LUÍS
ROSA LOPES, Natural de Luanda, onde nasceu a 14 de Abril de 1954, tem três
livros publicados, entre eles o que aqui se transcreve, inspirado em fontes que
foi ouvindo no seio familiar nas noites de sunguila, mesmo que hoje se pense
que essas coisas já não acontecem (!?) e não pululam no imaginário das
vivências angolanas diversas, cheias de kiandas, de mayombolas e jin’zumbi e
aqui ora recuperadas do registo da memória.
MU UKULU, KI TUEXILÉ88 KU
MAYOMBOLA89
Ao
Zueze tinham-lhe oferecido um porco!
Não
um porco que já o era, mas somente um bacorinho. Um leitãozinho tão apetitoso
que, ao olhar-se para ele, imaginava-se logo um forno ou um espeto.
Principalmente
naqueles tempos de falta-tudo!
Faltava
o pão para a boca, faltava o emprego condigno, faltava a oportunidade de subir
na vida, faltava menos opressão, menos menosprezo, menos exploração, faltava a esperança
da dignidade, faltava o pêndulo da justiça...
Apesar
sobrava o direito de sobreviver...
Um
porco, em tempos de pouca fartura, é uma dádiva dos céus. E a vontade é pitá-lo
logo!
C
ontudo, o Zuze resolveu que sacrificar um pouco mais o estômago e que o bicho deveria
crescer e engordar para passar da categoria de leitão à de porco.
O
bicho foi-lhe oferecido por uma velha, Lemba, que conhecida sempre com os
mesmos
andrajos,
com a mesma má disposição, com a mesma vida indistinta e estranha, com a mesma kakunda,
que não era bem uma marreca mas que parecia mesmo, por causa da forma inclinada
como se movimentava. Praticamente não falava com ninguém, desaparecia por vezes
dias a fio, vivia nos limites do musseque, numa kibuia90
mais miserável do que as outras do bairro. Aliás, aquilo era quase
zona interdita. Ninguém se acercava muito dos domínios da dona Lemba.
Era
já velha quando ele e os outros anandengue91 do
bairro, o Petelo, o Dikambu, o Juca, o Passito, o Goiaba e outros, muitos anos
atrás, a xingavam de mulogi92 e
ela lhes atirava pedras e rogava pragas que ninguém entendia.
Zuze,
por ser um dos mais atrevidos, era o que sobressaía nos xingamentos e nas
tentativas da velha de atingir alguém com as pedras.
Um
dia viram um facto estranho que fez com a sua reputação de feiticeira
aumentasse.
Um
kinaxo93, de sua alcunha Mafu Malulu94,
muito conhecido pelo seu grande nguimbo95,
pela sua malvadez e pela sua fidelidade canina aos seus superiores da
administração
88
Antigamente, no tempo da Mayombola
89
Ser sobrenatural, reencarnação em forma de animal que mantém maneirismos
humanos. Os galos e os porcos são as suas formas preferidas, dizem.
90
Casebre, cubata muito pobre e decrépita.
91
Plural de ndengue, miúdos, crianças.
92
Feiticeiro, bruxo
93
Termo depreciativo para definir os mais servis dos sipaios junto às autoridades
coloniais.
94
Folha amarga, folha azeda. Neste caso alcunha dada em função o mau feitio do
indivíduo.
95
Forma cónica como termina a cabeça de alguns indivíduos.
__________________________________________
(para
mostrar competência) apareceu na altura em que Zuze e os amigos ofendiam a
velha e este, pela primeira vez, não conseguindo esquindivar96,
levou com uma pedrada em plena testa.
Mafu
Malulu, assumindo ares de autoridade, rapou do cassetete e avançou para a velha
gritando “isso num si fáis, aguerdir ansim as criança”.
Levantou
o cacete, deu uma porretada na desgraçada da velha, levantou novamente, encarou
a velha e, contam os miúdos, o pau ficou no ar, extensão de um braço também
paralizados, como todo o resto do corpo, aliás...
Nem
pra trás nem prá frente!!
Assim
só, tipo estátua das brincadeiras infantis!
A
verdade é que, passados uns segundos, se virou com um olhar esgazeado e nunca
mais o viram girar por aqueles bandas.
Quando
apareciam os sipaios, ele ficava na entrada do bairro, os outros é que rondavam.
Diziam
que era medo de tornar a cruzar-se com Lemba.
A
velha olhou para Zuze, que se arrepiou todo face à intensidade do olhar da
velha, virou-se embora.
Com
o decorrer dos anos, para além de nunca mais ter-se atrevido a disparatar a
velha
Lemba,
passou a evitar os seus circuitos, mandando até um sorrisinho amarelado e de
caxexe para ela, sempre que não podia atalhar caminho.
Nesse
dia, viu a velha e procurou fazer a habitual esquiva.
Ficou
espantado quando Lemba lhe fez sinal para se aproximar!
Numa
voz sumida, que passava sibilando pelos buracos onde já tinham existido dentes,
perguntou-lhe
se ainda lhe doía a pedrada que levara na testa.
Ele,
atrapalhadamente, respondeu que não, que já nem a cicatriz.
Ela
disse-lhe que ainda lhe doía a cacetada do kinaxo, mas que aceitasse o porco
que tinha amarrado por uma corda, para que fosse esquecido que a porretada
deveria ter sido para ele e não para ela. Um sinal de boa vontade!...
Quase
doze anos se tinham passado!!..
Ela
fizera-lhe recordar algo que tinha praticamente esquecido.
Até
sentiu dor no lugar onde já houvera cicatriz!
Desajeitadamente
aceitou a corda com o porquito, disse um atrapalhado boa noite, quando ainda
não o era e retirou-se com tremuras que pareciam do paludismo.
O
animal era arisco!
À
primeira aproximação fugia logo e arreganhava as dentuças, ameaçando pôr o dente
onde calhasse.
“Fidamãe
do ngulo97. Talvêis tem kiombo98 na
família” – dizia o Zuze.
A
casa de Zuze ficava nas fronteiras do Golfe, nas bordas do Maculo e do antigo mercado
do Uengi Maka.
Para
lá, o mato.
E ra
uma casa onde não sobrava nem o kixinge99.
Nada
sobrava, pois, para o porco.
96 De
esquindiva, calão luandense proveniente de esquiva, esquivar.
97
Porco
98
Javali, porco do mato
99
Parte dura e fibrosa do interior da mandioca
_______________________________________
Zuze
não queria o seu porco a andar por ali à toa.
Podiam
roubar, a velha Lemba podia pegar de novo, podia até ser comido por cobra ou
algum dikombe100 ou hiena que rondasse por ali, e aí adeus almoço...
Não,
não... Ele é que tinha que tratar do assunto.
O
porquito dormia dentro de casa, nos primeiros tempos, enquanto Zuze preparava um
cercado feito com aduela de barril, arame e sinal.
Quando
começou a virar porco então foi colocado no pequeno cercado.
Todos
os dias, manhã muito cedo e à tardinha, Zuze abria a cancela, atava uma
corda
na cabeça do leitão, sempre com as devidas precauções e saía com ele numa
patrulha pelas lixeiras e lamaçais do bairro.
Pouco
tempo passou para que ele fosse logo alcunhado como Zuze Kiomba!
Não
que isso o aborrecesse muito pois, para além de ser possuidor de carne em
potencial, o bicho era dele e ninguém tinha nada que ver como o alimentava ou que
fazia como ele. Até mesmo ele é tinha que resolver o problema do aumento dos mauindu101
ao redor da casa... Ele é que tinha que desbastar a pele, enfiar a
ponta do alfinete na cabeça do diundiu, puxar o saco dos ovos sem rebentar e
pôr na fogueira para queimar bem, quando aparecia nalgum nos filhos, na mulher
ou nele próprio...
Portanto...!
No
gozo, com laivos de inveja, perguntavam-lhe:
“Cumé,
Zuze!? É hoje? “. E ele respondia, até vaidoso”:
“Ainda!!!.”
O
porco foi crescendo na ordem directa da gula do Zuze
Por
vezes levava o animal a passear pelas matas próximas procurando restos de maboques,
cajus, gajajas e outras frutas que proliferavam na zona. E enquanto o porco
se
banqueteava, Zuze enrolava um pica, encostava-se a uma árvore e pensava na sua
vida e na do porco, imaginava as partes que ia pôr na muamba para acompanhar o
funji, as partes para assar na brasa, o kixialuanda102
do dia seguinte, o vinul ou a quissângua a acompanhar, as invejas
dos vizinhos...
E a
água crescia na boca...
E o
dito porco, sempre arisco e rebelde, às vezes mesmo perigoso, quando chegava altura
de lhe pôr a corda no pescoço ou quando levava um pontapé para andar mais depressa!
O
tempo passando, a alcunha colando, o porco engordando, a gula tilintando e
aproximando-se o dia em que iam ser recompensados os esforços do Zuze e se iria
terminar com a vida chafurdante do animal.
Foi
num sábado!
O
porco já era mesmo. A sua personalidade de porco arredio que sempre demonstrara
estava
mais vincada.
Zuze
saiu com ele logo a seguir ao parco almoço que tivera, para dar o seu passeio costumado
de catanço de restos.
100
Mamífero carnívoro negrófago nocturno, malcheiroso..
101
Bicho do pé, matacanha, bitacaia. Plural de diuindu.
102
Pedaços de carne ou chouriço, misturados com farinha de pau. Geralmente
aproveitam–se os restos de comida do dia anterior..
---------------------------------------------------------------------
As
esquindivas e ameaças eram maiores que o habitual...!!
Seria
que o animal se estava a aperceber que a hora dele estava a chegar?
Seria
que tinha algum pressentimento, algum instinto que lhe dizia que o Zuze só lhe
tinha dado mais uma semana de engorda?
C
hegaram a um muxitu103, um pouco distante,
depois do porco ter chafurdado em duas lagoas de água fétida, das chuvas que
tinham caído uns dias antes, para procurarem restos de frutas.
O
bicho sempre a resmungar, o Zuze a dar os puxões e pontapés habituais.
Já
em plena mata, durante uma das sessões de puxa e estica, o Zuze resolveu pôr o porco
no seu devido lugar, mostrar quem era o dono e o cativo, e deu-lhe uma série de
biqueiras
que fizeram o animal berrar como um porco.
Não
podendo dar pontapé, o porco defendeu-se com dentadas e uma delas foi directo à
canela do Zuze.
Já
sabem, dentada de porco não é doce!...
O
uviu-se um “crak”, um berro do Zuze...
Largou
a corda, deu um salto, agarrou-se à perna, novo salto desastrado para evitar outra
acometida, tropeçou, escorregou e estatelou-se batendo com a cabeça numa das pedras
que bordejavam o trilho...
O
porco, ar triunfante, de pé, sereno, a olhar para ele.
E
quem poderia definir aquele olhar?
Zuze
não regressou a casa nessa noite!
Nem
ele, nem o porco!
A
mulher preocupada!
Que
se passou?
Será
que se perderam?
Não
pode!! Ele conhece bem os arredores.
Alguma
coisa aconteceu. Mas o quê? Domingo de manhã, nada. Nem Zuze, nem
porco!
Já
bastante alarmada, a mulher começou a contactar a vizinhança e logo se formou um
pequeno ajuntamento com habituais palpites sobre o que poderia ter acontecido.
Uma
voz mais coerente, ao fim de algum tempo de prognósticos e conjecturas, propôs
que se procurasse o Zuze e o porco.
–
“Foi por aqui”
– “Foi
por ali”
–
“Eu lhes vi mesmo ontem, foram nesta direcção”
O
zunzum habitual nestas situações!
Formaram-se
grupos de busca depois de se ter conseguido aclarar qual o rumo que tinham
tomado e partiram...
E
mbrenharam-se nos mixitu, gritaram, chamaram pelo nome, cortaram-se nos espinhos,
rebuscaram as moitas...
Ao
fim de algumas horas, juntaram-se todos, desiludidos e cansados.
As
opiniões acerca daquele estranho desaparecimento divergiam: para uns, tinha sido
raptado por bandido, outros diziam que tinha pura e simplesmente bazado,
abandonado
a
mulher e os filhos, outras ainda com teorias mais simplistas, diziam que ele
queria
era comer o porco sozinho.´
103 Mata cerrada pequena de árvores e arbustos de pequeno porte.
------------------------------------------------------------
O velho chegara nessa manhã, parecendo adivinhar
que algo se passara.
Percorrera o bairro, mal o sol se tinha levantado,
cheirava o ar, abanava a cabeça coçava a barba abundante, descuidada mas
orgulhosa, dizia coisas que pareciam incoerentes...
O mbima104
numa das mãos, bizarro, com uma espécie
de raízes entrecruzadas na extremidade de cor negra que parecia brilhar, com
nódulos que mais pareciam incrustações, estranhas
à própria madeira de que era feito (que madeira era
aquela?)...
O mbima, o mulele105 empoeirado amarrado na cintura, o seu comportamento
diligente
e o porte altivo mas acusando um certo cansaço, tudo
no seu aspecto fazia crer, ao observador atento, que viera de longe, de muito
longe e que viera com um objectivo, um encontro com o destino, uma procura de
algo, para um confronto predefinido...
Enquanto caminhava pelo bairro, alguns dos poucos
transeuntes matinais ainda tentavam reparar nele mas a atitude do muadiakimi106, para eles era simplesmente um sinal de pouca
lucidez, um excêntrico, mais um xanfu107...
Na
confusão que se estabelecera antes de se iniciarem as buscas, ninguém prestara atenção
ao velho, ninguém se apercebera de que não era dali, que dizia coisas estranhas
numa
língua estranha.
Um
dos dikota do bairro ainda tentou compreender, percebeu que aquilo era também a
sua própria língua, mas com algumas entoações que só tinha ouvido a outros muito
mais velhos, que até já tinham falecido.
Curioso,
no início, distraindo-se com as novas sobre o desaparecimento do Zuze, não deu
confiança ao assunto!
Ficou-se
pela convicção de que era, de facto mais um maluco (– uassalukidié108,
coitado)
dos muitos que apareciam naqueles tempos, a quem ou a desgraça, ou a
desesperança, ou a mutilação constante das suas condições de seres humanos ou
mesmo a doença, tinham levado a uma reviravolta nas suas faculdades mentais.
Também
ninguém reparou quando o velho se juntou aos grupos de buscas, sempre entoando
as ladainhas que só ele compreendia.
Um
dos grupos, acabrunhado e decepcionado começou a mover-se em direcção ao
bairro, já no lusco-fusco, atravessando uma pequena mata que ninguém tinha vasculhado
com a devida atenção, quando como um só, pararam petrificados.
Ali,
ano meio do trilho que cruzava o pequeno bosque, estavam os restos de um Zuze
semi-devorado e junto a ele, o Porco.
Este
apresentava-se agora muito maior do que como o conheciam.
De
pé, olhando o grupo todo, desafiante, parecendo até que os esperava!
O
corpo era agora coberto por um pelo curto, hirsuto, acastanhado e faiscante, todo
eriçado no cachaço como se fosse a juba de um leão, o focinho pontiagudo
sobressaindo
de uma cabeça que se agigantara e um riso maldoso desenhado na bocarra que
abria e fechava onde apareciam dentes grandes, brancos e pontiagudos,
salpicados
de
vermelho sangue.
Um
aspecto terrível, medonho, cuja irrealidade era acentuada pela fantasmagórica luz
do crepúsculo, maior motivo para a fossilização momentânea do grupo do que o
facto de terem encontrado Zuze naquele estado.
E os
olhos? Aqueles olhos de um gelado vermelho, que fitavam o grupo com um misto de
ódio e desprezo, como se quisessem lançar chamas para cima de todos eles.
As
crianças esconderam a cara nos panos das mães, os adultos nem respirar ousavam!
Aquele
momento de paragem do tempo, de regresso dos mitos e medos, de imenso terror,
de subjugação completa perante um poder desconhecido mas que por um grunhido
profundo, um ronco estremecedor, que parecia vir das entranhas da terra, fazendo-a
tremer!!
O
grupo agitou-se completamente aterrorizado mas ninguém conseguia arredar pé.
O
medo congela as pernas e a mente!
Houve
apenas um movimento, o do Velho, que saindo do torpor inicial em que permanecera
também, se postou em frente do grupo e encarou o Porco.
O
vento, a respiração das pessoas, a agitação das folhas e o do capim, o zunir
dos insectos, o cortejo das nuvens, tudo parecia ter parado!!...
O
agitar das abas do pano do Velho, o movimento de vaivém do cajado, o abrir fechar
das mandíbulas, eram os únicos movimentos perceptíveis, como se aqueles dois seres
fizessem parte de um outro quadro, de um outro espaço temporal, de outro
panorama que não aquele que se encontravam...
Fitando
o Porco nos olhos, o Velho começou a entoar um cântico, não numa voz sumida e
trémula, antes forte e dominadora, elevando o tom a pouco e pouco.
O
cântico, num ritmo e significado que ninguém entendia, que parecia perder-se no
escuro dos tempos africanos, fazia vibrar o Velho enquanto encarava, corajosamente,
o
oponente.
Haviam
ali duas forças poderosas confrontando-se, uma não querendo ceder à outra.
O
Porco fez um movimento como a querer avançar sobre o Velho mas quedou-se pois
este, adinhando-lhe a intenção, ameaçou também avançado o cajado, enquanto aumentava
a cadência, o volume e a autoridade do cântico.
O
Porco vacilou!
Agitou
a cabeçorra e soltou um novo urro, mais assustador ainda que o primeiro.
Lentamente
rodou sobre si mesmo, lançou um olhar sobre o grupo, encarou
furtivamente
o Velho e embrenhou-se na mata, no meio de uma nuvem de poeira.
Ouviu-se
ainda um último urro, parecendo vir de todos os lados e de nenhum, um urro sem
dimensão, sem limite do possível, muito perto do fantástico...
C
omo um aviso! Cruel e definitivo!
No
meio de mata, um clarão, um estrondo e o silêncio!
Foi
o sinal para a debandada geral. Todos corriam, querendo deixar aquele lugar
danado
o mais depressa possível!!
Nessa
noite ninguém percorreu o bairro!
Poucos
conseguiram dormir!
O
silêncio era absoluto!
Nem
o casquinar das hienas na mata distante, o grunhido do dicombe, nem latidos, nem
miados, nem o coaxalhar das rãs...
Mesmo
quem tinha vindo de visita, ao ser posto ao corrente do que passara, ouvindo as
várias versões dos que tinham presenciado e daqueles que conheciam alguém que
tinha estado presente, como sempre acontece, apressadamente abandonara as
imediações para ir espalhar a sua própria versão pelo resto da cidade.
Apenas
na casa da viúva, portas e janelas fechadas, se ouviam os lamentos da família!
Na
mente de todos, apenas uma evocação: mayombola...
Quando
as autoridades policiais chegaram, manhã cedo, alertados pelos boatos, foi a
muito custo que conseguiram que um dos jovens testemunhas os acompanhasse ao
lugar
ocorrido.
Apontou
de longe e zarpou o mais depressa que pôde!..– A polícia, oficialmente,
não
acreditou em nada.
Havia,
contudo murmúrios entre os sipaios...
Para
agravar as coisas, o velho não aparecia.
Por
mais que perguntassem, ninguém o conhecia ou sabia onde poderia ser encontrado.
Uns diziam que era baixo, outros que era alto, outros ainda que tinha barba até
aos joelhos...
Mas
ele tinha sido visto! Tinham-no ouvido cantar e recitar coisas esquisitas!
Tinham-no
visto enfrentar o Porco!!!
E
onde estava a velha Lemba? Todo o caso tinha começado com ela, quando tinha dado
o porco ao falecido.
Foram
à sua dibata109...
O ar
de abandono era completo!
C
ercada de arbustos, o capim ao redor era alto e seco... Os adobes carcomidos pelo
tempo... A única porta era um desconjuntado aglomerado de tábuas ligadas pelos mais
diversos processos... A solitária janela tapava a luz exterior por meio de uma
série de trapos de cor indefinida e esfiapados... O colmo do telhado,
entremeado por bocados de zinco enferrujadas, pedaços de madeira e cartão,
resto de um guarda-chuva, retalhos de sacos de ráfia e sisal, parecia não ter
idade...
No
interior, no qual entraram a medo mesmo os mais corajosos, a dixisa110, kissanda111
para ser mais exacto, num canto... No outro, os parcos haveres: kitutus112,
latas
e outros utensílios com que ou fazia os seus milongo113
de feiticeira, junto aos restos de uma fogueira há muito apagada!
No
meio do recinto, no chão, encontraram os seus makoza114,
tão velhos e usados como ela... Um amontoado indefinido, como um saco vazio...
Um
dos polícias, com a ponta do cassete, tocou o monte de panos e sentiu
O
uviu-se um outro gemido, um fofo xuxiar115 de
panos e uma chama começou a desenhar-se e a aumentar lentamente.
Todos
estavam atónitos pois ninguém entendia o que se passava. Um grito estridente fê-los
sair do torpor e, como um só, desandaram porta fora...
O s
gritos aumentaram. Eram gritos de puro terror, de intensa aflição, gritos exacerbados
que ultrapassavam o simples grito de dor...
qualquer
coisa se mexia. Ouviu-se um gemido rouco... Todos recuaram!
De
repente, um corpo em chamas surgiu na porta da dibata, pegando fogo ao
capim
que a circundava...
O
corpo contorcia-se, gritava e o grito ia esmorecendo, substituído por um murmúrio:
Kudionda,
kundionda, N’gambat’yeno kiá116...
Até que caiu.
A
dibata inflamou-se repentinamente, ardeu durante algum tempo, houve um
109
Cubata, casa de pau a pique
110
Esteira, luandu
111
Esteira em mau estado, velha e esfiapada
112
Utensílios domésticos em mau estão
113
Remédio
114
Trapos
115
Roçagar de panos
116
Perdão, perdão, levem–me já.
-------------------------------------------------------------------
redemoinho
de vento que fez as chamas subir e de repente, extinguiu-se tudo.
Do
que existira, apenas um amontoado de cinzas, ainda fumegantes...
Dos
haveres, dos kitutus, latas e outros aprestos, não havia restos. Apenas
cinza...
Do
corpo ardido, apenas uma marca no meio das cinzas, qual baixo-relevo de algum
artista naíve...
Os
makota que se recordavam das estórias contadas pelos seus ancestrais, falavam de
ritos e lendas muito antigos, já esquecidos, mistura de magia e ancestral
sabedoria, de castigos e recompensas que excediam a compreensão!
Falavam
dos tempos em que os homens e os animais se comunicavam pelo verbo e que haviam
homens e animais, homens-animais e animais-homens e que todos tinham os seus
deuses e demónios que eram o reverso de cada um dos outros!
Isso
complicou mais as coisas e as investigações!...
Tudo
estava baralhado!
C
ada uma das testemunhas contava a sua versão, que variava na razão directa da kabualala117
que tivera e do kuzakama118 que
sentira na altura dos acontecimentos: o
Porco
quase chegava aos três metros, tinha cornos, era prateado e com chamas a saírem-lhe
das ventas, tinha cabeça de leão e corpo de elefante
No
auto e na certidão de óbito do Zuza ficou escrito:
“Devorado
por um porco depois de desfalecimento causado por fractura craniana”.
O s
polícias e sipaios que tinham ido a casa de Lemba, estavam de tal foram surpreendidos,
atordoados e chocados que não diziam coisa com coisa...
O s
chefes bem tentaram fazê-lo falar mas as respostas eram sempre as mesmas:
–
“Nem me quero alembrar”
–
“Aquilo eram coisas do demo”
–
“Birgem Xantíxima, barde retro xatanás”
–
“Sukuma”
–
“Qué questás praí a dezere? “
–
“Com o debido respeito, mê sargento, fosse lá boxê quia ber o quéra bom...”
–
“Vucê não aquerditas? Tã bom, vucê qui sabes...!!”
–
“Oh chefe, eu não acredito em bruxas mas quelas existem, existem...”
–
“Puârra, nã me meto cós meus feitiços, quanto mais nos dos pretos, carago”
–
“Ali não se paxou nada, ó chefe. Eu não bi nada, não xei de nada, não oubi e quero-mir
imbora para a metrópole quisto aqui é mais medonho que os feitixos da minha
xanta terrinha”
O
relatório policial fazia referência a “uma história inacreditável contada por
um grupo socialmente baixo, analfabeto e atrasado, imbuído de conceitos retrógrados
e obscurantistas que mais não são do que entraves a uma investigação eficiente,
pelo que
ficam
as dúvidas sobre o verdadeiro motivo do crime, pois de facto o é, seu autor ou
autores”.
Arquive-se...”
No
seu relatório confidencial para os superiores, o chefe máximo da polícia da cidade
fez contar que “o desaparecimento de um indígena em circunstâncias assaz
estranhas, num episódio em que estiveram, aparentemente, presentes forças
sobrenaturais, conforme atestam os testemunhos de alguns elementos desta
corporação, dos quais não temos a mínima dúvida sobre o seu perfeito equilíbrio
psicológico e credibilidade nos valores da nossa sociedade, não pode ser
pretexto, repito, não pode ser pretexto para que ressurjam ou possa ser factor
de ressurgimento de práticas ou valores
117
diarreia.
118
medo.
119
Não ouvi, não vi, não sei.
120
Mafu Malulu tem razão em não vir aqui. Tem medo.
------------------------------------------------------
e
conceitos que periguem a nossa tarefa evangelizadora. Decidi, ipso factu,
mandar arquivar o processo por forma a que o tempo possa apagar tão nefasta
contribuição a manifestações lesivas aos nossos mais profundos interesses e
valores morais.
Medidas
subsequente foram tomadas por forma a evitar-se a possibilidade de exploração
do assunto pelos meios de comunicação pública e fiz a devida comunicação ao
serviço de informações para que se tomem as medidas pertinentes no sentido de
se evitar
a propagação do boato”.
Nos
poucos jornais que noticiaram o assunto nos dias subsequentes, apenas uma ligeira
referência, num a caixa de uma das páginas de factos diversos, a um crime que tinha
ocorrido nos subúrbios da capital.
Pessoas
mal intencionadas, cujo verdadeiro propósito era o de criar um clima de pânico,
com objectivos pouco claros, entre a população, tinha tentado espalhar um boato
sobre a existência de acontecimentos sobrenaturais relacionados com o citado crime.
Tanto as autoridades civis como as religiosas coincidiam nessa conclusão, pelo que
solicitavam à população que não desse crédito a esses rumores e até denunciasse
os boateiros às autoridades.
Também,
quem era o Zuzu?
Que
mereceria a morte dele a não ser um arquive-se?...
E
que recompensa, que reconhecimento, que promoção teria um investigador se
quisesse
ir até à verdade? Se quisesse aprofundar os factos?
Mexer
na sopa de outros? Coisas que não entendia ou em que talvez acreditasse na
sua
terra e tentar entendê-las ou resolvê-las na terra do outro?
O
mau cheiro iria para quem?...
Contradizer
os conceitos e pôr em causa as teorias do ocupante sobre o atraso cultural, a
incivilização, a ingenuidade do ocupado?
Não
haveria demónios suficientes no seu solo para se ir meter com os de outrem?
–
“Puârra!! Que sa lixe!!!”
Apesar
de tudo, a estória espalhou-se pela cidade, principalmente nos muceques, com
todas as impliações e condimentos.
Tendo-se
reacendido temores antigos e esquecidos, ressuscitado tradições e lendas, a
partir dai e durante muito tempo, quem andava de noite em zonas escuras, becos
e ruelas principalmente depois de uma boa farra, uns bons copos ou uma dose da mardita121
bem enrolada num cubelo122 de
AC e via um porco numa esquina, passava de longe, pulava quintas, arredava
caminho, não fosse o irracional pôr-se de pé, encostar-se à parede, acender um
cachimbo ou um charuto, dar umas baforadas e chamar o noctívago, sabe-se lá
para quê!!
121
liamba, cannabis sativa
In Mu Ukulu, Ki Tuexilê Ku Mayombola,
União dos Escritores Angolanos, 2005
Sem comentários:
Enviar um comentário