terça-feira, 1 de junho de 2010
O IMAGINÁRIO NO TEXTO ANGOLANO (NO PRELO)
COSTA ANDRADE
De seu nome de guerra, Ndunduma We Lepi, nasceu no Huambo em Abril de 1936 e faleceu em 2009. Insigne nacionalista, guerrilheiro, artista plástico, jornalista e Deputado, tem mais de vinte títulos publicados, poesia e prosa, e é um renomado artista plástico, com nove exposições individuais de pintura. Sobre este conto, escrito em 2002, o autor, com a nostalgia de quem revive páginas duma infância mágica, revela que o rio Kuiva não é um rio. É uma lenda.
Também não é uma lenda. São muitas lendas cruzadas com a verdade. Tantas verdades, que a lenda do Kuiva é afinal uma verdade, que faz dele um rio, que devia ser igual aos outros, mas não é.
A PROFECIA
O rio Kuiva não é um rio. É uma lenda.
Também não é uma lenda. São muitas lendas cruzadas com a verdade. Tantas verdades, que a lenda do Kuiva é afinal uma verdade, que faz dele um rio, que devia ser igual aos outros, mas não é.
Ás vezes torna-se um conto, outros vezes um mistério, a maior parte das vezes um caudal de enchentes, onde acontecem coisas estranhas, inesperadas, que transformam o rio num conjunto de geografias, seres humanos e bichos, capazes de ser ontem e amanhã, mudar de repente.
Das águas cristalinas, alturas do Salundo, passa e arrasta margens das nakas, as lavras de terra negra fértil das baixas da Emanha, transporta o barro, lama, até chegar á sukatera, a garganta apertada, do próximo socalco.
Perguntei uma vez, à noite, hora propícia, sentado em torno do braseiro, ao guarda-nocturno da loja, o mais-velho Longuia, porquê que o Kuiva se chamava Kuiva.
- Porque o Kuiva é uma cobra. Mas não é uma cobra qualquer, às vezes incha, outros vezes fica magro. Esse nome dele, de cobra, não é aquele, daquela cobra que mataram no curral dos porcos?
- É.
- Então! Kuiva é nome de cobra. A kuiva do curral mamava o leite da porca enquanto ela dormia e os leitões morriam de fome. A kuiva metia a ponta do rabo dela, na boca do leitão. Uma vez é este, outra vez é aquele, e todos morreram de fome. Até que lhe mataram com ela, também.
- Eu penso que se o Kuiva incha e fica magro ás vezes, talvez o nome dele, devia ser o’mona, porque a, a jibóia, pode até engolir uma pessoa.
- Sim, mas o Kuiva não é um rio muito grande para ser jibóia.- conclui Longuia.
O Kuiva não é um grande rio, porque só tem trinta quilómetros. Mas era grande porque tinha lagoas muito largas no caminho, cascatas de grande altura, rápidos, ilhas, onde com coragemt talvez se pudesse viver. Águas turvas aqui, transparentes ali, onde viviam peixes. Nos rápidos, novamente a cintilar, os brilhos de rochas de granito afiadas, escorregadias, reflexos de sol, antes de sombras, praias, numa e noutra margem, ilhas povoadas por bandos de pássaros e serpentes esquivas, bananeiras espontâneas, frutos sem nome, doces e com múltiplas cores; um pouco mais longe das margens, nkulankunlas, as cerejas planálticas, o’lomoinhos vermelhos junto à raiz, como pequenos bagos de café rasteiros, quando maduros, e outras surpresas. A minha Avó não queria nem ouvir falar das minhas ideias com Tchiwe e o António até ao Kuiva.
- Lá tem muitas cobras, nas árvores do Kuiva. Aquela cobra que voa, o nome dela é Ndala. A cobra Ndala salta como seta de azagaia lá dos ramos e te pica na cabeça. É só morrer, sem tempo de chamar ninguém para te chupar o sangue envenenado, com ventosa de chifre de mbambi, a cabra do mato, se tem. Isso tudo, e o que fica Por contar, é o rio Kuiva. Exactamente, a partir das alturas do Salundo, até pouco antes do começo da encosta do Chivilundo, onde ele cava a ravina profunda da passagem, que o leva ao Chicanda é a parte que eu conheço e lhe andei, com os meus amigos.
Porque eu vou contar o que sei dele e acontece, o que vi e entendi, nos dez ou doze, dos seus poucos mais de trinta quilómetros de existência. São esses, que conheço perfeitamente, de tê-los pisado ao sol, à chuva desde o muxitu, as árvores gigantescas da nascente, onde surge gota a gota, entre raízes e mosquitos, quase noite porque o sol não consegue entrar ali, até que começa a viver diante dos olhos e ouvidos do mundo, com a voz de seixos e pedras cor de cobre e ferro, entre raios, que parecem lanças quando atravessam os espaços no meio das folhas, que o dia de sol não deixa escapar, e finalmente se despenha num outro rio, esse sim um rio. Este é mais estreito e longo, visto de vários vistas, atravessado por pontes, e cordas de amparo, (coisas dos homens), que o Kuiva não conhece, nem permite que façam sobre ele.
Dizem que do Kuiva, em noites de lua cheia, levantam-se serpentes com duas cabeças de mulher. Têm cabelos que brilham e se alongam sobre o corpo esguio. Se calhar passar homem, mesmo um rapaz, a serpente enrola-se nele muito apertada, uma das cabeças bebe-lhe o sangue através da carótida, e a outra suga-lhe toda a força, que ele podia dar a um filho se fosse com uma mulher de verdade. Depois solta o corpo, feito cobra sem vida, mais bem uma tripa de boi abandonada, no fundo das águas, para ser levada pela corrente e desfazer-se no caminho.
- E porquê, que essa cobra faz isso aos homens - perguntou o Tchiwe?
- Porque ela não tem família, vive a raiva de ser sózinha, não sabe o que é gostar ter alguém, para chamar-lhe pai ou mãe.
- E porquê, que um caçador naõ vai matá-a ou fazer uma chiriva, ratoeira, para lhe apanhar? - perguntei eu.
- Porque a arma ou azagaia do caçador vira água, quando ela aparece. E a chiriva vira barro
De olhos esbugalhados ouvíamos o terror das coisas medonhas, que os mais velhos contavam do Kuiva. Isso aguçava a nossa curiosidade, em vez de fazer-nos desistir de ir a ele.
No seu percurso, pelo menos aqueles que eu conheço, recebe regatos, torrentes das montanhas que o apertam e por vezes lhe dão largas só dum lado, para espreguiçar-se e inundar as terras, protegidas por espinheiras de folhas acerradas e cruéis, não obstante a forma de um coração humano, que exibem enquanto verdes. O próprio Kuiva parece não saber do mundo e não ter vida dentro de si, até momentos antes de diluir-se no Chicanda, que pouco depois se despenha nas mupas da Tchenga, conhecidas nos mapas da linha do caminho de ferro de Benguela, como as quedas do Ukuma. Mas é falso, é perigoso, acreditar nesse fingimento. No lago que forma depois da queda do Salundo, lá para trás vários quilómetros, há bagres e outros peixes, que na verdade ninguém sabe, como é que são iguais aos do Luena tão distante e diferente, com falas e lendas doutra língua, por vezes até para culpar a terra do Kuiva, de ter levado de Kalunga, o mar, até ás suas planiras, os brancos que mandavam na vida e na morte, depois demandarem no trabalhos pessoas. Mais isso acabou num dia 11, dum ano, que vai ficando velho, como acontece com todos os anos, que se comemoram.
Ninguém sabe nada do Kuiva, porque esconde as estórias todas dos seus mistérios, dizem que por causa daquele branco, que lhe apareceu na outra margem, como uma nuvem de chuva carregada, que faz fugir as pessoas e os bichos, para ninguém saber como veio, o que fez e como acaba. Por isso é que os mais velhos, nunca respondem ás perguntas sobre o branco, sobre a lavra dele, e não gostam, que as crianças atravessem o rio, nem mesmo nos lugares onde é possível tentar chegar ao outro lado.
Nós os miúdos da Emanha, sem nada para fazer, depois que nos ralharam por subir nas cabras e ovelhas, fazer delas cavalos, fomos várias vezes até lá.
A Emanha era a nossa margem, cá em cima.
Em baixo na encosta, as lavras, mbanda, lavra de socalcos do Chimuco e todos os habitantes da aldeia.
Diante dessa lavra, havia uma floresta estreita, que se podia chamar a fronteira do lago, que se estende em frente à alta e escarpada encosta da Emanha, o nosso sítio prefeito. Era o nosso ponto de observação, posto de guarda, sei lá! Vivia no lago, um jacaré, que não tinha famíla, nem se sabe como lá chegou. Ninguém lhe viu jamais os filhos, a mulher, os ovos, donde saem pequeninos já a morder, os filhos da sua “epata”, a família, da beira d´águas paradas e profundas. A terra do lado da margem do Ukuma estende-se plana e úbere.
Do nosso miradouro, via-se um canavial, pomar e lavra, até perder de vista na base da montanha, atrás da qual se esconde o sol, ainda cedo, antes das cinco da tarde. Daí o Kuiva, vai por sua vez, gordo de tantas águas, de outros córregos, cercar uma ilha ao longo de um quilómetro, num abraço de pouco mais de cinquenta metros de largura. Nela, a ilha de chão branco de areia, sobre a terra negra, crescem árvores muito altas, com lianas, flores, abelhas e estende-se essa areia branca, como voz de quem chama ao repouso, como um convite de pensar coisas sagradas, para acreditar no que vê e ouve do vale profundo, antes das quedas do Lukamba, onde o moínho, que alguém tentou plantar ali, foi levado pela enxurrada, antes de ter moído sequer um grão de milho, encalhado entre as pesadas mós de granito, que tinham o dever de executar esse trabalho. O Kuiva não consentiu jamais corpos estranhos, nem mesmo ali onde montanhas e pedras resistem desde sempre, á sua força variável somada á dos músculos da idade do mundo. Nem mesmo um corpo de mulher, que diziam ser do Brito alfaiate, por ter constado, que ele a encontrou na cama com um empregado da loja do Barreto. O Kuiva atirou-a para a outra margem e os corvos, em disputa com os lobos e as raposas do Chivilundo deram cabo dela, e no entanto ninguém a viu. Outros diziam, que não era nada disso. Ela fugiu do Brito, que não chegava par ela, e era bruto. Apanhou o combóio no Longonjo e foi ser puta no bairro S. João, em Nova Lisboa, para os soldados expedicionários.
Então o Kuiva chega, cinco ou seis quilómetros adiante, ao Chicanda antes da ponte, para preservar a sua liberdade de margens afastadas, após ter aberto na montanha vulcânica, a ravina profunda da passagem, (que referi antes do tempo), e que o sol não consegue nunca iluminar. Não é que ele não queira, é o Kuiva que não deixa, mesmo se já cumprido o seu caminho. Transforma-se, enfim num rio, como os rios, é Chicanda, que se desfaz finalmente, em rio Catumbela, um senhor de rios, que impõe os seus caprichos aos homens, haja chuva ou seca a mais, durante o ano.
Pouca gente fala do apoio, que ele recebe de muitos outros, sobretudo do Cubal, dono de muita terra, e muito canto, por causa dos saltos sobre o leito pedregoso. Nem sequer duma barragem feita pelos homens, que outros mandaram destruir, como se a praga do Kuiva tivesse resistido a tantas misturas de afluentes com mais forças do que ele. Como se fosse já o rio grande e poderoso, feito de rios e de lendas, margens de sisal e eucaliptos, ali mesmo transformados em papel, lenha para combóios e fibras para sacos, até perder-se no mar, antes com a doçura devida aos canaviais, á fabrica do melaço e álcool, agora mudo, com raivas escondidas, do abandono em que o deixaram. Fez mesmo desabar a ponte, como que diz, que até os rios têm ressentimentos e os galpões de fábricas silenciosas, também.
É claro que já não era o Kuiva, esse rio que muitos chamam rio, por não terem outro nome par dar a um grande volume de água que corre, salta e repousa, depois corre novamente, sem um leito permanente, para perder-se na corrente mais estreia, quase serpentina, que o emigra do lugar onde nasceu, par transformar-se em nuvem, virar chuva e regressar á terra.
O Kuiva era o nosso brinquedo. Hoje não sei o que é feito dele. O Tchiweienge, o Vilombo, o Kalombweti, durante uns dias o Rui Araújo vindo do Lépi, Zé Coelho do Huambo, não sei se alguma vez o Jaime Reis e eu decidimos seguir o Kuiva, conversar com ele, até ao ponto onde o Ngwenje, o riacho do Brito alfaiate, se despeja nele. Conhecer alguns dos seus segredos, decifrar os cantos e vozes que lhe ouvíamos, sobretudo descobrir o sitio certo, para vencer a sua fronteira, tal muralha e desafio, a cavaleiros de nuvens da imaginação. Atravessá-lo, ir ao outro lado era uma força maior do que do que o desejo. Mais que o risco, era a afirmação. Onde a terra plana, o pomar, a lenda cresciam era impossível, cada vez que íamos imitar o Domingos Epanwe, o único que atravessava o Kuiva quando lhe apetecia, sem que nos visse.
Era o fascínio e o mistério, havia o silêncio das respostas.
Do nosso lado, o declive, árvores com raízes à flor da terra, algumas delas inclinadas quase a tocar-lhe as águas, deixava a adivinhar sobre a imensa planura do horizonte na outra margem, pontos de cores entre frutos e flores, brilhos de inundação, libélulas, peitos celestes, rabos de junco, rolas, e até pumumus, gaviões e corvos. Uma vida cheia de mistérios até ás montanhas, que escondem o Ukuma. Um laranjal e tangerineiras, morangos, muitos milho, batata-doce dentro dum vastíssimo capinzal e trepadeiras selvagens, flores de rícino, numa ou noutra árvore um cortiço. E no entanto havia pontos em as margens quase se tocavam, quando as montanhas de um e doutro lado mostravam ser mais fortes do que as águas e cresciam até ás nuvens. Da planície, diziam os velhos e as velhas sobretudo, ser um lugar para não irmos nunca. Lugar marcado por Kalunga, não o mar mas a morte, que no tem o mesmo nome, que lhe dão a praia, quando não regressa nunca mais, alguém da pescaria.
Diziam ser uma fazenda amaldiçoada, povoada por almas doutro mundo. Abandonada por um branco, que morreu de biliosa, nos anos em que nascemos nós aventureiros. Os que falavam com maior conhecimento, diziam ter sido o jacaré solitário da lagoa, que não tendo mulher, nem filhos, devorava os seres humanos, e algum macaco, que caísse à água, dos ramos pendentes sobre o rio. Por isso é que o branco, que lá viveu era um mistério, uma assombração.
Um branco que não chega a construir nenhuma estrada, sequer um caminho de andar a pé ou de bicicleta, de carroça, até à própria porta, só podia ser um branco malfadado e mal falado. Ninguém lhe sabia o nome, ninguém o viu na vila ou na cidade, como veio e como foi, que trouxe a enxada, e as sementes, com que plantou aquela baixa fértil, sem acessos. Nem vindo do Ukuma, das altas montanhas, nem ido da Emanha, a partir da estrada do Longonjo até Caconda, ou da Catabola e do desvio para a Yava, mesmo da paragem do Calunga, donde vinha o “Burrinho”, Joaquim Torres, (ouvi anos depois, quando morreu de morte emboscada no Miramar, chamarem-lhe rambo e não gostei!), passar férias connosco na Emanha. Nada, não havia nem ponte nem passagem. Ninguém o conhecia. Ninguém o via.
Nós, formamos um grupo, que fugia de casa, antes das nove da manhã, depois do matete de losseke azedo com mahíni, o yogurte kuanhama da cabaça, a quase tortura do cálice de quinado da Madeira, que o velho nos fazia tomar a todos, para prevenção contra o paludismo. Íamos espreitar de longe aquela terra de mistérios, ver como o Domingos atravessava o rio. Algumas vezes levávamos comida para lançar ao rio e atrair o jacaré para jusante. Enquanto isso tentávamos a travessia a montante. O “Burrinho” subia um tronco envelhecido e lançava-se quase em voo, mergulhava, para surgir na margem oposta, triunfante. O regresso era um pouco mais difícil. Com as varas de bambu da ilha fazíamos restolhar a água. Talvez por isso o jacaré não vinha nunca interromper a brincadeira da coragem. O nadador da vez, dava as braçadas necessárias até ao tronco, subia e voltava herói, para os que não tinham tentado ainda a travessia. Mas ninguém se atrevia a ir além da margem, colher uma laranja, o que quer que fosse. Não era aquela uma terra de causar medo a todos, menos ao Domingos, porque era Epangwe?
A nossa margem entrecortada de pequenas veredas, que desapareciam entre o fechado arvoredo, para ressurgir em várias direcções, que não conduziam a ponte nenhuma, era o nosso território. É claro que tínhamos atravessado quilómetros abaixo, o ramo estreito do Kuiva e descoberta a ilha. Mas não além da ilha, a contracosta, que a torrente era forte e com ruídos surdos. Vimos fugir serpentes, macacos a chiar e a fazer caretas de assustar intrusos. Vimos pássaros saltar de ramo em ramo, seguros por não verem nas mãos de nenhuma de nós uma chifuta, a fisga, um arco ou zagaia, o que quer que fosse, que servisse par matar.
Mas se não havia pontes nem estradas, como é que o branco foi ao outro lado, ou lá chegou, vindo ou não desse mesmo lado, para plantar aquele pomar, naquela baixa inundada pelo Kuiva, todos os dezembros até março? O tronco de pé, que o Domingos um dia derrubou, não era ainda, quase ponte.
De pergunta em pergunta, ouvimos dizer da Avó Ngueve, que isso era uma história de mais-velhos e que os meninos não deviam andar por esses lados. Só lá ia o Domingos Epangwe, que na verdade se tornou dono daquelas terras, ou pelo mesmo, do que ela produzia. Trabalhou desde criança com o branco, que pegou primeiro na enxada, capinou a vastidão, semeou o milho, as batatas, o feijão e mais perto da montanha, as árvores de frutos todas, que lá havia. Não derrubou nenhuma das naturais, que encontrou, filhas da própria terra, os loengos, as loncyas, outras mais. Plantou mangueiras, junto da pequena casa, que ele próprio construiu. Viveu sozinho, muito tempo, ninguém sabe ao certo quanto. Atravessou o rio para este lado, foi ao quimbo do Lukamba, uma vez de manhã cedo, arranjou uma mulher ainda nova, que vivia só, sem filhos, e convidou para viver com eles o Domingos, que já era órfã de pai e mãe. A mulher perdera o marido há vários anos, vendido pelos angariadores para S.Tomé, mais exactamente para as fazendas do café, perto do Congo. O Domingos, vítima do mesmo destino dos pais, era então, um rapagão de uns treze ou catorze anos, que vivia de muitas tarefas pesadas, prestadas a este e àquele em troca de comida e dormida, uma fuga aos cipaios, pedradas aos camiões, que transportavam contratados. Forte como um touro, livre como um leão., forte como um elefante, Domingos era um homem aos treze anos.
Aceitaram os dois, a mulher e Domingos, ir viver do outro lado, mais acima, com aquele branco estranho, que morava sozinho e lavrava a terra como se tivesse nascido ali. De resto, pouco ou nada mais sabiam dele.
Os dois, também sem mais ninguém no mundo, seguiram-no, subiram atrás dele, toda a margem esquerda do rio, às alturas do Salundo, desceram a encosta, até ao ponto onde o barulho d’água, que se ouvia de longe, se tornava tão forte, de não deixar de ouvir a palavra do branco, mas só o gesto, “por aqui!” encontraram-se diante de três grandes rochedos, quase pontiagudos, que apertavam o rio, fazendo-o passar ruidoso e revoltado, entre duas gargantas, donde caía em espuma e arco-íris, ao sol do meio dia, duma altura de mais de quinze metros, sobre um poço negro de águas límpidas, que depois por vez, se abria em lago calmo, que se alongava cerca de quilómetro e meio, e se alargava cerca da margem direita, nus cinquenta metros mais aqui, menos ali, antes de estreitar-se novamente entre margens reais mais fortes, porque de pedra profunda e com a face votada para o sol.
- Enquanto não fizermos uma pequena ponte lá em baixo, perto de casa, este é o único sitio onde o Kuiva se deixa atravessar a vau, mas com cuidado par não escorregar, senão é morte certa”.
Em silêncio fizeram o caminho da descida da margem direita até ficarem defronte da encosta, donde tinham vindo, e se erguem os vários caminhos que vão á Emanha das lojas e da estrada no planalto.
Chegados á casota do branco, ele dispôs como seria daí para a frente:
- Aqui dentro fico eu e a... como é o teu nome’
- Lahundi.
- Lahundi? Tá bem! Filha da puta de nome...Tu ficas aqui comigo. Agora és minha mulher. Não quero idas e vindas á sanzala, nem visitas de ninguém. Vais à loja quando eu mandar. Tu ou o Domingos. Ele dorme no jango da cozinha, até fazermos na próxima semana, um quarto para ele, ali perto da horta.
Domingos e Lahundi nada disseram. Olharam em torno. Havia um cercado do lado do rio. Luhundi apontou para lá o branco disse:
- Sim! É lá, podes ir. Oh Domingos, havemos de fazer outra latrina mais fechada, um pouco mais longe.
- Sim, disse Domingos.
Entardecia. Lahundi, que já vira o que havia dentro de casa, voltou com um a panela de ferro esmaltado e batata-doce. Entrou no jango, soprou e reactivou o braseiro, voltou a sair, foi até ao rio, encheu a bacia, que levou á cabeça com água e regressou ao jango. Lavou as batatas e assentou a panela ao lume sobre as três pedras para o efeito. Retirou do tecto do jango dois peixes secos e fumados, assou-os directamente nas brasas.
O branco, depois de ter comido levantou-se, foi sentar-se a uma certa distancia, acendeu o cachimbo com uma brasa, que levara consigo. Um cheiro estranho espalhou-se pelo anoitecer, agrediu as narinas dos recém-chegados e os mosquitos desapareceram.
No dia seguinte de manhã muito cedo, o branco agarrou na enxada, chamou Domingos, entregou-lhe umas moedas e disse-lhe.
- Vais à Emanha, e compra sal, óleo, açúcar e arroz. Vais pelo caminho de ontem. E não sabes nada, que te perguntem, ouviste bem?
- Emanha é aqui á frente. Não tem passagem?
- Não. Há aí um lago com jacarés. Nem sei como vieram parar aqui, havendo aquela queda de água de um lado e outro lá em baixo, perto da ilha.
- Sim Senhor! - Respondeu Domingos. Como do outro lado tem muitos paus grossos, um dia vou fazer uma canoa.
- É uma ideia!
Domingos partiu. O branco e Lahundi, depois de um gole de café foram para a lavra. Passou a ser assim todos os dias.
Lahundi olhava de vez em quando aquele branco forte, com alguns cabelos brancos, barba crescida, que falava pouco, e que ninguém sabia donde vieira. Nem mesmo o nome dele, sabia. Parecia ter feito sozinho a lavra e tudo quanto fosse obra. Queria saber dele alguma coisa, mas ele quase não falava. Nunca foi visto a visitar os outros brancos das chitakas, que havia do outro lado. Muitos nos quimbos pensavam, que fosse um branco feiticeiro. Os cipaios mandados do posto do Lépi tinham medo. Faziam perguntas às pessoas do quimbo e iam embora, dizer que não havia nenhum branco naquela terra. Os brancos todos eram conhecidos, tinham lojas e chitakas do lado de cá do rio. Lahundi, porém, agora que vivia com ele, que era sua mulher, tinha de saber ao menos, o nome dele. Naquela noite, da primeira vez, até gostou dele. Só aquele cheiro, que saia no nariz, parecia um remédio dos mais velhos, é que lhe estragou um bocado. Até que era um bom homem. Nunca, lhe bateu, mesmo na noite, que tinha dente doeu e não aceitou lhe deixar dormir em cima dela.
Perto do meio-dia quando voltavam para casa, Lahundi disse, que já vinha ia passar naquele lado do milho, se tinha maçaroca para jantar.
- Podes ir, mas não vás para lá daquele morro de salalé. Ali só eu, é que vou”.
Lahundi, enquanto procurava no milharal umas maçarocas mais desenvolvidas sentiu alguma curiosidade pelo que haveria atrás do morro de salalé, mas pensou para consigo: “se calhar quer fazer lá outra coisa, um dia”. Deu de ombros, voltou para casa.
Passava do sol das quinze, quando Domingos chegou com a sua carga.
À medida que o tempo passava Domingos foi-se tornando cada vez mais forte, dono de uma força hercúlea, ajudante inseparável do branco, que o tratava sempre, como se fosse um filho. Era ele que saía para as compras e vendas dos produtos da lavra e do pomar.
Lahundi ajeitava-se nas tarefas da casa, da lavra e da cozinha. O único momento estranho, difícil, incompreensível tanto para ela como para Domingos, sem que no entanto tivessem trocado um palavra sobre as suas preocupações era o afastamento cada vez mais frequente do branco, ao fim d dia, para fumar o seu cachimbo, exalando aquele cheiro, que tanto os incomodava. O branco, num desses fins de tarde chegou a dizer-lhes:
- Vocês podem chamar-me senhor José. Não podem ficar toda a vida, sem um nome para me chamarem, não é?
- É sim, senhor José, - respondeu Domingos.
Lahundi manteve-se em silêncio.
Depois foi uma noite em que José, pareceu mais amigo e se encostou muito a Lahundi. Mais uns dias passados, após uma noite de muita chuva, acompanhada de granizo, que destruiu grande parte da lavra de batata-doce e milho, José levantou-se nervoso. Dormira mal. Durante curtos períodos de sono agitado. Lahundi ouviu-o falar, pronunciar nomes, que não ouvira nunca. Gritar a palavra não, algumas vezes. Ao vê-lo levantar-se e sair sem tomar café, em direcção ao rio, Lahundi sentiu um pequeno aperto no coração, como que um vago pressentimento. O chão ainda mostrava extensos espaços brancos de granizo, que esperava o sol para derreter completamente.
José dirigiu-se a passos largos para a lavra das batatas. Dois javalis largaram em fuga transvia, para o lado das montanhas. Era a primeira vez, que via javalis naquela zona. A inundação cobria grande parte da lavra. Adentrou-se um pouco mais no campo inundado. Queria chegar à horta, que lhe parecia não estar coberta pela água Para encurtar caminho, a água chegou-lhe á cintura, um passo mais e de repente, saltou um grito e desapareceu. Debateu-se alguns instantes. Agitaram-se as águas e depois voltaram à sua quietude habitual. Lahundi que de longe seguira José com o olhar, soltou um grito angustiado chamou Domingos e correram ambos na direcção do sítio onde desaparecera José.
Antes de chegarem ao ponto da ocorrência viram aparecer á superfície das águas á direita, mais exactamente sobre o leito do rio, uma ancha de sangue levada lentamente pela corrente, um braço, que depois também desapareceu.
Lahundi correu par o rio desesperada. Domingos impediu-a, segurado-a pela cintura. Puxou-a para terra e arrastou-a para cas.
Ela dizia entre soluços: - “Atrás do morro do salalé. Atrás do morro do salalé, é que está o segredo, atrás do morro da salalé”.
Quando Domingos conseguiu serená-la e depois de deixá-la chorar longamente em silêncio perguntou com voz contida:
- O que é isso do morro de salalé?
- O branco falou desde o primeiro dia, para nunca ir lá. Nunca fui.
- Eu também nunca passei naquele lado, mas ele não falou nada.
- É melhor passar lá para saber, agora que ele morreu.
Á tarde encaminharam-se para morro de salalé. Percorreram cerca de dois quilómetros seguindo um mal disfarçado caminho. Entre o arvoredo abri-se uma pequena clareia com uma plantação, cujo cheiro deu a Lahundi, a resposta imediata:
- Ele fumava! Afinal era este o cheiro! Ele fumava! Vamos sair daqui! Vamos deixar esta lavra, tudo vamos sair. Aqui tem desgraça.
- Não! Então nós trabalhamos com ele este tempo todo. Não sabemos se tem família ou não tem. Nós é que ficamos família dele, e vamos deixar tudo aqui? Não. Ainda vamos ver, vamos pensar bem.
Voltaram para casa.
No caminho do regresso, Lahundi dizia: “É mesmo a minha desgraça! O meu primeiro homem lhe levaram no contrato, no norte. No dia 15 de Março lhe mataram, porque é daqui, desta nossa terra. Fui no velho Pataka, passei na velha Nanguenkenha, fui nos sékúlus da Ahienja, matamos galinha, é cabrito, é quê, todos falaram: “a tua desgraça só vai acabar quando outro filho daqui da nossa terra morrer, um mês de lua antes desse dia 15, que perdeste o teu homem, junto com os outros, que foram daqui. Mas tem de morrer também outra pessoa, um mês de lua depois desse mesmo dia, para acabar a desgraça, de todos da nossa terra. Nem que vai passar muitos anos. Se não vai continuar sempre. Todos vamos sofrer muito”.
Lahundi não dormiu a noite toda. Na manhã seguinte, depois de ter percorrido as águas com o olhar, sem ter visto qualquer sinal de José, entrou em casa e abriu o velho baú de zinco, onde José guardava as suas coisas.
Entre as poucas roupas gastas, duas fotografias, um de uma mulher muito velha com cabelos brancos, parecida com José. Estava o cachimbo, havia uma folha rasgada de jornal antigo, com a fotografia do José, enquanto novo. Lahundi não sabia ler. Chamou se Domingos, que frequentara há muitos anos a segunda classe a escola do Ukuma, antes dos pais morrem no norte. Domingos conseguiu decifrar o velho jornal, dos anos cinquenta:
“Evadiu-se da Baía dos Tigres o perigoso assassino João de (Papel roído), que aí cumpria pena maior de 22 anos, condenados na metrópole (Papel roído), por vários crimes contra a segurança do Estado.”
Lahundi não quis ouvir mais nada.
Três semanas decorridas, uma manhã, com o sol já alto como não se abrisse a porta, Domingos bateu novamente e abriu. A casa estava vazia. Lahundi desaparecera. As pegadas frescas de véspera, que conseguiu descobrir, levavam ao rio. Segui-as um pouco, mas desistiu.
Domingos ficou só, durante muito tempo.
Num dia de sol decidiu atravessar o rio, pelo caminho de sempre, até á árvore da outra margem, que se erguia em frente da casa onde morava. Como o machado, que levou consigo derrubou-a fazendo tombar sobre o rio, quase transformada em ponte, sem separá-la totalmente da raíz. Os ramos mais altos e robustos atingir a margem onde morava, enquanto não fizesse a canoa, ou não completasse a ponte, com outro pau até onde terminava este.
Regressou exausto a casa. A solidão pesava-lhe. Levantou-se a caminhou até á pequena lavra de diamba de José. Colheu algumas folhas, voltou a casa, secou-as na cinza quente e depois fumou-as. Passou por um estado, que nunca vivera antes. O meio tonto, meio leve sem saber o que sentia, nem pensar exactamente em qualquer coisa. Adormeceu, dormiu profundamente.
Com a passagem dos anos, e sem ter feito a canoa nem completo a ponte, passou a atravessar o rio, no sítio da árvore tombada. A falta de chuvas estreitava o Kuiva certos anos. Bastava-lhe um salto mais ousado, uma braçada mais larga, atingia a margem. Na ida era o contrário: dava duas ou três braçadas, içava-se na árvore caída sobre ela chegava á outra margem.
Visto pelas crianças do outro lado, a proceder à travessia, depressa lhes ocorreu a imitação.
Foi assim que o nosso grupo, com o “ Burrinho”, que era o mais aventureiro, iniciou aposta sobre o medo, a coragem, a rapidez e a vitória da corrida a nado, desafiando o jacaré, que de vez em quando se espirava ao sol, na praia do rio, desse mesmo lado, com a boca aberta para caçar moscas. Era tão grande, que devia ser muito velho com certeza, pensavam as crianças.
Domingos, que entretanto começou a tresandar a liamba por onde passa, quando ia á loja vender mangas, laranjas, ananases, passou a ser conhecido por Domingos Epangwe, e mais tarde apenas por Epangwe, o nome da liamba em umbundu. Não se zangava jamais, deixava transparecer apenas uma profunda tristeza no olhar.
Quando numa manhã de Abril, depois de uma noite de lua cheia, regressava do quimbo, ao antigir a margem direita, depois de duas braçadas a nado, Domingos sentiu a perna presa dorida, entre as mandíbulas do jacaré. Com a rapidez e a força imensa, que tinha desfechou uma machadada, entre os olhos do batráquio que de repente abriu a boca sem espadanar. Sem vida, voltou-se, ficou de barriga para cima, a boiar, arrastado lentamente pelo Kuiva.
Domingos sangrava, mas conservava a pena presa ao corpo, os osso inteiros. Arrastou-se para fora do rio e disse para consigo:
- Agora só falta acontecer o resto da fala da velha Nanguekenha, numa lua de fevereiro, para acabar a desgraça toda nossa gente. Eu não morri, mas o bicho morreu.
Domingos, passados mais de trinta anos, não chegou a saber se a profecia da velha Nanguekenda se cumpriu. Caiu ao rio, depois de ter bebido a cabaça inteira de lingenye, a aguardente de batata-doce. Desapareceu nas águas da noite escuras, cansado de esperar o fim da sua desgraça.
Dois meses depois, em Março, Vilombo o único amigo, que lhe sobreviveu, velho e só, viu gente, que não via há muitos anos, passar entre os esqueletos do quimbo. Chamaram-no par que fosse com eles. “Toda gente que sobrou vem aí, Velho”!
- Eu vou mais aonde, se já perdi até a vida dos meus netos?
- Vem, mais-velho! A desgraça acabou! Lá atrás na fila, tem um menino, que pode ser teu neto. Ele não tem ninguém! Nós também somos teus filhos, não temos nada. Vamos só. Vem... não podemos te deixar...
Vilombo pediu ajuda para levantar-se a custo, e começar a andar. Afagou a cabeça do menino, conseguiu finalmente esboçar um sorriso.
Deixou morta a desgraça.
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Quisera eu seguir teus passos
ResponderEliminarQuisera eu firmar meu laços
Se em mim a arte se enraizasse
Se a minha voz poeta falasse
Talvez mais grato seria pelos teus feitos
trilho largados no meu caminho artista amante da arte...quero ser bom como tu.