domingo, 1 de novembro de 2009

AMOR DE PERDIÇÃO


Na Ilha do Cabo não havia quem não conhecesse o Bola de Funji, assim apelidado não se sabe bem porque razões. Talvez pela gordura e indolência.
O Bola era uma paz de homem, manso como um boi .
Era raro vê-lo nervoso ou zangado e passava tão despercebido que nunca se lhe conhecera uma namorada. Arranjara emprego numa sociedade de armadores como mecânico de motores navais, sendo respeitado e o seu trabalho apreciado. Um verdadeiro profissional.
Julieta Neves, igualmente da Ilha, era uma jovem mulher, daquelas que gostam de mandar e habituada a levar razão. Durante muitos anos vendeu peixe; porém, um dia decidiu que não era profissão para si, arranjou um cooperante búlgaro que lhe pagou um curso de informática e lá foi Julieta trabalhar para a Bulgarexport, como secretária. Infelizmente sua prestação laboral foi uma verdadeira bulgaridade. Até ele, estrangeiro, conseguia escrever melhor português. Acabou-se o trabalho e, por consequência lógica, o patrocínio da bela marítima ao búlgaro.
Após várias outras tentativas, igualmente infrutíferas, descartou um italiano de quem muito gostou, um brasileiro e um jugoslavo. Optou, assim, por voltar à venda do peixe, profissão muito mais artística e conforme a sua natureza expansiva.
Foi com grande espanto, pois, que os locais viram o Bola de Funji começar a andar com a Julieta Neves.
“Aué mana, coitado dele!”..., dizia uma.
“Eh! Vai fazer então o quê, com ela, se nem os cooperas lhe aguentaram!”, dizia outra.
“Entafuna ka dya ko ekumanana i diye?”, alvitrou uma terceira.*
“Xê, você então, aqui ninguém fala kikongo.”, atirou a que primeiro falara.
“Quer dizer que devemos aproveitar o que aparecer...”, respondeu a outra.
Bola de Funji subiu na consideração de muitos. Afinal o homem era touro bravo, de boi manso só a aparência.
“Sabe mano”, dizia um pescador, “às vezes essas gajas assim precisam é mesmo dum que não lhes ligue muito..”
“Não sei, papá!... Quem já viu o dia casar com a noite? Nunca!... Um só segue o outro, nunca se encontram.”, respondeu um outro pescador.
“Mas o que lhe deu então? Nunca lhe vimos com mulher e agora, de repente, agarra logo nessa que já passou em tanta mão que até tem marca.”
“Pode ser que dá certo.”
Durante um ano deu certo, certo até para desconfiar, diziam as invejosas cujos maridos as haviam abandonado. Todavia, para desconfiar nunca houve mesmo nada.
Bola de Funji era bom marido, sempre em casa a horas, salário religiosamente nas mãos da mulher que lhe devolvia um tanto para os cigarros, um filho parido há pouco, enfim, nada para se lamentar. O resto era só inveja, esse sentimento tão comum a toda a gente luandense, que nunca conseguiu aceitar ver o próximo a ter sucesso ou viver tranquilo.
Por seu lado, Julieta Neves sossegara bastante, mantinha o lar com um mínimo de dedicação já que se consagrava ao peixe durante a maior parte da manhã, cuidava do filho e do marido e nunca lhe dera aso a reprovação.
Mas...
Há que haver sempre um “mas” na vida das pessoas. Um dia, Julieta encontrou-se com o italiano, Vittorio, o antigo amante e de quem ela verdadeiramente gostara, a despeito de a ter despedido e mandado embora quando deu conta que escrevia melhor português que ela.
“Buon dia Djulieta, cosa fai?...”
“Buon dia uma ova, seu cabrão de merda.”
“Djulieta!... Non fala cosi!...”, implorou com as mãos o napolitano.
“Que queres, já esqueceste que me abandonaste?”
“Ma cara mia, non sono io che te abandonou, io estava enamorato de te. Ma tu non podia lavorare colocando una hora para scrivere una lettera...”, tentou safar-se. “E dopo, tu non vogliava piu fare amore!”
“Julgavas que ia continuar a ser tua depois de me pores na rua?”
“Te voglio bene Djulieta!”
“Ai é? E de que me serviu isso?”
Pressentindo que a amaciara um pouco, Vittorio ligou a cem por cento o charme da bela Itália.
“Djulieta, te ricercato molto e non me quisseste... noi due eravamo para andar in Italia. “
“Engana-me que eu gosto, seu mentiroso dum raio. Agora sou casada! CA-SA-DA!...”, atirou-lhe, para ver o efeito.
“Non fare male, non sono geloso...”
“Geloso?...”
“Tchiumento!...”
“Não és ciumento?, que engraçadinho, mas cuidado que o meu marido é.”
“Quem, Bola de Funghi? Io sono estato a domandare, tuo marido non mata una mosca.
“Até pode ser, e por isso te mate a ti. Desaparece, vai à tua vida!”
“Va bene, va bene, ritorno domani e dopo andiamo a fare un giro.”
“Stronzo, todo este tempo aqui e ainda não aprendeste a falar português?”
Vittorio largou uma gargalhada e despediu-se, comprando-lhe duas garoupas. Julieta, sem o querer, arrumou o cabelo e os seios. Depois sorriu e remeteu-se ao trabalho.
“Merda!... Não fui feita para ser peixeira!”
“Ua zuela ima iai?”, perguntou-lhe a outra do lado.(O que disseste?)
“Não chateia, pá! Cuida da tua vida.”
“Tá bem, tá bem, só précurei saber!... Aué, kima kiai ki nga kubange?” (Que mal te fiz?)
Vittorio foi aparecendo com calculada frequência. Para além do charme e do sorriso a que Julieta conseguia dificilmente resistir, trazia sempre uma pequena prenda, aquele perfume que ela tanto gostava, um lenço, uns trocos a mais que fingia esquecer quando comprava o peixe.
As peixeiras vizinhas começavam a cruzar olhares insinuantes quando o Fiat do italiano aparecia, sobretudo porque pronto se notava uma mudança nos ares de Julieta. Logo tirava o pano que a cobria da cintura para baixo, revelando uma insinuante mini saia, sem falar do generoso decote que sempre usava. Quem olhasse para ela nesses momentos, não deixaria de notar e ver ali uma peixeira muito mal empregue.
“Uno desperdício!... Uno desperdício!”, dizia o italiano, erguendo as mãos ao céu.
“Agora já nem se cumprimenta?”, perguntaram as do lado. “Só tem olhos para ela, é? Cuidado então com o Bola de Funji!...”
“Buono dia sinhorinas, sono venuto para domandare a Djulieta que me faça, no prosimo sábado
una feidjoada com tutti, io ho amicci italiani que tchegam en Angola questa matina.”
“Agora sou tua cozinheira, é?”, disse Julieta meneando as ancas.
Vittorio piscou-lhe um olho, esperando que não tivesse sido notado.
“Non, Djulieta, non!... Voi pagar-te, cem dólares, solo para o sábado. Viene a la dieci de la matina e ritornas a le cinque...”, replicou piscando-lhe o olho novamente.
Julieta por fim entendeu e não soube o que responder. Virou-lhe as costas para as outras não perceberem a sua indecisão e excitação. Auá!, sacana do italiano.
“Não sei, tenho que falar com o Bola, o meu marido.”, disse para camuflar as aparências.
“Parlare com Bola di Funghi, per quê?...”
“E não é Bola de Fungui, seu atrasado, é bola de funji, FUN-JI..., capicci?...”
“Então não vai falar com o marido?”, perguntaram as outras. “Na Itália é assim?...”
“Bene, bene, parla com Bola di Funghi. De la dieci a la cinque de la tarde, domani ritorno para
saber.”
Julieta falou com o esposo, informou-o de que sábado próximo iria trabalhar na casa de um estrangeiro, das dez da manhã às cinco da tarde, para preparar-lhe uma feijoada completa que oferecia aos amigos acabados de chegar ao país, e que para tanto iria receber cem dólares. Quando Bola de Funjio quis saber quem era o tal estrangeiro e onde morava, Julieta perguntou-lhe se alguma vez se metera na vida dele.
“Você é minha esposa e não pode andar assim à toa, é mulher casada.”
“Que vou fazer de mais? Alguma vez te pus os cornos?”
“Não é isso, é o que os outros vão falar.”
“Deixa, já estou habituada. Quando me conheceste já não falavam de mim?”
“Mas agora te dei respeito, já ninguém mais fala!”
“Me deste respeito?, se não fosse eu, qual é a gaja que ia andar contigo? Eu é que te dei respeito!...”, ripostou zangada.
“Não é preciso discutir, só estava a pensar que não devias fazer isso, nem sei quem é a casa onde vais.”
“Estás com ciúmes? Quando te quiser cornear nem vais saber...”
“No dia que fizeres isso me mato.”
“Ai é? E porquê?”
“Julieta, você é a minha esposa, a única mulher que eu amei e amo, a mãe do nosso filho...”
“E pôr cornos é o fim? Que vida é essa que você me deu? Teu salário chega para quê? Quem põe as coisas cá em casa não é o meu peixe?”
Bola de Funji calou-se, a mulher tinha razão e, afinal, sempre fora uma boa esposa, estava só zangada e a falar da boca para fora.
“Pronto filha, vai. Mas cinco e meia estás em casa.”
E lá foi a meiga Julieta!...
As gargalhadas vindas do quarto de dormir de Vittorio eram muitas e felizes.
“Così Bola de Funghi deixou-te vir?” ria o italiano
“Se tornas a falar aqui o nome do meu marido, rebento-te a cara, seu italiano de merda...”
“Calma Djulieta, calma, non voi a fazer piu, era solo uno gioco!”
“Não quero essas brincadeiras. Estou aqui contigo e a minha casa não entra nessa conversa.”
“Pronto, calma, já mi sono discolpato...”
Após o amuo da praxe, que serviu mais de tempero do que outra coisa, entregaram-se ao amor, Julieta com a raiva acumulada pelo passado.
“Questa nera, Dio mio, questa nera, que follia!...”, gritava o italiano no auge do repasto.
Por fim relaxados, cada um com um copo de vinho na mão, Vittorio largou uma gargalhada.
“Deu-te para rir? O que foi?...”
“Voglio sapere fare la feidjoada com tutti .”
“Aqui na cama?...”
“Per che no? Fica una feidjoada erótica, da vero una feidjoada com tutti!”, e riu que se fartou.
“Ai é, meu cão?... Queres uma feijoada erótica?”, perguntou-lhe, passando um dedo pelo umbigo dele. “Ainda não te chegou?”
“Au-au-au-au”, fingiu que ladrou. “Non, non me tchegou, é la fome de molto tempo.”
“Na nossa Ilha dizemos, lamba kiambote pala diiala ku-ku-zola kiambote.”
“Traduzione, traduzione per favore.”
“Tradução!... Tens que fazer um esforço, possa!... Isso significa, cozinha bem para o homem gostar de ti.”
“Buono, voi fare uno esforço para parlare piu o português, ma solo dopo de la feidjoada erótica.”
“Pode ser que seja, mas agora vais ter que me dar trabalho, não quero mais ser peixeira!”
“Mas amore mio, tu scrivere molto mal!...”
“Não quero saber, ou há trabalho ou não há feijoadas eróticas.”
“Abandona tu marito, vive com me...”, contra atacou o magarefe.
“Abandonar o meu marido, viver contigo? Deves estar maluco, não?”
“Non, da vero! Vive com me.”
“Tudo isso é muito bonito, mas quando fores para a Itália a preta fica.”
“Nunca ritorno pio em Itália. Voi aprender o português bene...”
“Só o português?”, brincou ela, passando novamente o dedo, um pouco mais abaixo do umbigo.
O italiano começou a sentir a renovação das forças.
“Non, mia nera santa, la feidjoada também!...”, e ambos caíram nos braços um do outro a rir.
“Bem, prepara-te para saberes o que é uma feijoada com todos. To-dos, e não tutti!...”
Julieta sorveu o vinho e pediu para lhe acender um cigarro. Recostada na cabeceira da cama, achou que merecia viver aquela vida, arranjar um estrangeiro que a tratasse bem e com carinho. Estava farta da luta sem compensações, farta do gordo e paspalhão do marido que a única coisa que fazia era declarar-lhe seu amor de perdição, ainda por cima com as ameaças de matar-se se ela o deixasse.
“Porra!, que azar meu!”, falou alto.
“Que passa?”, perguntou o italiano, assustado.
“Nada.”, disse, afagando-o para o tranquilizar.
Julieta sorriu e acarinhou-o novamente. O balofo do Bola de Funji nunca brincara com ela deste modo. Sempre cansado do serviço, comer, ver televisão e dormir. Às sextas feiras faziam amor, mais por obrigação, mesmo não sendo ele assim tão mau na arte. Mas o peso, ai santo Deus, o peso é que lhe tirava as ganas. Bem lhe pedira para ser ao contrário, mas qual quê, lugar de marido é em cima e não havia nada que o demovesse. À mínima insinuação, resmungava logo, isto aqui não é lá como com os cabrões dos estrangeiros que andaste.
Calava-se Julieta então, e tentava tirar partido da situação, o homem até não fazia amor mal.
“Presta atenção. Começas por arranjar o feijão, mas vou já avisando que feijoada não é prato angolano...”
“Non fare mal, é buona!”
“Está bem. Colocas o feijão de molho com chispe de porco e entrecosto salgado. Depois levas ao fogo e quando atingir a fervura, juntas o chispe, o entrecosto, mais o chouriço, o toucinho e carne de vaca.”
“Questo tudo?”
“Sim, tudo isso. À parte, fazes um refogado com banha e cebola...”
“Banha, que é banha?...”
“Sei lá o que é banha em italiano... olha, a gordura do Bola de Funji.”, e riu, maldosa.
“Strutto, mia cara. Strutto.”
“Ouve lá, não disseste que ias ficar em Angola?”
“Si, voglio...”
“Então tu é que tens que aprender português e não eu italiano.”
“Va bene, banha. E dopo?”
“Depois, quando a banha começar a alourar deitas as carnes já cozidas e cortadas em pedaços, temperas com sal e pimenta, se quiseres fazer à angolana pões um pouco de jindungo, e juntas o feijão, com uns pedaços de cenoura cozida. E pronto, é só comer, depois de apurado.”
“Ah, amore mio, andiamo pronto a fare una feidjoada erótica, sono com fome...”
Uns três meses depois Bola de Funji, não aguentando mais a insustentável situação que a tal feidjoada criara, tentou encostar a mulher à parede com renovada ameaça de morte.
“Queres matar-te?, pois mata-te, mas não vais impedir de eu sair. Xê!, matei Cristo ou quê?”, gritava Julieta, enquanto colocava a mini saia vermelha, a que Vittorio mais gostava.
“A nossa vida nunca foi assim, desde aquela maldita feijoada que tudo mudou!...”
“Nada mudou, isso é o que pensas. Não continuo cá em casa, não fazemos amor todas as sextas feiras?...”
“Toda a gente fala que andas a me pôr os cornos com o italiano, é mentira?”
“Não continuas a entrar em casa à vontade, alguma vez você bateu com os cornos lá em cima na porta da entrada?...”
“Não goza comigo, se essas feijoadas continuarem, vou cortar um dedo para você pôr lá, assim quando estiverem a comer vai-se lembrar do teu marido e do teu filho, sua cabra.”
“Não me insulta assim, porque senão vou viver com o Vittorio, não volto mais.”
Ao ouvir isto, Bola de Funji ficou como que louco. Com um pulo ágil que espantou a mulher, correu para a cozinha e voltou com uma faca de cortar carne. Julieta olhou-o meio espantada mas continuou a preparar-se, o que o irritou ainda mais.
“Você me chama de frouxo, de parado, pensa que eu não sou capaz?”
“O problema é teu, queres cortar o dedo para pôr na feijoada, corta!...”
Ao ouvir o desafio, Bola de Funji colocou a mão em cima da cómoda e, com um gesto preciso, mutilou-se do dedo mindinho esquerdo, que caiu para o chão. Julieta deu um grito de horror, chamou pelas vizinhas e retirou-se, sem a intenção de voltar. O italiano não era esse selvagem.
Entretanto, na Air France, Vittorio comprava seu bilhete di ritorno, como diria. Acabara o contracto e regressaria dali a dias à sua bela Itália, onde a esposa, já avisada, o esperaria com una bela feidjoada, receita transmitida via fax , com ligeiras adaptações erótico-regionais.

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