domingo, 4 de outubro de 2009

HUMANIDADES - TEATRO

A CAIXA


PERSONAGENS PRINCIPAIS

HONESTO JAMORREU – Locutor
SÓNIA SEVIRA - Locutora
APRESENTADOR
CANGALHEIRO
OUTROS

No palco, um enorme televisor, a caixa. Com dimensões mínimas de 345cm X 250cm (poderá ser alterado), sobre um estrado que representa a mesa.
A todo o comprimento do ecrã, num pano que enrola e desenrola sobre si mesmo (ver o mecanismo mais fácil), pintados, o logótipo da estação e, mais tarde os anúncios publicitários.
No início ver-se-á o logótipo da estação emissora:

As cores dos anúncios, bem como os trajes dos bonecos, serão sempre vivas, berrantes, exageradas e de traço nítido.
Os bonecos serão grandes e ridículos. Existirá um “público” que serão os actores excedentes do “PARAÍSO”, sentados em semicírculo.
As luzes, ao subirem, revelam a caixa, o televisor, o seu logótipo e o público sentado conforme já descrito. Ouve-se o genérico da estação emissora, após o qual entra o apresentador, um enorme porco-espinho, que se senta atrás da mesa (que poderá ser retirada quando necessário) e faz a abertura da programação.


APRESENTADOR
“Minhas senhoras e meus senhores, muito boa noite. A CAIXA DE EMBURRECIMENTO COLECTIVO, esta vossa e sempre amigável estação televisiva, tem o prazer de dar início a mais um programa descartável, referente ao dia (Dar a data). Assim, os caros telespectadores poderão ver de imediato a nossa página publicitária, na qual vos apresentamos os mais inebriantes e os mais parvos anúncios, logo seguida da página para os mais pequenos, a dos desenhos mais do que desanimados.
Depois, para os amantes incondicionais desta bela cidade à beira-mar, Sónia Sevira apresentará o programa “Raios Te Partam Luanda”, com exclusivo patrocínio da paciência dos munícipes.
Ás dezanove e trinta terão o desporto, em cuja página internacional apresentamos a aliciante partida de futebol, transmitida em diferido e realizada o mês passado, entre o ASA e o Atlético Petróleos de Luanda, exclusividade das linhas aéreas nacionais, a famosa “Nunca Falha, Chega Quando Chega e Passem Bem”.
Segue-se o bloco noticioso, onde mais uma vez vos apresentamos as notícias nacionais e internacionais de anteontem.
Ás vinte e uma, mais uma página publicitária, para os resistentes à insónia, seguida da emocionantíssima e cada vez mais ininteligível porcaria de novela local, “A Verdadeira Vida do Beto das Vinhaças”, patrocinada por tudo quanto é vinho e cerveja neste país… Hoje no seu quinquagésimo capítulo. No episódio de mais logo, será que Dedaldino Xibode concretizará seus intentos escuros e dá o golpe na garina do mega empresário malangino Beto das Vinhaças, de férias em Portugal a tratar de assuntos brilhantes, para um conhecido político?...
A NÃO PERDER!... Tenham pois uma boa noite e queiram prestar atenção ao programa que segue (sai).

Enquanto sai, o logótipo da “CEC” é enrolado, para dar lugar ao da “PUBLICIDADE”, acompanhado da música introdutória atinente (a ser cantada, em caricatura, pelos actores).
Segundos depois o pano é novamente enrolado para revelar, como fundo, uma floresta tropical, com os sons que lhe são peculiares, e um fundo de tambores.

Entra um enorme chimpanzé aos pulos, percorre toda a cena a bater os punhos no peito e emitindo gritos terríveis.
Pode implicar coma audiência, sem agravos.
Bem visível, um sexo descomunal com duas pequenas campainhas amarradas à volta, como testículos que, com os pulos, retraem-se, por uma mola.
Por fim cala-se e acalma-se, encosta-se a um canto e fica a coçar os testículos por um largo tempo, olhando para as senhoras, com ocasionais grunhidos de prazer.
Pelo lado oposto, entram as duas senhoras em conversa.
Uma delas é toda espalhafatosa e está limpa. A outra tem a roupa suja e amarrotada.
Falam e riem muito, sem darem conta do bicho e este tão pouco delas.
Quando, finalmente, se concentra nelas, põe-se outra vez aos pulos, contente. Parte em corrida para elas, antes porém dando três voltas à cena.
As senhoras demonstram reacções de horror e de prazer, fazendo um espalhafato incrível.
A senhora limpa vai refugiar-se no seio dos espectadores, agarrando-se a um deles como protecção, sentada no seu colo.
O chimpanzé dirige a sua atenção para a que ficou na cena, a suja. Executa uma dança kabetula de alegria, dá dois enormes gritos e outros tantos murros no peito e agarra a senhora, agora aterrorizada, arrastando-a para fora de cena numa guerra incrível.
Faz-se, após, um curto silêncio e durante o qual só se ouve a senhora limpa, mão no peito, a arfar. Por fim acalma-se e, de onde está, sempre espalhafatosa e exagerada, fala.

SENHORA LIMPA
(Agora sorridente) “VIRAM?!... MAS VIRAM MESMO?!...QUE HORROOOR... (Levanta-se e começa o regresso à cena) Mas viram mesmo bem? Olhem, fiquei sem pio... Quem diria!... A minha melhor amiga, a ser agarrada assim!... Que horror!...
(Já em cena, vira-se para o público) Mas o principal, minhas senhoras, para que coisas como estas não vos aconteçam, é necessário que sejais modernas (da carteira tira um pequeno serrote com o qual penteia o cabelo).
A mulher moderna, a mulher desenvolta e emancipada nunca passeia pela selva sem ter a roupa lavada com Sabão Macaco, sabão que lava até a avòzinha e o periquito…Como viram, o sabão que faz a diferença (aponta para si, atira o serrote fora e sai)).

Ouve-se então um jingle a três vozes femininas:
“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”
Faz-se silêncio. Muito ligeiramente percebem-se os sons da floresta, bem como a voz em off da senhora suja levada pelo macaco.

SENHORA SUJA
(Risadinhas) “Ai chico, seu macaco, seu malandro (novas risadinhas). Está quietoooo, seu bicho... Oh xico, NÃO FAÇAS ISSOOOOO!... (risadas e gritinhos de prazer). Já te disse que não, para com isso bolas!... (Zangada) TIRA A MÃO DAÍ, GAITA!...

Pequena pausa após a qual ouve-se outra vez o jingle referente ao sabão.

“Sabão macaco, sabão macaco, sabão macacoooooo!
Não esqueçam amigas, sabão macaco é aquele... é a diferença!...”

As luzes apagam-se brevemente, sendo o pano enrolado para revelar uma farmácia moderna, identificada com o nome de “FARMÁCIA ATÉ QUE ENFIM”.
A música de fundo é alegre, viva, um zuk ou algo parecido. Entra um falo, quanto maior melhor, erecto e de cabeça encarnada luminosa com duas antenas que terminam em bolinhas igualmente luminosas, e usa óculos. Os testículos, cheios de pelos.

VOZ FEMININA OFF
(Muito autoritária) “Você aí, alto lá!... (o falo vira-se, olha para todos os lados para verificar se é a ele que se endereçam).
Sim, você! Tome cuidado com o que faz, veja lá onde se mete, não seja abelhudo e ande por aí a enfiar o nariz em qualquer buraco! Nunca ouviu falar na doença do século?!... (O falo, que estava erecto, verga-se logo).
Pois é amigo, não brinque com a sorte, proteja-se contra o Sida!...
(Entram duas mãos e enfiam um preservativo pelo falo abaixo. Tenta resistir, mas por fim cede). Pois então proteja-se, o seguro morreu de velho (Enfática), e as camisas RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA são a protecção que deseja...
Utilize Resistência Democrática e faça amor como o homem mais moderno e dinâmico... pronto para qualquer partida ou ocasião, sem o sentido do déjà vu!..
Siga o nosso conselho, use Resistência Democrática e proteja-se na cabeça, não deixe que lhe lixem o juízo! Use-as e abuse-as, são elásticas e acomodáveis” (O falo sai aos pulinhos, levado pelas duas mãos).
O pano enrola novamente para revelar uma agência funerária típica. A música de fundo é a apropriada. Entra o cangalheiro todo vestido de preto e com um abutre ao ombro. Coloca-se ao lado de um dos caixões e endereça-se ao público.

CANGALHEIRO
(Voz grave, séria e pausada) Meus amigos, vós aí na paz do vosso lar tranquilo, já pensastes no vosso futuro mais além?... Exacto, no Além, na eternidade (Acaricia o abutre)... Não deixeis a resolução dos vossos problemas pessoais, mesmo a íntimos. Vinde visitar-nos (Abre os braços com amor), cuidaremos de vós...
(Aponta para o espectador mais próximo) O senhor(a) aí, deixe que lhe mostremos o nosso desvelo e carinho. Não é uma promessa, é a marca de registo da melhor agência nacional (olha para o abutre e sorri), a AGÊNCIA MORTE FELIZ, onde morrer vai para além de um simples dever ou prazer... MORRER É UMA OBRIGAÇÃO!... (muda o abutre para o outro ombro, depois de lhe dar uns beijos sonoros no bico).
O nosso lema é morra amanhã e pague hoje... Parta alegre e confiante, não espere que os herdeiros o enterrem, porque à única coisa que enterrarão será o seu dinheiro. Em bares e vida fácil!... (Por breves momentos ouve-se um tango, no qual dança com o abutre. Tira uma pequena garrafa do bolso e dá uns tantos goles. Oferece a alguém e torna a metê-la no bolso).
Minhas senhoras, cavalheiros, não se acanhem, temos todos os modelos.
(Aponta de novo para alguém), É membro do comité central do seu partido?... Temos aquele modelo ali, uma cópia fiel do Mercedes Benz 280S, e enquanto não for desta para a melhor, poderá utilizá-lo para guardar os kwanzas, porque os dódós, estou seguro que já os guardou na Suíça.
(Aponta para outra pessoa) É deputado?... temos o modelo XL, mais condigno para as vossas citroenadas, não dê ouvidos aos invejosos, aqueles que o vêm com a vidoca feita. (Aponta) É dono(a) de lanchonete?... Olhe para esta maravilha de caixão, estilo contentor amachucado a cheirar a pincho torrado.
Na agência MORTE FELIZ temos tudo a seu gosto, faça já a sua reserva!... (ouve-se um jingle alegre, durante o qual o cangalheiro agarra o abutre e, desajeitadamente, marca o compasso da música batendo com ele no chão):
Somos casa de tradição
Agência Morte Feliz
Confie em nós de coração
Agência Morte Feliz
Estamos à sua espera
A sua morte feliz

As luzes apagam-se e quando forem reacesas ver-se-á de novo o logotipo CEC, com o respectivo indicativo. À mesa, o porco, o apresentador inicial.
Assoa-se na manga da roupa, com barulho.

APRESENTADOR
“Alô, alô criançada, alô-alô... chegou a hora do vosso programa. O momento (Assoa-se com as mãos, para o lado, sacudindo depois os dedos) desculpe... o momento que tantos desejais.
Eis aí miúdada, eles aí estão os vossos desenhos desanimados (Faz o gesto indicador com a mão. Não sai)
Entram o pato e o rato por lados opostos, mocas (de espuma) nas mãos. As meia-cena encontram-se e agridem-se mutuamente, de maneira alternada, nas respectivas cabeças.
PATO

(Bate) “Toma seu rato comunista!...”

RATO

(Bate) “Aiii!...Toma seu pato revisionista!...”

PATO

(Bate) “Aiii!... Toma seu rato trotsquista!...”

Esta cena repete-se várias vezes com “maoísta, marxista, albanês leninista, estalinista maoista, esquerdista fidelista, etc.”, até caírem exaustos para o lado, um nos braços do outro. Saem rastejando, todavia sempre a baterem-se.
Imediatamente após, entra Branca de Neve perseguida pelos sete anões, em louca e alegre confusão. Ela corre por todo o lado, até pelo meio dos espectadores, aos pulinhos e risadas, o mesmo fazendo os anões, que tentam beliscá-la, agarrá-la, apalpá-la, tudo isto com uma intenção sexual nítida.

BRANCA DE NEVE
(Como descrito) “Seus malandros!... Parem. Desistam, nunca me agarrarão!... Malandrotes, seus espertalhões!....Parem” (o apresentador começa a ficar irrequieto).

UM ANÃO
(Babando-se de desejo) “Branca de Neve, se te agarro, ai se te agarro!... Vem minha cabra, vem ao teu bode mal cheiroso!... (espirra e raspa os pés no chão, como um bode) há quanto tempo sonho com isso... se te apanho!...”

BRANCA DE NEVE
(Ri, goza) “Malandro, querias não é?!...” (passa pelo apresentador e faz-lhe uma festa fugidia)

OUTRO ANÃO
(Já cansado) “Isso não vale Branca de Neve, tens pernas maiores do que as nossas, isso não vale. (Arfando) Pára, gaita!... Dá lá uma oportunidade a um gajo, porra!... (grita para o apresentador que, de seguida, logo parte atrás dela) agarra, agarra-me essa fulana!”
OUTRO ANÃO
(Quase que a agarrando) “Cerquem-na por ali, cerquem-na por ali que ela hoje não escapa... (Ri de antecipado prazer) Quando te apanharmos vai ser o teu totoloto... (puxa um espectador pelo braço) venha, venha que a gaja é boa!...”

TODOS
(Excitadíssimos) “Agarrem-na, agarrem-na, hoje não se safa!...”

Uns momentos após tudo congela por uns segundos, antes de se apagarem por completo as luzes. Se por acaso o espectador também foi tentar apanhar Branca de Neve, fica lá onde estiver, ele que volte ao lugar. Saem todos, gira o pano e quando as luzes acenderem, vê-se novamente o logotipo CEC e, à mesa; Sónia Savira, (Tara) a locutora.

SÓNIA SAVIRA
(Faz um monte de caretas e esgares ao falar) “Minhas senhoras e meus senhores, queremos pedir desculpas, todavia, por um lamentável erro técnico estávamos a apresentar no programa infantil o filme didáctico de mais logo à noite para os adultos, Branca de Neve e as Sete Tesões.
Mais uma vez as nossas mais sinceras desculpas.
Dando, pois, continuação à programação, temos o famoso programa “Raios te Partam Luanda”, hoje na sua milionésima edição e apresentado por esta vossa amiga Sónia Savira, patrocinado por todos os governos provinciais desta capital, desde 1975.
Começamos com as imagens que relatam os factos do incrível acidente ocorrido ontem à noite na cativante Ilha de Luanda, junto ao Hotel Panorama... “

(Por trás dela, decorrerão todas as situações a apresentar, sempre visíveis para todo o público.)
Entram, por lados opostos, duas viaturas que chocam frontalmente. Os condutores saem e começam logo à batatada. Um, está nitidamente embriagado. A locutora levanta-se e dirige-se a um deles).
“Temos aqui a nosso lado os causadores deste acidente que felizmente parece não ter feito vítimas mortais. (Fala com o condutor sóbrio) O senhor, por favor... O senhor, quer contar para todos nós por suas próprias palavras o que realmente aconteceu?... Como se chama?”

CONDUTOR SÓBRIO
(Recompondo a roupa, ajusta o penteado e sorri para o público) “Eu me chamo senhor Quintino, mais conhecido por Zanga Mau, e vinha por ali (aponta) nas calmas a comer os meus pinchos e a chupar as minhas geladinhas, quando este senhor (aponta)... FILHO DA PUTA, te parto os cornos! Vinha fora de mão e me bateu! (lamenta-se) Olhe só, veja o meu carro, até parece que caiu naqueles buracos do Cazenga. Agora vou ter que fazer outra viagem nas Lundas... (vira-se para o outro) seu sacana, tens sorte de estar aqui na Caixa de Emburrecimento Colectivo, com a senhora Sónia Savira, senão te arrebentava com as fuças, ias ver como eu te fo...”

SÓNIA SÁVIRA
(Corta-lhe rápido a palavra) “Calma amigo, não disparate, não diga asneiras porque já chegam as minhas!... Calma!... Não lhe chega a namorada ferida a sangrar ali no carro?... (Leva-o até lá) Olhe, olhe todo o sangue que por ali vai (o condutor olha, não reage. Sónia Savira volta-se para o público, toda sorridente). E agora vamos ouvir o outro lado da estória.
(Dirige-se ao condutor ébrio) O senhor aí!... Sim o senhor, queira por favor contar-nos o que aconteceu, mas antes diga-nos como se chama.”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Surpreendido, como que despertando) “Meu nome?... auá, como é mesmo antão meu nome?... (quase caindo) a mana quer saber como foi?... Ai tia, me jonjaram, me perseguiram.
(Com voz menos pastosa) Olha prima, ia só aqui na minha mãozinha (indica o lado esquerdo da estrada), juro mana, a garrafa do kapuca até estava vazia, quando me apareceu não sei donde esses dois carros mesmo que a prima está a ver embora aí! (Triste) Ai mãezinha, nem te conto, isso é só mesmo azar na minha vida. Veja então cunhada, dois carros me baterem ao mesmo tempo!...”

SÓNIA SÁVIRA
(Olha para o carro do condutor sóbrio) “Olhe ali o sangue da sua noiva a escorrer, meus Deus até parece um rio. (Volta-se rápida para o outro, surpresa) Dois carros que bateram contra si, disse? Eu só vejo um!...”

CONDUTOR EMBRIAGADO
(Aparvalhado e surpreso) “Ai mana, só está a ver um?...Deixa antão porque vucê estás com prubremas das vistas...” (saem os dois condutores).

SÓNIA SAVIRA
(Risonha) “Mais uma cena desta nossa Luanda!
Aproveitamos para chamar a atenção dos senhores motoristas... beber causa acidentes. Não beba se conduz, mesmo se esta nossa Caixa de Emburrecimento Colectivo faz-lhe ver os prazeres do vinho a toda a hora.
(Entram três jovens latagões, todos arranhados e desalinhavados. Colocam-se, em linha, de lado. Sónia Savira desajeitadamente arranja as suas chuchas ,num largo sorriso). E agora a nossa equipe de reportagens leva-nos até ao Palanca onde um grupo de terríveis meliantes conhecido pelo nome de Queen Girls, violou, guitarrou e pianou estes pobres rapazes ontem à noite (Repete o gesto de arranjo das chuchas, sorri para os rapazes e suspira profundamente).
Pois é, foram violados um a um, imaginem o terror que terão sentido. O que os nossos telespectadores talvez não saibam, é que este grupo de marginais, o notório Queen Girls, é formado por uma única jovem, lutadora de luta livre e aliás muito conhecida no bairro, e que dá pelo nome de Kiki Langalanga Ninfô. Mas ouçamos os infelizes rapazes!...”

PRIMEIRO RAPAZ
“Olhe, foi mesmo essa Kiki Langalanga Ninfô, nós já lhe conhecíamos de nome e de fama, mas nunca tivéramos acreditado. Aí no bairro passa o mambo que ela já fazia a mesma coisa lá em Kinshasa.
(Ao evocar o acontecimento começa a chorar) Nós vínhamos das nossas namoradas que estivéramos a dançar com elas, quando ali naquela zona mais escura onde paráramos para mijar, fôramos assustados com este acontecimento então! (acaba por controlar o choro).

SEGUNDO RAPAZ
(Mais jingão e entusiasta) “Olha minha, assim derepentemente nos sai na frente uma pessoa, ué, até pensámos que era um kifumbe, só depois é que vimos que era uma mulher. Não vais acreditar, minha, tinha uma pistola na mão e nos manda então tirar as calças.
(Imita) Ô tirras us carrrças u je te arrebantarr les couilles, gritou ela para mim. Com a vida tão cara, pensámos que era uma mãe desesperada, toda lixada, marido não ganha, enfim, julgávamos que era uma mãe que necessitava roupa para os seus filhos, toca então já de nos despir, pronto, paciência, ficávamos assim mas ajudávamos uma mãe em necessidade. Quem bem faz, bem recebe.

TERCEIRO RAPAZ
(Mais à vontade, apontando) “Ele foi o primeiro, ela lhe agarrou e lhe violou. Nós só ali a vermos (meneia as ancas, no gesto esclarecedor), ela só dizia -TOMA...TOMA...TOMA...- (os outros fazem o mesmo, com ritmo, a cada TOMA), depois, ainda queria mais, nos mandou embora deitarmos todos de costas (mímica o que narra) e até parecia marimba. Cada um foi violado e estamos bem zangados, por isso viemos denunciar aqui, porque nem um polícia apareceu, é sempre assim. Então com medo ficámos só calados o tempo todo e depois ela fugiu e disse um dia volta mais...”

SÓNIA SÁVIRA
“Aproveitamos este triste episódio para chamar mais uma vez a atenção da nossa polícia. Alô senhor comandante provincial da polícia, esta cidade está cada vez mais cheia de bandidos. Todos nós somos roubados, assaltados e agora, veja-se, violados!... Certamente que a si não lhe acontecerá o horror que estes jovens sofreram, rapazes inocentes a caminho de suas casas após terem visitado as suas namoradas. Hoje foram eles, amanhã poderá ser um velho. Se fosse consigo, estou certa que baixaria o cacete nessa tal de Kiki Langalanga Ninfô, mas como não é, que se lixe. Assim, cumpra com o seu dever, pois com a falta de homem que há por aí a concorrência será enorme e desleal.
(Saem os rapazes e ela suspira alto ao vê-los partir). E por hoje é tudo no “Raios te Partam Luanda”. Esta vossa amiga Sónia Savira, deseja-vos um caté mungu’ué...” (levanta-se e sai).

A sala torna-se repentinamente escura e no écran aparece projectado -Corte de Energia-. Quando a mesma for restaurada, estará à mesa da locução o locutor Honesto Jamorreu.

HONESTO JAMORREU
(Fala com grandes meneios de cabeça, parece que está a rematar uma bola com a mesma, etc.) “Caros telespectadores tivemos que interromper a nossa emissão por uns momentos devido aos habituais cortes de energia, pelo que pedimos as nossas sinceras desculpas (falha de novo a energia e tudo se repete).
Caros telespectadores, em nome da Edel, Empresa de Electricidade Liquidada, mais uma vez as nossas sinceras desculpas. Como devem ter seguido atentamente, acabamos de apresentar o conhecido programa de Sónia Savira, “Raios te Partam Luanda”, um programa de factos e acontecimentos que dignificam a nossa urbe.
Porem eu, Honesto Jamorreu, este vosso mais humilde locutor, também conhecido em certos círculos como a pérola da simpatia, a inteligência do tremoço, o nó fofo da gravata, (pausa onde, vaidoso, analisa o efeito das suas palavras) irá hoje sublimar-vos, proporcionar-vos a masturbação intelectual das vossas vidas (pausa, sorridente e meneando a cabeça várias vezes, para ver o efeito das suas palavras novamente).
Vou conceder-vos a oportunidade única... impar... de testemunhardes o acontecimento do ano, mesmo do século... nem o Bin Laden terá tido tanto sucesso (enfático) o acontecimento que jamais aparecerá nessa merda de programa “Raios te Partam Luanda” ou qualquer outro programeco, televisivo ou político.
(Como um anunciador de circo) Minhas senhooooooras, meus senhoooores, em directo para os vossos laaares, ooooo maiooooor espectáculoooooo doooooo mundoooo!... (Cresce ainda mais de voz) AQUI CONVOSCO O SENSACIONAL, O MELHOR, THE SUPER BEST, HONESTO JAMORREU E A SUA SUPERPRODUÇÃO -TUDO A PARVOÍCE LEVOU-!” (Saca uma pistola e dá um tiro na cabeça, caindo para trás. O público delira, grita, bate palmas e pede bis).

Atrapalhadíssima, todavia sempre sorridente, entra Sónia Savira que, em enorme felicidade por poder apresentar ao vivo a cena na CEC, faz um espectáculo de primeira.

SÓNIA SAVIRA
“É HORRÍVEL, É HORRÍVEL.... Minhas senhoras e meus senhores, QUE MARAVILHA, QUE SENTIDO DE PROFISSIONALISMO, QUE SHOW, SÓ MESMO O HONESTO JAMORREU!... OH, QUE HOMEM!...
(Ganha compostura. Desajeitadamente arranja as chuchas) Caros telespectadores, por razões imprevistas e alheias à nossa vontade, vemo-nos forçados a interromper esta emissão. Boa noite!” (Sai precipitadamente)

Alguns segundos depois, entram cinco pessoas em fila e dobradas uma sobre a outra completamente cobertas por um pano preto. Esta forma tem duas enormes cabeças, uma à frente a outra atrás. Dá uma volta ou duas pela cena, ocasionalmente balindo como carneiros, e sai. As luzes apagam-se e, como se de muito longe, ouve-se uma sirene da polícia.

BAIXA A CORTINA

OBS: Este quadro faz parte de “Humanidades” (Um estudo crítico satírico, mais ou menos permitido na época), escrita na década dos oitenta, em que a nossa televisão era muito simples e rudimentar e a parabólica era ainda coisa do futuro.

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