu a que algum dia vivessem juntos, sombras separadas e jamais tangentes, num céu insensível.
E, cada em seu canto, continuaram a correspondência, por inconsciente vingança e amor-próprio, cientes de que o que estava feito estava feito.
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