quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA


JOSÉ MENA ABRANTES

Nasceu em 11 de Janeiro de 1945 em Malanje. Licenciado em Filologia Germânica em Lisboa (1969), viveu exilado na Alemanha Federal de 1970 a 1974, ano em que regressou definitivamente a Angola. Publicou inúmeras obras de teatro, ficção em prosa, poesia e estudos sobre o teatro e o cinema angolanos. Ganhou por três vezes o “Prémio Sonangol de Literatura”, durante décadas o máximo galardão da literatura angolana.


O PIÃO

Na ínfima fracção de tempo que decorreu entre o clarão imenso do raio que lhe rachou o crânio e o estrondo que ainda hoje perdura nos ouvidos de muitas testemunhas, M.L. lembrou-se finalmente onde escondera o pião novo de madeira, comprado com o dinheiro que durante semanas fora roubado discretamente da gaveta da cómoda da irmã de sua mãe.

Apesar de já terem passado mais de quarenta anos, M.L surpreendeu-se menos com a recordação do que o facto de se ter podido esquecer durante tanto tempo.

Que memória a minha, comentou para si próprio, dirigindo-se calmamente para a direcção certa.

No dia em que o vi com um pião novo, depois de me ter andado a pedir dias e dias seguidos para lhe comprar um – disse a mãe em pranto, sem saber por que carga de água isso lhe vinha

à cabeça precisamente naquele momento – tive um pressentimento que lhe ia acontecer algo de muito mau na via. Meu pobre filho!... E fungava, inconsolável.

O pião ainda estava efectivamente no mesmo local. Sem o brilho e a lisura de antigamente, prometia, no entanto, girar bojudo e leve na palma da mão aberta. O bico de ferro enferrujara, naturalmente, mas isso não tinha assim muita importância.

Altas horas da noite, enquanto cochichavam risos em surdina à volta do caixão tapado, de onde volta e meia saía um ligeiro odor a carne queimada, todos os amigos foram unânimes em recordar a sua tremenda habilidade para atirar o pião nos tempos de escola primária.

Lembraram-se mesmo do dia em que ganhara uma aposta, sozinho contra a escola quase inteira, pondo o pião a girar durante um tempo inacreditável em cima de uma moeda de cinco tostões.

M.L, não tinha moeda, mas o filho da professora, sempre disposto a humilhar os colegas, atirara displicente a moeda para o chão, atraindo de súbito a atenção de todos.

Pondo-se bruscamente de pé, alguém recordou com ar excessivamente sério que, no momento em que o pião se eternizava sobre a moeda, um raio riscou de repente o céu, trazendo no seu apagar um ribombar de pedras rolando.

Exactamente como o que se seguiu à sua morte, quando, de olhos fechados e rosto erguido para as nuvens, recebia satisfeito os primeiros salpicos de uma chuva que nesse ano tardara muitos meses em chegar.

Todos se entreolharam, incomodados. Uma brisa fria girou discreta pela sala.

O pião, finalmente! Quando todos começaram a desconfiar, principalmente a mãe, começou por dizer que o encontrara, mais tarde que lhe haviam oferecido e, finalmente, que lhe tinham emprestado e já o devolvera. Esse o momento em que o escondera, tão bem

e com tanta pena e culpa que, quando dias volvidos o quis recuperar, já não se lembrava onde o tinha metido.

Talvez tenha sido a luz a acender-lhe a memória, porque agora, segurando o pião inexplicavelmente gasto na mão, lembrou-se com nitidez que um clarão imenso lhe fizera levantar os olhos para o céu no momento exacto em que o escondia.

Foi esta a terceira vez que um raio caiu perto dele, disse em voz alta e sem emoção aquela que durante anos fora sua companheira.

De uma vez um arbusto ficara carbonizado a alguns metros da paragem onde esperava um autocarro. De outra, num dia em que chovia torrencialmente, uma árvore rachara no momento em que ele passava de carro a seu lado. Pelo menos foi o que ele me contou,

acrescentou como que a desculpar-se.

Um soluço mais fundo da mãe fê-la calar-se.

Parem lá com essa conversa de raios e piões – disse uma voz. – Até parece que a vida do homem foi só andar a atirar piões em dias de trovoada.

A mãe parou de chorar e levantou a cabeça admirada.

Como é que sabias? Perguntou. E sem esperar resposta contou como em dias de muita trovoada, quando ela corria a tapar o espelho grande do quarto de dormir com a colcha da cama e a pôr calços de borracha de pneu debaixo das camas de ferro dos filhos, sempre o via correr para o quadrado de cimento da parte coberta do quintal das traseiras, atirando muito concentradamente e vezes sem conta o pião.

Ela bem lhe gritava para voltar para dentro, mas acabava por ir meter-se na cama e tapar a cabeça com o lençol, para agora se poder lembrar do que se passava a seguir.

Que raio de sítio em que o escondi, pensou M.L, rindo-se sozinho, enquanto fixava o barbante na ponta e começava a enrolar firmemente a barriga do pião.

Na sala, todos haviam ficado um bocado constrangidos com as recordações desfiadas.

Um mal-estar superior ao da própria presença do cadáver entranhava-se nos ombros, criando uma estranha necessidade de espreguiçar e pele de galinha nos braços. Sem se darem conta, todos fixavam o caixão atentamente, à espera do inevitável.

A chuva começou a cair. Alguns clarões à distância de há muito anunciavam a sua aproximação. Os pingos faziam a sua música de sempre no telhado de zinco. A mãe andava na azáfama do costume, a tapar espelhos e a esconder tesouras e talhares, com medo

da trovoada.

M.L, saíu para o quintal e, um involuntário estremecimento de certeza, orgulho e expectativa, lançou o pião que acabara de enrolar.

O lançamento foi perfeito. O pião imobilizou-se, vertiginoso de rotação, no ponto exacto em que caiu, acendendo finalmente o raio que lhe fendeu literalmente a cabeça em duas metades.

O estrondo foi menor que o terror que levou todos os seus amigos e a mãe a fugirem precipitadamente da sala do velório.

Erguendo do chão o pião ainda em movimento, M.L, apenas se surpreendeu ligeiramente que só tivessem dado pela sua morte tantas dezenas de anos depois.

In O Gravador de Ilusões, Editorial Nzila, 2000

2 comentários:

  1. este livro é mesmo Fantástico eu já li e recomendo. As minhas historias favoritas são Nga Muturi e Uma sombra para além de outras fantásticas que estão no livro. E eu estava no lançamento que fixe adorei, bjs Tio Fragata (srrsrsrsrsr)

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