domingo, 4 de outubro de 2009

A PRECE DOS MAL AMADOS - CAPÍTULO SEIS



Os sonhos dos gatos
são povoados de ratos.

(Provérbio libanês)

Nataniel colocou o intermitente a sinalar que iria virar para a direita e reduziu a velocidade. Na porta, os guardas bateram continência e ergueram a barreira. Conduzindo com cautela, devido aos pequenos grupos de pessoas que circulavam entre os vários edifícios que compunham o que se denominava genericamente Hospital Militar, enveredou para a primeira travessa à esquerda e estacionou junto ao pavilhão dos registos centrais.
Não obstante serem oito da manhã, o calor começava a criar um mal-estar que agudizar-se-ia a partir das onze, ou meio-dia. O ar abafado que pairava sobre a cidade, impregnava-a de um cheiro peculiar. Odores fabricados por uma cidade suja e abarrotada, numa vastidão inconformada de lixeiras, onde mendigos, moscas, mutilados, moscardos, deserdados da vida, cães famintos e crianças sem um amanhã, procuram o seu quê de comida, o seu quê de fé. Buscam o trapo farrapo que sirva de calção. O parafuso que alinhe o fuso da existência enroscada. O prego enferrujado que sustente a viga torta pregada no tecto de zinco carcomido pela memória do tempo. Procuram, buscam, remexem, desenterram, reviram, apalpam, exumam restos dos restos, permanentemente na procura ávida de um pouco de esperança, esquecida vezes sem conta no cavado de uma lata de leite-de-moça meio acabada, onde ainda ecoa o arroto saciado de quem a usou e a atirou fora.
Por uns instantes gozou o ar condicionado da viatura, escutando o que restava da entrevista que a deputada ministra da saúde concedia a um programa radiofónico, gravada na véspera, em que afirmava que a meta a atingir seria a da saúde para todos no ano 2.000. Quanto despudor, quanta desfaçatez implícita na afirmação. Só se poderia acreditar em tal, caso a intenção viesse a ser bafejada pela intervenção divina porque o objectivo nela contida pecava pela omissão, pela análise da realidade nacional, nomeadamente a extrema pobreza, o subdesenvolvimento, as estradas fechadas e pontes partidas, as minas de todo o tipo plantadas a esmo pelo país, a inexistência de produção interna, o analfabetismo crónico, a mortandade generalizada nos hospitais, lares, ruas, contentores, becos ou prisões, o subemprego, o desemprego, o mal emprego.
Um colega bateu no vidro e acenou um bom dia, apontando para o relógio de pulso. Nataniel sorriu e tentou concentrar-se no sprint final do que a ministra dizia sobre a saúde pública, área que lhe era de interesse particular. O celular tocou e atendeu, preparando-se para sair, já que não conseguia prestar atenção. Desligou o motor do carro, enquanto a mulher, Nazamba, lhe recordava o almoço na casa do general Tadeu mais tarde, e pedia-lhe que não esquecesse de comprar um ramo de flores para oferecerem a Lucinda.
 Sabes que me é difícil sair daqui...  tentou desculpar-se.
 Manda lá a tua secretária ou a enfermeira, Nat, aí mesmo à frente há uma casa que vende flores, não podemos ir sem levar nada.
Conseguiu abrir a porta e esgueirou-se, com o volante a barrar-lhe os movimentos porque tentava sair com a pasta debaixo do braço.
 Está bem, eu resolvo isso, não te preocupes. Como está o nosso filho esta manhã?
- A não ser que seja minha imaginação, senti um pontapé.
- Pontapé? A criança ainda não te pode pontapear – disse-lhe a rir - Posso ligar para ti daqui a um momento, estou a tentar sair do carro.
- Deixa querido, só desejava recordar-te as flores.
- Está bem, ligo mais tarde, cuida de ti e não te esqueças que te amo. – Lançou-lhe um beijo e desligou.
Como o tempo passa, ainda parece que foi ontem...
Afirma-se permanentemente que o tempo passou, olha-se para os filhos dos outros e logo se afiança, como o tempo passou!... À descoberta do primeiro cabelo branco grita-se um terrível, oh meu Deus!... Sempre na eterna esperança de que o tempo passe sem passar, não se discernindo, a não ser na curiosidade infantil através de uma qualquer pergunta que possa parecer estúpida, que o tempo não tem significado.
Um ano de casados poderá ser tanto um bilhão de anos-luz, quanto os simples doze meses em que se convencionou dividir o denominado ano solar. Em qualquer dos casos, merece, por amor às variadas convenções matrimoniais, ser festejado com um almoço e um ramo de flores.
Nataniel era o director para a área hospitalar, e atendia ainda os doentes no período da manhã. Nunca se vira talhado para a burocracia dos gabinetes, todavia, por militar que era, sabia que ordens eram para ser obedecidas, a fase acabaria por ter fim próprio, e ver-se-ia alçado para outros destinos, talvez aqueles que ele mesmo pudesse esculpir com denodo e propósito.
Entrou pela porta lateral, para se furtar à longa e ruidosa fila de pacientes que aguardavam, na pequena sala. O corredor, quase intransitável com a afluência de gente encostada às paredes à espera da chegada dos médicos, mais parecia uma feira de fim-de-semana.
- Bom dia colega, ouviu a entrevista da nossa ministra? – Cumprimentou-o um outro médico.
- Bom dia Dr. Aristides, por acaso ouvi, mas pouco de novo disse.
Um amontoado de mutilados, a maioria sentados com as muletas entre as pernas ou apoiando-se nelas, quase todos deficientes desses membros, um sem as duas, sentado numa cadeira de rodas conversava efusivamente a um canto. Todos sentiam-se donos do tempo, mesmo quando o não eram, nem sequer das próprias vidas mais do que nunca tornadas incertas e errantes. Nas noites escuras das suas almas, rebolando nos suados colchões para além das insónias, das dores, dos medos fantasmagóricos ancestrais, rebelavam-se em silêncio contra os invejosos que através dos feiticeiros haviam enviado a praga que lhes comeu as pernas, os braços, as mãos, até mesmo o rosto, quando não pernas e mãos, braços e pés, e, pior de tudo, que lhes comeu as ilusões e as expectativas definidas e por definir, de vida.
O tempo que julgam ter, diminuirá até ao retrocesso que dividirá o positivo em negativo, o momento em que se saberá do futuro e não do passado, a caminho do reencontro de Adão com o Criador, revertido ao Paraíso, e esquecido mais uma vez do mal e do bem, da maçã e da Eva. O barro troglodita original, esvaziado do Sopro que lhe conferira carne e pouco espírito, cairá para o chão feito pó, de onde fora recolhido. E na sua solidão reconquistada, Deus mergulhará por fim nas trevas do caos de onde dimanara, sem que nunca a sua mente tenha sido entendida, talvez pela inexistência.
O corredor, com a passagem constante de gente, representava a diversão que os fazia momentaneamente esquecer os membros perdidos, deixados em qualquer mata da guerra a fim de que a saciedade dos deuses do acaso, num jogo de cabra-cega, decida quem vai ou quem fica, quem chora ou quem ri, quem agradece ou amaldiçoa a parte que lhe coube. E aos que se despiram da mente petrificada no horror daquele segundo, os mais afortunados, restaram as cidades onde se viram donos das suas ruas e becos e nas quais se transformaram em patrões absolutos dos contentores abarrotados dos restos dos comeres dos saciados. No fim da escala, aqueles a quem a perda da mente deixou o eco da violência no trinar da explosão metálica do engenho, restou-lhes a clausura tenebrosa em hospícios onde se convive e vive com o profundo do inconfessável, agrilhoados, amarrados, manietados e amordaçados, no abençoado silêncio do que não se vê.
Assim, sem atento às próprias deficiências e sofrimento, riam das dos outros por as acharem, à vista, piores ou mais confrangedoras.
- Bom dia, Natália. – Cumprimentou, com um sorriso, a enfermeira assistente.
- Bom dia, senhor doutor, como está?
- Menos mal, mas sempre se está menos mal quando se começa o dia, não é?
- Tem muita gente a atender, houve internamentos devido a um ataque no Kwanza Norte.
- Sim, já sabia. Esta maldita guerra nunca mais acaba, só porque há um facínora que sonhou ser presidente.
- Há-de acabar um dia, esse monstro não poderá viver para sempre.
- Sim, mas entretanto estaremos todos velhos, mais uns tantos milhões de angolanos terão morrido, o país todo destruído e ele sem nunca ter sido presidente.
- Há-de acabar doutor. – Reafirmou a enfermeira. – Mas tomaram mesmo o Golungo Alto?
- Não, atacam e fogem. Matam, roubam, levam as crianças, enfim, aquilo que sempre fazem.
- São gente sem consciência, assassinos.
- São muito pior que isso, a guerra é uma coisa cruel, mas estes vão para além da crueldade.
Ele próprio experimentara que as frentes de batalha, nas quais achara a comunhão dos companheiros perante a inevitabildade da aniquilação mútua, foram um vasto campo de aprendizado quanto ao comportamento humano e valeram-lhe, como experiência, talvez tanto quanto a cadeira de psicologia na universidade. A dor permanente, ainda que meio anestesiada, que lhe roera a consciência nos hospitais de campanha nos campos de batalha, libertara-o, na cidade, dos instintos primários de fera acuada no turbilhão da selvajaria humana perpetrada sobre semelhantes. Viu-se médico transformado em mecânico de seres humanos, a concertar gente meio estraçalhada entre a vida e a morte, tendo que se narcotizar na insensibilidade a fim de que a mente não estilhasse inesperada em sobrecarga.
- Acho que primeiro vou tomar um café e concentrar-me, poderá ser, Natália?
- Vou já prepará-lo, doutor. Quer umas bolachas a acompanhar?
- Não, obrigado. Só o café.
Reviu os momentos em que se perguntou vezes sem fim, se alguma guerra poderia ser considerada justa e o que faria se tivesse que tratar ou salvar com igual prontidão e dedicação uma vida do lado oposto, uma vida inimiga? Qual a mais valorosa, a de mais valia face à consciência e às virtudes cristãs embebidas pelos missionários e que a lavagem cerebral em Cuba não conseguira extinguir por completo? Não sabendo o que responder a dúvidas tais, e para manter a sanidade mental, empederniu-se na justificação de que na guerra não poderia haver espaço e tempo para a consciência. A consciência era uma benesse a ser banida, algo como a apendicite, presente e aparentemente desnecessária. Advogava, assim, que os chavões clássicos políticos, as palavras de ordem impregnadas a golpes de martelo ideológico, as técnicas marciais tanto da guerra quanto da mente, aprendidas em academias militares, teriam forçosamente que liderar os passos do soldado para que pudesse manter nas mãos o objecto mortífero da preservação própria, a arma. Nada mais. Com esses dois ingredientes alcançam-se vitórias e produzem-se os suicidas que, quando bem sucedidos, se transformam nos heróis que atapetam a via da consciência marciana colectiva, e ajudam a formar a Pátria.
O celular soou novamente, levantou a capa, reconheceu o número e não atendeu, deixou-o retinir até ao fim, depois desligou-o.
Pode esperar, falo com ele mais logo.
Nos hospitais de campanha, por vezes com os obuses a sobrevoarem em cruzamentos sibilantes, o medo fora o mais lúcido e temperado dos amigos que o acompanhara, aquele que o levara a dedicar-se com eficácia à missão de curar e salvar com a noção sempre presente da auto-preservação, o instinto com que a natureza dotara todas as bestas, das irracionais às contrárias. Face ao cataclismo, desde os primórdios da existência, tanto o homem quanto o bicho fugiram aterrorizados por igual. Ele, não era da estirpe dos heróis ou dos loucos. Seu medo era controlado e nunca contra ele lutara, pelo contrário, reconhecera-o e aceitara-o como a bússola orientadora das decisões acertadas. As paredes cimentadas do vasto hospital concediam-lhe a segurança e a tranquilidade não conhecidas nas enfermarias de campanha, onde o simples vento a ondular na tela das tendas moldava as assombrações da infância, porque a natureza a tudo se sobrepunha, indelével. Inadvertidamente pensou nas flores a comprar para satisfazer a urbanidade das relações.
A enfermeira entrou, colocou as fichas dos pacientes que tinha a examinar em cima da secretária.
- Deseja já o café ou daqui a mais um pouco?
- Pode trazê-lo já, obrigado.
Olhou-a de soslaio e espreguiçou-se, o primeiro paciente era sempre o que mais lhe custava atender, o espírito necessitava de se movimentar pelos estranhos caminhos da vontade, sempre contrariada pelo conhecimento das estórias que iria ouvir, de pressentir lábios a articular palavras invisíveis. O primeiro paciente era o cataclismo anunciado. Bocejou novamente e esperou pelo café, consciente de que os doentes o aguardavam desde o dia em que decidira ser médico, e por ele aguardariam até à sua morte. Não reconhecia porque sentir culpa. Observou a enfermeira a preparar o café, a maneira graciosa como ela o vertia na chávena e, como um estampido de relâmpago, descobriu atractivas as nádegas dela, até então desapercebidas.
Mas esta bunda aqui todo o tempo, e só agora é que a descubro?
Pensativo, baixou os olhos e suspirou tão profundo que ela voltou-se e observou-o, surpresa.
Que suspiro! O que se passará?
Havia dias em que se sentia preso numa teia de dúvidas existenciais, onde face à transitoriedade da vida tudo se transformava em futilidade. Ao notar pela primeira vez as nádegas da enfermeira e a atracção que sobre si produziram, achou que na constatação talvez residisse a felicidade completa, o batucar de uma bunda cheia gracejando intenções ao deslocar-se pelo consultório seria o fim da banalidade hospitalar.
Como reagirá se me insinuar?
Talvez lhe solicitasse doravante uma infinidade de processos, de taças de café, e nos dias em que aparecesse com os decotes até então inócuos, atiraria o lápis para o chão para a ver dobrar-se. De lado a fim de lhe apreciar o perfil, de frente para que a deusa da sorte o bafejasse e a visão dos seios se materializasse, de trás se mais sortudo, já que fora a bunda que lhe revelara os instintos de caça adormecidos. Quando a sua ajudante colocou a bandeja na secretária, Nataniel olhou-a tão profundo nos olhos que a assustou.
- Credo, senhor doutor! - Disse, recuando dois passos.
- O que lhe deu? Só a olhava!
- Mas de que maneira! Até me assustou, parecia que estava a olhar para uma alma
do outro mundo.
- Alma do outro mundo? - Nataniel riu e colocou os cotovelos sobre a secretária.
Se soubesses o que me passou pela mente, logo verias que a alma é bem deste mundo.
Abotoou os dois primeiros botões da bata, afastou as fichas para um canto e agarrou na chávena de café.
- Esteja tranquila, não foi nada. Hoje sinto-me abandonado.
- Abandonado, o senhor doutor?
- E porque não? Nunca se sentiu abandonada, sozinha no mundo, cheia de dúvidas sobre a sua vida e o rumo que leva?
- Creio que todos nós, uma vez ou outra, mas isso é passageiro.
- Hoje é um desses dias. Ao olhar para toda esta gente mutilada, pergunto-me se vale a pena. Gente que será abandonada, largada à sua sorte com um par de muletas ou próteses, e com o dever de se sentir agradecida.
- Não é bem assim, senhor doutor, milagres é que não se podem fazer.
- Não espero que se façam milagres, mas que se criem situações de vida melhores para eles, aliás, para todos. A maior parte abandonou as aldeias e partiu para uma guerra que nunca compreendeu para além das palavras de ordem e os chavões políticos. Vi o que eram as frentes durante muitos anos. Sabe que sou proveniente do mato, não sabe?
- Sei, até sei que um dia poderá vi a ser o soba grande da sua região.
Deve estar doida varrida!
- Não diga disparates. Está-me a ver soba grande?
- E porque não? Um soba culto, educado e que saberá governar com visão o seu povo, sobretudo depois de ter vivido esta guerra atroz.
- Deixe de sonhar, qual governar povo qual quê, esse tempo já acabou para sempre, acha que algum soba governa hoje alguma coisa?
- Sobre isso, verdadeiramente não sei, mas lá no mato acho que o soba ainda manda.
- Olhe minha amiga, mandar é uma coisa, governar é outra. A única coisa que os sobas governam é o mundo invisível, porque neste, no visível e moderno, eles não estão preparados seja para o que for, a não ser que tenham estudado.
- Mas esse é o seu caso!
E ela a dar-lhe!
- E acha que vou abandonar Luanda para ir para o mato, sem água canalizada, sem luz eléctrica, sem escolas para os meus filhos quando crescerem?
- Lá isso é verdade, não seria fácil.
- Então pare de sonhar para os outros aquilo que não deseja para si. Por favor mande alguém comprar um ramo de flores – disse esticando-lhe o dinheiro.
A enfermeira agarrou no dinheiro que lhe era estendido e sentiu-lhe o calor dos dedos, ainda que não se tivessem tocado. Enrubesceu e saiu apressada, confusa.
Nunca pensara na enfermeira como possível aventura amorosa. Aliás, nunca pensara numa gesta extra conjugal desde que se casara, sentia-se feliz como estava, não era homem de grandes façanhas. Entendia que a natureza humana não era monógama, assim tivesse sido nunca a raça humana teria sobrevivido com a fêmea a parir uma cria de ano e meio em ano e meio. Gostava do certo e do habitual, situação muito mais cómoda e tranquila.
Nunca vi uma mulata tão corada, será que?...
Conjecturou que, se se empenhasse, com o tempo levaria a perdiz a comer da sua lavra. Enfermeiras sempre acabam nos braços dos médicos como amantes ou esposas, assim como as hospedeiras nos braços dos pilotos, a ocasião sempre fez o ladrão e a surpresa e ofego dela confirmaram a possibilidade. Nataniel sorriu e sorveu o café, envaidecido.
- Porque não, quem sabe? – Falou alto, afagando o ego.
Agarrou no Jornal de Angola e folhou-o. Começou a ler mas logo desistiu
- Sempre a mesma merda.
Foi para a página do necrotério e vasculhou-a para ver se reconhecia algum nome ou face.
Olha, a Tininha faleceu, será que a Nazamba sabe? Que repouse em paz.
Com a quase inexistência de salas de cinema, de teatros, ou centros culturais, os enterros, para alem dos casamentos, eram os principais pontos de encontro da pequena burguesia urbana. Tanto em uns quanto em outros, alianças de circunstância são forjadas através da maledicência politiqueira, arranjam-se despudorados namoros, aconchegam-se em surdina casos extra conjugais debaixo das árvores, exibem-se sem qualquer tipo de modéstia os últimos modelos de roupagem adquirida na Europa ou América Latina, enquanto o morto, o falecido, ouvirá para além do túmulo que em breve o acolherá, as palavras laudatórias sobre a sua vida na maior parte das vezes de crápula, e testemunha no seu silêncio tumular todos estes fazeres e dizeres, por entre sorrisos e larachas dos que nem um punhado de terra se dignarão atirar para a cova.
Os óbitos e os casamentos tornaram-se, para a emergente burguesia, a convergência natural da exteriorização das manifestações sociais. Ministro, deputado, ou empresário reconhecido cujo celular não soe estridente quer no bolso do casaco quer na mão do guarda logo atrás, não é ministro, deputado ou empresário. E quanto mais estapafúrdia for a melodia do bichinho electrónico, maior frisson causará, já que todos os olhares estarão convergidos sobre si, seja por reprovo, por inveja ou por admiração. A mesma admiração que demonstra o sentimento de estranheza de quem é subitamente surpreendido por um determinado acontecimento ou realidade inesperados.
A enfermeira bateu à porta e entrou com um ramo de flores que poisou sobre a estante.
- É melhor colocá-las num jarro com água – sugeriu, evitando olhar para ele.
Nataniel esboçou um sorriso e concordou.
Não quer olhar para mim, mas que diacho, não lhe fiz nada!
Efectivamente nada fizera, mas seus olhos pensaram e foi o que ela vira, aqueles olhares que falam e dizem tudo de maneira atrevida, talvez porque quem para eles olha, ainda que de maneira furtiva, assim observa e sente.
- Depois mande-me entrar os pacientes pela ordem de chegada, a não ser que haja alguma urgência.
Estirou-se e aguardou que ela terminasse, confirmando que de facto o traseiro da enfermeira era atraente.
Não, não vale a pena meter-me nisso, só acabarei por arranjar complicações.

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