ALFREDO TRONY
NGA MUTURI
Nga Ndreza (nome que tem na sociedade de Luanda, uma sociedade onde só avultam os panos, sim, mas que guarda um certo número de conveniências) afirmara que é livre, que foi criada em Novo Redondo, e pertenceu à família de F…; e quando muito, cala-se quando lhe perguntam se é buxila (1).
Também ninguém faz questão disso já. E que a fizesse! Ela, à força de afirmar que não foi escrava, esqueceu-se de [não] ter sido sempre livre. E contudo quando se senta à porta da casa com a faca fincada entre os joelhos apertados pelos braços seguros pelas mãos enclavinhadas, nas noites de luar quentes e sossegadas, e cujo silêncio é só quebrado a espaços pelo seco bater, na areia da rua, dos pés dos gingamba (2) que carregam uma machila, ou pelos gritos estridentes das molecas da vizinhança que apregoam ruidosas bonzo - ni massa – ia tema, tema, tema (3) ; ou então – ao ver na casa fronteira o vulto da pequena vendedeira, destacando-se na sombra do corredor pela luza avermelhada da candeia de azeite de palma – tem uma vaga recordação de outros tempos passados numas terras muito longe, de onde a trouxera quando era pequena.
Lembra-se de uma mulher a quem chamava mama, enfezada e triste, mas resignada, que a levava pela mão para as sementeiras, e que à noite cantava na cubata, amamentando outro filho enquanto ela comia massa e fijá (4) cozido.
Lembra-se mais, que um dia se abeirou da mãe um preto que era seu irmão, e, depois de muito falarem, ele foi deitar-se e adormeceu; e a mama tomou-a então nos braços silenciosa, deixando cair uma lágrima bem quente sobre o seu rosto. Que ela olhava espantada tudo aquilo, mas que por fim adormecera. Quando saiu o sol, abanaram-na docemente e ela deparou com a mama que tinha uma galinha na mão que acabara de matar. Cozinhou-a no fogo e com o nfungi (5) apresentou-a ao irmão e a ela. Que todos comeram, mas a mama soluçava tristemente queixas sentidas, iguais às que ouvira quando aconteceu a morte do soba. Parecia um tambi (6).
Que depois disto o irmão da mama a puxara pela mão, arrastando-as para fora do cercado da cubata. E ele seguiu-a muda e inconsciente, mas voltando-se viu a mama, com as mãos na cabeça chorando bem triste.
Andara dois dias, ao fim dos quais chegou a uma libata onde morava o tio que a levava. Pelas conversas que ouviu no caminho, soube que o tio tinha sido condenado por juramente, e para pagar o crime a fora buscar à mama, pela lei da terra que obriga os sobrinhos a pagar os quituxi (7) dos tios.
Depois entregaram-na a um preto grande, falando muito, isto diante do soba, que estava rodeado de homens velhos, debaixo de uma grande árvore no meio do largo da libata.
Recordo-me que lhe tinham amarrado a cinta com uma corda feita de casca de um pau, que sobe pelas árvores grandes e as cobre, como as cordas que viu no navio em que a levaram mais tarde para Luanda.
Ainda tem presentes os brutais sofrimentos todas as noites durante a jornada, e os grandes dentes brancos que lhe mostrava o seu dono quando ela chorava e gemia.
Passados muitos dias chegaram a uma libata estranha, onde as casas, todas brancas, eram muito diferentes das que havia na sua terra, e estavam à borda do mar.
Que entrara numa delas onde havia muita peça de fazenda, e missangas penduradas, e fora mostrada a um homem em mangas de camisa, e que a esteve a apalpar e tinha o ventre muito inchado e um olhar igual ao reflexo metálico das chapas de cobre que traziam os pretos de Luanda, que passavam na sua terra.
(1) Filha de escrava ou de mulher livre mas nascida na casa em que serve
(2) Carregadores
(3) Batata-doce, quente, quente, quente.
(4) Milho e feijão
(5) Papas de milho ou de mandioca
(6) Óbito. Há sempre a imolação de um animal, os pobres fazem-no com uma galinha.
(7) Crime
Que este homem falou muito com o tio, e lhe deu muitos panos e um espelho: e que o tio a deixara ali, e voltara para a terra.
Que a mandaram lavar, e desmanchar-lhe o lindo penteado seguro pelo ngunde e tacula que lhe fizera a mama, tirando-lhe as missangas e os búzios e todos os enfeites. Que lhe vestiram uns panos bonitos, e que uma preta que estava em casa e servia o senhor à mesa, olhava para ela, iracunda, e a ameaçava com o olhar, confirmado pelo que lhe dizia às escondidas, de lhe fazer feitiço.
Que o muari (1) inquirindo disto, mandara castigar a preta, e logo que chego pelo mar uma canoa muito grande com umas coisas muito brancas estendidas nuns paus lembrando as asas de uns pássaros enormes que vinham ao rio da sua terra quando começavam as chuvas, metera a preta na tal canoa, e ela ficara sendo a mucama (2) do senhor.
II
Passou alguns anos naquela vida. Tinha aprendido um pouco a língua dos brancos, e já não era desajeitada no vestir dos panos como quando viera.
Um dia o muari esteve doente e meteu-se com ela e dois moleques num navio, que os levou a Luanda.
O senhor foi tirado para o escaler e levado para o cais numa machila, muito doente, para uma casa grande de sobrado. – Que ela seguia atrás da machila a correr, com trabalho, por causa da muita areia. – Depois melhorou, passou para outra casa, onde abriu loja. Tinha muitas chitas, lenços e riscados, que vendia ás pretas da quitanda (3), e a outra gente.
Nga Ndreza conheceu então o que era, e o que devia parecer. Esqueceu-se da primeira época da sua vida, e respondia com umas reticências duvidosas às perguntas que lhe faziam sobre a sua origem.
- Que não sabia bem – isto com ares maliciosos – quem era o pai, mas que se lembrava de um branco quando era pequenina, que a tomava nos braços e a sentava no colo à mesa. – Exactamente o que vira fazer à filha da mucama de um amigo muari. E como era fula (4), todas as comadres que a iam visitar com a ideia de lhe beber o vinho e comer o presunto que o patrão comprava, diziam que sim, que ela tinha sangue branco.
E ela gostava muito, e nessas ocasiões levantava importante e cautelosa a tampa cheia de pregos da caixa de vinho do Porto; e enquanto o patrão estava na jogatina, gastava muito, fazia ceias e bebia de mais.
Quando o patrão vinha de madrugada, e mimoseava o moleque que ficara deitado à porta para lha abrir, com uma antiga moeda de prata de seis macutas (ainda não havia deste dinheiro, hoje está todo no Banco) se ganhava, ou com uma saraivada de pontapés se perdia, encontrava-a a dormir na sua esteira; e ele, muito grosso, como diziam os caixeiros quando o viam assim, acordava-a com umas falas arrastadas para o ajudar a deitar-se, aconchegando-lhe o inchado fígado com uma travesseira, e dando-lhe uma fomentação no baço mais inchado ainda, rogando ele muitas pragas com as dores.
///
A cena de que ela não se quer lembrar, mas, por mais que faça naquelas horas de recolhimento, apresenta-se nítida à sua memória, foi a da surra que o patrão lhe mandou dar.
Como não pode repelir a lembrança, começa no seu pensamento a atenuar o crime – que ela não tivera culpa, porque enfim era menina nova, e o patrão não se importava com ela senão de meses a meses.
Cada vez que se lembrava, sentia os mesmos arrepios que a repassaram quando o patrão deu com ela e o preto da machila, o Ebo, um bonito moço Ginga, forte e esbelto, com uns olhos que eram os seus pecados, na casa por trás da loja onde arrecadavam cascos vazios e outras coisas, ambos encostados a uma pipa.
(1) Senhor da casa, chefe.
(2) Preta criada de quarto e também concubina
(3) Lugar onde, largo ou rua, as mulheres pretas vendem algodões, chitas, pratos, etc.
(4) Preta clara
Ainda lhe tilintam aos ouvidos, como os mazuela (1) dos carregadores, as palavras que disse o patrão:
- Ah, grande…, eu já andava desconfiado. Deixa estar.
Ela pôde fugir pela porta do pátio, e subir pela escada que ia dar à casa de mesa.
Daí a pouco apareceu o patrão seguido de dois pretos do Bengo que tinham vindo com as cargas; e mandando-a amarrar ao mastro que segurava a caixa do macaco, levantaram-lhe os panos e levou cinquenta chicotadas. Ainda se lhe apertam os músculos da parte açoitada com esta lembrança, mas custa-lhe mais a vergonha que sentiu. Se o patrão lhe desse um tiro ou uma facada, como fez um rapaz das cubatas (ainda então não estavam na Ngombota) a quem acontecera o mesmo com a barregã, e então feia como o manipanso de um cabinda que ela era, vá: mas açoitada como os negros, ela a mucama, Nga Muhato (2) como diziam, era de mais.
Enquanto o chicote zunia e o macaco dava saltos na caixa abanando o mastro que a segurava, ela pensava em se matar. E é que também lhe doía muito.
Quando a desamarraram, caiu com o rosto para o chão, fingindo-se morta. Foi um feliz expediente. O patrão disse: - Oh! Diabo! Matei o raio da preta!
Disse que a levassem para o quarto, e mandou à moleca que lhe tinha dado a ela, a Bebeca, que fosse para lá deitar-lhe água na cabeça. Nga Ndreza não saiu do quarto por muito tempo, e a todo o momento esperava que o patrão a vendesse.
III
O quarto dela ficava ao pé da casa de mesa, a varanda, e sempre que o patrão ia jantar, punha-se a olhar e escutar ao buraco da fechadura para ver se falava nela. Tinha também dito à Bebeca para lhe contar se o patrão dizia alguma coisa.
Não buliu no comer que lhe ia da mesa, mas tasquinhava umas postas de peixe compradas na taberna de um degredado, e quicuanga (3), mas tudo às escondidas.
Um dia o patrão ao jantar, depois de os caixeiros descerem para a loja, disse para um vizinho muito amigo que jantava com ele - Assim como assim, fica como dantes. Estou dente, ela já sabe os meus usos. Se há-de vir outra que faça o mesmo e não me sirva…
- É melhor, é - disse o vizinho com compadecimentos hipócritas. – Tu és doente e aquilo não valeu nada. Talvez até nem chegassem a fazer mal.
- Isso não, que eu vi muito bem…
- Pois sim, mas no fim de contas nós estamos velhos. E depois – fez com uma fingida resignação canalha – tudo é o mesmo. Olha, a que lá tenho, que tem fama de ter muito juízo, e sabes que esteve em casa da D. Luísa a aprender, quem sabe o que fará?
- Não - disse o patrão com mágoa -, a tua Chica é boa rapariga, todos o dizem.
- Pois sim, eu também disse aquilo só por falar. Que, deixa-me dizer-te, coitadinha dela se mo fizesse! Mas, meu amigo, eu não como miolo de enxergão, não tenho a tua boa fé, a mim ninguém me faz o ninho atrás da orelha.
E Nga Ndreza ao ouvir isto dardejou-lhe um olhar pelo buraco da fechadura que, se o vizinho visse, não falaria tanto.
Porque ela mais que uma vez pela janela do beco tinha surpreendido a Chica na varanda, em brincadeiras com o caixeiro, o Serra, que o vizinho queria fazer sócio – e quando foi ao Bengo dar balanço à loja que lá tinha entregue a um degredado, uma vez o Serra não lhe estivera a fazer cócegas, e a Chica em corridinhas, com o pano seguro só num ombro, a fingir-se zangada, batendo-lhe com a mão e dizendo – cambo o sonhi (1) – mas em grandes gargalhadas? Oh! Se tinha visto.
E depois a Chica não fugiu para a camarinha e o Serra não foi atrás dela, e fechou-se a porta, e lá estiveram um bom bocado, saindo o Serra primeiro, muito comprometido, e muito corado, olhando desconfiado em volta, e depois ela, como se não tivesse havido nada, não
(1) Guizos que os carregadores usam à cinta para afastar as feras, quando vão para os matos
(2) Senhora, senhora casada (à moda da terra), mulher.
(3) Bolo feito de mandioca fermentada
(4) Falto de vergonha, sem vergonha
veio ralhar com uma severidade digna com a moleca que estava no pátio a brincar com o preto da loja?! Tal e qual.
E nessa rápida lembrança que acompanhou o tal olhar, murmurou:
- Que burro!
Dois dias depois Nga Ndreza já corria pela varanda e à noite o patrão dormiu muito melhor com a fomentação do baço e o conchego do travesseiro debaixo do fígado.
///
Mas Nga Ndreza andava triste, não tinha filho. – As amigas, muito invejosas, diga-se a verdade, diziam que talvez fosse dela, mas que era mau – que os brancos não se prendiam bem, senão quando tinham filhos, que precisava ter um. Lembraram-lhe promessas feitas a Nossa Senhora da Muxima, ou que fizesse feitiços, e fê-los.
Havia uns dias que o muari, quando entrava na camarinha, começava a cheirar, a cheirar, fazendo desagradáveis trejeitos – cheirava mal. Qual seria o gato, ou cão, e corria os cantos da casa, mas nada. Nga Ndreza estendia a sua esteira ao pé da cama, e ficava muito quieta fingindo dormir.
Uma noite o muari disse que havia de saber a causa do mau cheiro. Chamou os moleques, o da mesa que era o Muhongo, e o da loja, e fê-los revistar tudo. Estava desesperado, eis que o Muhongo começou a desfazer a cama e a mexer no colchão.
Nga Ndreza entrou a resmonear, mas o moleque continuava procurando, até que, achando um buraco no colchão pela parte de baixo, e metendo a mão, tirou uns pés, uns ossos e uma cabeça de galo com a sua crista e penas.
Nga Ndreza ficou atrapalhada; o patrão olhou para ela, não disse mais nada: foi a um canto, tirou um junco, e zás, zás, zás, nas suas costas roliças e luzidias. – Caíram-lhe os panos de cima, e mesmo assim, com as mãos cruzadas no seio, fugiu para a varanda. O patrão deixou-a, e nessa noite dormiu numa cama de campanha que estava ao pé da sala onde jogavam às vezes.
Era a acama onde costumava dormir o juiz um grande sono, até vir a canja, quando ia lá à batota, e o limpavam logo ao princípio.
No dia seguinte veio o mestre Pedro, colchoeiro, e fez o novo colchão. Nga ndreza esteve muito séria; não comeu, nesse dia nem no outro.
Enfim as coisas compuseram-se. Tinha chegado novo sortimento ao patrão, e ele mandou-a chamar uma noite à loja depois de fechadas as portas da rua e ali lhe fez escolher um pano da costa, umas peças de chita e um fio de corais, daqueles grandes que custam a macunha tato ni tato ni kipaca (1) – cada bago, bagos muito grandes. Então ela contou-lhe tudo, com certas reservas todavia - Disse-lhe ele que não se importasse, que se morresse não havia de ficar sem nada.
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Pouco tempo depois o patrão entrou numa noite para casa a queixar-se de uma pontada no lado esquerdo, e pontada foi que no outro dia estava morto.
Nga Ndreza portou-se dignamente.
Quando vieram os galfarros da Junta, como dizia o vizinho, que ficara testamenteiro, o escrivão deputado (ainda não havia secretário como hoje) viu-a sobre a cama ao lado do cadáver do patrão, que estava coberto com um lençol.
O escrivão-deputado chegara do Reino havia pouco tempo e estranhou o caso; mas o escriturário, filho do país, muito asseado e com o peitilho da camisa muito lustroso, fez a cortesia digna e disse: - São os usos da terra, é óbito.
E como o defunto encarregara o testamenteiro de liquidar a herança e entregá-la aos herdeiros directamente, pouco tiveram a fazer, saindo logo o escrivão-deputado na frente, em seguida o vizinho com muitas cortesias e dizendo a tudo: -“Sim senhor, sim” -, e mais atrás o escriturário que perdeu uns minutos a cumprimentar muitas raparigas, todas com os seus
(1) 1000, a tradução: 33 macutas e 10 réis.
panos negros a cheirar muito, à tinta, e que faziam companhia à Nga Muturi (1). O escriturário ao sair a porta cruzou com uma sua conhecida que entrava rebolando muito presumida as cadeiras monstruosas, mas com o parecer consternadíssimo, e ao cruzar deu-lhe ali um belo apertão, mas conservando sempre a gravidade da ocasião. […]
V
[…] Nga Muturi, passado o nojo, foi para sua casa e tratou de vender a roupa do falecido, que ele lhe tinha deixado e mais a mobília.
Houve uns zunzuns por ocasião da entrega da roupa a Nga Muturi feita pelo testamenteiro, que tinha levado muito tempo, diziam, mas foi peta. – As malditas línguas de Luanda, que tudo envenenam – dizia o testamenteiro ao Lopes, guarda-livros da Sobral, e muito gabado em escrituração, uma vez que ele lhe contou o que se rosnava. – Que era impossível praticar ele tal acção, estando ainda quentes as cinzas do seu amigo. – E dizia isto indignado, furioso passeando rápido ma loja fora do balcão.
Nga Muturi afligiu-se muito quando uma amiga, com assomos de indignação hipócrita, lhe referiu, valha a verdade muito acrescentando. Esteve muito tempo a falar, dizendo que ela não era negra, nem tinha os costumes que diziam isto, e repetia isso muitas vezes, fitando a amiga. Esta, que não podia perder as relações de Nga Muturi, atalhou logo – que aquilo tudo era inveja por ela estar rica.
Via-se embaraçada para vender a roupa, mas por conselho do testamenteiro entregou-a ao Serra que ia para Casengo à colheita, e lhe dizia que ali se trocava tudo a café muito bem, que era um negócio da China.
Quem não ficou contente coma incumbência quando soube foi a Chica.
Aproximava-se o aniversário do óbito. Já se falava nas missas, e todos diziam que seriam de estrondo. E foram faladas com efeito.
A gaêta (2) era das melhores, e o batuque tinha vindo do Bengo. Havia dois tocadores que se revezavam. Quem tocava o batuque era o Felèla, que tinha sido moleque do Ferreira e dele tirava o nome estropiado. A ricanza de bordão, novinha em folha, era esfregada com toda a arte por uma velha já sem dentes, mas ainda muito amiga de brincadeira. Fora das melhores para a brincadeira, nos seus tempos.
- Se a vissem – dizia o velho Torres, com umas saudades lúbricas de outrora.
Dançaram toda a tarde e toda a noite. Houve muita concorrência. O vizinho deu um bezerro, e um garrafão de vinho. Nga Muturi teve mais outros presentes. Ainda gastou muito dinheiro.
Muito nfungi e carne guisada. Houve quitoto. Aguardente e genebra. Como sabia que iam brancos, tinha duas garrafas de vinho do Porta marca Triumpho de Bacho. O Santana, guarda da alfândega, que era quem lhe escrevia as cartas para Casengo, para o Serra, por causa da roupa, foi de opinião que comprasse do Maria Claudina, isso é que era vinho, que era a melhor marca. Que o Triumpho de Bacho vinha todo falsificado. O primeiro que veio, esse sim. Mas Nga Muturi, como o vizinho do defunto falecido só tinha desta marca, não o quis escandalizar, comprando em outra parte.
Foi um batuque falado. Dançavam no pátio. O João das Lanchas emprestou uma vela que servia de toldo.
Estavam duas velas nos castiçais de louça branca com florões dourados dentro das mangas de vidro no meio do quintal a alumiar. Dançavam em roda.
Apareceu tudo quanto havia de bom em raparigas. – As filhas naturais do tenente-coronel Fontoura, que tinha morrido no Golungo Alto, com as suas exageradas quindumbas (3), eram as que dançavam melhor, com mais garbo. Todos o diziam. A porta do corredor estava fechada para não deixar entrar todo o fiel patife. O Santana era quem tinha a chave.
(1) Senhora viúva
(2) Corrupção de gaita. É como n terra é designado o harmónio, instrumento indispensável num batuque na cidade. A orquestra compõe-se de gaeta, batuque e ricanza
(3) O cabelo muito levantado adiante e cortado de forma que figura um diadema.
///
O Lobato, claviculário do Cofre dos Órfãos, também lá foi com o delegado novo que tinha chegado no último paquete. Quem pediu ao Lobato para o apresentar foi o ajudante da conservatória.
Na varanda estavam as sobrinhas do Monteval, que não dançavam porque eram de vestidos. Nga Muturi não queria dançar também, por mais que a desafiassem - Que não parecia bem, que tinha de fazer as honras da casa.
À meia-noite bateram à porta, e entro o Serra, tinha chegado naquele momento de Cazengo, no Cunga. Nga Muturi ficou muito contente e correspondeu-lhe as duas sembas que ele lhe deu. Tinha bebido dois copos de vinho ao jantar, e, a pretexto de incomodada do estômago, tomou o cálice de genebra.
Tinha o olho brilhante, e falava com verbosidade para todos, e especialmente para o Serra a quem perguntava muitas coisas. O Serra vinha pálido, mas não descansava no batuque. Apesar de um amigo, que tinha vindo com ele, lhe dizer que não bebesse genebra, não fazia caso e entronava copinho sobre copinho. – Que estava muito suado, que não queria que lhe fizesse mal.
Às três horas acabou-se a festa, para continuar no outro dia.
O Serra foi o último a sair. Nga Mututi tinha muito que lhe falar por causa da roupa. Tocava já a alvorada.
VI
As missas continuaram.
Haviam de durar oito dias, nada menos, dizia Nga Muturi, e muito melhor que as dos Mártires, pelo irmão que tinha sido capelão cantor, porque as dele, cuja memória ainda estava fresca, se haviam durado oito dias, fora à custa dos convidados, que todas as noites tinham de concorrer com a sua espórtula. As de Nga Muturi – essas não, seriam à sua custa unicamente, que não precisava de subscrições.
Ao quarto dia, porém, sentiu-se incomodada, um mal-estar esquisito, estranho. – As amigas notaram-lhe a face demudada. Ela dizia que era cansaço, mas os oito dias seriam cheios.
Não foram, porque a tristeza da dona da casa dava um tom sombrio à festa.
Enfim passaram os oito dias e as raparigas começaram a pensar lembrar-se de que missas estavam à bica. Falava-se nas de D. Luísa pelo marido; nas de José Bento pela mãe e não faltavam as raparigas com denguices aos homens com quem tratavam para alcançar dinheiro para novos panos.
///
Ao nono dia depois das missas, Nga Muturi, que não se sentia melhor, arranjou-se conforme pôde, e foi à botica do Teves. Era de manhã. Chegou mesmo quando ele saía da machila que o trouxera das caieiras, que tinha ido ver cedo, como costume.
Ngana Teve, como ela o cumprimentou, começou logo com o seu palavriado de costume, perguntando-lhe o que tinha, quando casava, dando-lhe muitos conselhos, que tivesse juízo, que não se deixasse comer.
Nga Muturi, coberta com o seu pano preto e os olhos baixos, começou com meias palavras a queixar-se de um mal, que lhe parecia lombriga, porque sentia isto e aquilo, com umas reticências duvidosas, a ponto de Ngana teve olhar muito fito para ela e dizer:
- Já sei, já sei. – E levou-a para um canto da farmácia ao pé da porta que deita para a escada, e ali fez perguntas em voz baixa a Nga Muturi, às quais ela respondia com os olhos no chão, por monossílabos, espalmando a mão sobre os panos, como querendo acertá-los.
Ngana Teve concluiu em voz alta:
- Está bom, está bom. Vai-te embora, rapariga, e manda cá uma garrafa para te arranjar o gomoso.
E quando ela se retirava, envergonhada, ele da porta, com a sua bengala de gancho a bater pancadinhas na soleira, disse-lhe de longe:
- Olha os banhos, hem, com malvas.
///
Nga Muturi nunca mais pôde ver o Serra. Lembrou-se até de lhe fazer feitiço, mas abandonou o projecto com um longo suspiro. […]
In “Nga Muturi”, União dos Escritores Angolanos, 1980
ALFREDO TRONY
Nasceu em Portugal, a 4 de Fevereiro de 1845, e faleceu em Luanda a 25 de Julho de 2004, tendo-se dedicou à advocacia. Fundou e dirigiu os periódicos Jornal de Loanda (1878), Mukuarimi (1888), e Os Concelhos de Leste (1891). Os excertos aqui contidos, são da sua única novela, Nga Muturi, primeiramente publicada em folhetim no Diário da Manhã, jornal português, em 1882, descoberta e reunida em volume quase um século mais tarde
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