terça-feira, 8 de setembro de 2009
INKUNA MINHA TERRA
Sobre a sua obra Inkuna – Minha Terra, lançada em 1997, o conceituado escritor Angolano, Henrique Abranches, diz o seguinte: “Esta pequena obra do escritor Fragata de Morais constitui para mim uma leitura penosa de onde sai deprimido, não porque eu não conhecesse que a verdade está por trás de muitas das suas estórias, como todos nos que não andamos a dormir conhecemos tão bem. Mas ele soube ser doloroso por vezes ousadamente controverso, quase provocatório. A coragem que passa nalguns dos seus contos, como “Jogo de Xadrez”, ou as “Amizades”, tem traça de um combatente , de alguém que não quer ser derrotado, porque não acha justo, e embora não saiba triunfar, soube ver e sofrer com o que viu ( Martinha), é um bom exemplo, entregando ao leitor a batata quente...
O CAÇADOR
Carlos Macaia despertou, sobressaltado e a transpirar, ao tropeçar numa raiz. Era a quinta vez, em dois meses, que tinha o mesmo sonho de maneira vívida e angustiante. Sentia que alguém tentava alertar para um ainda desacontecimento. O sonho repetia-se inalterável, tal um filme que se vê várias vezes. Enigmaticamente, fora-lhe reservado o papel do personagem principal.
Sem saber como interpretar o facto, homem da cidade perdido na lenta e nativa morte cultural de Katola, via-se incapaz de agarrar os sinais e, para não a preocupar com coisas pensadas fúteis, nunca o descrevera a Jumila, a esposa, grávida de vários meses.
Ainda meio atordoado, sentou-se na cama, suspirou fundo e, desvelado, nas sombras da escuridão para não a despertar, afagou a cabeça da companheira.
“Meu Deus, por que sonho isto todas as vezes?”.
Jumila virou-se, no sono, abraçando-o confortos pela cintura. Macaia deixou-se escorregar, silencioso, para a posição deitada, e perscrutou a melancolia do quarto, entendeu o falar do respirar suave da mulher segredando-lhe tranquilidade.
“Por quê?”
O que significava ver-se caçador num passado tão longínquo, sobretudo numa região em que desconhecia antepassados? Do lado paterno, a família era do norte de Inkuna, descendentes Urongos. Sabia que pelo lado materno escorria sangue Ungo, mas nunca dos Ussas mais ao sul. Por que então o teimoso sonho onde se transfigurava caçador Ussa, quase do início do século, ou mesmo do século passado? Durante horas, na insónia da noite, pensou a questão, lutou para vislumbrar a cegueira que afugentava para confins infindos as verdades desconhecidas, aquelas que lhe resgatariam a alma. Lutou até o sono começar, como chuva, a gotear-lhe as pálpebras, adormecendo-o. Chuva fina e tímida a tombar nas savanas dos territórios Ussa que, soprada por leve brisa, caía miudinha, estorvando-lhe a visão.
Há vários dias que seguia a pista do enganoso antílope. Uma mudança brusca do vento fizera com que o animal o farejasse, pondo-se em fuga. Reencontrou-o, por sorte, na madrugada seguinte, encoberto por um pequeno arbusto. Pastava despreocupado, mantendo a cautela natural que lhe era o garante da vida.
Nkuva deslizou, silencioso, em ansiedades tão retesadas quanto se pudesse retesar um arco, ciente que suas preces seriam atendidas, Baluba não o iria despeitar. Junto ao arbusto, três morros de salalé, quase irmanados em abraço terroso, fizeram-lhe relembrar a Mulala de há tanto tempo. Era um bom presságio.
Sem notar, levou instintivamente a mão ao pénis.
A Mulala fora a maior experiência de sua vida, nunca a haveria de esquecer quer pelas emoções que despertara nele criança, quer pela física dor que a cerimónia comandara.
Porém, poder deixar de dormir na cubata da mãe, libertar-se do falso e efémero nome que lhe havia sido outorgado à nascença, entrar numa confraria que perduraria a vida inteira, poder enfim ser homem, fora muito mais do que qualquer receio, medo ou puro terror ocasionados.
E, agora, aqueles irmãos de terra salalélica abraçados, reavivavam toda uma memória adormecida, pois fora em cima de algo assim parecido, feito mesa emprestada de despojamentos, que seus parentes o grudaram com força, enquanto o mestre tulula em três talhos secos e precisos lhe cortava o desnecessário prepúcio. O sofrimento causado fora atrevido e intruso, felizmente o batuque que regia a cerimónia escancarou-se infernal e seus gritos tornaram-se dança inaudível no terreiro dos antepassados. O corpo, pintado de listras brancas, o mascarado rosto besuntado de cinza, transpiravam todos os suores do mundo conhecido e todos os medos do desconhecido. Foi forte e digno, não houve necessidade de ser amarrado às estacas, mesmo quando o curandeiro emplastou, para prevenir a hemorragia, o órgão com a pasta de folhas que mascara, muito menos quando o ajudante colocou os pós e as folhas pisadas à volta, que serviriam para sarar a ferida e acautelar o contacto com as pernas. Durante dias, até à ocorrência da cicatrização, ficara preso ao tempo, deitado de costas, quase sem se mover, para não provocar indesejadas dores.
Quando o antílope baixou a cabeça para o pasto, a flecha partiu célere do arco e penetrou junto á espádua, anichando-se fundo no tórax do animal. Com um balido de susto e sofrimento, partiu mato fora sempre seguido por Nkuva que, já sem a preocupação do silêncio, ludibriava ágil buracos e raízes traiçoeiras, em passos e pulos precisos, galgando troncos derrubados e protuberantes.
Não desejava nem tinha a intenção de perder o bicho.
O solo era meio arenoso e o animal saltava lesto, esgueirando-se entre os arbustos, alguns revestidos de espinheiras. Às vezes tornava-se invisível, escondido pelos espíritos encobertos nos morros gigantes de salalé, mas Nkuva conhecia bem o terreno e o porte do antílope que ferira. Sabia que desta vez não iria perder o que lhe tinha sido colocado à mão. Correram durante longo tempo até que, mais pela dor que pela exaustão, o antílope estancou, baliu e deitou-se, ofegante. O sangue escorria-lhe pela pele, ora avermelhada.
Pele suave, que Macaia acariciava na barriga da mulher, dormindo serenos.
O caçador farejou imperceptível nos dedos o vento, ajoelhou-se, com o arco e flecha na mão, colocou a azagaia no chão e entoou uma oração rápida a Deus, o peito contrito pela ansiedade.
“Baluba, enche-nos a barriga!”
Olhou para o animal e tentou estudar suas reacções, entendê-lo na agonia que igualmente compartilhava. Desejou desvestir a pele humana, quase ser antílope, sentir as reacções do bicho ferido, para saber como deixar o instinto reagir ou encaminhar-se. Estático, buscou pertencer, integrar-se o mais que possível ao ambiente circundante. Parecer-se com a árvore mais próxima, ter a forma e o cheiro da espinheira mais sinuosa e perfurante, ser espírito de toupeira para cavar bem debaixo dele cova que lhe revelasse a luz da morte na quietude dos imovimentos que percebia de longe.
De momento, o jogo seria o da espera, o do silêncio e o da ansiedade.
Teve, então, aquele pensamento medrosamente estranho que por várias vezes interferira com a caça.
O feito estremeceu-he a segurança, sua mente não estava preparada para entender algo tão estranho quanto um sentimento de culpa instintivo, propiciado na divina capacidade de poder matar ou deixar perpetuar.
Sua mulher de há três anos, Koyola, não conseguia gerar.
Demonstrara-se indisposta para afirmações de vivências. Pensava, assim, com teimosia, repudiá-la, reaver o que era seu e empenhara para uma união frutífera. E por não o ter sido até ao presente, as forças interiores alimentavam sentimentos contraditórios que o forçavam a ver um ser com vida, sua mulher, a não ser capaz de a reproduzir, e um outro, ele próprio, a roubá-la, aniquilá-la.
Por que razão, sendo os seres vivos emanação do mesmo criador, sofrem, matando-se uns aos outros, quando tudo poderia comer capim, folhas, raízes, frutos, sem que a morte tivesse que chegar através da flecha, da bala que vira nos fuzis dos brancos, do porrinho a rachar as cabeças, em guerras sangrentas? Embora lhe fosse um entendimento natural, por vezes tinha relutância em aceitar, entender, que a morte tivesse que ser omnipresente em cada intenção, concreta ou abstractamente.
Quando ojululo, na Mulala, vira alguns de seus companheiros morrer porque as infecções produzidas não aguentaram os enfraquecidos corpos. A mesma faca, que a uns cortara e lançara preparados para uma vida nova e novo mundo, a outros determinara que houvessem que partir, o caminho meio percorrido, para as colinas viajantes que o cágado carrega na carapaça.
As leis que assim o ditavam ele as conhecia e temia, eram, por um lado, as leis da natureza e, por outro, as da ancestralidade e da continuidade. Portanto, aceitava-as inquestionavelmente. Mesmo havendo um medo desconhecido que, à revelia, invadia-lhe a alma, por parecerem, ás vezes, não equânimes e harmoniosas ou desproporcionadas.
O animal gemeu balidos desnecessários. Seu olhar, já meio baço, penetrou através de Nkuva como que entrevendo o caminho sem fim para o Além. Sentiu-se arrependido, mas pronto sacudiu tais ideias, aliás nem eram próprias com o que aprendera. Encaminhou a mente para a fome, para as gentes da aldeia, para o mundo dos vivos. Tentou certificar-se do fim, não estava seguro da proximidade da morte. Ainda não a enxergara no bicho, e não desejava perdê-lo por um gesto incauto ou mal avaliado.
A posição do animal, do local onde Nkuva estava, não permitia uma nova frechada que carregasse as finais e decididas intenções de Baluba. Vigiando, decidiu aguardar. Deitou-se, pretendendo-se morto, talvez o gesto, em enganosa mentira, apressasse a morte do antílope. Como tal, aprendera dos seus antepassados.
A Morte, quando já tem dono, ronda a posse, a Vida dando-lhe luta desabrigada. Só muito raramente consegue ser batida, ou afastada, para outra região. E, quando assim é, fá-lo para reaparecer sempre sem alerta, apanhando o desavisado desprevenido.
A peleja entre Elas é muitas vezes dura, já o vira em várias ocasiões.
Jumila revirou-se na cama, despertando involuntariamente Macaia, que estranhou sentir
os dedos de sua mão esquerda húmidos. Assustado, acendeu a luz do pequeno candeeiro na mesa-de-cabeceira. Confuso, viu-os cobertos de sangue. Com gesto brusco, destapou a esposa que dormia nua, como ele. Pela barriga dilatada, escorria um pequeno fio de sangue do rasgo que a fivela do relógio fizera quando a acariciava no sono. Compungido, limpou com o lençol a pequena ferida, apagou a luz e agarrou-se a Jumila com a maior das angústias.
“Que se passa, o que me está a acontecer?”.
Adormeceu, a observar a vida esvaindo-se na pele do animal, cada balido uma golfada, um broto de sangue. Contudo, a experiência ensinara-o que ainda restavam forças ao antílope para se pôr de pé e encetar nova fuga. Haveria pois que desenvolver uma empatia entre ele, Nkuva, e a morte alheia, rondante. Chamá-la, atraí-la, como se atraía o crocodilo para a ratoeira à berma do rio.
Deitou-se em arco, na posição fetal. Fingiu de morto que escutava no terrível silêncio o barulho da noite em passos mansos.
Reteve o máximo que pôde a respiração e fechou os olhos. Tinha que parecer o mais inerte possível, a fim de que a morte se aproximasse, curiosa e atraída para o verdadeiro propósito e presa. Porém, o cansaço rendeu-se vencido pela ansiedade e pela fome. Acabou por adormecer, coisa rara, talvez os que protegem os animais não desejavam conceder-lhe a visão da vitória. Já a manhã avançara, quando despertou, para notar com alegria, que o animal realmente partira da vida. Assustou para longe a hiena que rondava, e agradeceu a Baluba, voltando-se para Norte em oração.
“Ó Deus, encheste nossas barrigas!”
Em seguida, fez a mesma oração pelos outros três pontos cardeais.
Só então feriu o pescoço do antílope e bebeu um pouco do sangue, pedindo-lhe desculpas pelo que fizera.
“Irmão antílope me perdoa”.
Sabia que os animais eram seus irmãos, assim como sabia e compreendia as leis da sobrevivência, não matava pelo prazer, matava pela continuidade, pela perpetuação do Ser e pelo sacrifício apaziguador dos espíritos, sempre que necessário. Disso ele tinha a certeza.
Fez um fogo rápido, assou um pedaço de carne, recompôs-se e partiu com o animal ás costas, feliz consigo, feliz com Baluba e com a vida, seria bem recebido na aldeia.
Jumila colocou o prato com os ovos estrelados na mesa, ao lado da chávena de café com leite, quente. Sentou-se e esperou pelo marido que, estranhamente, ainda não lhe dirigira palavra, a não ser um lacónico bom dia, ao sair da cama. Ao vestir o robe, notara uma pequena ferida na barriga e não se recordava de como, onde e quando se ferira. Teria que ir ao médico, não fosse apanhar tétano ou qualquer outra infecção. Finalmente Macaia chegou, depositou-lhe um beijo na testa, afagou-lhe a cara e sentou-se, a seu lado. Vendo-lhe o ar preocupado, Jumila perguntou o que se passava, o que o arreliava?
“Não sei. Tenho tido um sonho estranho que se repete várias vezes, quase sem variações. Não entendo nada, nele apareço como um caçador Ussa, de há muito tempo. Imagina, ainda ando de tanga de pele de antílope, caço de arco e flecha, de azagaia e de porrinho, e tenho uma mulher que não me dá filhos...”
Jumila riu, esvaziada do passado.
“Bom, pelo menos de mim não te podes queixar”.
“Não estou a brincar”, respondeu Carlos Macaia. “Fico angustiado. Ainda ontem à noite, não sei como, feri-te na barriga com a fivela do relógio. E isso ocorreu no momento em que esperava que o animal que eu abatera, morresse. Não imaginas o susto que apanhei quando vi os meus dedos ensanguentados, sangue esse que escorria na pele do animal. Será que isto é algum presságio? Logo, tens que ir ao médico, fazer um ultra-som e ver se tudo está a correr bem com o nosso filho”.
“Claro que está”, tranquilizou-o Jumila. “Ainda há pouco, preocupava-me em adivinhar como me ferira, não me lembrava de o ter feito. Está pois tudo explicado, mas não te preocupes, já tenho uma consulta marcada para depois de amanhã. Quanto ao resto, sonho é só isso mesmo. Sonho! Não lhe dês grande importância, mas se o continuares a ter, fala com a Lola, ela é psicóloga e talvez possa dizer-te o que te inquieta, porque efectivamente se o sonho se repete é porque algo no teu subconsciente te impressiona”.
“Também já cheguei a essa conclusão, todavia não me recordo de coisa alguma que me possa ter impressionado, ao ponto de estar a sonhar repetidamente o mesmo. Não assisti a qualquer incidente perturbador, a minha vida é a rotina de sempre, para além da imensa alegria de vir, brevemente, a ser pai... sinceramente, não vejo o que possa ser...”
“Sabes que no fundo que me dá vontade de rir, ver-te caçador Ussa, de pele de antílope e tudo?” brincou com ele, para lhe roubar da mente a preocupação.
“Até deverias fazer um caçador bem charmoso, elegante. Porte erecto, azagaia na mão, faca à cintura...”, continuou.
“Eu é que não acho graça nenhuma...”
“Desculpa-me querido, não estava a tentar minimizar os teus sentimentos. Só pretendia dizer-te que não dês muita importância ao caso. Isso passa, vais ver. Talvez tenhas visto algum vídeo horrível, que não te lembres agora.”
“Está bem, mas se continuar, vou ter com a Lola. Bom, agora tenho que me despachar, senão chego tarde ao trabalho. Esta Muanda cada vez tem mais carros!”.
Afagou a mulher, que o acompanhou até à porta e desenhou, em retribuição, um beijo no ar, com os lábios.
Estavam casados há cinco anos e haviam-se conhecido na universidade. Pertenciam à nova vaga de quadros modernos, pouco experiente das passadas tradições, desligada umbilicalmente até das línguas maternas de seus pais e avós. Suas urinadas intelectualidades desaguavam no mar da oceânica insensibilidade chamada modernidade, um cata-vento soprado em constantes redemoinhos de lestes, oestes, desnortes e suis. Ele, já no quarto ano de direito, ela, no segundo de economia. Decidiram que só teriam filhos depois de Jumila acabar o curso, não obstante as pressões das famílias. Em África, a despeito da urbanização, quem casa e não tem filhos de seguida, acaba por sofrer uma pressão familiar, que ás vezes pode ser perniciosa. Os filhos, mais do que o casamento em si, acabam por ser a consumação do mesmo. Todavia, Carlos e Jumila Macaia aguentaram e, finalmente, presenteavam-nas com o primeiro rebento.
Carlos Macaia nascera em Katola, filho de pai originário do norte de Inkuna, Murongo, portanto, e de mãe sulina, Ungo. Pelo que sabia, seus avós paternos eram ambos Murongos, enquanto que os maternos um era Ilungo, o avô, e o outro Ungo, a avó. Desconhecia osbisavós, embora soubesse que, pelo lado paterno a descendência Murongo mantinha-se, todavia, perdida no lado materno. Os registos coloniais não se estendiam tão atrás para os nativos de Inkuna. Lá, onde a oralidade falhasse, o acontecimento não tinha existência. Era assim que Carlos e Jumila Macaia desconheciam que tinham um parente comum, sua bisavó, Vassanya, filha de Nkuva e Koyola, ambos Ussas.
Na aldeia, ao divisarem Nkuva de longe, as crianças irromperam em alarido e deitaram a correr para onde ele vinha. Os gritos de alegria deram a entender que a caçada tinha sido abençoada. Na choça, Koyola reviu-se feliz por ter o marido de volta. É que, durante a sua ausência, consultara vários tululas e todos foram do mesmo aviso. Não fora fecunda até ao presente, por que não se submetera, ainda, aos ritos para anular as forças do mal que se manifestavam. Quando o fizesse, logo engravidaria, e o matrimónio seria consumado. Não mais viveria com esse estigma e com a certeza de ser repudiada. O facto de Nkuva ter sido abençoado na caça, era um presságio feliz. A carne de antílope que compartilhariam ao almoço, seria a carne que fecundaria seu ventre, esse fora o modo que os antepassados escolheram para a frutificar, sentia-lo. Teria que escolher um bom naco, às escondidas do marido, e enterrá-lo debaixo da esteira que lhes servia de leito, fazendo três orações. Ninguém a instruíra para tal, o íntimo, em sonho, assim a comandara. Porém, igualmente lhe mostrara que a criança só seria procriada, por que, na quinta geração, uma outra devolveria o lugar agora desmerecidamente cedido. É que a ela, Koyola, um feiticeiro comera-lhe o ventre.
Koyola nem pensou mais, preparou-se para obedecer ao comando, a quinta geração vinha muito longe. E a quem fosse, então, o feiticeiro comer igualmente o ventre, que se protegesse. Não iria morrer agora porque alguém a enfeitiçara, ou porque quebrara algum tabu familiar sem o saber.
Nessa noite, Nkuva sentiu a mulher mais ardente do que nunca, feita pasta de milho a afagar a água em fervente papa. Quando ela lhe segredou que o filho estava a caminho, sentiu-se pleno e orou para que assim fosse. Fizeram novamente amor, e ao raiar do sol, partiram para o riacho para as lavagens matutinas da primeira hora e oblações, ao cantar ainda dos galos.
Nove meses depois, Koyola deu à luz uma menina, a quem foi dado o nome de Vassanya, ou seja, “Aquela por quem muito se esperou”. Com dezasseis anos, foi agarrada numa razia que um grupo fez à sua aldeia, e vendida aos brancos, no litoral, como escrava. Viveu e morreu na costa, em Tubela, tendo-se juntado a um outro escravo do mesmo patrão, Mpaki, oriundo do norte e Murungo, a quem presenteou com um casal de filhos. O rapaz, Muntu, juntou-se a Mayassa, de origem Ungo, e geraram o pai de Carlos Macaia. A menina de Mpaki e Vassanya, Xila, foi levada para Katola, igualmente como escrava, onde se juntou a Pedro
Kindiri, Ilungo, e geraram a mãe de Jumila. Sem o saberem, são Carlos Macaia e Jumila, parentemente desgastados, todavia consanguíneos.
A gravidez de Jumila foi decorrendo sem problemas, até ao oitavo mês, altura em que começou a sentir fortes dores ocasionais, para as quais os médicos não encontravam oriunda razão de ser. Por seu turno, Carlos derrapava cada vez com mais frequência no sonhado que lhe era tão familiar. Pressentia um recado, intuía que alguém tentava lhe arranhar a mente para brotar sangria de um desacontecimento, porém, despertava sempre no momento em que o animal, balindo, gorgolejava seu entranhado sangue.
Nunca descortinou se o antílope morria, ou o que o caçador teria feito em caso de nova fuga, e demais dúvidas que ora o abalavam. Por que não chegava o sonho ao fim, a algo de mais conclusivo? E ele, um suposto Murongo, porque aparecia Ussa, numa província de Inkuna que nem sequer conhecia? Porque essas transmundâncias de vivências, esse viajar temporal constante? A todas estas questões, buscava, ansioso, uma resposta.
“Estás a sentir-te melhor?”, indagou à esposa uma noite.
“Olha Carlos, ando assustada, não sei o que são estas dores. Aparecem assim tão rápidas, como se um bicho estivesse a comer minhas entranhas, não imaginas o que sofro.
“Sei, meu amor. Vais ver que não é nada, talvez os nervos. Os médicos não te encontram mal nenhum, todos os exames que fizeste dão-te bem e não revelaram nada. Vais ver que essas dores são psicossomáticas, causadas pela ansiedade de teres o primeiro filho”.
“Talvez tenhas razão, até porque são esporádicas, nem sempre aparecem. Há duas semanas que não sinto nada”.
“Estás a ver?”, alegrou-se Carlos Macaia.
A alegria deles era como as ondas do mar em almas de laterais caranguejos sempre vaiventes, que cocegavam seus medos com estas carícias fingidas de alívio.
Sentindo-se mais confortada, Jumila acariciou-lhe a mão e levou-o para o amplo sofá onde ambos se sentaram.
“E os teus sonhos? Não é estranho que despertes sempre na mesma ocasião?”.
“De facto. Pressinto que alguém deseja comunicar-me, mas é só isso. Nada mais que um pressentimento, uma intuição. Deveremos falar com os nossos pais para saber se no passado terá havido algum caçador nas nossas famílias...”
“Caçador? E da altura que referes, do início do século, ou até talvez do fim do século passado?... Quem? Nem os teus bisavós conheces!... E os meus?”, riu Jumila.
“Pelo menos creio que, até aos meus avós paternos sou Murongo, e antes disso também. Por que raios apareço no sonho como um Ussa? Isso seria mais lá para os lados da tua família, que tem ramos sulinos na sua maioria”
Esta questão permaneceu para sempre.
No dia em que morreu, desfalecido de velhice, Carlos Macaia, partiu para o Além correndo pensamentos, não da longa prole que deixava com a sua segunda e desamada mulher, Matilde, mas que em breve iria finalmente saborear o longo desabraço que a vida lhe despropusera, com a filha única do seu primeiro amor, que nascera morta, e à qual Jumila não sobrevivera. Ambas o esperavam alegremente, agora sabendo que o que estava feito estava feito.
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Estive recentemente na Livraria Lello do Lubango, onde encontrei obras suas nos escaparates. Seria bom que os preços dos livros fossem mais acessíveis, visto que 1.500 a 2.000 Kwanzas, tendo em conta o salário médio de 9.000 Kwanzas, é mesmo muito caro...
ResponderEliminarOs angolanos esforçam-se para aumentar as suas qualificações e conhecimentos, mas assim é difícil|!