segunda-feira, 10 de junho de 2013

O FANTÁSTICO NA PROSA ANGOLANA



LUÍS ROSA LOPES, Natural de Luanda, onde nasceu a 14 de Abril de 1954, tem três livros publicados, entre eles o que aqui se transcreve, inspirado em fontes que foi ouvindo no seio familiar nas noites de sunguila, mesmo que hoje se pense que essas coisas já não acontecem (!?) e não pululam no imaginário das vivências angolanas diversas, cheias de kiandas, de mayombolas e jin’zumbi e aqui ora recuperadas do registo da memória.


MU UKULU, KI TUEXILÉ88 KU MAYOMBOLA89
Ao Zueze tinham-lhe oferecido um porco!
Não um porco que já o era, mas somente um bacorinho. Um leitãozinho tão apetitoso que, ao olhar-se para ele, imaginava-se logo um forno ou um espeto.
Principalmente naqueles tempos de falta-tudo!
Faltava o pão para a boca, faltava o emprego condigno, faltava a oportunidade de subir na vida, faltava menos opressão, menos menosprezo, menos exploração, faltava a esperança da dignidade, faltava o pêndulo da justiça...
Apesar sobrava o direito de sobreviver...
Um porco, em tempos de pouca fartura, é uma dádiva dos céus. E a vontade é pitá-lo logo!
C ontudo, o Zuze resolveu que sacrificar um pouco mais o estômago e que o bicho deveria crescer e engordar para passar da categoria de leitão à de porco.
O bicho foi-lhe oferecido por uma velha, Lemba, que conhecida sempre com os mesmos
andrajos, com a mesma má disposição, com a mesma vida indistinta e estranha, com a mesma kakunda, que não era bem uma marreca mas que parecia mesmo, por causa da forma inclinada como se movimentava. Praticamente não falava com ninguém, desaparecia por vezes dias a fio, vivia nos limites do musseque, numa kibuia90 mais miserável do que as outras do bairro. Aliás, aquilo era quase zona interdita. Ninguém se acercava muito dos domínios da dona Lemba.
Era já velha quando ele e os outros anandengue91 do bairro, o Petelo, o Dikambu, o Juca, o Passito, o Goiaba e outros, muitos anos atrás, a xingavam de mulogi92 e ela lhes atirava pedras e rogava pragas que ninguém entendia.
Zuze, por ser um dos mais atrevidos, era o que sobressaía nos xingamentos e nas tentativas da velha de atingir alguém com as pedras.
Um dia viram um facto estranho que fez com a sua reputação de feiticeira aumentasse.
Um kinaxo93, de sua alcunha Mafu Malulu94, muito conhecido pelo seu grande nguimbo95, pela sua malvadez e pela sua fidelidade canina aos seus superiores da administração


88 Antigamente, no tempo da Mayombola
89 Ser sobrenatural, reencarnação em forma de animal que mantém maneirismos humanos. Os galos e os porcos são as suas formas preferidas, dizem.
90 Casebre, cubata muito pobre e decrépita.
91 Plural de ndengue, miúdos, crianças.
92 Feiticeiro, bruxo
93 Termo depreciativo para definir os mais servis dos sipaios junto às autoridades coloniais.
94 Folha amarga, folha azeda. Neste caso alcunha dada em função o mau feitio do indivíduo.
95 Forma cónica como termina a cabeça de alguns indivíduos.
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(para mostrar competência) apareceu na altura em que Zuze e os amigos ofendiam a velha e este, pela primeira vez, não conseguindo esquindivar96, levou com uma pedrada em plena testa.
Mafu Malulu, assumindo ares de autoridade, rapou do cassetete e avançou para a velha gritando “isso num si fáis, aguerdir ansim as criança”.
Levantou o cacete, deu uma porretada na desgraçada da velha, levantou novamente, encarou a velha e, contam os miúdos, o pau ficou no ar, extensão de um braço também paralizados, como todo o resto do corpo, aliás...
Nem pra trás nem prá frente!!
Assim só, tipo estátua das brincadeiras infantis!
A verdade é que, passados uns segundos, se virou com um olhar esgazeado e nunca mais o viram girar por aqueles bandas.
Quando apareciam os sipaios, ele ficava na entrada do bairro, os outros é que rondavam.
Diziam que era medo de tornar a cruzar-se com Lemba.
A velha olhou para Zuze, que se arrepiou todo face à intensidade do olhar da velha, virou-se embora.
Com o decorrer dos anos, para além de nunca mais ter-se atrevido a disparatar a velha
Lemba, passou a evitar os seus circuitos, mandando até um sorrisinho amarelado e de caxexe para ela, sempre que não podia atalhar caminho.
Nesse dia, viu a velha e procurou fazer a habitual esquiva.
Ficou espantado quando Lemba lhe fez sinal para se aproximar!
Numa voz sumida, que passava sibilando pelos buracos onde já tinham existido dentes,
perguntou-lhe se ainda lhe doía a pedrada que levara na testa.
Ele, atrapalhadamente, respondeu que não, que já nem a cicatriz.
Ela disse-lhe que ainda lhe doía a cacetada do kinaxo, mas que aceitasse o porco que tinha amarrado por uma corda, para que fosse esquecido que a porretada deveria ter sido para ele e não para ela. Um sinal de boa vontade!...
Quase doze anos se tinham passado!!..
Ela fizera-lhe recordar algo que tinha praticamente esquecido.
Até sentiu dor no lugar onde já houvera cicatriz!
Desajeitadamente aceitou a corda com o porquito, disse um atrapalhado boa noite, quando ainda não o era e retirou-se com tremuras que pareciam do paludismo.
O animal era arisco!
À primeira aproximação fugia logo e arreganhava as dentuças, ameaçando pôr o dente onde calhasse.
“Fidamãe do ngulo97. Talvêis tem kiombo98 na família” – dizia o Zuze.
A casa de Zuze ficava nas fronteiras do Golfe, nas bordas do Maculo e do antigo mercado do Uengi Maka.
Para lá, o mato.
E ra uma casa onde não sobrava nem o kixinge99.
Nada sobrava, pois, para o porco.

96 De esquindiva, calão luandense proveniente de esquiva, esquivar.
97 Porco
98 Javali, porco do mato
99 Parte dura e fibrosa do interior da mandioca
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Zuze não queria o seu porco a andar por ali à toa.
Podiam roubar, a velha Lemba podia pegar de novo, podia até ser comido por cobra ou algum dikombe100 ou hiena que rondasse por ali, e aí adeus almoço...
Não, não... Ele é que tinha que tratar do assunto.
O porquito dormia dentro de casa, nos primeiros tempos, enquanto Zuze preparava um cercado feito com aduela de barril, arame e sinal.
Quando começou a virar porco então foi colocado no pequeno cercado.
Todos os dias, manhã muito cedo e à tardinha, Zuze abria a cancela, atava uma
corda na cabeça do leitão, sempre com as devidas precauções e saía com ele numa patrulha pelas lixeiras e lamaçais do bairro.
Pouco tempo passou para que ele fosse logo alcunhado como Zuze Kiomba!
Não que isso o aborrecesse muito pois, para além de ser possuidor de carne em potencial, o bicho era dele e ninguém tinha nada que ver como o alimentava ou que fazia como ele. Até mesmo ele é tinha que resolver o problema do aumento dos mauindu101 ao redor da casa... Ele é que tinha que desbastar a pele, enfiar a ponta do alfinete na cabeça do diundiu, puxar o saco dos ovos sem rebentar e pôr na fogueira para queimar bem, quando aparecia nalgum nos filhos, na mulher ou nele próprio...
Portanto...!
No gozo, com laivos de inveja, perguntavam-lhe:
“Cumé, Zuze!? É hoje? “. E ele respondia, até vaidoso”:
“Ainda!!!.”
O porco foi crescendo na ordem directa da gula do Zuze
Por vezes levava o animal a passear pelas matas próximas procurando restos de maboques, cajus, gajajas e outras frutas que proliferavam na zona. E enquanto o porco
se banqueteava, Zuze enrolava um pica, encostava-se a uma árvore e pensava na sua vida e na do porco, imaginava as partes que ia pôr na muamba para acompanhar o funji, as partes para assar na brasa, o kixialuanda102 do dia seguinte, o vinul ou a quissângua a acompanhar, as invejas dos vizinhos...
E a água crescia na boca...
E o dito porco, sempre arisco e rebelde, às vezes mesmo perigoso, quando chegava altura de lhe pôr a corda no pescoço ou quando levava um pontapé para andar mais depressa!
O tempo passando, a alcunha colando, o porco engordando, a gula tilintando e aproximando-se o dia em que iam ser recompensados os esforços do Zuze e se iria terminar com a vida chafurdante do animal.
Foi num sábado!
O porco já era mesmo. A sua personalidade de porco arredio que sempre demonstrara
estava mais vincada.
Zuze saiu com ele logo a seguir ao parco almoço que tivera, para dar o seu passeio costumado de catanço de restos.

100 Mamífero carnívoro negrófago nocturno, malcheiroso..
101 Bicho do pé, matacanha, bitacaia. Plural de diuindu.
102 Pedaços de carne ou chouriço, misturados com farinha de pau. Geralmente aproveitam–se os restos de comida do dia anterior..
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As esquindivas e ameaças eram maiores que o habitual...!!
Seria que o animal se estava a aperceber que a hora dele estava a chegar?
Seria que tinha algum pressentimento, algum instinto que lhe dizia que o Zuze só lhe tinha dado mais uma semana de engorda?
C hegaram a um muxitu103, um pouco distante, depois do porco ter chafurdado em duas lagoas de água fétida, das chuvas que tinham caído uns dias antes, para procurarem restos de frutas.
O bicho sempre a resmungar, o Zuze a dar os puxões e pontapés habituais.
Já em plena mata, durante uma das sessões de puxa e estica, o Zuze resolveu pôr o porco no seu devido lugar, mostrar quem era o dono e o cativo, e deu-lhe uma série de
biqueiras que fizeram o animal berrar como um porco.
Não podendo dar pontapé, o porco defendeu-se com dentadas e uma delas foi directo à canela do Zuze.
Já sabem, dentada de porco não é doce!...
O uviu-se um “crak”, um berro do Zuze...
Largou a corda, deu um salto, agarrou-se à perna, novo salto desastrado para evitar outra acometida, tropeçou, escorregou e estatelou-se batendo com a cabeça numa das pedras que bordejavam o trilho...
O porco, ar triunfante, de pé, sereno, a olhar para ele.
E quem poderia definir aquele olhar?
Zuze não regressou a casa nessa noite!
Nem ele, nem o porco!
A mulher preocupada!
Que se passou?
Será que se perderam?
Não pode!! Ele conhece bem os arredores.
Alguma coisa aconteceu. Mas o quê? Domingo de manhã, nada. Nem Zuze, nem
porco!
Já bastante alarmada, a mulher começou a contactar a vizinhança e logo se formou um pequeno ajuntamento com habituais palpites sobre o que poderia ter acontecido.
Uma voz mais coerente, ao fim de algum tempo de prognósticos e conjecturas, propôs que se procurasse o Zuze e o porco.
– “Foi por aqui”
– “Foi por ali”
– “Eu lhes vi mesmo ontem, foram nesta direcção”
O zunzum habitual nestas situações!
Formaram-se grupos de busca depois de se ter conseguido aclarar qual o rumo que tinham tomado e partiram...
E mbrenharam-se nos mixitu, gritaram, chamaram pelo nome, cortaram-se nos espinhos, rebuscaram as moitas...
Ao fim de algumas horas, juntaram-se todos, desiludidos e cansados.
As opiniões acerca daquele estranho desaparecimento divergiam: para uns, tinha sido raptado por bandido, outros diziam que tinha pura e simplesmente bazado, abandonado
a mulher e os filhos, outras ainda com teorias mais simplistas, diziam que ele
queria era comer o porco sozinho.´

103 Mata cerrada pequena de árvores e arbustos de pequeno porte.
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O velho chegara nessa manhã, parecendo adivinhar que algo se passara.
Percorrera o bairro, mal o sol se tinha levantado, cheirava o ar, abanava a cabeça coçava a barba abundante, descuidada mas orgulhosa, dizia coisas que pareciam incoerentes...
O mbima104 numa das mãos, bizarro, com uma espécie de raízes entrecruzadas na extremidade de cor negra que parecia brilhar, com nódulos que mais pareciam incrustações, estranhas
à própria madeira de que era feito (que madeira era aquela?)...
O mbima, o mulele105 empoeirado amarrado na cintura, o seu comportamento diligente
e o porte altivo mas acusando um certo cansaço, tudo no seu aspecto fazia crer, ao observador atento, que viera de longe, de muito longe e que viera com um objectivo, um encontro com o destino, uma procura de algo, para um confronto predefinido...
Enquanto caminhava pelo bairro, alguns dos poucos transeuntes matinais ainda tentavam reparar nele mas a atitude do muadiakimi106, para eles era simplesmente um sinal de pouca lucidez, um excêntrico, mais um xanfu107...
Na confusão que se estabelecera antes de se iniciarem as buscas, ninguém prestara atenção ao velho, ninguém se apercebera de que não era dali, que dizia coisas estranhas
numa língua estranha.
Um dos dikota do bairro ainda tentou compreender, percebeu que aquilo era também a sua própria língua, mas com algumas entoações que só tinha ouvido a outros muito mais velhos, que até já tinham falecido.
Curioso, no início, distraindo-se com as novas sobre o desaparecimento do Zuze, não deu confiança ao assunto!
Ficou-se pela convicção de que era, de facto mais um maluco (– uassalukidié108,
coitado) dos muitos que apareciam naqueles tempos, a quem ou a desgraça, ou a desesperança, ou a mutilação constante das suas condições de seres humanos ou mesmo a doença, tinham levado a uma reviravolta nas suas faculdades mentais.
Também ninguém reparou quando o velho se juntou aos grupos de buscas, sempre entoando as ladainhas que só ele compreendia.
Um dos grupos, acabrunhado e decepcionado começou a mover-se em direcção ao bairro, já no lusco-fusco, atravessando uma pequena mata que ninguém tinha vasculhado com a devida atenção, quando como um só, pararam petrificados.
Ali, ano meio do trilho que cruzava o pequeno bosque, estavam os restos de um Zuze semi-devorado e junto a ele, o Porco.
Este apresentava-se agora muito maior do que como o conheciam.
De pé, olhando o grupo todo, desafiante, parecendo até que os esperava!
O corpo era agora coberto por um pelo curto, hirsuto, acastanhado e faiscante, todo eriçado no cachaço como se fosse a juba de um leão, o focinho pontiagudo
sobressaindo de uma cabeça que se agigantara e um riso maldoso desenhado na bocarra que abria e fechava onde apareciam dentes grandes, brancos e pontiagudos, salpicados
de vermelho sangue.
Um aspecto terrível, medonho, cuja irrealidade era acentuada pela fantasmagórica luz do crepúsculo, maior motivo para a fossilização momentânea do grupo do que o facto de terem encontrado Zuze naquele estado.
E os olhos? Aqueles olhos de um gelado vermelho, que fitavam o grupo com um misto de ódio e desprezo, como se quisessem lançar chamas para cima de todos eles.
As crianças esconderam a cara nos panos das mães, os adultos nem respirar ousavam!
Aquele momento de paragem do tempo, de regresso dos mitos e medos, de imenso terror, de subjugação completa perante um poder desconhecido mas que por um grunhido profundo, um ronco estremecedor, que parecia vir das entranhas da terra, fazendo-a tremer!!
O grupo agitou-se completamente aterrorizado mas ninguém conseguia arredar pé.
O medo congela as pernas e a mente!
Houve apenas um movimento, o do Velho, que saindo do torpor inicial em que permanecera também, se postou em frente do grupo e encarou o Porco.
O vento, a respiração das pessoas, a agitação das folhas e o do capim, o zunir dos insectos, o cortejo das nuvens, tudo parecia ter parado!!...
O agitar das abas do pano do Velho, o movimento de vaivém do cajado, o abrir fechar das mandíbulas, eram os únicos movimentos perceptíveis, como se aqueles dois seres fizessem parte de um outro quadro, de um outro espaço temporal, de outro panorama que não aquele que se encontravam...
Fitando o Porco nos olhos, o Velho começou a entoar um cântico, não numa voz sumida e trémula, antes forte e dominadora, elevando o tom a pouco e pouco.
O cântico, num ritmo e significado que ninguém entendia, que parecia perder-se no escuro dos tempos africanos, fazia vibrar o Velho enquanto encarava, corajosamente,
o oponente.
Haviam ali duas forças poderosas confrontando-se, uma não querendo ceder à outra.
O Porco fez um movimento como a querer avançar sobre o Velho mas quedou-se pois este, adinhando-lhe a intenção, ameaçou também avançado o cajado, enquanto aumentava a cadência, o volume e a autoridade do cântico.
O Porco vacilou!
Agitou a cabeçorra e soltou um novo urro, mais assustador ainda que o primeiro.
Lentamente rodou sobre si mesmo, lançou um olhar sobre o grupo, encarou
furtivamente o Velho e embrenhou-se na mata, no meio de uma nuvem de poeira.
Ouviu-se ainda um último urro, parecendo vir de todos os lados e de nenhum, um urro sem dimensão, sem limite do possível, muito perto do fantástico...
C omo um aviso! Cruel e definitivo!
No meio de mata, um clarão, um estrondo e o silêncio!
Foi o sinal para a debandada geral. Todos corriam, querendo deixar aquele lugar
danado o mais depressa possível!!
Nessa noite ninguém percorreu o bairro!
Poucos conseguiram dormir!
O silêncio era absoluto!
Nem o casquinar das hienas na mata distante, o grunhido do dicombe, nem latidos, nem miados, nem o coaxalhar das rãs...
Mesmo quem tinha vindo de visita, ao ser posto ao corrente do que passara, ouvindo as várias versões dos que tinham presenciado e daqueles que conheciam alguém que tinha estado presente, como sempre acontece, apressadamente abandonara as imediações para ir espalhar a sua própria versão pelo resto da cidade.
Apenas na casa da viúva, portas e janelas fechadas, se ouviam os lamentos da família!
Na mente de todos, apenas uma evocação: mayombola...
Quando as autoridades policiais chegaram, manhã cedo, alertados pelos boatos, foi a muito custo que conseguiram que um dos jovens testemunhas os acompanhasse ao
lugar ocorrido.
Apontou de longe e zarpou o mais depressa que pôde!..– A polícia, oficialmente,
não acreditou em nada.
Havia, contudo murmúrios entre os sipaios...
Para agravar as coisas, o velho não aparecia.
Por mais que perguntassem, ninguém o conhecia ou sabia onde poderia ser encontrado. Uns diziam que era baixo, outros que era alto, outros ainda que tinha barba até aos joelhos...
Mas ele tinha sido visto! Tinham-no ouvido cantar e recitar coisas esquisitas!
Tinham-no visto enfrentar o Porco!!!
E onde estava a velha Lemba? Todo o caso tinha começado com ela, quando tinha dado o porco ao falecido.
Foram à sua dibata109...
O ar de abandono era completo!
C ercada de arbustos, o capim ao redor era alto e seco... Os adobes carcomidos pelo tempo... A única porta era um desconjuntado aglomerado de tábuas ligadas pelos mais diversos processos... A solitária janela tapava a luz exterior por meio de uma série de trapos de cor indefinida e esfiapados... O colmo do telhado, entremeado por bocados de zinco enferrujadas, pedaços de madeira e cartão, resto de um guarda-chuva, retalhos de sacos de ráfia e sisal, parecia não ter idade...
No interior, no qual entraram a medo mesmo os mais corajosos, a dixisa110, kissanda111 para ser mais exacto, num canto... No outro, os parcos haveres: kitutus112,
latas e outros utensílios com que ou fazia os seus milongo113 de feiticeira, junto aos restos de uma fogueira há muito apagada!
No meio do recinto, no chão, encontraram os seus makoza114, tão velhos e usados como ela... Um amontoado indefinido, como um saco vazio...
Um dos polícias, com a ponta do cassete, tocou o monte de panos e sentiu
O uviu-se um outro gemido, um fofo xuxiar115 de panos e uma chama começou a desenhar-se e a aumentar lentamente.
Todos estavam atónitos pois ninguém entendia o que se passava. Um grito estridente fê-los sair do torpor e, como um só, desandaram porta fora...
O s gritos aumentaram. Eram gritos de puro terror, de intensa aflição, gritos exacerbados que ultrapassavam o simples grito de dor...
qualquer coisa se mexia. Ouviu-se um gemido rouco... Todos recuaram!
De repente, um corpo em chamas surgiu na porta da dibata, pegando fogo ao
capim que a circundava...
O corpo contorcia-se, gritava e o grito ia esmorecendo, substituído por um murmúrio:
Kudionda, kundionda, N’gambat’yeno kiá116... Até que caiu.
A dibata inflamou-se repentinamente, ardeu durante algum tempo, houve um

109 Cubata, casa de pau a pique
110 Esteira, luandu
111 Esteira em mau estado, velha e esfiapada
112 Utensílios domésticos em mau estão
113 Remédio
114 Trapos
115 Roçagar de panos
116 Perdão, perdão, levem–me já.

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redemoinho de vento que fez as chamas subir e de repente, extinguiu-se tudo.
Do que existira, apenas um amontoado de cinzas, ainda fumegantes...
Dos haveres, dos kitutus, latas e outros aprestos, não havia restos. Apenas cinza...
Do corpo ardido, apenas uma marca no meio das cinzas, qual baixo-relevo de algum artista naíve...
Os makota que se recordavam das estórias contadas pelos seus ancestrais, falavam de ritos e lendas muito antigos, já esquecidos, mistura de magia e ancestral sabedoria, de castigos e recompensas que excediam a compreensão!
Falavam dos tempos em que os homens e os animais se comunicavam pelo verbo e que haviam homens e animais, homens-animais e animais-homens e que todos tinham os seus deuses e demónios que eram o reverso de cada um dos outros!
Isso complicou mais as coisas e as investigações!...
Tudo estava baralhado!
C ada uma das testemunhas contava a sua versão, que variava na razão directa da kabualala117 que tivera e do kuzakama118 que sentira na altura dos acontecimentos: o
Porco quase chegava aos três metros, tinha cornos, era prateado e com chamas a saírem-lhe das ventas, tinha cabeça de leão e corpo de elefante
No auto e na certidão de óbito do Zuza ficou escrito:
“Devorado por um porco depois de desfalecimento causado por fractura craniana”.
O s polícias e sipaios que tinham ido a casa de Lemba, estavam de tal foram surpreendidos, atordoados e chocados que não diziam coisa com coisa...
O s chefes bem tentaram fazê-lo falar mas as respostas eram sempre as mesmas:
– “Nem me quero alembrar”
– “Aquilo eram coisas do demo”
– “Birgem Xantíxima, barde retro xatanás”
– “Sukuma”
– “Qué questás praí a dezere? “
– “Com o debido respeito, mê sargento, fosse lá boxê quia ber o quéra bom...”
– “Vucê não aquerditas? Tã bom, vucê qui sabes...!!”
– “Oh chefe, eu não acredito em bruxas mas quelas existem, existem...”
– “Puârra, nã me meto cós meus feitiços, quanto mais nos dos pretos, carago”
– “Ali não se paxou nada, ó chefe. Eu não bi nada, não xei de nada, não oubi e quero-mir imbora para a metrópole quisto aqui é mais medonho que os feitixos da minha xanta terrinha”
O relatório policial fazia referência a “uma história inacreditável contada por um grupo socialmente baixo, analfabeto e atrasado, imbuído de conceitos retrógrados e obscurantistas que mais não são do que entraves a uma investigação eficiente, pelo que
ficam as dúvidas sobre o verdadeiro motivo do crime, pois de facto o é, seu autor ou
autores”. Arquive-se...”
No seu relatório confidencial para os superiores, o chefe máximo da polícia da cidade fez contar que “o desaparecimento de um indígena em circunstâncias assaz estranhas, num episódio em que estiveram, aparentemente, presentes forças sobrenaturais, conforme atestam os testemunhos de alguns elementos desta corporação, dos quais não temos a mínima dúvida sobre o seu perfeito equilíbrio psicológico e credibilidade nos valores da nossa sociedade, não pode ser pretexto, repito, não pode ser pretexto para que ressurjam ou possa ser factor de ressurgimento de práticas ou valores
117 diarreia.
118 medo.
119 Não ouvi, não vi, não sei.
120 Mafu Malulu tem razão em não vir aqui. Tem medo.
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e conceitos que periguem a nossa tarefa evangelizadora. Decidi, ipso factu, mandar arquivar o processo por forma a que o tempo possa apagar tão nefasta contribuição a manifestações lesivas aos nossos mais profundos interesses e valores morais.
Medidas subsequente foram tomadas por forma a evitar-se a possibilidade de exploração do assunto pelos meios de comunicação pública e fiz a devida comunicação ao serviço de informações para que se tomem as medidas pertinentes no sentido de se evitar a propagação do boato”.
Nos poucos jornais que noticiaram o assunto nos dias subsequentes, apenas uma ligeira referência, num a caixa de uma das páginas de factos diversos, a um crime que tinha ocorrido nos subúrbios da capital.
Pessoas mal intencionadas, cujo verdadeiro propósito era o de criar um clima de pânico, com objectivos pouco claros, entre a população, tinha tentado espalhar um boato sobre a existência de acontecimentos sobrenaturais relacionados com o citado crime. Tanto as autoridades civis como as religiosas coincidiam nessa conclusão, pelo que solicitavam à população que não desse crédito a esses rumores e até denunciasse os boateiros às autoridades.
Também, quem era o Zuzu?
Que mereceria a morte dele a não ser um arquive-se?...
E que recompensa, que reconhecimento, que promoção teria um investigador se
quisesse ir até à verdade? Se quisesse aprofundar os factos?
Mexer na sopa de outros? Coisas que não entendia ou em que talvez acreditasse na
sua terra e tentar entendê-las ou resolvê-las na terra do outro?
O mau cheiro iria para quem?...
Contradizer os conceitos e pôr em causa as teorias do ocupante sobre o atraso cultural, a incivilização, a ingenuidade do ocupado?
Não haveria demónios suficientes no seu solo para se ir meter com os de outrem?
– “Puârra!! Que sa lixe!!!”
Apesar de tudo, a estória espalhou-se pela cidade, principalmente nos muceques, com todas as impliações e condimentos.
Tendo-se reacendido temores antigos e esquecidos, ressuscitado tradições e lendas, a partir dai e durante muito tempo, quem andava de noite em zonas escuras, becos e ruelas principalmente depois de uma boa farra, uns bons copos ou uma dose da mardita121 bem enrolada num cubelo122 de AC e via um porco numa esquina, passava de longe, pulava quintas, arredava caminho, não fosse o irracional pôr-se de pé, encostar-se à parede, acender um cachimbo ou um charuto, dar umas baforadas e chamar o noctívago, sabe-se lá para quê!!

121 liamba, cannabis sativa

In Mu Ukulu, Ki Tuexilê Ku Mayombola,
União dos Escritores Angolanos, 2005






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